Discursos preconceituosos, corpos discriminados: O estranho espelho de “quem quiser vir ao Brasil fazer sexo com mulher, fique à vontade" – diz Bolsonaro

Lucas Nascimento

Resumo

Este trabalho está filiado à Análise de Discurso e aos autores Pêcheux, Foucault e Courtine. “Quem quiser vir ao Brasil fazer sexo com mulher, fique à vontade” e “Não podemos ser país do mundo gay, temos família”, afirmações de Jair Messias Bolsonaro, durante café da manhã com jornalistas, em 25 de abril de 2019, em Brasília, são enunciados de nossas análises. Argumentamos em relação à expressão fique à vontade que abre fissuras na imagem da mulher brasileira e a simboliza ao turismo sexual do país. A expressão traz a liberdade ao homem turista heterossexual como política de sentido para o turismo sexual e a negação para a sexualidade do homem homossexual, como exclusão sexista e afirmação homofóbica. O discurso de Bolsonaro corrobora com a imagem de Brasil turístico na publicidade da EMBRATUR 2019. Com isso, passamos a observar marcas de regularidade do verbal (“X” está à disposição dos turistas. “Y”, não.) em algumas peças publicitárias que constroem percursos de leitura pelo funcionamento da formação discursiva, da memória discursiva e de lugares de memória, que veiculam um Brasil destino turístico pelas atrações turísticas e não pelo sexo e pela homofobia. Desse modo, o imaginário presidencial atual sobre o turismo brasileiro é por meio de exploração do corpo da mulher brasileira e de negação da homossexualidade.

Introdução

Organizamos a reflexão em torno das seguintes materialidades discursivas (PÊCHEUX, 1981[1]): (a) a reportagem da redação do Pragmatismo Político (situada na seção “Mulheres violadas”) intitulada “Quem quiser vir ao Brasil fazer sexo com mulher, fique à vontade, diz Bolsonaro”, em café da manhã com jornalistas, em 25 de abril de 2019, em Brasília; (b) nove peças publicitárias que circularam como respostas à defesa de turismo em prol das belezas regionais e naturais, assinadas pelos governos de estados, até mesmo pela OAB – Ordem dos Advogados do Brasil; (c) três peças publicitárias da EMBRATUR (Instituto Brasileiro de Turismo). A partir do questionamento suscitado pela leitura da reportagem jornalística – por que a existência do sentido de turismo sexual? – é que se propõem discussões neste artigo, motivadas pelas políticas de sentido nas peças publicitárias analisadas1.

Com a problematização apresentada pela EMBRATUR, também em 2019, remeteremos a determinados sentidos sobre o imaginário do Brasil como país de produto turístico sexual, imaginário este somado aos sentidos conhecidos sobre o carnaval, o futebol, as praias nordestinas e a beleza da negra brasileira (cf. BRAGA, 2015[2]).

As reflexões presentes neste texto estão filiadas à Análise do Discurso de orientação do fundador Michel Pêcheux, com seus desdobramentos conceituais, assim como das contribuições pontuais de Michel Foucault e de Jean-Jacques Courtine. Especialmente, os conceitos de formação discursiva, memória discursiva e lugares de memória que mais nos deteremos, cuja articulação nos permite observar as repercussões produzidas pelo imaginário de turismo como exploração, fincada em preconceitos e normatividades culturais machistas, sentidos estabelecidos acerca do Brasil destino turístico. Esclarecemos ainda que o gesto analítico proposto é reconhecidamente necessário pelos estigmas sobre a mulher e o gay, bem como pelo prestígio da família exclusivamente heterossexual. Há muito tempo, estigma e prestígio vêm exercendo um desserviço ao respeito e à diversidade, fomentando a discriminação e o preconceito e os naturalizando socialmente.

O artigo está organizado por três seções que desenvolvem a temática proposta. Primeiramente, o leitor encontrará A Análise do discurso: considerações sobre o dispositivo de análise, em que se tem a apresentação de conceitos da teoria endereçados às análises, nas seções posteriores. Em seguida, a seção Bolsonaro e a imagem do turismo do Brasil traz dois enunciados do então Presidente da República Federativa do Brasil para o início de trabalho do gesto analítico. Já na próxima seção, intitulada A publicidade e a imagem do turismo no Brasil, o leitor lerá sentidos do encontro do verbal e do não-verbal em nove peças publicitárias que também compõem o corpus, além dos dois enunciados já mencionados. Finalmente, a seção A EMBRATUR e a imagem do turismo no Brasil tecerá um resgate histórico do Instituto Brasileiro de Turismo sobre algumas de suas campanhas e slogans para que considerações sobre a figura da mulher e sua propaganda façam sentido, a partir dos enunciados de Bolsonaro. O gesto analítico está em um vai e vem na teoria e na análise. Esses são os dois procedimentos na Análise do discurso.

Passemos à breve leitura, a seguir, sobre a teoria do discurso que nos movimenta, aqui.

1. A Análise do discurso: considerações sobre o dispositivo de análise

Para os procedimentos teórico e analítico neste texto, retomaremos algumas questões fundamentais à Análise do Discurso (AD). Proposta pelo filósofo francês Michel Pêcheux (nos anos de 1960), a Análise do Discurso se constitui em sua tarefa primeira: ler e interpretar textos (PÊCHEUX, 2011[3]). Com foco na interpretação, há conceitos e abordagens próprias ao seu bojo teórico-metodológico. Em sua especificidade, a AD está composta na interseccionalidade com três outros campos do saber: a Linguística, o Materialismo Histórico e a Psicanálise. Portanto, a AD trabalha como disciplina de entremeio (ORLANDI, 1996[4]).

A sua importância se dá exatamente nessa intersecção e na sua característica de entremeio. Conforme afirmam Pêcheux e Fuchs (1990[5]), a AD compartilha de três grandes perspectivas comuns a outros estudos de discurso. Em seu trabalho, estruturas sintáticas encadeadas em unidades lexicais, por exemplo, são necessárias, aliás, fundamentais, em se tratando do objeto discurso de textos verbais. Além da atenção ao verbal, a AD compartilha também “[...] com as tradições semiológicas e semióticas [...], a tarefa de apreender e descrever as condições estruturais de existência do sentido, mas sem se autorizar a supor estruturas lógico-semânticas subjacentes às sequências discursivas.” (PÊCHEUX, 2011, p. 228[3]). A AD pecheutiana (ou pecheuxtiana, como preferirem!) também tece compartilhamentos com Foucault (compartilhamento “foucauldiano” como se referiu Pêcheux, 2011[3]), sobretudo, em relação à condição histórica de existência dos discursos, às questões da língua na história.

Com isso, o analista de discurso produz gestos de análise com atenção especificamente nas contradições e em heterogeneidades discursivas, por materialidades relacionadas às suas condições de produção (também específicas), assim como por outros espaços discursivos com os quais as materialidades produzem movimentos (de aliança, de resistência ou de ruptura). Ao problematizar o texto para além da sua estrutura, esse analista admite as implicações do exterior ideológico como articulação do sujeito enunciador em seu trabalho de produção/reprodução dos sentidos.

Com distanciamento de “[...] a concepção do sujeito cognitivo epistêmico, ‘mestre em seu domínio’ e estratégico em seus atos (face às coerções bio-sociológicas)” (PÊCHEUX, 2011, p. 230[3]), a AD compreende a constituição da “divisão do sujeito” por ele ter “sua inscrição no campo do simbólico” e por assim se inscrever, consequentemente, no universo de articulações da memória. Diante disso, entende-se que o conceito de memória também é afastado de “coerções bio-sociológicas” e “cognitivo epistemológicas”. Aí reside a sua diferença com a compreensão de uma memória individual. A memória é entendida com base em “[...] sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador” (PÊCHEUX, 1999, p. 44[6]).

Em nossas análises, trabalharemos a memória como espaço de sentidos responsáveis pelo entrecruzamento de caminhos em via consequente da abertura de fissuras, de modo a interrogar a materialidade trazida à análise. As interrogações vão desde suas próprias condições de produção, até, por exemplo, daquelas que questionam a possibilidade de apenas a superfície sintática compor essa materialidade. Aqui, trabalharemos com materialidades sintáticas e imagéticas (sincretismo) em (i.) enunciados e fotografia com aderência ao incentivo ao turismo sexual e a homofobia, (ii.) peças publicitárias como campanhas em defesa à figura da mulher brasileira e, por fim, (iii.) slogans da marca da EMBRATUR que implicam sentidos de incentivo à apologia ao turismo sexual. Com esse corpus para análises, o entendimento é de que sentidos são tomados e retomados em prol de incentivo ao preconceito, ao culturalmente normatizado com relação ao sexo e à sexualidade, à discriminação em específico gênero, vindo à tona uma construção de imaginário de Brasil. Esses incentivos nada mais articulam do que marcas em sentidos cristalizados e inscritos na memória social e histórica.

Ao trabalhar o conceito de memória como “[...] um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos, de regularizações... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra discursos” (PÊCHEUX, 1999, p. 50[6]), analisaremos o funcionamento de uma exterioridade histórica e (re)produtora de sentidos que se articula nas materialidades. Essa exterioridade (AUTHIER-REVUZ, 1982[7]; 1984[8]; INDURSKY, 2001[9]) mobilizará implícitos, tomadas de posição, retomadas e atualizações de sentidos.

Têm-se, então, em nosso corpus de trabalho, afirmações e negações semânticas de formações discursivas (FDs), em que descrevemos certo número de enunciados semelhantes, em um conjunto de inscrições discursivas, de certo modo disperso em suas possibilidades, que definiram regularidades (heterossexualidade, misoginia2, homofobia, fomento ao turismo sexual), ou convenções, de formação – daí a noção de formação discursiva.

Foucault (2009, p. 43[10]) revela seu conceito:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (…).

Foucault (2009, p. 83[10]) ainda explicita que uma formação discursiva

não desempenha, pois, o papel de uma figura que para no tempo e o congela por décadas ou séculos: ela determina uma regularidade própria de processos temporais; coloca o princípio de articulação entre uma série de acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos, transformações, mutações e processos. Não se trata de uma forma intemporal, mas de um esquema de correspondência entre diversas séries temporais.

Sobre os enunciados (E1 e E2) de Bolsonaro, corpus deste trabalho, eles fazem todo o sentido na formação discursiva heterossexual machista, misógina e discriminatória. Com isso, as expressões ou as sequências discursivas do E1 e E2 – que destacaremos na próxima seção – são regularidades próprias de processos temporalmente constituídos na história pela memória discursiva do que significa turista e pela memória discursiva do que significa homem. Exatamente por isso é verdadeira a existência de perfis de turistas como regularidades próprias de processos constitutivos de sentidos na memória discursiva de turista. Do mesmo modo, é verdadeira a existência de perfis de homens como regularidades próprias de processos constitutivos de sentidos na memória discursiva de homem. Colocamos em existência as articulações para turista e homem entre uma série de filiações semânticas. São filiações de sentido (com implicaturas em políticas de sentido) para a compreensão e a identificação dos processos da formação discursiva, dos processos de autonomia de cada sentido para a efetividade de constituição de e em uma formação discursiva.

Com foco especial nas materialidades selecionadas e nos recortes específicos, consideraremos os materiais de nosso corpus como representativos das condições de produção do discurso acerca do Brasil, em sua produção de turismo, por um lado; por outro, em sua produção de cultura, cidadania e diversidade. Aqui, tomaremos discursos que envolvem aspectos histórico-enunciativos sobre a atual Presidência da República do Brasil, assim como sobre alguns governantes estaduais, sobre a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a respeito do Instituto Brasileiro de Turismo (EMBRATUR).

Passemos à leitura, a seguir, sobre a imagem do Turismo no Brasil pelo então Presidente da República Jair Messias Bolsonaro (inicialmente do PSL; sem partido, atualmente).

2. Bolsonaro e a imagem do Turismo do Brasil

Antes de passarmos à leitura de nosso primeiro material selecionado, consideraremos as condições de produção do veículo de comunicação em que a reportagem foi publicada. No ar desde setembro de 2009, Pragmatismo Político se consolidou como um dos maiores sites de notícias e opinião do Brasil. “Com zelo, responsabilidade jornalística e independência editorial, o espaço se destaca por fomentar debates e reflexões que estimulam o senso crítico” (cf. a seção “Quem Somos”, do site do Pragmatismo Político).

Passemos à leitura (conforme print) da seção de redação “Mulheres Violadas”.

Figure 1. FIGURA 1 – Mulheres Violadas Fonte: Redação Pragmatismo Político, 26 abril 2019 (Foto: Marcos Correa/PR[11]).

Na sequência da fotografia vista acima, o leitor encontra a continuidade da reportagem com destaques da própria edição:

Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay aqui dentro.

A frase acima foi dita pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) durante café da manhã com jornalistas de diversos veículos de comunicação do Brasil nesta quinta-feira (25).

O presidente foi questionado sobre a recusa do Museu Americano de História Natural de Nova York em sediar um evento para homenageá-lo. A instituição classifica Bolsonaro como homofóbico e racista.

“Não é o museu que está me homenageando. O que houve foi pressão do governo local que é Democrata e eu sou aliado do (presidente dos EUA) Donald Trump”, disse Bolsonaro.

Ele afirmou que, em novembro de 2009, começou a “tomar pancada do mundo todo” ao acusar o kit gay. “Eu comecei a assumir essa pauta conservadora. Essa imagem de homofóbico ficou lá fora”, disse, afirmando que isso não prejudica investimentos. “O Brasil não pode ser um país do mundo gay, de turismo gay. Temos famílias”, disse.

Em seguida, o presidente proferiu a frase destacada no início deste texto.

Fonte: Mulheres Violadas (Redação Pragmatismo Político, 26 abril 2019, destaques do editor[11])

“Quem quiser vir ao Brasil fazer sexo com mulher, fique à vontade” (enunciado 1 – E1) e “Não podemos ser país do mundo gay, temos família” (enunciado 2 – E2) foram afirmações de Jair Messias Bolsonaro, durante café da manhã com jornalistas de jornais e TV. Esses enunciados não preservam a memória das mulheres de nossas regiões brasileiras, assim como não preservam também a dos gays. Nossa argumentação está em relação ao estranho espelho do discurso (cf. Pêcheux, 2009[12]) (mulher, gay, família) de Bolsonaro, em 25 de abril de 2019. Vimos, inicialmente, que há três formações discursivas dominantes, ao menos: FD mulher, FD gay e FD família.

Se considerarmos que esses dois enunciados não remetem a mesma FD, consideramos que são produzidos a partir de posições-sujeito diferentes. Enquanto uma afirma fique à vontade, a outra nega não podemos, [porque] temos. Entendemos, com isso, que esses enunciados se relacionam também diferentemente com a ideologia, assim produzindo efeitos de sentido distintos (efeitos contrastivos!).

Consideremos as paráfrases, a seguir, que podem ser produzidas pelo leitor, como Você está autorizado a vir ao Brasil fazer sexo com mulher (paráfrase 1 – P1) e Você não está autorizado a vir ao Brasil fazer sexo com homem (paráfrase 2 – P2), a partir do enunciado “Quem quiser vir ao Brasil fazer sexo com mulher, fique à vontade” (E1), em condições de produção em que o presidente Bolsonaro “foi questionado sobre a recusa do Museu Americano de História Natural de Nova York em sediar um evento para homenageá-lo.”. As possíveis paráfrases mobilizam saberes cristalizados normativamente através dos tempos: homem faz sexo com mulher. Estabilizado, este sentido é diverso de outros. Trata-se de enunciado proferido por uma posição-sujeito heterossexual. O tal enunciado (E1) se inscreve no interior de uma formação discursiva (FD): a da heteronormatividade. Aqui, temos uma quarta FD. Podemos dizer que os discursos presidenciais de Bolsonaro se inscrevem numa FD heteronormativa. Com isso, pensamos em diferentes posições-sujeito no interior dessa FD, fazendo-se tanto a noção de FD como de sujeito e posição-sujeito necessárias teoricamente.

Dizendo diferentemente: o processo discursivo do E1 trabalha a partir da modalidade de uma palavra pela outra, produzindo o efeito de sentido, que é o que ocorre no âmbito da matriz de sentido dessa FD. Sabendo que um efeito de sentido é tomado pelo outro efeito de sentido, há a ocorrência de estabilização de sentidos em homem faz sexo com mulher. Esse sentido não está autorizado ao deslizamento para o sentido de Você está autorizado a vir ao Brasil fazer sexo com homem. Se esse “Você” estiver destinado ao locutor homem, o que de fato está, uma vez “assegurada” a heterossexualidade do locutor, Bolsonaro se refere à exclusiva matriz sexual considerada. Por isso, as paráfrases 1 e 2 acima são possíveis. Vejamos, com isso, que o E1 e as duas paráfrases apontam para o modo como os lugares de memória funcionam discursivamente. Percebemos, pelo trabalho do sentido sobre o sentido, que se instaurou um movimento de identificação em relação aos saberes da FD da Heteronormatividade: o locutor e o interlocutor (Você) são heterossexuais.

Ou seja, os saberes desse domínio de conhecimento estão estabilizados e não estão em condições de ser interrogados, por exemplo. Isso porque há a contraidentificação com a homossexualidade, como vimos no E2 (“Não podemos ser país do mundo gay, temos família”). Assim, paráfrases como Você está autorizado a vir ao Brasil fazer sexo com homem (P3) e Você não está autorizado a vir ao Brasil fazer sexo com mulher (P4) não são possíveis na posição-sujeito do locutor Bolsonaro. Essas paráfrases são impedidas de existência, se considerados os enunciados 1 e 2 e os sentidos constituídos em suas formulações. Essas formulações/constituições são inteiramente de responsabilidade do seu locutor, no caso, Bolsonaro. Podemos considerar como verdadeiro o que acabara de ser dito que “A instituição classifica Bolsonaro como homofóbico e racista.” (Mulheres Violadas, Redação Pragmatismo, 26 abril 2019[11]).

Esses funcionamentos discursivos acima podem ser considerados a partir de lugares de memória. Pierre Nora (1984) funda esse conceito como a apresentação da memória sob a forma de objetos, instrumentos, instituições, documentos, traços vivos constituídos no entrelaçamento do histórico, do cultural e do simbólico. No caso do corpus, aqui trabalhado, atrações turísticas, Estados (Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Mato Grosso, Maranhão, Rio Grande do Sul), Brasil, LGBT (o evento Parada de Luta), Comissão da Mulher Advogada, Empresa de Vigilância e Presidentes (Bolsonaro e Trump) são objetos, instrumentos, instituições que funcionam, nesse caso, como lugares de memória (confira o quadro 1), por serem traços vivos constituídos no entrelaçamento do histórico sobre a mulher, o folclore e o turismo, sobre a militância de gênero, do cultural sobre as atrações ao turismo local e regional e peculiaridades do país, do simbólico sobre a tolerância e o respeito à diversidade, o respeito ao corpo e à mulher, ao homossexual, por exemplo. Esses lugares de memória permitem avaliar a diferença que se estabelece entre o processo parafrástico, que ocorre no âmbito de uma matriz de sentido, e o efeito parafrástico, que se instaura pela autorização de uns e desautorização de outros saberes produzidos, a partir de posições-sujeito, inscritos em uma mesma FD.

Na contraidentificação com a diversidade (FD gay) e com a família composta por casal homossexual, sinalizada pelo locutor Bolsonaro no enunciado E2: “Não podemos ser país do mundo gay, temos família”, instaura-se uma relação de tensão com o E1: “Quem quiser vir ao Brasil fazer sexo com mulher, fique à vontade”. No E1, tem-se a contraidentificação de Bolsonaro com o respeito à mulher (FD mulher) e se têm as identificações com a misoginia (FD misoginia) e com o fomento ao turismo sexual (FD turismo sexual).

A relação que esses dois enunciados estabelecem é muito mais da ordem do preconceito e da discriminação do que de qualquer outra ordem discursiva. Essa nossa afirmação é cabível se assegurarmos que as paráfrases 3 e 4 não são possíveis em se tratando da posição-sujeito do autor dos enunciados 1 e 2. Nesse passo, interessa-nos perceber os sentidos cristalizados que podem se repetir, como o machismo, a intolerância, o turismo sexual de modo a reaparecerem exatamente na forma do preconceito e da discriminação sexistas. Pela força de serem repetidos e em função das condições de produção em que essa repetição ocorre, os sentidos vão sendo tensionados, de modo que os contradiscursos os ressignificam na tentativa de produção de sentidos ao avesso de discursos preconceituosos e discriminatórios. Ou seja: a regularização dos sentidos decorrentes da repetição de lugares de memória (já cristalizados, como vimos mais acima) está sempre na tentativa de impedimento da movência desses sentidos, para que se evite a possibilidade de contradição no interior da própria FD.

Portanto, têm-se as seguintes conclusões, no mínimo, sobre as formações discursivas de homofobia e de misoginia: (a) O turista heterossexual pode vir ao Brasil fazer sexo com mulher, à vontade; (b) Temos família no Brasil, porque não somos país do mundo gay; (c) O homem de país do mundo gay pode vir ao Brasil fazer sexo com mulher, à vontade, mas não com homem.

Uma vez mais, com tais possibilidades de filiações discursivas e retomando Foucault (2006[13]), o perigo da proliferação do discurso está na ordem estabelecida por espaços de machismo (o café da manhã com jornalistas), com o prestígio da heterossexualidade – uma reunião praticamente repleta de homens –, com as garantias de exclusão de outras matrizes sexistas e, consequentemente, com a afirmação de homofobia e de misoginia. Para se ter uma formação discursiva proliferada – dada a sua condição de circulação do discurso – outras formações discursivas são refutadas, rejeitadas e até mesmo anuladas em sua condição de existência. Para se ter uma FD, outras deverão não existir. Do mesmo modo, para se ter um sentido, outros deverão não existir.

Vejamos que nos E1 e E2 de Bolsonaro, os sentidos de respeito, de tolerância, de diversidade e de inclusão são rejeitados para que os sentidos de machismo, de misoginia, de homofobia e de turismo sexual (prostituição, estupro, entre outros) fossem inscritos e, assim, disponíveis para a circulação discursiva, quando de sua fala naquele café da manhã com jornalistas. Com isso, a inscrição se deu pelo fato de que “a formação discursiva [é] aquilo que, numa formação ideológica, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.)” (PÊCHEUX, 1988, p. 160[14]).

Diante disso, certos sentidos (de respeito, de tolerância, de diversidade e de inclusão) não puderam ser atualizados, pois não chegaram a serem lembrados por assim não terem sua legitimação inscrita na existência enunciativa dos E1 e E2, de Jair Messias Bolsonaro. Outros puderam ser produzidos no seio de uma FD autônoma, em função de administrações conjunturais e de decisões eleitas que assim os legitimaram para a inscrição nessa formação discursiva específica. Por exemplo, os sentidos inscritos na FD de heterossexualidade puderam ser ditos nessa FD, no entanto, não puderam ser autorizados nas outras FD: na FD diversidade, na FD respeito à mulher, na FD turismo não-sexual.

Em se tratando de análise ao nível de enunciado, o perigo reside na proliferação discursiva (FOUCAULT, 2006[13]) da expressão fique à vontade, que, no mínimo, abre fissuras na imagem da mulher brasileira e a simboliza como turismo sexual do país. Falamos de fissuras na figura daquela mulher heterossexual que compõe a família cristã nacional (aqui, já se trata de matriz de sentido de FD família). A simbolização da mulher brasileira como turismo sexual do país e a fissura na imagem de mulher cristã se justificam pelas mulheres estarem disponíveis ao turismo sexual, conforme a posição-sujeito enunciativa do Presidente Bolsonaro no E1.

A expressão fique à vontade coloca em circulação ao menos duas políticas de sentidos: (i.) a liberdade concedida ao homem heterossexual turista para o turismo sexual com mulheres brasileiras e (ii.) a negação estabelecida para o impedimento da liberdade ao homem heterossexual turista para o turismo sexual com homens homossexuais brasileiros. Essas políticas de sentidos podem estar representadas por lugares de memória que têm em seus espaços o machismo e o prestígio da heterossexualidade, estabelecendo garantias à exclusão sexista e à afirmação de homofobia.

Passemos à seção em que visualizaremos e leremos enunciados publicitários distantes daquela posição-sujeito (jamais esperada) de um Presidencial republicano.

3. A publicidade e a imagem do turismo no Brasil

Imediatamente, passemos à leitura de duas peças publicitárias: a primeira, assinada pela OAB de Alagoas, e a segunda, pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo também de Alagoas3.

Figure 2. FIGURA 2 – Peça publicitária Fonte: OAB de Alagoas (Diretoria de Comissões, Comissão Especial da Mulher) e Caixa[15].

Figure 3. FIGURA 3 – Peça publicitária Fonte: Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo de Alagoas[16]

Propomos considerar as palavras de Achard (1999, p. 17[17]) para as análises das peças publicidades, que reunimos nesta seção:

[...] um texto dado trabalha através de sua circulação social, o que supõe que sua estruturação é uma questão social e que ela se diferencia seguindo uma diferenciação das memórias e uma diferenciação das produções de sentido a partir das restrições de uma forma única.

Como podemos ler, os sentidos não preexistem da filiação das redes de significação. Os sentidos precisam se inscrever em uma FD para receberem seu sentido. Mobilizando as palavras de Achard (1999[17]), um texto dado – como é o caso de “Quem quiser vir ao Brasil fazer sexo com mulher, fique à vontade” (E1) – trabalha através de sua circulação social. Sua estruturação é uma questão de convite social: “X” vir ao Brasil fazer sexo com mulher. Essa estruturação se diferencia seguindo uma diferenciação das memórias (por exemplo, seguindo uma diferenciação dos sentidos das paráfrases 3 e 4). Essa estruturação também se diferencia de uma diferenciação das produções de sentido, a partir das restrições de uma forma única (como são os casos do E1, que afirma a liberdade para um público específico, e do E2, que impede a liberdade para outro público também específico).

Também é verdadeira a afirmação de que as estruturações abaixo se diferenciam de uma diferenciação das produções de sentido, a partir das restrições da forma única do E1: “Quem quiser vir ao Brasil fazer sexo com mulher, fique à vontade”.

Peça publicitária 1:

“O LITORAL, A CULINÁRIA, O FOLCLORE E O ARTESANATO SÃO ATRAÇÕES TURÍSTICAS DE ALAGOAS. AS MULHERES NÃO.

(Cf. Figura 2, OAB de Alagoas)

Peça publicitária 2:

“ALAGOAS ESTÁ À DISPOSIÇÃO DOS TURISTAS. A MULHER ALAGOANA, NÃO! DIGA NÃO À APOLOGIA AO TURIMO SEXUAL.”

(Cf. Figura 3, Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo de Alagoas).

Essas duas peças publicitárias respondem negativa e contrariamente à afirmação de Bolsonaro, então Presidente da República Federativa do Brasil. O seu texto dado em (E1) trabalha através de sua circulação social por enunciados em contraidentificação, ou seja, com posições-sujeito contraidentificadas ao discurso do texto dado (E1). As peças acima são publicidades de e com sentidos contrários ao sentido de que a mulher brasileira está à disposição para sexo com o turista. Ao contrário: “As mulheres não” e “A mulher alagoana não”. Os que estão à disposição ao turismo são “O litoral, a culinária, o folclore e o artesanato” (Cf. Figura 2) e “Alagoas” (Cf. Figura 3). Vimos, assim, que os lugares de memória de Alagoas são outros (como praias, coqueirais, alimentos típicos e danças, por exemplo) e não aqueles em que se teriam o corpo da mulher disponível ao turista.

A relação da memória com essas sequências enunciadas é que nem a mulher alagoana, nem a mulher brasileira estão à disposição. Por isso, nem é para o turista ficar à vontade com a mulher alagoana, nem com a mulher brasileira. Com o explícito de que “A mulher alagoana não está à disposição dos turistas”, há uma “regularização [que] se apoia necessariamente sobre o reconhecimento do que é repetido. Esse reconhecimento é da ordem do formal, e constitui outro jogo de força [...]” (ACHARD, 1999, p. 16[17]). Diante disso, a memória funciona pelo reconhecimento do que precisa ser repetido e pela obrigação de algo que deve ser esquecido.

Com a formulação do conceito de memória discursiva por Courtine (1981[18]), podemos compreender a sua relação com a existência de enunciado, de repetição e de esquecimento. Vejamos: “A noção de memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no seio de práticas discursivas reguladas pelos aparelhos ideológicos” (COURTINE, 1981, p. 53[18]). Em modo de questionamento, logo o autor interroga: “como o trabalho de uma memória coletiva, no seio de uma FD, permite a lembrança, a repetição, a refutação, mas também o esquecimento destes elementos de saber que são os enunciados?!” (COURTINE, 1981, p. 53[18]). Vimos, então, que a memória discursiva tem a existência histórica do enunciado nas práticas discursivas reguladas pelos aparelhos ideológicos4. Ou seja: ela diz respeito aos enunciados que se inscrevem nas formações discursivas (FD), no interior das quais ele recebe seu sentido. Nessa perspectiva é que o autor responde a seguinte pergunta: “Enfim, sobre que modo material uma memória discursiva existe?” (COURTINE, 1981, p. 53[18]).

Em sua resposta, entendemos que a memória discursiva se refere aos enunciados que se inscrevem em uma FD e, nessa inscrição, é o momento em que os sentidos são autorizados pela posição-sujeito5 nessa própria formação discursiva. É importante ter esclarecido que a memória discursiva escolhe uns e refuta outros sentidos para essa inscrição e autorização enunciativas. Nesse funcionamento de inscrição e de autorização é o que temos em análise do discurso como alguns sentidos são refutados para que outros tenham a sua autorização e legitimidade, quando de suas inscrições na formação discursiva.

Além de o sentido, quando refutado para a inscrição de outro, a partir do funcionamento da memória discursiva que elege o que não pode ser dito na referida formação discursiva, a memória discursiva ainda nos demonstra que certos sentidos são esquecidos. Isto é: certos sentidos não podem mais ser atualizados, não chegarão a ser lembrados por assim não terem sua legitimação inscrita para sua existência enunciativa, enquanto outros podem ser produzidos no seio de uma FD, em função de administrações conjunturais e de decisões eleitas que assim os legitimam para a inscrição nessa formação discursiva específica. Faz-se necessário ter esclarecido também que certos sentidos, que não podem ser ditos nessa FD, passam a ser autorizados em outra.

A seguir, consideraremos a estrutura em conformidade com a peça publicitária 2, vista acima: “X ESTÁ. Y, NÃO!” de “X ESTÁ À DISPOSIÇÃO DOS TURISTAS. Y, NÃO!” Além das duas já vistas, vejamos essa repetição de estrutura na circulação do discurso em mais seis enunciados nas peças publicitárias, a seguir:

Figure 4. FIGURA 4 – Peça publicitária Fonte: Governo do Estado do Rio Grande do Norte[19]

Peça publicitária 3:

“O RN ESTÁ À DISPOSIÇÃO DOS TURISTAS. A MULHER POTIGUAR, NÃO. DIGA NÃO À APOLOGIA AO TURIMO SEXUAL.”

Figure 5. FIGURA 5 – Peça publicitária Fonte: Secretaria da Mulher. Governo do Estado Pernambuco. Mais trabalho, mais futuro[20]

Peça publicitária 4:

“PERNAMBUCO ESTÁ À DISPOSIÇÃO DOS TURISTAS. A Mulher pernambucana, Não! DIGA NÃO À APOLOGIA AO TURISMO SEXUAL.”

Figure 6. FIGURA 6 - Peça publicitária Fonte: OAB de Mato Grosso[21]

Peça publicitária 5:

“MATO GROSSO ESTÁ À DISPOSIÇÃO DOS TURISTAS. A MULHER MATO-GROSSENSE, NÃO. DIGA NÃO À APOLOGIA AO TURISMO SEXUAL.”

Figure 7. FIGURA 7 – Peça publicitária Fonte: Comissão da Mulher Advogada, Caixa de Assistência dos Advogados do Distrito Federal, OAB do Distrito Federal[22]

Peça publicitária 6:

“BRASIL ESTÁ À DISPOSIÇÃO DOS TURISTAS

AS MULHERES BRASILEIRAS

NÃO

Exploração sexual não é turismo. É crime!

Figure 8. FIGURA 8 – Peça publicitária Fonte: Maranhão Terra de Encantos. Governo do Maranhão Governo de Todos Nós[23]

Peça publicitária 7:

“O MARANHÃO ESTÁ À DISPOSIÇÃO DOS TURISTAS.

A MULHER MARANHENSE, NÃO.

SÃO JORGE CHEGANDO E O MARANHÃO

JÁ ESTÁ DE PORTAS ABERTAS A TODOS

OS TURISTAS, SEM DISTINÇÃO.

MAS AS PORTAS ESTÃO FECHADAS PARA

A EXPLORAÇÃO DA MULHER, QUE MERECE

RESPEITO SEMPRE, NOS 4 CANTOS DO PAÍS.”

Figure 9. FIGURA 9 – Peça publicitária Fonte: Parada de Luta LGBTI de Porto Alegre[24]

Peça publicitária 8:

PORTO ALEGRE ESTÁ A DISPOSIÇÃO DO TURISMO LGBT. A MULHER PORTO-ALEGRENSE NÃO. DIGA NÃO A APOLOGIA AO TURISMO SEXUAL. Parada de Luta LGBTI Porto Alegre

28, 29 e 30 de junho – Porto Alegre / RS”

Figure 10. FIGURA 10 – Peça publicitária Fonte: Distrital Chico Vigilante[25]

Peça publicitária 9:

“O BOLSONARO ESTÁ À DISPOSIÇÃO DO TRUMP. AS MULHERES BRASILEIRAS, NÃO! DIGA NÃO À EXPLORAÇÃO SEXUAL.”

Ao retomar Achard, Pêcheux (1999[6]) afirma que a regularização discursiva pode instituir a série da lei do legível em seu funcionamento. Temos, então, essa regularização marcada no efeito seriado de paráfrases da sequência “X ESTÁ. Y, NÃO!” de “X ESTÁ À DISPOSIÇÃO DOS TURISTAS. Y, NÃO!”

Vejamos essa repetição de estrutura no quadro que organizamos, a seguir:

Peças publicitárias Enunciado Fonte Formações discursivas
PP1 O litoral, a culinária, o folclore e o artesanato são atrações turísticas de Alagoas. As mulheres não. OAB de Alagoas Atrações turísticas
PP2 Alagoas está à disposição dos turistas. A mulher alagoana, não! Diga não à apologia ao turismo sexual. Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo de Alagoas Estados
PP3 O RN está à disposição dos turistas. A mulher potiguar, não. Diga não à apologia ao turismo sexual. Governo do Estado Rio Grande do Norte Estados
PP4 Pernambuco está à disposição dos turistas. A Mulher pernambucana, Não! Diga não à apologia ao turismo sexual. Secretaria da Mulher. Governo do Estado Pernambuco. Mais trabalho, mais futuro. Estados
PP5 Mato Grosso está à disposição dos turistas. A mulher mato-grossense, não. Diga não à apologia ao turismo sexual. OAB de Mato Grosso Estados
PP6 “Brasil está à disposição dos turistas. As mulheres brasileiras, não. Exploração sexual não é turismo. É crime! Comissão da Mulher Advogada, Caixa de Assistência dos Advogados do Distrito Federal, OAB do Distrito Federal Brasil
PP7 O Maranhão está à disposição dos turistas. A mulher maranhense, não. São Jorge chegando e o Maranhão já está de portas abertas a todos os turistas, sem distinção. Mas as portas estão fechadas para a exploração da mulher, que merece respeito sempre, nos 4 cantos do país. Maranhão Terra de Encantos. Governo do Maranhão Governo de Todos Nós. Atrações turísticas
PP8 Porto alegre está a disposição do turismo LGBT. A mulher porto-alegrense não. Diga não a apologia ao turismo sexual. Parada de Luta LGBTI Porto Alegre 28, 29 e 30 de junho – Porto Alegre / RS Parada de Luta LGBTI Porto Alegre LGBT
PP9 O Bolsonaro está à disposição do Trump. As mulheres brasileiras, não! Diga não à exploração sexual. Distrital Chico Vigilante Presidentes
Table 1. QUADRO 1 – Enunciados das peças publicitárias e suas formações discursivas Fonte: Elaboração própria

Analisaremos as peças publicitárias (PP) em relação ao seu número, correspondentemente ao enunciado, e à sua fonte, de modo a compreendermos cada qual em pertencimento a uma dada formação discursiva (FD). Com esse procedimento, a fim de organização, teremos que as PP1 e PP7 inscrevem seus enunciados na “FD atrações turísticas”, uma vez que os sentidos colocam em circulação que o litoral, a culinária, o folclore e o artesanato, assim como o São Jorge (a festa), respectivamente, estão à disposição de Alagoas e do Maranhão. Da PP2 a PP5, a “FD estados” tem em sua dominância a regularidade de que Alagoas, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Mato Grosso e Maranhão estão à disposição do turismo. Na PP6, há uma ampliação geográfica de estados para o território nacional brasileiro pela “FD Brasil” com o enunciado “Brasil está à disposição dos turistas”. Já em PP8, a “FD LGBT” inscreve em seu enunciado o sentido de que “Porto Alegre está à disposição do turismo LGBT”. Por fim, os sentidos “Presidentes do Brasil e do EUA” está em funcionamento no enunciado “Bolsonaro está à disposição do Trump” da PP9.

A respeito das possibilidades de identificação de formações discursivas das peças publicitárias de nosso corpus, esses enunciados acima mostram sentidos inscritos para certos funcionamentos discursivos. De início, já podemos analisar lugares de memória. A apresentação da memória está sob a forma de instituições e de traços vivos: OAB de Alagoas, Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo de Alagoas, Governo do Estado do Rio Grande do Norte, Secretaria da Mulher (Governo do Estado Pernambuco), OAB de Mato Grosso, Comissão da Mulher Advogada, Caixa de Assistência dos Advogados do Distrito Federal, OAB do Distrito Federal, Maranhão Terra de Encantos (Governo do Maranhão), Parada de Luta LGBTI de Porto Alegre e Distrital Chico Vigilante.

Esses lugares de memória constituem o entrelaçamento do histórico, do cultural e do simbólico e permitem avaliar a diferença que se estabelece entre o processo parafrástico (em uma matriz de sentido) e o efeito parafrástico (autorização e desautorização de saberes) produzida a partir de posições-sujeito e de FD. Diante disso, podemos analisar as FDs das PPs com processos parafrásticos por matrizes de sentidos independentes, como atrações turísticas, estados, Brasil, LGBT, presidentes. Os efeitos parafrásticos são: (i.) as autorizações de atrações turísticas, de turismo estadual, de turismo nacional, de parada LGBT; e (ii.) as desautorizações de “apologia ao turismo sexual”, de “exploração sexual” e de que “As mulheres são atrações turísticas”.

As desautorizações como efeitos parafrásticos ocorrem nas PP1 (“As mulheres não são atrações turísticas”), nas PP2 a PP5 e na PP8 (“Diga não à apologia ao turismo sexual”) e nas PP7 e PP9 (“Diga não à exploração sexual”). Esses efeitos parafrásticos de desautorizações são enunciados que sinalizam a contraidentificação com o E1: “Quem quiser vir ao Brasil fazer sexo com mulher, fique à vontade”. Particularmente, a PP8 e a sua “FD LGBT” sinalizam a contraidentificação com o enunciado E2: “Não podemos ser país do mundo gay, temos família”. A relação dos dois enunciados com os efeitos parafrásticos é exclusivamente pela identificação de Bolsonaro com a ordem discursiva do preconceito e da discriminação e de contraidentificação de Bolsonaro com a ordem discursiva da diversidade e do respeito à mulher e ao turismo. Desautorizados os sentidos cristalizados de machismo, de intolerância e de turismo sexual a se repetirem, os enunciados das PPs (“X ESTÁ. Y, NÃO!”) aparecem exatamente desautorizando as matrizes de sentidos que tenham a forma do preconceito e da discriminação sexistas.

A estrutura “X ESTÁ À DISPOSIÇÃO DOS TURISTAS. Y, NÃO!” tem a força de ser repetida parafrasticamente e, em função das condições de produção em que essa repetição ocorre, os sentidos vão solidificando a autorização dos contradiscursos. A ressignificação está justamente na produção de sentidos ao avesso de discursos preconceituosos e discriminatórios. Ou seja: a desautorização como efeito parafrástico da regularização dos sentidos decorre de repetição parafrástica de lugares de memória já cristalizados. Esses efeitos estão na tentativa de tensão para o impedimento da manutenção e da permanência daqueles sentidos contraditórios às FDs que desautorizam a diversidade e o respeito aos gays e às mulheres brasileiras.

Assim, as peças publicitárias apresentaram as suas paráfrases da *matriz de sentido:

*X ESTÁ À DISPOSIÇÃO DOS TURISTAS. Y, NÃO!

O litoral, a culinária, o folclore e o artesanato são atrações turísticas de Alagoas. As mulheres não.

Alagoas está à disposição dos turistas. A mulher alagoana, não.

RN está à disposição dos turistas. A mulher potiguar, não.

Pernambuco está à disposição dos turistas. A mulher pernambucana, não.

Mato Grosso está à disposição dos turistas. A mulher mato-grossense, não.

Brasil está à disposição dos turistas. As mulheres brasileiras, não.

Maranhão está à disposição dos turistas. A mulher maranhense, não.

Porto Alegre está a disposição dos turistas. A mulher porto-alegrense não.

Bolsonaro está à disposição do Trump. As mulheres brasileiras, não.

Essas nove paráfrases respondem negativamente à afirmação de Bolsonaro, um tal chamado então Presidente da República. Talvez isso se deve ao fato de o seu texto dado em (E1) legitimar a “FD heterossexualidade” (FDhetero) e a “FD turismo sexual no Brasil” (FDtursex), bem como, em (E2), atacar a “FD homossexualidade” (FDhomo). Assim, temos a equação E1 = FDhetero + FDtursex e E2 = (-) FDhomo + (-) FDtursex. Portanto, para as paráfrases, temos a equação P9 = FDhetero X FDhomo - FDtursex.

Diante do exposto, os enunciados de Bolsonaro (E1 e E2) promoveram a circulação social de nove (como vimos aqui) e outros enunciados de contraidentificação circulados na mídia, ou seja, posições-sujeito contraidentificadas aos discursos de discriminação e de preconceito e de legitimação à apologia ao turismo sexual. Desse modo, as publicidades circularam sentidos ao contrário de o sentido de que a mulher brasileira está à disposição para sexo com o turista. Essa ordem discursiva de contraditoriedade enfrenta aquela ordem discursiva dos enunciados de Bolsonaro proliferada social e perigosamente pela direcionalidade de discriminações, de exclusões e de preconceitos colonizados.

A repetição do enunciado “As mulheres brasileiras não” nas peças publicitárias luta discursivamente por lugares de memória (Alagoas, Pernambuco, Mato Grosso, Brasil, Maranhão, Porto Alegre) que apresentem a memória de atrações turísticas e peculiaridades dessas localidades como o litoral, a culinária, o folclore e o artesanato, a festa de São Jorge (cf. F2) e a parada LGBTI (cf. F9), dentre outras. A luta discursiva é em prol do turismo pela visitação e prazeres de atrações e peculiaridades regionais, não é em prol do turismo sexual das mulheres desses pontos geográficos do Brasil. A repetição luta pelo respeito, pela dignidade e pela valorização da mulher e dos lugares de memória. É preciso respeitar Alagoas e a mulher alagoana, por exemplo. É preciso respeitar o público LGBT de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul, enfim, do Brasil, bem como suas peculiaridades e atrações turísticas. Então: “As atrações turísticas brasileiras sim” e “As mulheres brasileiras não”.

Nesse sentido, entendemos a relação língua, cultura e folclore pelas “atrações turísticas”. Ainda esclarecemos que a nossa repetição, aqui, por “atrações turísticas” nada mais é do que para rememorar e comemorar o explícito imageticamente na peça publicitária 1 (cf. figura 2): o litoral, a culinária, o folclore e o artesanato. Por conseguinte, a memória de Brasil deve ser reconhecida pelos turistas em relação aos lugares brasileiros de memória, como as suas atrações turísticas e as suas peculiaridades, assim obrigando ao turista o esquecimento da apologia e da exploração sexual das mulheres brasileiras.

No que segue, veremos a imagem do turismo no Brasil pelo Instituto Brasileiro de Turismo.

4. A EMBRATUR e a imagem do turismo no Brasil

A EMBRATUR é o Instituto Brasileiro de Turismo, fundado em 1966, durante o regime militar. Foi também criado o Conselho Nacional de Turismo e definido como uma política nacional para o setor. O órgão esteve vinculado ao Ministério da Indústria e do Comércio, mas foi subordinado a diferentes Ministérios. Até o ano de 2003, a EMBRATUR foi responsável pelo planejamento e pela promoção do turismo no Brasil. Com a criação do Ministério do Turismo, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2003, a EMBRATUR passou a ter foco exclusivo na promoção e no apoio ao turismo brasileiro no exterior.

Ao Ministério do Turismo coube o planejamento de toda a política pública de turismo. Também “foi implementado um novo modelo de gestão para a EMBRATUR, em que o Plano Aquarela – Marketing Internacional do Brasil e a Marca Brazil – passou a nortear e dar unidade às ações de promoção do Brasil no exterior.” (EMBRATUR, 2019a[26]). Como órgão governamental promotor do país em relação a ser rota de destino turístico, um dos principais esforços foi a criação de uma imagem do Brasil.

A produção da Marca Brazil coloca em jogo sentidos que se repetem, cristalizados por regularidades enunciativas marcadas pela história. Vejamos: as expressões mulher brasileira e silhuetas6 femininas foram postas em circulação por sentidos repetidos sobre o Brasil como rota de turismo. As expressões constroem o imaginário de mulher latina sexualizada, de modo a servir o turismo no Brasil, isto é, a servir aos turistas.

Vejamos as peças publicitárias da década de 1970 e 1980.

Figure 11. FIGURA 11 – Propaganda da Embratur de 1977 Fonte: Kajihara (2010[27])

Figure 12. FIGURA 12 – Propaganda da Embratur de 1983 Fonte: Kajihara (2010[27])

A imagem da mulher brasileira sexualizada foi repetida por duas décadas, ao menos, na publicidade responsável pela formulação dos discursos sobre o turismo brasileiro. A regularização desses discursos põe a mulher brasileira junto ao rol de elementos turísticos, como “produtos” do Brasil turístico. Por isso, justifica-se a elaboração de contradiscursos ao combate do turismo sexual, a partir da década de 1990, explicitamente retomada e marcada nas peças publicitárias7 do século XXI, em que não só alguns governos, como também a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) assinam essas peças, como vimos na seção anterior deste texto.

Na década de 1990, vê-se a diversidade como aspecto da natureza e da cultura do Brasil, mas ainda a imagem da mulher tem sua aparência com holofotes praianos nas silhuetas e no biquíni (cf. figuras 11 e 12, acima). Com essa produção publicitária, os anos 90 reproduzem sentidos estabilizados dos anos e décadas anteriores. Nessa esteira, a memória se faz presente como “[...] um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos, de regularizações... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos” (PÊCHEUX, 1999, p. 50[6]). Esse espaço móvel nos leva à recorrência do conceito de memória discursiva: “[...] a memória não restitui frases escutadas no passado, mas julgamentos de verossimilhança sobre o que é reconstituído pelas operações de paráfrase. Essas considerações deslocam o estatuto do que é provável historicamente, porque a operação de retomada se localiza nesse nível” (ACHARD, 1999, p. 17[17]).

A seguir, apresentamos a Marca Brazil. Com relação à marca da EMBRATUR criada em 2019, vejamos que a memória retoma os vestígios de sentidos do que já foi discursivamente regularizado, por exemplo, acerca da figura da mulher. Com isso, podemos entender melhor o conceito de memória discursiva. “[...] Situamos a memória do lado, não da repetição, mas da regularização [...]” (ACHARD, 1999, p. 16[17]). A produção publicitária em 2019 promove – aliás, regulariza – o produto turístico do Brasil de 2003 a 2018 por meio de o retorno de uma rede de regularidades que, uma vez mais, nova marca do Brasil no exterior sugere turismo sexual.

Figure 13. FIGURA 13 – Marca Brazil Fonte: EMBRATUR (2019b[28])

O enunciado visit and love us apresenta uma construção problemática devido ao fato de que a pessoalidade do pronome “us” na língua inglesa abre a possibilidade para uma interpretação em que “love” se refere ao povo e não ao país. Aqui, aparece uma primeira articulação com a rede de memória que estabiliza o povo também como integrante do rol de produtos turísticos do Brasil. O manual da Marca, porém, define a tradução livre do slogan como “visite-nos e se encante” (EMBRATUR, 2019b, p. 15[28]), expondo o problema de correspondência entre sentidos possíveis na versão em português e inglês.

Por outro lado, o manual de uso da Marca Brazil apresenta a nova proposta assim: “[...] E este Brasil único e ao mesmo tempo diverso é o que queremos apresentar para o mundo. Um Brasil moderno e dinâmico, que almeja projetar no mundo a imagem de sua essência” (EMBRATUR, 2019b, p. 2[28]). A apresentação constrói o imaginário da diversidade do país a um de seus símbolos oficiais em que, num segundo momento, almeja projetar no mundo a imagem de sua essência.

É claro que não retomaremos a questão do símbolo nacional: versões da bandeira nacional já foram utilizadas nos materiais publicitários da EMBRATUR de outros tempos, por anos e décadas. Trazer a bandeira na Marca como o retorno de uma regularidade nacional que constitui a marca do Órgão funciona como uma unicidade discursiva, quando comparada a outras peças publicitárias elaboradas pelo governo federal em 2019.

Tomemos outro rumo como gesto analítico: a grafia Brazil e o sloganvisit and love us”. Por não indicar diferenças entre maiúsculas e minúsculas, a tipografia no enunciado BRAZIL: VISIT AND LOVE US permite o funcionamento discursivo que nos leva à interpretação de “US” como a abreviação de United States. Temos como memória discursiva de US a nomeação do potente país de língua inglesa que se chama Estados Unidos. A tradução figurativa do enunciado “Brasil: visite e ame os Estados Unidos” (ou “visite-nos e se encante”, como pretendido pelo Manual) põe em jogo a recente memória em relação ao cenário político do Brasil (nos referimos à volta da direita ao poder e sua íntima relação internacional com o governo dos EUA). Aproveitamos, aqui, para fazer a retomada do enunciado da peça publicitária 9 (PP): “Bolsonaro está à disposição de Trump. As mulheres brasileiras, não.” (assinada pela Distrital Chico Vigilante), que nos permite a identificação do imaginário de Estados Unidos (Trump) para o Presidente do Brasil pela agência de vigilância brasileira. Isso permite o funcionamento discursivo dispor da interpretação de que o povo do maior país latino-americano tem a figura de Bolsonaro à disposição de Trump (para quais sejam as relações: econômicas, políticas, turísticas, fetichistas etc.).

Enfim, uma vez aproveitada a oportunidade, aqui, fazemos o leitor lembrar de uma das afirmações: “Quem quiser vir ao Brasil fazer sexo com mulher, fique à vontade”. Trocando alhos por bugalhos (como nossa expressão sul-americana), temos também por operação parafrástica da fala do Presidente (especialmente, do eleitor que o elegeu – que fique claro!): O homem dos EUA pode vir ao Brasil fazer sexo com mulher, fique à vontade. Ou seja: “Brazil está à disposição dos EUA”. Este sentido só é permitido, visto na seção anterior, salvaguardado o enunciado da instituição privada Distrital Chico Vigilante de quem nos lembra que: “Bolsonaro está à disposição de Trump. As mulheres brasileiras, não.” (PP9).

“[...] Sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase (que a meu ver podem levar a conduzir à questão da construção de estereótipos)” (PÊCHEUX, 1999, p. 46[6]), a nova marca da EMBRATUR (na última metade da década de 2010) sugere o turismo sexual. Sugere, uma vez levados em consideração os recortes, a seguir, que possibilitam a comparação entre as publicidades da EMBRATUR de 1983 e a marca de 2019.

Figure 14. FIGURA 14 – Marca Brazil (1983) Fonte: EMBRATUR

Figure 15. FIGURA 15 – Marca Brazil (2019) Fonte: EMBRATUR

Em 1983, aparecem a bandeira e a grafia BRAZIL. Também em 2019 aparecem a bandeira nacional e o nome do país em língua inglesa. A campanha de 1983 (Brazil, see you there, acompanhado da fotografia de uma mulher de biquíni, segurando um copo que sugere ser de bebida alcoólica, quem sabe aquela tal “caipirinha”, como vimos mais acima) ressoa na marca de 2019. As ressonâncias são pela mescla imagética minimalista da bandeira nacional, acompanhada do nome do país em língua estrangeira (Brazil) e do complemento (see you there). Isto é: Brasil: vejo você lá. Em funcionamento, há novamente a presença da estabilização da rede de implícitos em publicidades anteriores da EMBRATUR. Se quer dizer então que o povo é presença novamente em publicidade, o que permite entrar em jogo o sentido de o povo brasileiro estar disponível no turismo: o povo se torna elemento disponível dentre o rol de outros produtos turísticos. Esse “povo” apresenta o sentido deslizado para “mulher” que é a imagem de sua essência. Então, tem-se em see you there que o povo brasileiro o turista (você) .

Ao imaginar que o turista está diante da leitura dessa propaganda, é ele (o turista) quem é visto no Brasil pelo povo brasileiro. Se considerarmos verdadeiro o raciocínio, tem-se: Brasil: a mulher vê você lá. A mulher à sua espera da diversão. Resultado: “Um Brasil moderno e dinâmico, que almeja projetar no mundo a imagem de sua essência” (EMBRATUR, 2019b, p. 2[28]). Ou seja: um discurso que se pretende nacionalista sexualiza o “povo”, às margens da comercialização de um paraíso turístico – Brasil “moderno e dinâmico” por ser um “Brasil Sensacional”. Assim, a mulher fica cristalizada pela imagem de sua essência, além de, para piorar o sentido, estar à espera do turista. Aí o enunciado (E1) bolsonarista faz sentido na formação discursiva heterossexual, pelas posições-sujeito de preconceito e de discriminação: “Quem quiser vir ao Brasil fazer sexo com mulher, fique à vontade”. Assim sendo, a formação discursiva heterossexual se sustenta de posições-sujeito de Bolsonaro que transitam e interdiscusivizam por outras formações discursivas, como pela FD misoginia e FD homofóbica. Tanto esse Quem quiser, quanto fique à vontade como aquele you estão preenchidos pela pessoalidade homem/turista. A partir da fala de Bolsonaro, esse “à vontade” tem também o sentido de o sexo como comercialização, como algo pago pelos turistas. Além disso, a fala de Bolsonaro pode abrir precedente para a possibilidade de se conseguir sexo gratuito no Brasil, já que “à vontade” permite esse sentido (cf. Houaiss: “à vontade”: 1. sem constrangimento; livremente, a bel-prazer). Enquanto Presidente do país, assim sendo, Bolsonaro acaba “autorizando” tanto a prostituição quanto a possibilidade de sexo gratuito com mulheres brasileiras, até mesmo a possibilidade de estupro8.

5. Considerações finais

Neste artigo, vimos o discurso político de Bolsonaro corroborar com a Marca Brazil apresentada pela EMBRATUR, em 2019. Assim, passamos a observar como marcas de regularidade do verbal e do não-verbal constroem percursos de leitura pelo funcionamento da memória discursiva (espaço de tensões, retomadas, dissensos e contradiscursos), que veicula um Brasil destino turístico sexual e homofóbico, por meio de liberdade para a exploração do corpo da mulher brasileira – especialmente o imaginário do feminino – e por meio da negação da homossexualidade.

Foram por meio dos implícitos (e dos explícitos!) repetidos ao longo da história da EMBRATUR que se pôde traçar as marcas de regularidade e seriação da memória discursiva. Essas marcas atravessam a Marca Brazil e permitem, assim, a estruturação de um material publicitário que, embora se apresente como novo, reapresenta uma imagem do país enquanto destino turístico exótico, sensual e que explora o corpo – especialmente o feminino – como subproduto: por isso, você nos visite e nos ame9 (visit and love us), podendo usar o lazer com as nossas mulheres e não com os nossos homens. A administração desse implícito na nova identidade visual da EMBRATUR impede alguma possível regularização de sentido a se inscrever em uma formação discursiva de homossexualidade. Esse impedimento se dá pelo fato de o machismo (cf. NASCIMENTO, 2018[29]; 2019[30]; 2020[31]) ser o sustentáculo da manutenção e da permanência da matriz de sentido na formação discursiva heterossexual. Por isso mesmo se justifica o E2 proferido pelo Bolsonaro para impedir a existência de outra FD sexista, a não ser a conservação daquela que compõe a família cristã nacional: “Não podemos ser país do mundo gay, temos família”.

Aproveitamos para esclarecer “o estranho espelho” que nos referimos no título deste texto. O “temos família” apresenta contradição no discurso de Bolsonaro, que preza pela família ao mesmo tempo em que incentiva a prostituição, a exploração sexual, o estupro. O “temos família” entra em contradição com o sentido de “fique à vontade”. Não é mesmo um estranho espelho?

Pondo em diálogo a fala naquela ocasião de café da manhã com jornalistas, em abril de 2019, e a Marca Brazil, também de 2019, com os enunciados das peças publicitárias (de contra divulgação à apologia e à exploração da mulher como turismo sexual), acreditamos ter demonstrado os pontos de regularidades e do efeito seriado da memória discursiva. A regularidade de uma imagem de Brasil causa um efeito em série de sermos um país destino turístico para homens a fim de diversão não só no Carnaval e no futebol, mas especialmente na diversão com o sexo da mulher brasileira. Com essa imagem normalizada lastimavelmente até mesmo pelo então (des)Presidente Jair Messias Bolsonaro, observamos, em sua publicidade de Brasil, uma marca que articula o enunciado e uma imagem regularizada de sentidos sobre o que é turístico no Brasil.

Agradecimentos

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela concessão da bolsa de pesquisa (processo 88887.338262/2019-00) para a realização do Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Roraima, em Boa Vista-RR. Agradecemos também ao fomento de pesquisa do CNPq para o desenvolvimento do projeto sobre “corpo e discurso” (CNRS) e à FAPERJ (Bolsa Nota 10/processo E-26/200.564/2018). Agradecemos ainda à Fernanda Massi (UNESP/Araraquara), à Evandra Grigoletto (UFPE), à Fernanda Lunkes (UFSB), à Debora Massmann (UFAL) pelas leituras, revisões, avaliações e sugestões atendidas. Por fim, agradecemos ao Wellington Felipe da Costa (UFRJ/FAPERJ).

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