Em meio a uma pandemia mundial gerada pela proliferação da Covid-19, o Professor Doutor José Ribamar Bessa Freire pensa a vulnerabilidade histórica das comunidades indígenas e a importância de pensarmos as glotopolíticas brasileiras. Dessa forma, por meio de um panorama histórico, Freire nos faz refletir sobre as decisões político-linguísticas estimuladas pela Coroa Portuguesa e no quanto elas se encontravam intimamente ligadas à interesses geopolíticos e econômicos. No passado, tais decisões governamentais alteram o destino de diversas línguas e culturas, desencadeando processos de deslocamentos linguísticos que culminaram no seu completo desaparecimento. Assim, a fala de Freire suscita a necessidade do debate acerca dos interesses envolvidos em se estabelecer políticas prejudiciais aos povos autóctones, do futuro da diversidade linguística brasileira e do impacto de recentes negligências governamentais.
En pleine pandémie mondiale générée par la prolifération du Covid-19, le professeur José Ribamar Bessa Freire réfléchit sur la vulnérabilité historique des communautés indigènes et l'importance de penser aux glotopolitiques brésiliennes. Ainsi, au travers d’un panorama historique, Freire nous appelle à la réflexion sur les décisions politico-linguistiques stimulées par la Couronne Portugaise et sur quelle mesure elles se trouvent liées aux intérêts géopolitiques et économiques. Dans le passé, telles décisions gouvernementales ont modifié le destin de différentes langues et cultures, entraînant des processus de déplacements linguistiques, corroborant à leur disparition complète. Ainsi, le discours de Freire met en relief la nécessité du débat sur les intérêts impliqués dans l’implémentation de politiques nuisibles aux peuples autochtones, l'avenir de la diversité linguistique brésilienne et l'impact de la récente négligence gouvernementale.
A conferência intitulada
Apoiada por diferentes entidades nacionais e internacionais, a palestra foi divulgada por meio do canal da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) no YouTube, contando com a presença em tempo real de cerca de duzentas e cinquenta pessoas. Dentre elas, estudantes, pesquisadores e interessados em investigações ligadas aos estudos da linguagem. Apenas vinte quatro horas após a sua transmissão, a palestra atingiu a marca de quinhentos e quatro visualizações.
O número de participantes e a crescente visualização da conferência se deve não apenas ao fato de o ministrante ser um renomado pesquisador no Brasil e no exterior, com inúmeros livros, artigos e capítulos de grande relevância à área de estudos de linguagem, particularmente ligado aos estudos indigenistas, como também a pertinência do tema para o momento em que vivemos.
A pandemia da Covid-19 e suas consequências para os povos indígenas são o ponto de partida para a reflexão trazida pelo conferencista, que aponta para a fragilidade histórica dos povos indígenas diante de epidemias e, como consequência, a extinção de diversas línguas e culturas.
Ao fazer um paralelo entre os dias atuais e a formação do que chamamos hoje de Brasil, o autor reconhece a língua como instituição social e parte constitutiva da cultura. Dessa forma, através de uma perspectiva histórica, Freire (2020
No entanto, com seu estarrecedor fracasso, uma segunda política de línguas entrou em vigor. Nela, observamos a estratégia de se utilizar de intérpretes indígenas capazes de traduzir ordens e ensinamentos do português para as línguas dos povos locais.
Porém, essa política esbarrou em obstáculos de ordem prática, uma vez que, para o sistema colonial funcionar, seria necessário a presença de um intérprete em cada unidade produtiva de extração ou plantio e, ainda, para atividades de cunho político e religioso. Nesse ponto de sua fala, o conferencista salienta que a necessidade de intérpretes nativos é evidenciada em cartas jesuítas enviadas ao Vaticano.
Para sanar essa problemática, os jesuítas, como exímios linguistas, perceberam que poderiam estabelecer línguas gerais para auxiliar sua comunicação com os povos indígenas. Assim, vemos o nascimento de uma terceira política linguística, sendo ela a instituição das línguas gerais.
O escritor define línguas gerais como aquelas capazes de permitir a comunicação interétnica entre falantes de diferentes línguas particulares que compartilham determinado espaço geográfico. Desse modo, as línguas instituídas como línguas gerais foram o tupi paulista, difundido pelos colonos em todo o litoral, posteriormente chamada de Língua Geral Paulista (LGP), e o tupinambá do Maranhão e de Belém, difundido na região anteriormente conhecida como Costa do Salgado, chamada de Língua Geral Amazônica (LGA).
Cabe ressaltar que já havia no país uma política embrionária de formação de línguas gerais que precedia a chegada dos português. Porém, este movimento se acelerou drasticamente com as políticas linguísticas impostas pela colônia, gerando o primeiro deslocamento linguístico sistematizado por Freire (2004
Nesse percurso, índios
Na medida em que os índios fixavam residência em vilas e povoados da colônia, se casavam com falantes de outras línguas. Ao se comunicar mutuamente e diariamente apenas na língua geral, deixavam de legar a seus filhos suas línguas maternas, tornando-os
As políticas linguísticas brasileiras se inflexionam com a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa imposta por Marquês de Pombal na segunda metade do séc. XVIII. O português passou então a ser massivamente utilizado no litoral. No entanto, esse projeto político-linguístico, em um primeiro momento, fracassou na Amazônia.
Progressivamente, observamos o predomínio de um novo
Para sintetizar o impacto das políticas e mostrar suas consequências para os povos indígenas, na conferência resenhada, Freire (2020
LV: Língua Vernácula; LVS: Línguas Vernáculas; LGA: Língua Geral Amazônica; LP: Língua Portuguesa (FREIRE, 2004
No quadro acima vemos o processo de deslocamento linguístico gerado pelas políticas linguísticas implementadas até a segunda metade do século XIX. Elas interferiram no destino das línguas indígenas, acarretando no desaparecimento de muitos idiomas e culturas.
Dados da UNESCO (2011
Enquanto linguistas e cidadãos, cabe avaliarmos e suscitarmos o debate acerca do futuro da diversidade linguística brasileira. Assim, é oportuno analisarmos a postura do governo brasileiro frente a esse cenário, bem como compreender os objetivos de se estabelecer políticas que prejudicam os povos autóctones.
Ao priorizar interesses econômicos e geopolíticos em detrimento da sobrevivência dos povos indígenas, o governo brasileiro põe novamente em perigo línguas e saberes ancestrais, repetindo uma trágica história nacional.
No mesmo compasso de políticas engendradas no Brasil colônia, com o objetivo de regularizar a mineração em terras indígenas, no dia seis de fevereiro o Poder Executivo apresentou ao Congresso o Projeto de Lei 191/2020 (BRASIL, 2020
Além disso, ao sancionar a Lei 14.021/2020, que dispõe sobre medidas de proteção social para a prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas, o presidente Jair Bolsonaro vetou dezenove pontos imprescindíveis à sobrevivência desses povos. Entre eles estão o “acesso universal à água potável”, a “distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção de superfícies”, a “oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidade de terapia intensiva”, a “aquisição de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea” e “a distribuição de materiais informativos sobre a Covid-19”. (SENADO, 2020
As políticas citadas evidenciam o desrespeito do governo brasileiro à povos de valor cultural e linguístico inestimável. Nesse triste contexto, são os próprios indígenas que atuam para tentar manter vivas suas culturas, línguas e saberes em meio a pandemia e a invasões de garimpeiros e de fazendeiros sob a chancela do Estado. Diante disso, observamos atônitos o Estado, que deveria ser o maior defensor de seus cidadãos, repetir trágicas ações já observadas ao longo da história do Brasil.
Assim, por meio dessa resenha, ressaltamos a necessidade de glotopolíticas voltadas ao fortalecimento e à valorização das línguas e das culturas dos povos autóctones. Porém, fazemos nossas as palavras de Blanchet (2002
O Atlas de Línguas em Risco no Mundo, publicado pela UNESCO, cita que, além das quarenta e cinco línguas classificadas como “criticamente ameaçadas”, noventa e sete outras são caracterizadas como “vulneráveis”, dezessete como “definitivamente ameaçadas” e outras dezenove como “severamente ameaçadas”.