“As guerras linguísticas”: afiliações e rupturas na ciência da linguagem do século XX

Ronaldo de Oliveira Batista,
Carlos Henrique Teixeira de Araújo

Resumo

Por meio de fundamentos teóricos e procedimentos metodológicos da Historiografia da Linguística, Cristina Altman apresenta uma abordagem da história da linguística a partir de um ponto de vista diferenciado: compreender algumas etapas do desenvolvimento de teorias estruturalistas (entre os anos 1920-1950) a partir do contato entre pesquisadores norte-americanos e europeus. Esse contato não se deu de forma pacífica e permite que se observe que a ciência é prática humana, permeada por associações e conflitos. Destacam-se aspectos teóricos e sociais do diálogo entre pesquisadores, envolvidos em comunidades em polarização, com referência também à recepção brasileira diante dos polos opostos que constituíram a assim chamada guerra fria estruturalista.

Texto

Professora Titular do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo (USP) e reconhecida como a introdutora do campo da Historiografia da Linguística (HL) no Brasil (entre outras razões, pela publicação de seu livro pioneiro A pesquisa linguística no Brasil: 1968-1988 e pela fundação do Grupo de Trabalho Historiografia da Linguística Brasileira da Anpoll), Cristina Altman apresentou uma conferência[1] do mais alto nível de demonstração do que é e deveria ser uma pesquisa crítica e interpretativa de eventos da história da linguística.

Pesquisadora ativa da HL (desde a década de 1990), ajudou a transmitir em aulas, palestras, conferências, livros, artigos a noção de que a história da linguística e seus eventos são o objeto analítico de um campo que pretende, a partir de fundamentos teórico-metodológicos próprios, interpretar a produção, circulação e recepção de conhecimento sobre a linguagem e as línguas (em qualquer época e em qualquer situação). Esse campo (efetivamente institucionalizado a partir dos anos 1970) é o que se reconhece como Historiografia da Linguística1 (ou Historiografia Linguística)2.

Em tempos de polarização política, ideológica e social, Altman apresentou um tema atual e relevante para o período em que todos vivemos nesta última década: o embate de ideias; as associações entre pares confrontando duramente o diferente; a busca pelo predomínio de valores próprios a determinados grupos.

Em uma conferência com ares de aula brilhante, Altman recuperou os termos da polarização atual em uma interpretação que destacou como a produção científica em linguística (num recorte temporal entre 1920-1950) pode ser vista criticamente pelo historiógrafo como uma prática científica, mas também humana, uma vez que envolve a formação de grupos de especialidade teórica (cf. MURRAY, 1994[2]), reunidos por meio dos mais diferentes motivos, inclusive aqueles de natureza geográfica, daí o intrigante título de sua conferência: A Guerra Fria Estruturalista.

A guerra a que Altman faz referência e que serviu de base para sua conferência é o embate teórico-metodológico e social (por conta da busca de vínculos institucionais para pesquisa e ensino) que opôs estruturalistas norte-americanos, em uma filiação que reconhece como líderes intelectuais Edward Sapir (1884-1938) e Leonard Bloomfield (1887-1949), e estruturalistas europeus (situados em Praga e na Rússia), em uma filiação que reconhece como um de seus principais líderes intelectuais Roman Jakobson (1896-1982). A “conexão brasileira” (nos termos de Altman 1999, 2004) dessa oposição se deu por conta das afiliações intelectuais assumidas por Joaquim Mattoso Câmara Jr. (1904-1970), reconhecido como um dos pioneiros da pesquisa linguística brasileira.

Transmitindo o pressuposto fundamental (e muitas vezes desconhecido ou mesmo ignorado) de que uma história a ser contada deve escapar do impressionismo e se ancorar em fundamentos teóricos e procedimentos metodológicos (resultantes da formação específica do linguista como um historiógrafo de sua área), Altman iniciou sua conferência estabelecendo parâmetros a partir dos quais sua interpretação seria estabelecida. Desse modo, ela definiu, no que chamou de “delimitações”, seu ponto de vista: estudar a oposição entre estruturalistas norte-americanos e europeus levando em conta a produção, circulação e recepção do conhecimento sobre a linguagem e as línguas.

Essa delimitação implicou uma periodização que serviu de ponto de partida da sua interpretação historiográfica: 1920-1950, os anos iniciais após o discurso fundador em termos científicos de Ferdinand de Saussure e seu Curso de linguística geral (1916[3]). Delimitou-se a análise nas décadas de 1920 a 1950 para flagrar processos de produção do conhecimento que se deram nesse período e também processos de recepção desse conhecimento. Altman apresentou uma reconstrução dos cenários geográficos para situar o desenvolvimento do estruturalismo nesses espaços (EUA, Europa e Brasil).

Como toda rigorosa investida historiográfica, Altman apresentou os dois parâmetros a guiar sua interpretação: um parâmetro interno, relativo a concepções teóricas sobre língua/linguagem e a seleção de métodos de análise; um parâmetro externo, relativo a aspectos sociais, que permitiram o desenvolvimento de práticas de análise linguística, circunscritas a fatores como institucionalização e reconhecimento de pares. Quatro agentes produtores de conhecimento foram os personagens da narrativa historiográfica de Altman: Sapir, Bloomfield, Jakobson e Mattoso Câmara.

No lado norte-americano da polarização, estava Sapir, que por meio da junção linguística e antropologia, tinha como interesse a análise e descrição dos sons, em trabalho de campo, de línguas indígenas, sem descuidar de um correlato mentalista para sua maneira de entender o funcionamento da linguagem. Ainda nos EUA, em Bloomfield, a visão estruturalista se dava por meio da constituição (com correlato psicológico behaviorista) de uma teoria mecanicista, descartando a mente e suas intenções para focar exclusivamente na localização do objeto de estudo, que seria a parte material das línguas, captada na análise, principalmente, fonética, fonológica e morfológica. Sendo assim, na guerra estruturalista, o lado norte-americano se daria pela busca de métodos de descrição e análise linguística diante de um material peculiar que estava à disposição dos linguistas dos anos 1920-1950: as desconhecidas línguas indígenas. Sem dúvida, a base de uma concepção imanente de linguística encontra um dos seus pilares nessa configuração norte-americana de pesquisa linguística.

No lado europeu da polarização, Altman destacou a figura de Jakobson, principalmente por conta da presença desse pesquisador de origem russa na linguística norte-americana no período da 2a. Guerra Mundial (1939-1945). Esse fator externo, a reorientar a ordem política e geográfica do mundo, contribuiu para a oposição que permitiu a Altman delinear a sua “guerra fria”.

Com a chegada de Jakobson e outros europeus aos EUA, a competição por cargos e posições em institutos de ensino e pesquisa evidenciou um confronto direto não só em termos políticos e geográficos, como também em termos teóricos. Jakobson, um dos precursores do funcionalismo, ajudaria a divulgar em centros norte-americanos um estruturalismo mais à europeia, por assim dizer, caracterizado pela interdisciplinaridade com outros campos das ciências humanas. Esse diálogo possibilitou a formação de escolas estruturalistas que recuperariam o estudo do significado, desconsiderado por estruturalistas “duros” (a hard linguistics) na linha de Bloomfield.

Em meio a essa guerra fria entre estruturalistas imanentes e estruturalistas mais abertos ao diálogo interdisciplinar, estava a figura do brasileiro Mattoso Câmara. Importante linguista brasileiro, recebeu apoio financeiro para estudar nos EUA, tendo aulas com representantes da linguística norte-americana mecanicista (conhecida como distribucionalista) e, mais importante, estabelecendo contato próximo com Jakobson (do qual são evidências as correspondências entre eles, cf. Altman, 1999, 2004[4,5]). A recepção brasileira dessa guerra estruturalista, via Mattoso Câmara, se deixaria pender mais para o estruturalismo à europeia de Jakobson, ainda que o linguista brasileiro tenha regularmente frequentado aulas e lido textos dos estruturalistas norte-americanos.

Essa complexão dimensão geográfica, social, intelectual e científica traçou percursos na história da linguística e foi revisitada em alguns de seus aspectos em uma conferência que só reafirmou o talento e a capacidade ímpar de Altman como historiógrafa da linguística.

Em sua conclusão, Altman ratificou a polarização e as múltiplas possibilidades de interpretação da produção e recepção do conhecimento sobre a linguagem e as línguas quando projetado num eixo histórico que lhe é inevitável, permeado por programas de investigação co-ocorrentes e concorrentes (cf. SWIGGERS, 1981[6]).

Por meio do rigor da análise e da afiada manifestação discursiva que são peculiares a Altman, pôde-se entender a não neutralidade da ciência por conta de fatores da não racionalidade que interferem no percurso da produção, circulação e recepção de ideias linguísticas. Um percurso permeado por afiliações e rupturas que podem ser compreendidas (à luz da sociologia da ciência) pela marcante descrição de John Ziman[7]: “Nunca se trata de um único indivíduo que passa sozinho por todas as etapas da cadeia lógico-indutiva, e sim de um grupo de indivíduos que partilham entre si o trabalho mas fiscalizam permanente e zelosamente as contribuições de cada um. A plateia à qual são endereçadas as publicações científicas não é passiva; por meio de aplausos ou vaias, de flores ou tomates, ela controla eficientemente a substância das comunicações que recebe”. Se estruturalistas todos somos em alguma medida, dispersos e opositores também o somos, em grande medida quando buscamos nossas afiliações e legitimações de nossa produção de conhecimento.

Referências

A Guerra Fria Estruturalista. Conferência apresentada por Cristina Altman [s.l., s.n.], 2020. 1 vídeo (1h 51min 45s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UsgBMHjwbxU&t=4251s Acesso em: 12 jun 2020.

ALTMAN, Cristina. A pesquisa linguística no Brasil (1968-1988). São Paulo: Humanitas, 1998.

ALTMAN, Cristina. The 'Brazilian connection'inthe history of North American linguistics: The notebooks of Joaquim Mattoso Câmara (1943-1944). Historiographia Linguistica, v. 26, n.3, p. 355-382, 1999.

ALTMAN, Cristina. A Conexão Americana: Mattoso Câmara e o Círculo Linguístico de Nova Iorque. DELTA, v. 20, p. 129-158, 2004.

BATISTA, Ronaldo de Oliveira. Introdução à Historiografia da Linguística. São Paulo: Cortez, 2013.

BATISTA, Ronaldo de Oliveira (Org.). Historiografia da Linguística. São Paulo: Contexto, 2019.

KOERNER, E.F. Konrad. Quatro décadas de historiografia linguística: estudos selecionados. Sel. e ed. de textos Rolf Kemmler e Cristina Al-tman. Vila Real: Centro de estudos em letras. Universidade de Trás-os-Montes, 2014.

MURRAY, Stephen O. Theory Groups and the Study of Language in North America: a social history. Amsterdam: John Benjamins, 1994.

SAUSSURE, Ferdiand de. Curso de linguística geral. [Trad. de A. Chelini et al. do orig. em francês]. São Paulo: Cultrix, 1995[1916].

SWIGGERS, Pierre. The History Writing of Linguistics: A Methodological Note. General Linguistics, v. 21, n. 1, p. 11-16, 1981.

ZIMAN, John. Conhecimento público. Trad. de R. R. Junqueira do orig. em inglês de 1968. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979.