Alfaletrar: teorias e práticas
Resumo
No presente texto, resenhamos a conferência Alfabetização e Letramento: teorias e práticas proferida pela professora Magda Becker Soares no âmbito do ciclo de conferências realizado pelo evento Abralin Ao Vivo – Linguists Online. Nesta conferência, abordou-se teorias linguísticas e psicológicas que, para a conferencista, são fundamentais na orientação para o processo de ensino-aprendizagem do princípio alfabético. Soares defende que a alfabetização e o letramento são processos que devem ser desenvolvidos simultaneamente, mediante o uso de teorias e práticas fundamentadas no desenvolvimento cognitivo e linguístico das crianças. Dessa forma, sugere-se que o processo de alfabetização não deve estar centrado em um único método, mas em “métodos”, porque ele depende fundamentalmente da compreensão de como a criança aprende.
Texto
Neste texto, resenhamos a conferência Alfabetização e Letramento: teorias e práticas[1] proferida pela Professora Doutora Magda Becker Soares e mediada pela Professora Doutora Eliane Vitorino de Moura Oliveira, no dia 31 de julho de 2020, encerrando o evento Abralin Ao Vivo – Linguists Online, promovido pela Associação Brasileira de Linguística (Abralin).
Magda Soares possui graduação em Letras Neolatinas (1953) e doutorado em Didática (1962) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde é professora emérita da Faculdade de Educação. Soares é fundadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita – CEALE, localizado na UFMG, e atua nas áreas de alfabetização, letramento, escrita, ensino, leitura e formação de professores, nas quais é referência em todo o Brasil. No início de sua carreira, Soares atuou por 10 anos em escolas públicas, o que a despertou para as dificuldades das crianças das camadas populares face à alfabetização. Já na UFMG, desenvolveu a pesquisa Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento, que objetivou identificar os conhecimentos já construídos acerca da aprendizagem da língua escrita por crianças, mediante análise dos trabalhos brasileiros e internacionais acerca do processo de alfabetização. Mais recentemente, mas já há 12 anos, a professora tem convivido com a rede municipal de ensino de Lagoa Santa (MG), onde desenvolve o projeto “Alfaletrar”.
Em sua fala, didática e prática, no Abralin Ao Vivo – Linguists Online, Magda Soares problematiza a questão da alfabetização e do letramento a partir da realidade brasileira e de suas experiências profissionais. A professora organiza sua conferência em torno de quatro argumentos, os quais reportamos aqui por considerá-los basilares à discussão: i) o processo de alfabetização se fundamenta em um conjunto de teorias linguísticas e psicológicas, que constituem a base para a compreensão de como a criança aprende o sistema alfabético de escrita; ii) com base nessas teorias e sua articulação com as práticas de ensino em contextos escolares é que se pode definir como ensinar, o que implica métodos de alfabetização, no plural, não apenas um método; iii) a aprendizagem do sistema de escrita deve ocorrer contemporaneamente ao desenvolvimento do letramento – da aprendizagem dos usos sociais desse sistema, ou seja, alfabetização e letramento são ações indissociáveis na aprendizagem da língua escrita; e iv) o processo de letramento se fundamenta em teorias da linguística textual e da teoria do discurso, que constituem a base para o desenvolvimento das habilidades de leitura, interpretação e produção de textos, necessárias para o exercício competente dos usos sociais da escrita.
Soares principia sua fala reportando os fracassos do Brasil em termos de leitura, comprovados em avaliações nacionais e internacionais, como a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2015[2]) e o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) (2018[3]). Para a conferencista, a gênese desse fracasso – concentrado principalmente nas escolas públicas, está justamente no processo de alfabetização inicial. A conferencista tece, ainda, críticas à Política Nacional de Alfabetização – PNA (2019[4]) vigente no país, que tem por base o Relatório do Painel Nacional de Leitura (2000[5]), documentos que preconizam o uso do método fônico para a alfabetização. Embora Soares reconheça a importância do método fônico, defende que não é preciso erigir um único método para a alfabetização, tendo em vista a complexidade envolvida no processo e a realidade brasileira.
Diante deste cenário, Soares acredita que estamos fazendo a pergunta inadequada para o problema do fracasso na alfabetização (resposta) – que vem sendo exclusivamente considerado uma questão de método. Contrariamente, para a professora, alfabetizar não é uma questão de método, mas de orientação da aprendizagem, considerando o desenvolvimento cognitivo e linguístico da criança. Nesse sentido, a pergunta norteadora ao problema da alfabetização no Brasil deve ser, nas palavras da conferencista: “Como devemos orientar o processo de aprendizagem do sistema de escrita alfabético e de habilidades de seu uso, respeitando as evidências científicas que nos dão as teorias do desenvolvimento cognitivo e linguístico da criança”?
Tendo isso em vista, Soares apresenta teorias que identificam fases no desenvolvimento cognitivo e linguístico de apropriação do princípio alfabético pela criança. Entre estas teorias, a conferencista destaca a psicogênese da escrita (FERREIRO e TEBEROSKY, 1986[6]), que teve grande influência no Brasil por focar na progressiva compreensão de escrita pela criança ao longo de seu desenvolvimento. Segundo Soares, é preciso vislumbrar quem aprende (a criança), o que aprende (escrita alfabética e seus usos, entendendo o princípio alfabético como arbitrário) e quando aprende (ao longo do desenvolvimento linguístico e cognitivo).
Com base na psicogênese da escrita, articulada a processos linguísticos e cognitivos, Soares apresenta uma sistematização das fases que representam o percurso da criança na aquisição do princípio alfabético – desenvolvido em concomitância ao processo de letramento, que condiz com o que tem sido desenvolvido no projeto “Alfaletrar”, em Lagoa Santa (MG) (Figure 1).
Frente ao esquema, alfabetização consiste num processo de apropriação do princípio alfabético pela criança, partindo do conhecimento das letras até o nível da consciência grafofonêmica. Neste percurso, há uma fase chamada pré-fonológica, caracterizada pela garatuja e a escrita com letras; a fase da consciência silábica, com ou sem valor sonoro; e, por fim, a fase da consciência grafofonêmica, que envolve relações silábico-alfabética, alfabética e ortográfica.
O conhecimento das letras não é simplesmente ensinar o alfabeto, mas orientar a criança pensando no que ela precisa aprender e em que momento isso vai acontecer. A professora salienta que a criança deve ser orientada em todas as etapas a fim de reconhecer as relações fonema-grafema como um sistema de representação e não como código.
A criança precisa desenvolver coordenação motora para traçar letras maiúsculas e minúsculas; diferenciar letras maiúsculas de minúsculas, devendo conseguir relacioná-las; e, ainda, saber a ordem alfabética. A conferencista afirma que essas etapas devem ser feitas de forma sistemática, com o alfabetizador compreendendo o nível de dificuldade, uma vez que se trata de discriminação visual, e o nosso cérebro, que está preparado para a simetria, tem que reconhecer a assimetria das letras.
Ao longo de sua conferência, Soares sempre associa alfabetização a letramento, pois, segundo ela, os dois processos devem se desenvolver simultaneamente, ou seja, a criança aprende o sistema de escrita alfabética para utilizá-la em contextos sociais de usos da escrita. De modo ilustrativo e didático, a professora apresenta um esquema que mostra de que modo alfabetização e letramento estão encaixados (Figure 2).
A professora afirma que o processo de letramento significa aprender a ler, a compreender e a interpretar textos. Quanto a essa dimensão, Soares argumenta que o professor deve ter sensibilidade para escolher textos de diferentes gêneros textuais para mostrar os diferentes usos da escrita, considerando sempre o nível de complexidade. Além disso, a conferencista orienta que o professor prepare o texto antes da leitura, seja ela interativa ou independente, pensando em uma atividade para desenvolver as habilidades de compreensão e interpretação.
Entendendo alfabetização e letramento como concomitantes e processuais, Soares apresenta um quadro, desenvolvido durante um trabalho realizado por 12 anos com professores de Lagoa Santa (MG), que explicita as habilidades de leitura, interpretação e produção de textos a serem desenvolvidas nas etapas do ciclo de alfabetização e letramento e que precisam estar no horizonte do professor alfabetizador (Figure 3).
Para finalizar sua conferência, Magda Soares ressalta que alfabetização e letramento são processos que devem ocorrer simultaneamente e ao longo do desenvolvimento cognitivo e linguístico da criança. A professora destaca, ainda, a necessidade premente de reformulação dos cursos de pedagogia, de modo que evidências das múltiplas teorias acerca da alfabetização alcancem a formação docente e, por conseguinte, a sala de aula.
Referências
ALFABETIZAÇÃO e Letramento: teorias e práticas por Magda Becker Soares [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (2h 26min 15s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=UnkEuHpxJPs>. Acesso em: 02 ago. 2020.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. PNA: Política Nacional de Alfabetização/Secretaria de Alfabetização. Brasília: MEC, SEALF, 2019.
FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
NATIONAL Reading Panel Report, 2000. Disponível em: https://www.nichd.nih.gov/sites/default/files/publications/pubs/nrp/Documents/report.pdf. Acesso em: 06 ago. 2020.
PROGRAMME for International Student Assessment (PISA), 2018. Disponível em: https://www.oecd.org/pisa/publications/pisa-2018-results.htm. Acesso em: 06 ago. 2020.
RETRATOS da Leitura no Brasil, 2015. Disponível em: http://prolivro.org.br/home/images/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Brasil_-_2015.pdf. Acesso em: 06 ago. 2020.