Construções “com-causativas” no português do Brasil

Gean Nunes Damulakis,
Alessandro Boechat de Medeiros

Resumo

Este artigo traz um fenômeno interessante, mas pouco ou nada discutido na literatura sobre estrutura argumental dos verbos em português e causativas lexicais de modo geral: formas com leitura causativa lançando mão da preposição com, como na frase “o gerente sumiu com o dinheiro” – na qual o verbo sumir, intransitivo (inacusativo), se torna transitivo com a introdução da preposição ‘com’ tomando um complemento. A interpretação decorrente de tal processo que insere a preposição é sempre causativa. Nas páginas a seguir, mostramos diversas propriedades dessa construção (que até mesmo ocorre em sentenças com verbos transitivos, mesmo que essas já possuam interpretação causativa, como no par: “o blogueiro arruinou a vida de Pedro” e “o blogueiro arruinou com a vida de Pedro”) e apresentamos dois testes simples de gramaticalidade que confirmam, por meio de consultas às intuições dos falantes, algumas propriedades dessas construções mencionadas e discutidas no texto. O trabalho termina com uma ideia inicial de como a construção pode ser tratada formalmente.  

Introdução

A literatura sobre estrutura argumental de verbos do português do Brasil tem apresentado inúmeros trabalhos sobre construções causativas, em particular aquilo que é conhecido como causativa lexical (por exemplo, CANÇADO; AMARAL, 2010[1]; SILVA, 2017[2]; MEDEIROS, 2018[3]; entre muitos outros). O presente trabalho, contudo, examina, com o objetivo mais amplo de lançar luz sobre a distribuição dos argumentos dos verbos do português brasileiro, um tipo de oração causativa pouco ou nada descrita no português do Brasil (PB), mas relativamente frequente nessa língua, que chamaremos aqui de com-causativas. Essas construções ocorrem com verbos inacusativos, alternantes (alternância causativa) e até exclusivamente transitivos (mas sempre causativos), e têm o elemento sobre o qual recai a ação introduzido pela preposição ‘com’. Nessas construções, o sujeito é o agente ou causa externa ao passo que o DP que segue a preposição (com) é interpretado pelos falantes como tema (ou paciente). Vejamos os exemplos a seguir:

(1) a. O documento sumiu.

b. João sumiu com o documento.

Na sentença (1b), uma leitura comum é a de que “o documento sumiu e o João é o causador de seu desaparecimento”, mesmo que João não tenha sumido juntamente com o documento. Em outras palavras: ‘João fez com (ou agiu para) que o documento sumisse’. Embora a leitura de que tanto o João quanto o documento tenham sumido juntos ou ao mesmo tempo (numa leitura comitativa do PP) seja possível, a leitura causativa, que não implica o sumiço de ambos, parece ser a prototípica dessa sentença para muitos falantes.

Do ponto de vista semântico, as causativas podem ser analisadas como construções nas quais se expressa uma relação de causalidade entre um evento-efeito e um evento-causa. O evento-causa é com frequência uma ação não especificada, realizada pelo sujeito agente da sentença. Vejamos outros exemplos de com-causativas:

(2) a. “Polícia acaba com festa clandestina no DF1 (A polícia fez com que a festa acabasse2)

b. O governo afundou com o país e faliu com a Petrobrás (O governo fez com que o país afundasse e com que a Petrobrás falisse)

c. João bateu com o carro pela segunda vez este mês (ele fez com que o carro batesse).

d. "(...) não deu em nada, quando chegou no TSE, pois lá estava o seu cunhado, Aroldo Cedraz e engavetou com o pedido de revista dos processos" 3 (Aroldo Cedraz fez com que o pedido fosse engavetado).

Em todos os exemplos em (2) o sujeito da frase fez (ou faria) algo que causou (ou causaria) a mudança de estado ou posição descrita pelo verbo. E, em alguns casos, a presença de um sujeito agente/causador (ou, por outros termos, a versão causativa de certos verbos) só pode ser licenciada pela presença da preposição com tomando o argumento interpretado como tema ou paciente do processo (é o caso do exemplo (1b) acima).

Este artigo apresentará alguns fatos sobre as com-causativas e dois testes feitos com falantes (questionários com julgamentos de gramaticalidade), que descortinam um pouco de sua natureza sintática e semântica. Ao final, aventaremos algumas hipóteses iniciais de análise que serão mais bem desenvolvidas em trabalho em progresso conduzido pelos autores deste texto.

O artigo tem a seguinte organização. Na seção 1, apresentamos algumas propriedades das com-causativas e mostramos que a preposição com ocorre em outros contextos de interpretação causativa. Na seção 2, descrevemos alguns testes que fizemos com falantes nativos e seus resultados. Na seção 3, falamos brevemente sobre algumas possibilidades de análise formal para tais construções. Finalmente, na seção 4, tecemos considerações sobre possíveis desdobramentos desta pesquisa.

1. Sobre as ,[object Object],causativas

1.1 A preposição ,[object Object], e o significado causal

A preposição com pode introduzir um sintagma determinante interpretado como causa de determinado evento em contexto diferente do exposto acima. Os itens (3a, b) abaixo exemplificam tal possibilidade. Neles, o complemento nominal da preposição é interpretado como evento ou estado. Isso quer dizer que, preferencialmente, tais complementos não denotam entidades, mesmo potenciais agentes – quando com é seguido de um NP ou DP que denota entidade, a leitura é tipicamente comitativa (3c, d).

(3) a. A casa ruiu com as chuvas (causativa: as chuvas causam o ruir da casa).

b. A criança dormiu mais cedo com a canção de ninar da mãe (causativa: a canção causa o dormir da criança).

c. A criança dormiu mais cedo com a mãe (comitativa: a criança dorme com a mãe)4.

d. A casa ruiu com a Maria (comitativa: a Maria está dentro da casa, que rui).

Então já há uma interpretação causativa de algum modo associada à preposição, desde que seu complemento seja (pelo menos interpretado como) um evento ou estado. Há inúmeras evidências de que preposições podem veicular a noção de causa (ver, em particular, PESETSKY, 1995[4]).

Uma parte da literatura (e. g., HALE; KEYSER, 2002[5]; MARANTZ, 2006[6]; PYLKKÄNEN, 2007[7]; entre outros) considera que a relação de causalidade é uma relação entre eventualidades, não uma relação entre eventualidades e entidades. Uma coisa importante a se notar nos exemplos em (3a, b) é que o complemento da preposição é o evento causador do evento denotado pelo sintagma verbal ao qual o PP em questão está anexado. Mais abaixo, veremos que essa semântica causativa pode ocorrer em uma estrutura diferente, como a que encontramos em (1b), com a mesma preposição.

Em vista dos dados de (3), conclui-se que, de alguma forma, a função causativa da preposição com é algo que independe do contexto específico das sentenças em (2). Ou seja, a preposição com pode estar associada a uma semântica causativa independente, que está presente tanto em (2) como em (3). Mas há diferenças importantes entre os dois casos. Nos exemplos em (2), a preposição parece introduzir ou tomar o complemento do verbo (ver abaixo, na seção 3), que é interpretado como entidade, não como evento, e a presença da preposição muitas vezes indica uma mudança na valência do verbo, exigindo um argumento externo causador, mesmo quando este verbo é estritamente inacusativo (por exemplo, o que ocorre com o verbo sumir em (1)). Nada disso parece acontecer nas sentenças (3) desta seção. Então, como podemos aproveitar a semântica comum (causação entre eventos) aos dois usos mencionados dessa preposição e ao mesmo tempo lidar com as diferenças sintáticas entre (2) e (3)? As grandes diferenças entre as duas situações de ocorrência da preposição ‘com’ parecem indicar que uma abordagem em que a preposição é meramente licenciada em uma forma com leitura estrutural causativa pode ser uma boa solução para o problema. Com base em teorias construcionistas de estrutura argumental dos verbos (PYLKKÄNEN, 2007[7]; MARANTZ, 2006[6]; BORER, 2005[8]; MEDEIROS, 2018;[3] entre outros), proporemos, em outra etapa desta pesquisa, que um morfema causativo é soldado (talvez com implicações aspectuais) à estrutura do sintagma verbal, exige a anexação de um núcleo de Voz projetando posição para um argumento externo, e deflagra a ocorrência da preposição com como uma forma de marcação específica de caso do complemento do verbo. Essa ideia é mais bem desenvolvida em trabalho que está em progresso no momento.

1.2 Eventos causadores e a preposição ‘com’:,[object Object],as ,[object Object],causativas

Nos exemplos em (4), tomados de (1) e (2) acima, a preposição ‘com’ precede um elemento que seria ou o sujeito da sentença em sua versão intransitiva (inacusativa ou incoativa) ou o objeto do verbo em sua versão causativa (quando o verbo é alternante). Também pode ocorrer precedendo complementos verbais de verbos exclusivamente transitivos diretos, como vemos em (2d) acima, repetida em (4c) a seguir.

(4) a. O governo afundou com o país e faliu com a Petrobrás (dois verbos alternantes: afundar e falir).

b. João sumiu com o documento (verbo inacusativo).

c. "(...) não deu em nada, quando chegou no TSE, pois lá estava o seu cunhado, Aroldo Cedraz e engavetou com o pedido de revista dos processos" (verbo transitivo não alternante).

Uma primeira coisa que podemos mostrar é que, em todos os casos, temos dois eventos envolvidos, um, que é implícito, não especificado pelo verbo, iniciado ou conduzido pelo sujeito agente, e outro pelo qual o sintagma determinante complemento da preposição ‘com’ “passa”, com eventual mudança de estado ou posição, que é de alguma forma definida pela raiz do verbo. Imaginemos que, em (5) a seguir, o menino Pedrinho esteja brincando com um carrinho de controle remoto. Nas frases abaixo verificamos que os dois eventos, o causador e o causado, podem ocorrer em locais distintos ou ser modificados por diferentes advérbios de modo – ainda que somente um verbo esteja presente.

(5) a. Pedrinho andou com o carrinho de controle pela sala (o carrinho andou pela sala, mas não necessariamente Pedrinho, que controlava seu movimento através de ações no controle remoto).

b. Sentado na poltrona, Pedrinho andou com o carrinho de controle pela sala (aqui, necessariamente as ações causadoras de Pedrinho ocorriam enquanto ele se encontrava sentado na poltrona; o carrinho, por outro lado, se movimentava pela sala).

c. Pedrinho andou com o carrinho de controle muito rápido (o carrinho andou rápido, não foram as ações de Pedrinho que foram rápidas).

d. Pedrinho andou com o carrinho de maneira bruta e acabou quebrando o controle remoto (uma das interpretações é: evento 1: Pedrinho manipulou o controle de maneira bruta; evento 2, causado: o carrinho andou - e o controle acabou quebrado por conta da maneira como foi manipulado).

Os dois eventos se relacionam na estrutura dessas causativas de modo que um causa o outro. Isso ocorre também nas versões transitivas (causativas) de verbos alternantes, sem a preposição, como vemos a seguir:

(6) a. O submarino afundou o encouraçado através de uma manobra perfeita.

b. O submarino afundou o encouraçado rapidamente.

Em (6a) o submarino causou o afundamento do encouraçado por meio de uma manobra perfeita – ou seja, a expressão através de uma manobra perfeita descreve um modo do evento causador, implícito no verbo. Já em (6b), que é ambígua, uma das leituras possíveis é aquela em que o afundamento do navio se deu rapidamente – a outra seria aquela em que o evento causador, realizado pelo submarino, iniciou-se rapidamente, o que reforça o fato de que existem dois eventos modificáveis pelo advérbio.

A discussão nos mostra, portanto, que as com-causativas, como nas versões causativas de verbos alternantes, envolvem dois eventos, um deles tendo um iniciador que é o sujeito da sentença.

Mas outras semelhanças entre as com-causativas e verbos causativos (em particular os transitivos não-alternantes e as versões causativas de verbos alternantes) podem ser encontradas. Nos exemplos em (6) o DP o encouraçado é o complemento direto do verbo afundar, uma vez que, por exemplo, se torna sujeito da voz passiva deste verbo, como se vê em (7) abaixo:

(7) a. O encouraçado foi afundado pelo submarino com uma manobra perfeita.

b. O encouraçado foi afundado pelo submarino rapidamente.

O mesmo processo de passivização não acontece com as com-causativas. Como se espera, o DP que se segue a preposição não pode se tornar sujeito de uma voz passiva derivada5. Ou seja:

(8) a. *Com a empresa foi falida pelo empresário corrupto.

b. *A empresa foi falida com pelo empresário corrupto.

Contudo, isso não quer dizer que a expressão com-DP seja um adjunto ou algo diferente de um complemento do verbo que a antecede. Em português, elementos internos a certos tipos de complementos nominais de verbos, sejam eles diretos ou indiretos, podem ser extraídos, ainda que marginalmente, realizando um movimento A’, como vemos nos exemplos a seguir: neles, o constituinte QU é extraído do interior do complemento e alçado para a cabeça da frase (camada CP) ou clivado. Observe-se que a extração de tal constituinte não é aceitável se o QU for gerado no interior de um adjunto, como mostram os exemplos (c’), (c”), (d’), (d”), (e’) e (e”) a seguir:

(9) a. Pedro faliu o negócio de que empresário?

a’. ?De que empresário Pedro faliu o negócio?

a”. ?Foi de que empresário que o Pedro faliu o negócio?

b. Mário leu o livro de que autor?

b’. De que autor Mário leu o livro?

b”. Foi de que autor que Mário leu o livro?

c. O Pedro segurou a bolsa para a mãe de que vizinho?

c’. *De que vizinho o Pedro segurou a bolsa para a mãe?

c”. *Foi de que vizinho que o Pedro segurou a bolsa para mãe?

d. Mário leu o livro que era de que autor?

d’. *De que autor Mário leu o livro que era?

d”. *Foi de que autor que Mário leu o livro que era?

e. Maria cantou com a irmã de que atriz?

e’. *De que atriz Maria cantou com a irmã?

e”. ??Foi de que atriz que Maria cantou com a irmã?

Ao contrário do que ocorre com adjuntos, é possível extrair constituintes QU do interior dos com-DPs em com-causativas. A seguir, mostramos que, como nos casos (a’) e (b’) acima, temos uma certa degradação no julgamento, mas não no mesmo grau que encontramos em (c’), (d’) e (e’) de (9). Note-se, ainda, que o exemplo (9a) envolve um verbo de alternância causativa, como é o caso de afundar em (6).

(10) a. Pedro sumiu com o dinheiro de que empresário?

a’. ?De que empresário o Pedro sumiu com o dinheiro?

a”. Foi de que empresário que o Pedro sumiu com o dinheiro

b. O Pedro faliu com o negócio de qual empresário?

b’. ?De qual empresário o Pedro faliu com o negócio?

b” Foi de qual empresário que o Pedro faliu com o negócio?

Portanto, os com-DPs das com-causativas comportam-se, no que diz respeito à extração de QUs ou sua clivagem, como complementos, não como adjuntos, assim como ocorre com os complementos diretos das versões causativas dos verbos alternantes e outros verbos transitivos. Isso sugere que os com-DPs são complementos dos verbos, mesmo que os verbos que os precedem sejam canonicamente intransitivos (como o verbo sumir), tenham versões causativas transitivas diretas (como falir) ou sejam simplesmente transitivos diretos (como engavetar ou arruinar).

A partir do que foi discutido, parece claro que uma abordagem estritamente projecionista (por exemplo, CHOMSKY, 1981[9]), em que itens lexicais possuem grades argumentais definidas lexicalmente e projetam estrutura sintática (a visão lexicalista tradicional) terá grande dificuldade em lidar com esses exemplos, que envolvem as mesmas raízes6 em ambientes sintáticos distintos. Por exemplo, a raiz do verbo falir ocorre em três contextos distintos: sintagmas verbais intransitivos, transitivos diretos e transitivos indiretos (as com-causativas); já a raiz do verbo sumir ocorre em dois contextos: VPs intransitivos e com-causativas. Numa abordagem lexicalista tradicional, teríamos que supor três entradas distintas no léxico para a primeira raiz verbal e duas para a segunda, cada uma com uma grade argumental diferente, ainda que possuindo alguma relação. Acontece, contudo, que aparentemente qualquer raiz verbal que ocorra em uma estrutura causativa pode ser licenciada em uma estrutura com-causativa – ou seja, a relação parece ser muito mais entre estruturas sintagmáticas verbais específicas (causativas reais ou potenciais) do que entre itens. Só para se ter uma ideia do quanto essa construção é produtiva e licencia uma gama muito variada de raízes verbais, observem-se os exemplos a seguir obtidos na internet:

(11) a. A mulher, furiosa, saiu correndo e fechou com a porta com violência, prensando a mão esquerda da vítima, o que causou corte... (https://www.douradosnews.com.br/noticias/cidades/por-causa-do-facebook-mulher-se-irrita-e-tenta-enforcar-namorado-de-60/714579/).

b. Eles abriram com a porta que não era para abrir. Falo com olhos pretos e com cabelo pegando fogo. Hayato: Já estou vendo... (https://www.spiritfanfiction.com/historia/imagine-jungkook-amor-de-hibridos-12336324/capitulo86).

c. Assim, ele quebrou com a tradição hereditária e nomeou Omar ibne Abdalazize (Omar II) [...] como seu sucessor (https://tr-ex.me/tradu%C3%A7%C3%A3o/portugu%C3%AAs-ingl%C3%AAs/quebrou+com+a+tradi%C3%A7%C3%A3o#gref).

d. Amor: sentimentos podem renascer com alguém do passado. (https://tribunadepetropolis.com.br/noticias/previsoes-237/)

e. “Exclusivo: para não perder Huck, Globo pode encerrar com ‘Domingão’” (https://lobianco.ig.com.br/2021-09-29/luciano-huck-novo-programa.html).

f. Penso que se eu morrer com o carro, bem no sinal, as pessoas não vão ter paciência comigo e vão buzinar que nem umas loucas. Vou chorar no meio trânsito... (http://www.casosacasoselivros.com/2015/04/projeto-drama-queen-motorista-da-rodada.html)

Além disso, é possível criar contextos que favoreçam a ocorrência de com-causativas baseadas em verbos inacusativos, como os casos a seguir.

(12) a. Uma médica transfere temporariamente os cuidados de um paciente em estado grave para outro médico amigo seu. Ela diz para o médico amigo: “O paciente está estabilizado. Por favor, tome muito cuidado; não vá morrer com meu paciente”.

b. Os poderes mentais de Matilda, no livro “Matilda”, fizeram com que uma criança voasse na sala de aula. Contando o que acabara de ler para um amiguinho da escola, Mariana diz: “Poxa, você tinha que ver. A Matilda voou com o menino por toda a sala e apavorou a sra. Taurino”.

Vimos acima que as com-causativas são um recurso eficaz para transitivização de verbos exclusivamente inacusativos. Mas os sintagmas verbais alternantes e exclusivamente transitivos também apresentam a possibilidade de uma versão com-causativa, como os exemplos anteriores mostram indiscutivelmente. Isso significa que verbos causativos, transitivos ou alternantes, apresentariam duas variantes. Haveria alguma diferença semântica, além da diferença obviamente sintática, entre essas duas variantes causativas? Se considerarmos que construções transitivas são também causativas, ou seja, estruturas que envolvem uma relação entre eventos, podemos dizer que sentenças transitivas diretas com alternantes (13b) competem, a priori, com a estrutura com-causativa análoga (13a)7. As com-causativas com verbos inacusativos não oferecem a mesma competição.

(13) a. O gerente faliu com a empresa

b. O gerente faliu a empresa

c. O gerente sumiu com as promissórias.

d. *O gerente sumiu as promissórias.

Sendo assim, as com-causativas parecem ter mais razão de ser para estruturas com verbos inacusativos que com verbos transitivos. Levando em consideração a competição em (13), resta saber qual seria a diferença, se houver, entre com-causativas e alternantes causativas. Mesmo que não possamos comprovar neste momento, parece-nos que (13a) e (13b) não são semanticamente equivalentes, imprimindo a preposição alguma contribuição semântica (como voluntariedade ou irreversibilidade). Deixaremos isso, entretanto, em aberto para explorar em outro momento.

1.3 Seria a leitura causativa derivada de algum modo da leitura comitativa?

Ao pensarmos num exemplo como (1b), com leitura comitativa, poderíamos supor que a interpretação causativa seria uma espécie de inferência desta leitura: ou seja, se João sumiu juntamente com o documento, foi muito provavelmente ele quem fez o documento sumir, também. Portanto, poder-se-ia sugerir que de fato não há duas construções, mas somente uma, e que sua leitura causativa não passa de algum tipo de inferência de uma estrutura mais básica, com leitura comitativa.

Tal suposição tem uma série de dificuldades. A primeira, e mais direta, é que a leitura causativa de fato não implica que o sujeito da sentença seja um paciente do processo denotado pelo verbo. Por exemplo, num contexto em que se direciona a seguinte pergunta a um interlocutor, presente, claro está que tal interlocutor não pode estar sumido.

(14) Você não sumiu com os documentos, né?

Uma outra questão diz respeito às estruturas sintáticas associadas às duas leituras. Como mostramos acima, com confirmação de um dos testes abaixo, há diferenças sintáticas entre as duas interpretações: enquanto na leitura comitativa o sintagma preposicional com-DP é um adjunto, na leitura causativa tal PP é um complemento do verbo. Ademais, na leitura comitativa de casos como (1b) acima, espera-se que não exista um evento causador implícito, ao contrário do que foi mostrado para a leitura causativa (cf. (5)).

Como evidência de que na leitura comitativa temos adjunção de com-DP, não complemento, vejamos o exemplo a seguir:

(15) Foi de quem que o João sumiu com o dinheiro?

Na pergunta apresentada em (15) não é possível haver leitura comitativa, somente causativa. Isso pode ser explicado pela restrição de extração do interior de adjuntos: se na leitura comitativa o PP com-DP é um adjunto, não um complemento, fica explicado por que a clivagem só veicula a leitura causativa.

Além disso, sentenças com sujeito de referência indeterminada parecem facilitar a interpretação da com-causativa, em vez da comitativa. Embora esse fator não tenha sido recoberto pelos experimentos apresentados aqui, os exemplos abaixo parecem corroborar nossa hipótese. No exemplo (16), vemos uma reclamação de um cliente, em um site na internet. Repare-se no uso do verbo “sumir” no título dado para a reclamação e no uso do mesmo verbo no texto.

(16)

(a) Sumiram com o dinheiro da minha conta

Tinha aproximadamente R$10.000 na minha conta do [...] hoje fui consultar o saldo e minha conta está zerada. Tentei ligar para o banco, passei mais de 2 horas na linha só ouvindo musiquinha, ninguém me atende e estou precisando de meu dinheiro e [b] o banco sumiu com minha grana e ninguém atende o telefone para me dar uma satisfação. Acionarei o banco na justiça!

(https://www.reclameaqui.com.br/banco-original/sumiram-com-o-dinheiro-da-minha-conta_Ma7l4BvvrinKV0um/. Acesso em 12/04/2020)

No uso do verbo com indeterminação do sujeito, no título da reclamação, a interpretação com-causativa se torna a mais provável. Com sujeito de referência arbitrária, a interpretação causativa, em vez da comitativa, é a preferida. Em um filme falado em espanhol, um dos personagens expressa a seguinte fala (e a legenda é apresentada na sequência):

(17)

Fala: Lo hán hecho desaparecer.

Legenda: Desapareceram com ele.

A fala se refere a um relógio que seria importante para desvendar um crime. Note-se que a legendagem optou pela expressão com-causativa em português do Brasil, mesmo que em espanhol a expressão sintática fosse uma causativa perifrástica (com verbo “hacer”), algo equivalente a “fizeram-no desaparecer” ou “fizeram ele desaparecer”.

A animacidade, como veremos no experimento abaixo, também constitui fator relevante para a interpretação com-causativa. Note-se que, embora com traço inanimado, o ‘banco’, no exemplo (16), quando interpretado como instituição, pode ser entendido como um coletivo de entes com traço animado, o que forçaria a leitura com-causativa em “o banco sumiu com minha grana” (cf. (16b)), muito provavelmente com índices compatíveis com os de (17a) (“o gerente sumiu com o dinheiro”), usada no experimento, na próxima seção.

Tendo em vista a argumentação apresentada acima, parece-nos claro que a leitura causativa não é uma inferência ou decorrência da leitura comitativa, sem que haja uma real distinção sintática por detrás das duas interpretações. No teste apresentado na seção 3 abaixo, mostramos que os falantes diferenciam leitura causativa de comitativa dadas algumas dicas na própria estrutura sintática da sentença, e que identificam que, na leitura causativa, não necessariamente o referente do sujeito da frase participa como paciente no evento descrito pelo verbo.

2. Sobre os experimentos

Foram conduzidos dois tipos de experimentos para este trabalho. Em ambos os casos, formulários foram elaborados através da plataforma Google Forms. Os links para os formulários foram divulgados em redes sociais; portanto, não houve seleção de participantes ou de perfis específicos para os respondentes. No formulário, os participantes eram instados a julgar, sintática e semanticamente, um conjunto de sentenças contendo verbos com o tipo de construção causativa analisada. Esse tipo de procedimento foi bastante útil devido às condições de isolamento social enfrentadas em alguns momentos da pandemia, período no qual este trabalho foi desenvolvido.

Ambos os experimentos foram conduzidos levando-se em conta todos os cuidados éticos necessários. Devido à forma de divulgação dos links para os formulários (em redes sociais), a participação se deu por adesão voluntária. O formulário continha informações detalhadas sobre os objetivos do experimento, bem como a indicação do laboratório ao qual ele se ligava: LabMArg (Laboratório de Morfossintaxe e Estrutura Argumental), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Linguística da UFRJ. A coleta dos dados ocorreu de forma anônima e nenhum dos participantes teve sua imagem ou seus dados pessoais coletados ou expostos na pesquisa.

Com objetivo de reduzir os possíveis riscos, que já eram mínimos, além das tarefas terem sido orientadas, a finalização e o envio do formulário estiveram sob a responsabilidade dos participantes, de forma que eles apenas enviariam o conteúdo de suas respostas por livre e espontânea vontade. Dessa forma, caso o participante se sentisse desconfortável em qualquer etapa, tinha a possibilidade de desistir, a qualquer momento, do preenchimento e/ou do envio do formulário.

Como os grupos foram construídos separadamente, podemos dizer que são independentes. O envio foi feito depois do julgamento, de maneira que os experimentos devem ser classificados como off-line. Os dados não passaram por tratamento estatístico, apenas foram considerados em proporções percentuais. Na seção subsequente, tecemos considerações sobre os resultados dos experimentos.

3. Ambiguidade estrutural com comitativas

Como já mostramos acima, frequentemente podemos ter a leitura conjunta de causativa e comitativa. Vejam-se os exemplos com um verbo inacusativo (sumir) e um alternante (afundar):

(18) O gerente sumiu com o dinheiro.

Leitura 1 (causativa): O gerente fez com que o dinheiro sumisse.

Leitura 2 (comitativa): O gerente e o dinheiro sumiram (juntos).

(19) O marinheiro afundou com o barco.

Leitura 1 (causativa): O marinheiro fez com que o barco afundasse.

Leitura 2 (comitativa): O marinheiro e o barco afundaram (juntos).

Essa ambiguidade (que defendemos ser estrutural) pode ser explorada em várias áreas, como na propaganda e no humor. Além disso, o contexto pode aumentar a probabilidade de interpretação de uma forma ou de outra. Imaginemos a cláusula “(João) quebrou com a empresa” em destaque, seguindo duas orações distintas:

(20) a. João se tornou diretor e quebrou com a empresa.

b. João apostou as economias em um negócio e quebrou com a empresa.

Os exemplos, com o verbo quebrar, mostram que o PP pode ser interpretado tanto como estrutura comitativa (20b) quanto como causativa (20a). As sentenças acima oferecem um contexto que favorece uma ou outra interpretação. Nos próximos parágrafos, apresentamos dois experimentos rodados com falantes nativos de português brasileiro. Salientamos que os resultados são apresentados com percentuais simples, sem tratamento estatístico. De todo modo, é possível observar algumas tendências de julgamento interessantes para as nossas hipóteses.

No primeiro experimento de julgamento de sentenças, realizado com 30 falantes de PB, entre 20 e 50 anos de idade, testamos a preferência de estruturas iniciadas por ‘com’. O experimento contou com 8 sentenças-alvo e 12 distratoras. O formulário foi respondido através do Google Forms e as sentenças foram aleatorizadas. O objetivo geral do experimento foi verificar se o sintagma preposicional poderia ser interpretado como causativa ou como comitativa. Em (21), vemos os exemplos de sentenças testadas para o verbo sumir:

(21) a. O gerente sumiu com o dinheiro.

b. O gerente sumiu com o cliente.

c. A caneta sumiu com o dinheiro.

d. O dinheiro sumiu com o cliente.

As alternativas previam as seguintes interpretações, como para (21a): i. apenas o gerente (DP-SUJ) sumiu; ii. apenas o dinheiro (DP em PP) sumiu; iii. o gerente (SUJ) e o dinheiro (DP em PP) sumiram; iv. nenhum dos dois sumiu. Como vemos em (21), as alternativas previam como variáveis DPs animados versus inanimados, na posição de sujeito e dentro do PP iniciado pela preposição ‘com’. O maior índice de preferência pela interpretação causativa (no gráfico, Apenas DP em PP sumiu) foi, como esperávamos, na sentença composta por sujeito com DP animado associado a DP inanimado no sintagma preposicional, como em (21a). Vejamos os índices:

Figure 1. FIGURA 1 – Gráfico Interpretação Causativa do PP (verbo ‘sumir’) Fonte: elaborada pelos autores.

O gráfico (1) mostra que a interpretação causativa é maior quando o sujeito pode ser interpretado como agente, com o traço animado (‘o gerente’). O índice dessa interpretação é maior se o sintagma dentro do PP tem o traço inanimado (‘o dinheiro’, com 43%) em relação ao traço animado (‘o cliente’, com 33,3%). Note-se que esse índice cai drasticamente se o sujeito tem o traço inanimado (‘o dinheiro’ ou ‘a caneta’): 10% para o DP em PP com traço inanimado (‘o dinheiro’) e 6,7% com traço animado (‘o cliente’). Em todos os casos, a interpretação comitativa foi maior, sendo, na sentença em a), a menor diferença (7%) em relação à interpretação causativa. Nas sentenças com o DP-SUJ inanimado, houve índice levemente maior para a interpretação comitativa no caso de DP em PP com traço inanimado (‘o dinheiro’, 80%) em relação à sentença com o traço animado nessa posição (‘o cliente’, 76,7%).

Essa relação entre a interpretação comitativa e causativa com interferência do traço animado muda de formato para o verbo alternante utilizado no nosso experimento. O verbo selecionado foi ‘afundar’. As sentenças foram as seguintes, em 22.

(22) a. O marinheiro afundou com o barco.

b. O marinheiro afundou com o comandante.

c. A bagagem afundou com o barco.

d. O barco afundou com o marinheiro.

A sentença em a), contendo o sujeito com traço animado e o sintagma em PP com traço inanimado, foi a única que apresentou interpretação causativa para esse verbo. Essa configuração (22a) foi a mesma que atingiu a maior percentagem de interpretação causativa com o verbo sumir também. As demais sentenças apenas apresentaram interpretação comitativa, ou seja, todos os respondentes da nossa amostra optaram por ‘ambos afundaram’ para as sentenças de b) a d) (por isso estão fora do gráfico). Vejamos o gráfico a seguir, para as sentenças em (22):

Figure 2. FIGURA 2 – Gráfico Interpretação Causativa do PP (verbo ‘afundar’) Fonte: elaborada pelos autores.

Parece sintomático que das quatro sentenças em (22) apenas a primeira tenha tido alguma possibilidade de interpretação com-causativa, e com um índice expressivo de 20%. Justamente nessa sentença o DP-SUJ tem traço animado e o DP em PP tem o traço inanimado, as mesmas características que promoveram o maior índice (43%) de interpretação causativa para o verbo inacusativo investigado, sumir.

Consideramos que outros fatores poderiam forçar interpretação causativa, por exemplo, se utilizássemos uma sentença como ‘o torpedo afundou com o barco’. Note-se, entretanto, que, apesar de inanimado, ‘torpedo’ poderia ser interpretado como agente. Optamos por sentenças que pudessem gerar maior ambiguidade, para indicar qual seria a propensão maior de escolha de interpretação para o sintagma preposicional, sem oferecer contexto. Imaginamos que a oferta de contexto poderia, inclusive, levar à obtenção de índices diferentes de zero para as demais sentenças.

Nosso segundo experimento teve como objetivo medir o índice de aceitabilidade da retirada, via movimento, de constituinte no interior da construção com-causativa. Considerando que o movimento de um constituinte QU do interior de um argumento interno para a posição de [spec, CP] é gramatical em relação ao movimento de constituinte análogo no interior de um adjunto, a hipótese que subjazia ao experimento era que, sendo, nas construções causativas, os PPs com-NP complementos dos verbos, o movimento de constituinte aí teria índices de aceitabilidade similares ao movimento de constituinte no âmbito do argumento interno direto. Assim, uma sentença como a) “[De quem]j o gerente sumiu com o dinheiro tj?” teria índices de aceitabilidade mais compatíveis com b) “[De quem]j o ladrão roubou a bolsa tj?” que com c) “[De quem]j o ladrão fugiu com a bolsa tj?”

Isso significaria, a priori, que movimentos derivados de interpretações causativas teriam maior grau de aceitabilidade que movimentos em sentenças com interpretação preponderantemente comitativa, por exemplo. Se essas hipóteses estiverem corretas, torna-se defensável a ponderação de que os PPs com-NP nas estruturas com-causativas são sintaticamente argumentos em vez de adjuntos.

A possível assimetria entre os índices de aceitabilidade das sentenças poderia estar relacionada a diferenças estruturais entre os sintagmas preposicionais iniciados por ‘com’.

Em (23) abaixo listamos algumas das sentenças utilizadas no teste.

(23) a.De quem o funcionário carregou a bagagem?

b. De quem a jornalista noticiou a morte?

c. De quem o gerente sumiu com o dinheiro?

d. De quem o blogueiro arruinou com a vida?

e. De quem o passageiro viajou com a mala?

f. De quem a bailarina dançou com o vestido?

g. De quem a Joana é inteligente?

h. De quem a arquiteta acredita em almoçar?

i. De quem o Márcio concorda com a decisão?

j. De quem a policial confia na inocência?

Foram 16 sentenças interrogativas, todas com (pretensos) deslocamentos de Qu. Os índices que cada participante deveria escolher para cada sentença iam de 1 a 5, dessa forma:

5 – Completamente aceitável

4 – Aceitável

3 – Mais ou menos aceitável

2 – Inaceitável

1 – Completamente inaceitável

As estruturas com-NP em (23c) e (23d) foram as representantes no experimento das sentenças com interpretação com-causativa. (23a) e (23b) foram as sentenças para as quais nós esperávamos maior aceitabilidade de movimento de QU, devido ao fato de ser, inequivocamente, argumento interno o constituinte do qual o QU foi movido. 28 pessoas participaram do teste, respondendo ao formulário através do Google Forms. A codificação percentual dos resultados será relatada da seguinte maneira: para indicar a (in)aceitabilidade, primeiro mostramos a soma das percentagens do polo relevante (4 e 5, para aceitáveis; e 1 e 2 para inaceitáveis). Após a soma dos dois valores polares, indicaremos entre parênteses, tanto para aceitabilidade quanto para inaceitabilidade, o valor intermediário (3, mais ou menos).

De fato, os índices de aceitabilidade foram maiores para as sentenças em (23a) e (23b) (argumento interno direto): 85,7% (mais ou menos: 7,1%) e 89,3% (mais ou menos: 7,1%). Conforme esperávamos, a aceitabilidade em (23c) e (23d), sentenças que representaram as com-causativas no experimento 2 (lembremos que a leitura com-causativa foi maior que a leitura comitativa, no experimento 1, para (23c)). Foram 53,5% (mais ou menos: 14,3%) de aceitabilidade para (23c) e 67,9% (mais ou menos: 10,7%) para (23d). Muito provavelmente, a diferença entre as com-causativas (23c e 23d) se deve à ambiguidade com a interpretação comitativa presente em (23c), diferentemente do que ocorre em (23d). Por conta disso, os índices de aceitabilidade de (23d) são mais próximos de (23a) e (23b). Em contrapartida, para (23e) e (23f), os índices de aceitabilidade foram, respectivamente, 21,5 (mais ou menos: 35,7%) (contra 42,8% de inaceitabilidade) e 39,3 (mais ou menos: 7,1%) (contra 53,6% de inaceitabilidade). Para (23g) e (23h), os índices comprovam a atenção ao teste: 85,7% (mais ou menos: 3,6%) e 78,5 (mais ou menos: 0%), respectivamente. Esses índices mostram que são maiores os valores de aceitabilidade atrelados ao movimento de constituinte de dentro de um com-NP em uma estrutura que possa ser lida como com-causativa que um movimento análogo em um com-NP interpretado como comitativo, por exemplo. Dessa forma, esses índices parecem corroborar a hipótese de que esse constituinte tem função de argumento do verbo, não de adjunto.

4. Possíveis desdobramentos

Há verbos com a mesma configuração sintática que excluem a leitura causativa. Vejam-se os exemplos:

(24)

a. João viajou com a namorada8. (Leitura única: João e a namorada viajaram juntos)

b. * João escreveu com o texto.

Em (24a), vemos um uso similar a ‘andar com o carro’, mas sem a possibilidade de uma leitura na qual ‘João fez a namorada viajar’. Já em (24b), vemos que “escrever” não possibilita a construção com-causativa, embora outros verbos transitivos o façam (cf. 4c: “e engavetou com pedido...’). Fica claro que verbos que normalmente se associam a sintagmas verbais monoeventivos (cf. MEDEIROS, 2018), cuja raiz costuma veicular um modo de agir do argumento externo, não uma mudança de estado ou posição do seu complemento, são mais resistentes à causativização com a preposição ‘com’ (ou a causativização lexical de modo geral). Se essa interpretação estiver correta, a versão com-causativa de uma sentença como “João eliminou com o problema” seria viável porque estabelece relação entre dois eventos – um evento causador implícito, cujo agente é João, e uma mudança de estado do objeto, descrita pelo verbo ‘eliminar’. E isso é verdade, como vemos no exemplo abaixo, obtido na internet. Como observado no experimento na seção anterior, a interpretação da com-causativa costuma ser muito constrangida por fatores semânticos.

(25) “Acabar com a violência no futebol brasileiro é possível. Basta ter vontade e interesse em eliminar com o problema” (https://terceirotempo.uol.com.br/noticias/o-futebol-brasileiro-esta-no-fundo-do-poco. Acesso em 07/09/2022)

Portanto, uma propriedade fundamental para que as formas com-causativas sejam licenciadas ou como alternativas a outros sintagmas verbais transitivos ou como versões causativas de vPs intransitivos é que estes denotem ou eventos causados ou mudanças de estado ou posição externamente causadas, frequentemente expressos por inacusativos.

Em trabalho que está sendo desenvolvido pelos autores, propomos que os sintagmas verbais são compostos de morfemas sintaticamente arranjados (cf. MEDEIROS, 2018) e que as com-causativas incluem um morfema que expressa o operador de causa. Esse operador relaciona eventos: o evento denotado pelo vP e o introduzido por um núcleo Voz, que também criará uma posição temática para um argumento externo no sintagma verbal. Será um morfema alto na estrutura do vP, que disparará a realização morfofonológica de uma preposição semanticamente nula (mas que, ao mesmo tempo, indica que a estrutura é causativa): a preposição ‘com’ que precede o complemento. Pode ser que o morfema causativo inclua alguns traços aspectuais que causem alguma distinção entre a forma sem a preposição e a forma com a preposição. Nesse trabalho, em andamento, procuraremos mostrar que isso explica propriedades discutidas no presente texto e outras que serão apresentadas no trabalho mencionado. Também procuraremos mostrar que essa proposta, em que a preposição é uma manifestação morfofonológica “deslocada” do morfema causativo, pode explicar outras formas encontradas na língua, como as causativas discutidas acima, na seção 2.1.

5. Conclusões

Este artigo buscou lançar alguma luz sobre o fenômeno ainda não estudado (até onde sabemos) da existência de leituras causativas envolvendo a presença da preposição ‘com’ tomando o argumento afetado do verbo – e, em alguns casos, alterando sua valência. Mostramos nas páginas anteriores que sintagmas verbais encabeçados por verbos transitivos com leitura causativa, verbos de alternância causativo-incoativa e mesmo alguns verbos exclusivamente inacusativos licenciam a presença da preposição ‘com’ tomando seu argumento interno. Particularmente interessante é o fato de que a presença da preposição ‘com’ não muda a relação temática de seu argumento com o verbo na versão sem a preposição e, mesmo com a preposição, esse argumento preposicionado continua funcionando sintaticamente como um argumento interno do verbo. Os resultados dos dois testes realizados neste estudo mostram que os falantes não só reconhecem a leitura causativa (que é favorecida sob certas condições, como a própria natureza dos argumentos envolvidos) como também integram sintaticamente o sintagma preposicional com-NP como complemento do verbo – e note-se que tais verbos não selecionam argumentos preposicionados.

O trabalho abre caminho para estudos mais aprofundados sobre sua estrutura argumental e mostra as dificuldades que uma teoria lexicalista, em que os verbos projetam a estrutura argumental de acordo com suas propriedades de seleção, enfrentaria para explicá-la. Em trabalhos futuros esses pontos serão retomados e tratados, com uma análise formal das descobertas aqui apresentadas.

Agradecimentos

Agradecemos aos dois avaliadores pelas contribuições, as quais melhoraram a versão final deste artigo, e agradecemos também a Raquel Ko Freitag pela gentileza e pelo profissionalismo como editora da revista. Quaisquer erros residuais são de nossa inteira responsabilidade.

Informações complementares

Avaliação

DOI: https://doi.org/10.25189/rabralin.v21i1.2023.R

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Eliabe Procópio

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9766-1686

Avaliador 1: Universidade Federal de Sergipe, Sergipe, Brasil.

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Maurício Resende

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7487-5043

Avaliador 2: Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais, Brasil.

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RODADA 1

Avaliador 1

2022-04-10 | 06:30

O título é claro ao direcionar o leitor para a temática do texto.

O resumo apresenta redação não canônica à esfera acadêmica, faltando apresentar com clareza o objetivo, a metodologia e os resultados finais (ou parciais). Mesmo sendo um piloto, o texto deve ser claro na apresentação desses elementos e usar o léxico próprio à seção: o objetivo é... os procedimentos são... etc.

A introdução apresenta paráfrases para explicar as com-causativas (não sei de propósito... o autor usa a paráfrase 'fazer com que', não recomendada pela gramática normativa). A introdução não é clara na apresentação do objetivo ("busca analisar" <> para quê? qual o propósito?).

A introdução apresenta ainda dois problemas redacionais que se repetem ao longo do texto, são eles: uso excessivo de advérbios de modo terminados em -mente & apagamento do agente da passiva (é interpretado por quem?

TEXTO

Recomendo o uso de nome no lugar de verbo nas paráfrases:

"A casa ruiu com as chuvas (causativa: as chuvas causam a ruína da casa). | dormir > dormência

Recomendo ainda o cuidado com o excesso de paráfrases.

Recomendo revisar e retirar trechos que nada informam, como “Por ora, vamos discutir com um pouco mais de detalhes aspectos sintáticos e semânticos do que chamamos neste estudo inicial de com-causativas.” | “Como esperamos ter mostrado acima”

“Por exemplo, imaginemos que, em (5) a seguir, o menino Pedrinho esteja brincando com um carrinho de controle remoto.” – Este trecho é dado como exemplo, mas não está claro do que.

“Importante notar...” – estrutura de destaque informacional, mas sem o motivo aparente (por que é importante notar ISTO?).

“O mesmo não acontece...” | “o mesmo não é aceitável...” – a referência não está clara: o mesmo o quê.

Não está clara a relação entre a noção de ‘raiz’ e as construções ‘com-causativas’, principalmente porque o conceito de ‘raiz’ é de viés histórico, o que não é foco deste trabalho.

A fonte dos exemplos aparece a partir de (11): por que os exemplos anteriores não têm fonte? Eles são criados pelo autor para empreender sua análise? Qual o critério para composição do corpus (o que não está claro!)?

“poderíamos imaginar que a interpretação causativa” – esse exercício imaginativo é qualificado depois de hipótese. Aqui tem um problema redacional, porque imaginar não é verbo técnico (seleção vocabular), nem pode ser avaliado pelo autor como hipótese. O estabelecimento de uma hipótese é fundamental para uma argumentação.

“Obviamente, o contexto pode aumentar” – o que lhe parece óbvio pode não ser para o leitor. Diga o porquê dessa obviedade. Se for algo tão óbvio para se dizer, apague a informação angulada pelo advérbio.

Sobre os gráficos e os experimentos, eles deveriam estar numa seção metodológica. Nada está claro: seleção dos informantes, meio/instrumento de coleta, tipo de análise estatística, uso de programa estatísticos (ou apenas Excel), autorização de comitê de ética etc. Recomendo que o autor crie uma seção para apresentar apenas os procedimentos metodológicos.

A CONCLUSÃO não retoma os pontos principais da pesquisa, nem é clara nos direcionamentos a partir deste estudo: qual a agenda de desenvolvimento desta pesquisa.

O texto tem seu mérito acadêmico e pode ser publicado, contudo deve ser revisado com ajustes na redação e na configuração argumentativa.

Avaliador 2

2022-03-25 | 06:56

O artigo intitulado “Construções ‘com-causativas’ no português do Brasil” aborda um fenômeno sintático-semântico do português brasileiro, pouco ou nada estudado até então, a saber, construções causativas, cujo complemento é introduzido pela preposição com. O artigo oferece uma descrição apropriada, seguida de uma análise preliminar que alveja propriedades sintáticas e semânticas do fenômeno em questão; adicionalmente, o artigo apresenta dois testes linguísticos, cujos resultados – embora não tenham recebido um tratamento estatístico – parecem corroborar as hipóteses aventadas pelos autores. A análise é clara, consistente do ponto de vista empírico e coerente do ponto de vista teórico; além disso, o texto está bem escrito e bem organizado. Portanto, meu parecer é favorável à publicação deste trabalho. De todo modo, faço três observações para serem consideradas pelos autores:

  • Se não há nenhuma diferença temática entre com-causativas e outras construções que não empregam a preposição, deveria haver alguma diferença (sintática ou semântica) entre as sentenças (i) e (ii)?
  • (i) A mãe fez os meninos comerem a sopa.
  • (ii) A mãe fez com que os meninos comessem a sopa.
  • Se o com das construções causativas é uma preposição funcional (em oposição ao com das sentenças comitivas, que é lexical), que consequências isso teria para a marcação de Caso para o complemento de verbos transitivos?
  • Talvez fosse interessante, se possível, explicitar os argumentos ou as evidências empíricas do outro trabalho em andamento, mencionado pelos autores, para que o leitor tenha uma visão mais completa de alguns dos desdobramentos da análise oferecida.

Resposta dos autores

DOI: https://doi.org/10.25189/rabralin.v21i1.2023.A

2022-05-10

RODADA 1

Prezada Raquel Freitag,

Segue, em anexo, nova versão do nosso artigo “Construções “com-causativas” no português do Brasil”, contendo as reformulações solicitadas pelos pareceristas. Seguem dois formatos do mesmo artigo, em dois arquivos distintos: um com marcações, em vermelho, das modificações motivadas pelos comentários; outro, sem tais marcações, de forma a facilitar o trabalho de editoração.

Procuramos seguir todos os comentários e todas as sugestões, respeitando o espírito e a disposição iniciais da versão original. Por esse motivo, as intervenções, diluídas no resumo, na introdução e nas demais seções, nem sempre seguem a ordem disposta nos comentários. Para alguns comentários, foram criadas notas de rodapé (nota 9, por exemplo), com o intuito de não romper o fluxo de leitura do texto. Em certos casos, uma pequena adaptação na redação nos pareceu ser suficiente para satisfazer à solicitação ou desfazer mal-entendidos gerados pela redação anterior (exemplo: “(...) ao passo que o DP que segue a preposição (com) é interpretado pelos falantes como tema (ou paciente)”).

Modificações dignas de nota na atual versão são as seguintes:

1) O resumo foi praticamente reformulado na íntegra, de forma a se adaptar a um desenho mais canônico, em termos lexicais e estruturais. Em consequência disso, foi reformulado também o abstract.

2) Uma seção foi adicionada (seção 2), na qual maiores detalhes dos experimentos foram apresentados.

3) Além de constarem no resumo, foram indicados, de forma mais clara, os objetivos e hipóteses do artigo na introdução.

4) Foram acrescentadas as notas 8, 9 e 10, de forma a contemplar dúvidas levantadas e recomendações feitas pelos pareceristas.

5) Foram antecipadas, mesmo sem grande aprofundamento, questões teóricas do trabalho em andamento (seções 4 e 5).

Agradecemos profundamente o profissionalismo e gentileza da editora da revista, assim como os valiosos comentários dos pareceristas, os quais serviram, com suas críticas qualificadas, de grande valia para a melhora da versão final do texto que agora enviamos. Após as modificações motivadas por tais comentários, consideramos que a atual versão reflete, de maneira mais adequada, nossos propósitos. Assumimos possíveis erros residuais.

Atenciosamente,

Gean Nunes Damulakis

Alessandro Boechat de Medeiros

Referências

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MARANTZ, A. Rederived Generalizations. New York University, 2006 (manuscrito).

MEDEIROS, A. B. Considerações sobre a estrutura argumental dos verbos. In: MEDEIROS, A. B.; NEVINS, A. (Orgs.). O apelo das árvores: estudos em homenagem a Miriam Lemle. São Paulo: Pontes, 2018. p. 231-298.

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