Línguas locais na educação: a Iniciativa MIT-Haiti

Bruno Pinto Silva,
Marina Mello de Menezes Felix de Souza

Resumo

Em meio ao fortalecimento do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), o Professor Doutor Michel DeGraff relaciona a luta por direitos humanos e justiça social à Linguística. Ao apresentar a Iniciativa MIT-Haiti, o pesquisador nos mostra um projeto político-linguístico criativo e exportável para além do Haiti. Esse projeto se utiliza de ferramentas digitais em crioulo haitiano para promover o acesso dos estudantes haitianos a uma educação de qualidade. No Haiti, onde a maioria da população fala apenas crioulo haitiano, o idioma local se torna uma ferramenta essencial para a educação. Assim, o objetivo da Iniciativa MIT-Haiti é impulsionar o aprendizado ativo em crioulo haitiano por meio da valorização da diversidade linguística local. Nessa iniciativa, língua e educação se transformam em vetores-chave na luta contra a exclusão social. Logo, o conferencista evidencia que a Linguística é capaz de contribuir de forma prática para a igualdade de oportunidades e o desenvolvimento sustentável.                                                                                                                                                           

Texto

A conferência Vidas negras não vão importar até que as vidas dos negros também importem: políticas linguísticas e educação em pós-colônias1, proferida por Michel DeGraff[1], professor do Departamento de Linguística e Filosofia, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), acontece em um momento da história em que o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em tradução livre) está ocupando as ruas e promovendo o antirracismo. Um espectador da conferência de DeGraff pode achar que foi muito oportuno tratar desse tema num momento tão importante (e de fato é oportuno!), mas é preciso trazer à atenção o fato de que essa luta já vem sendo travada por ele há um bom tempo.

Da fala de DeGraff há muito que analisar, há muito que aproveitar, e são muitos os lados para os quais podemos dar atenção nesta resenha. O espaço que temos não nos permite contemplar tudo o que gostaríamos de aproveitar desta fala importantíssima promovida pelo evento Abralin ao vivo – Linguists Online. O nosso ponto de destaque principal será um: o projeto inspirador MIT-Haiti (MIT-Ayiti, em crioulo haitiano), coordenado por Michel DeGraff. Antes, no entanto, não se pode deixar de falar sobre a contribuição importante de DeGraff para a decolonialização da própria Linguística, em especial em relação à visão sobre as línguas crioulas.

Mais cedo ou mais tarde, é muito provável que o leitor se depare com o texto Linguists’ most dangerous myth: the fallacy of creole exceptionalism de DeGraff (2005[2]). Espera-se que os que se depararem com esse texto também deem a devida atenção a ele. DeGraff (2005[2]) mostra que as crenças de que os crioulos são de algum modo uma exceção às demais línguas naturais, e se opõem a não-crioulos, começa muito cedo na história dos estudos dessas línguas. As raízes dessas crenças se acham numa visão eurocêntrica, colonial e anticientífica. Não só isso, DeGraff (2005[2]) mostra que

apesar de sua base histórica no colonialismo e na escravidão, e apesar de suas falhas científicas e sociológicas, o Excepcionalismo dos Crioulos ainda prevalece [na] Linguística moderna e sua literatura clássica. (DEGRAFF, 2005, p.1[2])

Essa tradição de separar crioulos de não-crioulos tem seus efeitos na Linguística, como mostram Aboh e DeGraff (2017[3]), mas também implicações na Educação. Por sua vez, essa prática traz diversas consequências no plano social, como o próprio estigma criado em falantes de crioulos sobre suas línguas que os faz pensar que apenas as línguas de seus colonizadores podem ser usadas na educação. Não é incomum que falantes de crioulos teçam comentários que rebaixam suas próprias línguas, e DeGraff mostrou isso em sua conferência. Tal cenário é resultado de uma tradição que sempre rebaixou essas línguas, e supervalorizou a dos colonizadores.

Dessa forma, é preciso olhar mais de perto para a situação do Haiti em relação ao crioulo falado ali. Adotando o modelo de DeGraff em muitos de seus textos, faremos referência a kreyòl para nos referirmos ao crioulo haitiano e crioulos para uma referência geral às línguas rotuladas assim. É preciso dizer também que, sendo o kreyòl a língua materna de Michel DeGraff, seus esforços se concentram no Haiti. No entanto, o caso desse país é representativo de muitas outras comunidades onde se falam crioulos e a iniciativa coordenada por Michel DeGraff, de promover a educação na língua materna, é um exemplo a ser copiado.

Ao analisar o contexto político-linguístico e social do Haiti, DeGraff aponta que a educação nunca foi acessível a todos devido a barreiras socioeconômicas e linguísticas. Essas barreiras se ligam ao fato de a língua francesa, o principal idioma usado por instituições, órgãos oficiais e imprensa escrita, não ser compreendido pela grande maioria da população.

Assim, enquanto o francês é falado apenas por uma pequena elite do país, o kreyòl é muitas vezes excluído das esferas formais da vida em sociedade. Segundo o conferencista, essa dominação social se estende também ao sistema escolar e, ainda, faz com que a sociedade haitiana seja um caso no qual o conceito de 'diglossia' clássico não se aplique.

Os estudos clássicos sobre diglossia tem nas pesquisas de Ferguson (1959[4]) um dos seus principais expoentes. Para esse teórico, a diglossia designa a existência de duas variedades linguísticas que coexistem em um determinado território e que, por razões históricas e políticas, possuem status e funções sociais distintas, específicas e sem sobreposição.

Para o pesquisador, a inaplicabilidade do conceito de diglossia ao seu país de origem, o Haiti, se justifica pelo número de locutores monolíngues. Segundo DeGraff (2017[5]), 95% dos haitianos são capazes de compreender e se expressar apenas em kreyòl. Esses indivíduos, por não possuírem o que autor chama de escolha diglóssica, se distinguem de uma minoria do país capaz de recorrer tanto à língua francesa quanto ao kreyòl.

Juntamente com o francês, nas palavras do conferencista, essa língua local se oficializou no país com o advento da Constituição de 1987. Essa Carta Magna declarou que o crioulo é a língua pela qual todos os haitianos estão unidos. O kreyòl hoje tem uma Academia, ortografia e literatura próprias.

DeGraff defende que, no Haiti, a melhoria do sistema educacional requer o uso do kreyòl do nível primário ao nível universitário, o que ampliará o acesso à educação de qualidade. Assim, através de uma breve análise do contexto sociolinguístico do país, o pesquisador aponta para uma iniciativa que visa melhorar a educação no Haiti. Por meio de uma pedagogia interativa, bem como de tecnologias que consideram o crioulo haitiano, ele nos apresenta a Iniciativa MIT-Haiti.

O objetivo da Iniciativa MIT-Haiti é expandir o acesso a uma educação de qualidade e modificar a realidade do país no que diz respeito à exclusão social e à educação deficiente. Assim, a fim de desenvolver, avaliar e disseminar recursos e atividades de aprendizagem em kreyòl para diferentes disciplinas, tecnologias avançadas são utilizadas para a melhoria radical do sistema educacional.

O caráter inovador dessa iniciativa se evidencia por ser a primeira vez em que especialistas da área tecnológica, juntamente com linguistas, concentram todos os seus esforços na criação desse tipo de material educativo. Nesse sentido, DeGraff (2017[5]) é incisivo ao dizer que, se os produtores de materiais didáticos desconsiderarem o todo da diversidade linguística mundial, o que inclui as línguas 'locais', como o kreyòl, a educação de qualidade permanecerá inacessível à grande massa da população.

Percebemos que a proposta prevista pela Iniciativa MIT-Haiti se compõe de três pilares, explicitados em DeGraff (2017[5]). O primeiro se liga ao uso do idioma local, neste caso, o kreyòl; o segundo em um aprendizado ativo, otimizado pelo uso da língua materna, capaz de promover a reflexão, a colaboração e a comunicação; e o terceiro a uma tecnologia que melhora o aprendizado, facilitando a compreensão de conceitos complexos e abstratos.

A Iniciativa MIT-Haiti, sem dúvida, é um modelo a ser disseminado e implementado não apenas no Haiti. Pois, quando a diversidade linguística e os idiomas locais recebem a atenção que merecem, é possível imaginar um mundo em que o acesso à educação de qualidade seja genuinamente democrático.

A fala de Michel DeGraff nos faz refletir sobre a realidade político-linguística e social do Brasil, bem como sobre a diversidade linguística encontrada aqui, quando o autor cita a importância de considerarmos as línguas locais no sistema educativo.

Segundo dados do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (IPOL), atualmente há mais de trezentas línguas faladas no Brasil (MORELLO, 2015[6]). Dentre elas, línguas indígenas, de imigração, de comunidades afro-brasileiras, de sinais e crioulas.

No entanto, apesar do grande número de línguas brasileiras, Souza (2018[7]) aponta que, até o ano de 2018, de cinco mil quinhentos e setenta municípios, dezesseis, pertencentes a sete estados brasileiros, possuíam línguas locais cooficializadas, sendo elas apenas de imigração e indígenas. Além desse fato, a análise realizada pela pesquisadora aponta que muitas dessas leis de cooficialização não explicitam a inclusão de línguas locais no currículo escolar.

Dessa forma, essa conferência enfatiza a importância de dar atenção às línguas minoritárias e colocar em prática projetos que promovam sua implementação no sistema educacional dos territórios onde são faladas.

Referências

ABOH, Enoch; DEGRAFF, Michel. A Null Theory of Creole Formation Based on Universal Grammar. Oxford Handbooks Online, 2017.

BLACK Lives Will Not Matter Until our Languages also Matter: The Politics of Linguistics and Education in Post-Colonies. Conferência apresentada por Michel DeGraff [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (2h 26min 05s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-M91rn4Tr_Q&feature=emb_title. Acesso em: 14 jun 2020.

DEGRAFF, Michel. Linguists’ most dangerous myth: The fallacy of Creole Exceptionalism. Language in Society, 2005.

DEGRAFF, Michel. La langue maternelle comme fondement du savoir: L’initiative MIT-Haïti: vers une education en créole efficace et inclu-sive. Revue transatlantique d’études suisses, 2017.

FERGUSON, Charles. Diglossia. Word, 1959. p. 325-340.

MORELLO, Rosângela (Org.). Leis e línguas no Brasil: o processo de cooficialização e suas potencialidades. Florianópolis: IPOL, 2015.

SOUZA, Marina Mello de Menezes Felix de. A desconcentração política e o seu impacto nas Políticas Linguísticas Públicas Educacionais (PLPE) no Brasil. Tese (doutorado)-Universidade Federal Fluminense: Niterói, 2018.