Línguas indígenas da Amazônia: uma diversidade ameaçada

Marina Mello de Menezes Felix de Souza,
Hugo Bertha Bastos

Resumo

Em meio a uma pandemia mundial gerada pela proliferação da Covid-19, o Professor Doutor José Ribamar Bessa Freire pensa a vulnerabilidade histórica das comunidades indígenas e a importância de pensarmos as glotopolíticas brasileiras. Dessa forma, por meio de um panorama histórico, Freire nos faz refletir sobre as decisões político-linguísticas estimuladas pela Coroa Portuguesa e no quanto elas se encontravam intimamente ligadas à interesses geopolíticos e econômicos. No passado, tais decisões governamentais alteram o destino de diversas línguas e culturas, desencadeando processos de deslocamentos linguísticos que culminaram no seu completo desaparecimento. Assim, a fala de Freire suscita a necessidade do debate acerca dos interesses envolvidos em se estabelecer políticas prejudiciais aos povos autóctones, do futuro da diversidade linguística brasileira e do impacto de recentes negligências governamentais.

Texto

A conferência intitulada Línguas indígenas, línguas ameaçadas, ministrada por José Ribamar Bessa Freire (2020)[1] no âmbito do evento virtual Abralin ao Vivo: Linguists Online, foi transmitida ao vivo em 5 de julho de 2020, às dezessete horas.

Apoiada por diferentes entidades nacionais e internacionais, a palestra foi divulgada por meio do canal da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) no YouTube, contando com a presença em tempo real de cerca de duzentas e cinquenta pessoas. Dentre elas, estudantes, pesquisadores e interessados em investigações ligadas aos estudos da linguagem. Apenas vinte quatro horas após a sua transmissão, a palestra atingiu a marca de quinhentos e quatro visualizações.

O número de participantes e a crescente visualização da conferência se deve não apenas ao fato de o ministrante ser um renomado pesquisador no Brasil e no exterior, com inúmeros livros, artigos e capítulos de grande relevância à área de estudos de linguagem, particularmente ligado aos estudos indigenistas, como também a pertinência do tema para o momento em que vivemos.

A pandemia da Covid-19 e suas consequências para os povos indígenas são o ponto de partida para a reflexão trazida pelo conferencista, que aponta para a fragilidade histórica dos povos indígenas diante de epidemias e, como consequência, a extinção de diversas línguas e culturas.

Ao fazer um paralelo entre os dias atuais e a formação do que chamamos hoje de Brasil, o autor reconhece a língua como instituição social e parte constitutiva da cultura. Dessa forma, através de uma perspectiva histórica, Freire (2020[1]) analisa a trajetória das glotopolíticas brasileiras, destacando o papel do Estado na elaboração de políticas públicas que interferiram no processo de deslocamento linguístico e no destino das línguas indígenas.

Segundo Freire (2020[1]), a primeira política linguística que impactou diretamente os povos indígenas adotada por Portugal, se deu no início do período colonial. Seu objetivo primário era a comunicação com os índios visando a extração de seu sobretrabalho e, para tanto, era necessário que estes pudessem compreender as ordens dadas pelos colonos. Essa política consistia na imposição da língua portuguesa aos povos indígenas.

No entanto, com seu estarrecedor fracasso, uma segunda política de línguas entrou em vigor. Nela, observamos a estratégia de se utilizar de intérpretes indígenas capazes de traduzir ordens e ensinamentos do português para as línguas dos povos locais.

Porém, essa política esbarrou em obstáculos de ordem prática, uma vez que, para o sistema colonial funcionar, seria necessário a presença de um intérprete em cada unidade produtiva de extração ou plantio e, ainda, para atividades de cunho político e religioso. Nesse ponto de sua fala, o conferencista salienta que a necessidade de intérpretes nativos é evidenciada em cartas jesuítas enviadas ao Vaticano.

Para sanar essa problemática, os jesuítas, como exímios linguistas, perceberam que poderiam estabelecer línguas gerais para auxiliar sua comunicação com os povos indígenas. Assim, vemos o nascimento de uma terceira política linguística, sendo ela a instituição das línguas gerais.

O escritor define línguas gerais como aquelas capazes de permitir a comunicação interétnica entre falantes de diferentes línguas particulares que compartilham determinado espaço geográfico. Desse modo, as línguas instituídas como línguas gerais foram o tupi paulista, difundido pelos colonos em todo o litoral, posteriormente chamada de Língua Geral Paulista (LGP), e o tupinambá do Maranhão e de Belém, difundido na região anteriormente conhecida como Costa do Salgado, chamada de Língua Geral Amazônica (LGA).

Cabe ressaltar que já havia no país uma política embrionária de formação de línguas gerais que precedia a chegada dos português. Porém, este movimento se acelerou drasticamente com as políticas linguísticas impostas pela colônia, gerando o primeiro deslocamento linguístico sistematizado por Freire (2004[2]).

Nesse percurso, índios monolíngues de diferentes povos eram requisitados como força de trabalho pela Sociedade Regional. Chegando ao seu destino, se viam obrigados a aprender as línguas gerais para o exercício de suas práticas sociais, o que implicava na necessidade de se tornarem bilíngues.

Na medida em que os índios fixavam residência em vilas e povoados da colônia, se casavam com falantes de outras línguas. Ao se comunicar mutuamente e diariamente apenas na língua geral, deixavam de legar a seus filhos suas línguas maternas, tornando-os monolíngues. Esse grupo de índios monolíngues, falantes unicamente da língua geral, eram chamados de tapuios.

As políticas linguísticas brasileiras se inflexionam com a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa imposta por Marquês de Pombal na segunda metade do séc. XVIII. O português passou então a ser massivamente utilizado no litoral. No entanto, esse projeto político-linguístico, em um primeiro momento, fracassou na Amazônia.

Freire (2020) explicita que a língua portuguesa se tornou hegemônica apenas na segunda metade do século XIX, se consolidando a partir de dois fatores: (i) a imigração em massa de nordestinos para a Amazônia, durante o ciclo da borracha e (ii) o domínio do português sobre a maioria das práticas sociais, especialmente as de maior prestígio, como escolas e imprensa.

Progressivamente, observamos o predomínio de um novo monolinguismo, agora com o português. Esses falantes passaram a ser chamados de caboclos, termo que Freire (2020[1]) relaciona a sua origem linguística.

Para sintetizar o impacto das políticas e mostrar suas consequências para os povos indígenas, na conferência resenhada, Freire (2020[1]) menciona um quadro-síntese disponível em seu livro Rio Babel: a história das línguas na Amazônia (FREIRE, 2004[2]).

Figure 1. Deslocamentos Linguísticos da Amazônia LV: Língua Vernácula; LVS: Línguas Vernáculas; LGA: Língua Geral Amazônica; LP: Língua Portuguesa (FREIRE, 2004[2])

No quadro acima vemos o processo de deslocamento linguístico gerado pelas políticas linguísticas implementadas até a segunda metade do século XIX. Elas interferiram no destino das línguas indígenas, acarretando no desaparecimento de muitos idiomas e culturas.

A partir do exposto por Freire (2020), é possível concluir que a grande maioria das glotopolíticas implementadas em território nacional estavam intimamente ligadas à interesses geopolíticos e econômicos. A título de exemplo, cabe lembrar que a implementação e a disseminação de línguas gerais estimuladas pela Coroa Portuguesa, mais do que catequizar os índios, objetivavam viabilizar um projeto econômico.

Essas políticas linguísticas massivas e muito bem delimitadas impactaram diretamente nos dados que possuímos hoje. De acordo com o último censo do IBGE (2010), duzentos e setenta e quatro línguas indígenas são faladas no Brasil, quando em 1500 havia mais de mil e trezentas, segundo estimativas do linguista tcheco Cestmir Loukotka (FREIRE, 2020).

Dados da UNESCO (2011[3]) apontam que há nove anos atrás quarenta e cinco línguas indígenas brasileiras já corriam o risco de desaparecer, enquanto centro e trinta e três se encontravam em situação vulnerável1. Esse quadro tende a se agravar com a situação pandêmica atual.

Enquanto linguistas e cidadãos, cabe avaliarmos e suscitarmos o debate acerca do futuro da diversidade linguística brasileira. Assim, é oportuno analisarmos a postura do governo brasileiro frente a esse cenário, bem como compreender os objetivos de se estabelecer políticas que prejudicam os povos autóctones.

Ao priorizar interesses econômicos e geopolíticos em detrimento da sobrevivência dos povos indígenas, o governo brasileiro põe novamente em perigo línguas e saberes ancestrais, repetindo uma trágica história nacional.

No mesmo compasso de políticas engendradas no Brasil colônia, com o objetivo de regularizar a mineração em terras indígenas, no dia seis de fevereiro o Poder Executivo apresentou ao Congresso o Projeto de Lei 191/2020 (BRASIL, 2020[4]). Esse projeto, se aprovado, acentua o ritmo de destruição da floresta amazônica, ameaçando os povos que ali habitam.

Além disso, ao sancionar a Lei 14.021/2020, que dispõe sobre medidas de proteção social para a prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas, o presidente Jair Bolsonaro vetou dezenove pontos imprescindíveis à sobrevivência desses povos. Entre eles estão o “acesso universal à água potável”, a “distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção de superfícies”, a “oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidade de terapia intensiva”, a “aquisição de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea” e “a distribuição de materiais informativos sobre a Covid-19”. (SENADO, 2020[5]).

As políticas citadas evidenciam o desrespeito do governo brasileiro à povos de valor cultural e linguístico inestimável. Nesse triste contexto, são os próprios indígenas que atuam para tentar manter vivas suas culturas, línguas e saberes em meio a pandemia e a invasões de garimpeiros e de fazendeiros sob a chancela do Estado. Diante disso, observamos atônitos o Estado, que deveria ser o maior defensor de seus cidadãos, repetir trágicas ações já observadas ao longo da história do Brasil.

Assim, por meio dessa resenha, ressaltamos a necessidade de glotopolíticas voltadas ao fortalecimento e à valorização das línguas e das culturas dos povos autóctones. Porém, fazemos nossas as palavras de Blanchet (2002[6]), quando este cita a importância de se propor políticas que não se limitem ao campo cultural, conservando as línguas apenas sob um aspecto patrimonial e museológico, em vez de promover a sua inclusão na vida social.

Referências

BLANCHET, P. La politisation des langues régionales en France. Langues et territoires. Revue Hérodote, n° 105, 85-101. Paris: La Décou-verte, 2002.

BOLSONARO sanciona com vetos lei para proteger indígenas durante a pandemia. Agência Senado, Distrito Federal, 08 julho 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/08/bolsonaro-sanciona-com-vetos-lei-para-proteger-indigenas-durante-pandemia. Acesso em: 08 jul 2020.

BRASIL. Lei nº 14.021, de 10 de janeiro de 2002. Dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas[...]. Diário Oficial da União: seção 1, p.1. Brasília, DF, n. 129, Atos do Poder Legislativo.

CHRISTOPHER, Moseley (Ed). Projeto UNESCO: Atlas das Línguas em Risco no Mundo. 3.ed. Paris: UNESCO, 2011. Versão online disponí-vel em: http://www.unesco.org/culture/en/endangeredlanguages/atlas

FREIRE, José Ribamar Bessa. Rio Babel: a história das línguas na Amazônia. 2. ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004.

LÍNGUAS indígenas, línguas ameaçadas. Conferência apresentada por José Ribamar Bessa Freire [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h44m15s). Pu-blicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aBn8HfXjwIo&list=PLwgcPOZa6EHspTBGHNIHKMAN3ChzWeSf5&index=2&t=2310s Acesso em: 6 jul 2020