A proposta de um ensino de gramática em três eixos

Victor Renê Andrade Souza,
Lucas Santos Silva

Resumo

Neste texto, apresentamos uma resenha da conferência Ensino de gramática em três eixos: uma questão de ciência, cidadania e respeito linguístico proferida por Silvia Rodrigues Vieira e moderada por Isabel Monguilhott no dia 16 de julho de 2020 no evento Abralin Ao Vivo – Linguists Online. De modo panorâmico, Vieira discute sobre ensino de gramática e apresenta sua proposta de um ensino em três eixos (atividade reflexivaprodução de sentidos – normas/variedades), associando-os a questões relativas à ciência, à cidadania e ao respeito linguístico (VIEIRIA, 2017a; VIEIRA, 2017b). A conferencista i) traça um breve panorama do ensino de gramática à luz das repercussões dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs); ii) explicita sua proposta de ensino de gramática em três eixos; e iii) apresenta resultados de pesquisas produtivas sobre ensino de gramática.

Texto

Tratar de ensino de gramática não é tarefa fácil. A questão já é vista como objeto de pensamento há muito tempo, mas se mostra incipiente no que diz respeito a resolutividades. Atualmente, a discussão não é se devemos ensinar gramática; as questões em aberto são como, por quê e para quê ensinar gramática (cf. FREITAG, 2017[1]).

Frente estes desafios, destacamos a proposta de um ensino de gramática em três eixos da professora Silvia Rodrigues Vieira, que propõe um trabalho com gramática que integre atividade reflexiva, produção de sentidos e considere os fenômenos linguísticos como manifestação de normas/variedades nos contínuos fala/escrita e de monitoramento estilístico. A proposta é abordada na conferência Ensino de gramática em três eixos: uma questão de ciência, cidadania e respeito linguístico proferida por Vieira[2] e moderada por Isabel Monguilhott no dia 16 de julho de 2020 no evento Abralin Ao Vivo – Linguists Online.

Silvia Rodrigues Vieira é professora associada do Departamento de Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atua nos Programas de Pós-graduação em Letras Vernáculas e no Mestrado Profissional em Letras na UFRJ. A pesquisadora tem se dedicado à Sociolinguística, sobretudo no que se refere à descrição de variedades do Português. Vieira é referência em todo o Brasil no estudo do ensino de gramática, com obras como Gramática, variação e ensino: diagnose e propostas pedagógicas (VIEIRA, 2017a[3]) e Variação, gêneros textuais e ensino de Português: da norma culta à norma-padrão (VIEIRA, 2019[4]).

Em sua fala no Abralin Ao Vivo – Linguists Online, que resenhamos aqui, Vieira discute, de modo panorâmico, sobre o ensino de gramática e apresenta sua proposta de um ensino em três eixos, associando-os a questões relativas à ciência, à cidadania e ao respeito linguístico, como faz menção o título de sua conferência. A professora i) traça um breve panorama do ensino de gramática à luz das repercussões dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs); ii) explicita sua proposta de ensino de gramática em três eixos, enfatizando questões conceituais relativas às noções de norma; e iii) apresenta resultados de pesquisas produtivas sobre ensino de gramática.

A partir da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), houve uma mudança de paradigmas no ensino de gramática – pelo menos teoricamente - ocasionando a substituição de um modelo de ensino tradicional – supostamente ineficiente, que pressupôs uma transposição didática baseada nas evidências da Linguística contemporânea.

Os documentos oficiais, fundamentados nestas descobertas, direcionam o ensino a partir de uma abordagem sociointeracionista da língua. Deste prisma, o objeto de ensino privilegiado é o texto; o componente linguístico-gramatical, por sua vez, assume caráter instrumental. Vieira esclarece que os documentos oficiais reconhecem a legitimidade da variação linguística e assumem compromisso com o ensino da norma culta. Assim, as orientações oficiais preconizam um modelo de ensino baseado no tripé usoreflexãouso, envolvendo atividades linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas.

Apesar destes avanços nas orientações oficiais, a conferencista destaca que não houve a proposição e aplicação efetiva de um quadro alternativo ao ensino tradicional. Acerca disso, a pesquisadora aponta problemas e desafios de três naturezas que refletem a falta de amadurecimento científico acerca do ensino de gramática: i) inconsistências teóricas e descritivas tanto em relação à norma e à gramática quanto à descrição sociolinguística de fenômenos linguísticos; ii) delimitação do objeto de trabalho, sempre observado em oposição a outro, como excludente – ou é texto ou é frase; e iii) metodologias de ensino baseadas em experiências pessoais, sem comprovação científica.

Dito isso, Vieira (2017a; 2017b[3,5]) propõe um ensino de gramática em três eixos que se pretende conciliador e cientificamente fundamentado. Em sua fala, a conferencista materializa didaticamente sua proposta na figura do “banquinho do ensino de língua” (Figure 1), o qual reportamos aqui por considerá-lo exemplar à proposta:

Figure 1. Banquinho do ensino de língua

A estrutura do banquinho é representativa da proposta do ensino de gramática em três eixos de Vieira. Os pilares do ensino de gramática são as três propriedades inerentes às línguas, quais sejam: sistematicidade, interatividade e heterogeneidade; que precisam ser tratadas de igual modo nas práticas pedagógicas, garantindo “a firmeza do banquinho”. Assim, o ensino de gramática centrado nos três eixos deve conjugá-las, conciliando contribuições dos diversos quadros teóricos relativos às três propriedades linguísticas.

Vieira (2017a, p. 85-86[3]) defende que o ensino de língua deve trabalhar com gramática

i) considerando o funcionamento de recursos linguísticos em diferentes níveis (fonético-fonológico, morfológico, sintático, semântico-discursivo);

ii) permitindo o acesso às práticas de leitura e de produção de textos orais e escritos, de modo a fazer o aluno reconhecer e utilizar os recursos linguísticos como elementos fundamentais à produção de sentidos; e, ainda,

iii) propiciando condições para que o aluno tenha acesso a variedades de prestígio na sociedade, segundo os contínuos de variação (BORTONI-RICARDO, 2005), que configuram uma pluralidade de normas de uso sem desmerecer outras variedades apresentadas pelo aluno e/ou nos diversos materiais usados.

Vieira argumenta, ainda, que a relação entre os três eixos deve ser de complementaridade; mas, salienta que o eixo gramática e atividade reflexiva deve ser transversal aos demais eixos, como ilustra o esquema da Figure 2, abaixo.

Figure 2. Três eixos para o ensino de gramática.

O ensino de gramática proposto integra aspectos formais, relativos à sistematicidade da língua, envolvendo atividades de metacognição; à produção de sentidos, tanto no âmbito da leitura quanto no que diz respeito à produção textual; considerando a análise dos fenômenos linguísticos como manifestação de normas/variedades nos contínuos fala/escrita e de monitoramento estilístico.

Assim, vista como uma proposta conciliadora, o ensino de gramática em três eixos: i) parte do conhecimento gramatical inerente ao falante para a reflexão e sistematização dos objetos teóricos e de usos, num processo contínuo de retroalimentação; ii) considera as contribuições dos diversos quadros teóricos; e iii) defende que os objetos teóricos e de uso devem se basear em estudos científicos de descrição. Diante disso, a professora propõe, em alternativa à proposta de ensino de língua preconizado pelos PCNs, o seguinte esquema metodológico:

Figure 3. Esquema metodológico proposto por Vieira para o ensino de gramática.

De forma complementar à discussão, Vieira problematiza a confusão terminológica e conceitual que afeta a questão da norma de referência, como também discutiu Faraco (BASES, 2020[6]). A conferencista salienta que é preciso investir numa norma de referência baseada nos usos cultos, fundamentada em pesquisas descritivas e considerando o contínuo fala-escrita-monitoração, de modo que os instrumentos normativos reflitam estes usos.

No terceiro momento de sua fala, Vieira apresenta brevemente propostas pedagógicas desenvolvidas à luz dos três eixos para o ensino de gramática (cf. VIEIRA, 2017[5]). A professora enfatiza as propostas desenvolvidas no âmbito do Mestrado Profissional em rede em Letras (Profletras). O programa, na área de língua portuguesa, é dirigido a docentes do Ensino Fundamental da rede estadual e é voltado ao desenvolvimento de um produto pedagógico, que integra trabalhos descritivos, práticas pedagógicas e a testagem de sua efetividade e replicabilidade (FREITAG, 2017a[1]). Vieira evidencia a produtividade da disciplina Gramática, variação e ensino. Como aponta Freitag (2017b[7]), é através dela que o professor de língua passa por um processo de desconstrução dos “dogmas” em relação a como, se deve, para quê e o por quê ensinar gramática, contrariando a concepção de língua estática e de gramática imutável.

Dentre as propostas pedagógicas citadas pela conferencista, destacamos aqui o trabalho de Paes e Freitag (2020[8]), desenvolvido no bojo do Profletras, como exemplar à abordagem do ensino de gramática em três eixos. Paes e Freitag (2020[8]) desenvolveram um produto pedagógico para o trabalho com a expressão de segunda pessoa discursiva intitulado “Balança das Relações Sociais”. O desenvolvimento do objeto pedagógico passou por um rigoroso procedimento metodológico para testar sua funcionalidade, envolvendo um estudo piloto, com diagnose em produções textuais e entrevistas; aplicação do produto e testagem de sua efetividade a partir de questionários aos alunos (cf. PAES; FREITAG, 2020[8]). O produto pedagógico articula os três eixos de modo exemplar ao trabalhar com as formas linguísticas de segunda pessoa e as diferenças sociais constitutivas destas marcas linguísticas, considerando a produção de sentidos nas diversas situações sociocomunicativas.

Frente propostas pedagógicas como essa, é sensível que o ensino de gramática precisa ser visto enquanto objeto científico. A partir disso é possível desenvolver práticas metodológicas, de pesquisa e de ensino; e investigar sobre ensino de gramática, a fim de validar, com rigor científico, o êxito das propostas pedagógicas desenvolvidas. Neste cenário, destacamos a figura do professor-pesquisador, agente responsável por desenvolver e experimentar metodologias de ensino cientificamente fundamentadas no contexto prático da sala de aula.

Vieira encerra sua fala panorâmica explicitando a importância do ensino de gramática a partir de três eixos e de se pesquisar sobre o ensino de gramática, relacionando os três eixos do ensino às questões que intitulam sua conferência. Assim, é preciso ensinar gramática e pesquisar ensino de gramática i) por uma questão de ciência, a partir do desenvolvimento do raciocínio científico do aluno (eixo 1); por uma questão de cidadania, para que todo cidadão tenha acesso consciente às práticas de letramento significativas (leitura e produção textual) (eixo 2); e por uma questão de respeito linguístico, para a promoção de variantes linguísticas, tornando o aluno capaz de reconhecê-las e/ou produzi-las conforme suas necessidades sociocomunicativas (eixo 3).

Referências

BASES para uma pedagogia da variação linguística. Conferência apresentada por Carlos Alberto Faraco [s.l., s.n.], 2020. 1 vídeo (1h 9 min 15s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3kS-RHie0Zw&feature=emb_title. Acesso em: 08 maio 2020.

ENSINO de gramática em três eixos: uma questão de ciência, cidadania e respeito linguístico. Conferência apresentada por Silvia Ro-drigues Vieira [s.l., s.n.], 2020. 1 vídeo (2h 2 min 45s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ypVJ2tVT3Yw. Acesso em: 16 jul. 2020.

FREITAG, Raquel Meister Ko. A mudança linguística, a gramática e a escola. Revista PerCursos, Florianópolis, v. 18, n.37, p. 63 - 91, maio/ago. 2017a. DOI: https://doi.org/10.5965/1984724618372017063.

FREITAG, Raquel Meister Ko. O Dogma do Sujeito e Outros Dogmas. Revista Diadorim, v. 19, n. 2, p. 95-106, 2017b. DOI: https://doi.org/10.35520/diadorim.2017.v19n2a10666.

PAES, Jilcicleide Augusta; FREITAG, Raquel Meister Ko. Balança das Relações Sociais. In: ROIPHE, Alberto (Org.). Literatura em jogo: pro-posições lúdicas para aulas de português. 2. ed. revista e ampliada. Aracaju, SE: Criação Editora, 2020.

VIEIRA, Silvia Rodrigues (Org.). Gramática, variação e ensino: diagnose e propostas pedagógicas. Rio de Janeiro: Letras UFRJ, 2017a.

VIERA, Silvia Rodrigues. Três eixos para o ensino de gramática: uma proposta experimental. In: NORONHA, Claudianny Amorim; SÁ JÚNIOR, Lucrécio Araújo de (Orgs.). Escola, ensino e linguagens. Natal: EDUFRN, 2017b.

VIEIRA, Silvia Rodrigues; LIMA, Monique Débora Alves de Oliveira. (Orgs.). Variação, gêneros textuais e ensino de Português: da norma cul-ta à norma-padrão. Rio de Janeiro: Letras UFRJ, 2019.