Entrevista com Eni Orlandi

Evandra Grigoletto,
Bethania Mariani

Resumo

Trata-se de entrevista com Eni Orlandi, para compor o dossiê "Discursos da cena política brasileira em análise: a (des)construção da educação, da ciência, da cultura."

Entrevista

O nome próprio Eni Orlandi é incontornável e inquestionável quando se discute a Análise de Discurso no Brasil. Como intelectual de forte presença nacional e internacional, Eni rompeu paradigmas nas universidades onde fez pesquisa, deu aulas e orientou bem mais do que uma centena de alunos de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado. Seu percurso de reflexão não se inicia exatamente quando começou a atuar na universidade. Ele começa antes, nesse ponto de origem não detectável em que o sujeito se descobre impactado pela experiência da linguagem. Eni, com seu pensamento vivo, sem servilismos, aceitando o impensado, o contraditório, e sempre provocando deslocamentos, promoveu um trabalho inaugural problematizando os processos de produção e movimento dos sentidos a partir de dois campos de reflexão teórica: a Análise de Discurso, proposta por Michel Pêcheux e a História das Ideias Linguísticas, proposta por Sylvain Auroux.

Tendo o conceito de discurso como norte teórico, e colocando-se no entremeio das teorias de linguagem, as refinadas análises realizadas por Eni promoveram inovações teóricas e formulações próprias no campo do discurso, como o conceito de silêncio, de autoria, de discurso fundador, de historicidade, de compreensão, de interpretação, e de forma material, empírica e abstrata, dentre tantos outros. Reterritorializações conceituais e a necessidade epistemológica de construção de dispositivos de análise que engendrassem outros gestos de leitura de arquivos também reorganizaram o campo das Ideias Linguísticas no Brasil, pois o lugar teórico do discurso produziu efeitos nos modos de se analisar as relações entre a história da constituição da língua nacional e a história do conhecimento linguístico no processo de construção da sociedade. Assim procedendo, Eni trabalhou na desnaturalização das evidências do que seria língua, língua nacional, língua materna, política linguística e gramática.

Eni Orlandi é professora titular aposentada da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Em seu percurso pela UNICAMP, Eni Orlandi foi fundadora do Laboratório de Estudos Urbanos, espaço de uma discussão singular, qual seja, a da linguagem e saber urbano. Além disso, também foi responsável pela organização do fundo Michel Pêcheux e pela inclusão da disciplina História das Ideias Linguisticas no currículo de graduação do bacharelado em Linguística. Coordenou projetos, sempre coletivos, que inauguraram práticas e percursos originais: de seu primeiro projeto, registrado em 1981, A construção da brasilidade, aos mais recentes, Saindo do lugar e atravessando limites: imigração e colonização, e Materialidade da ideologia: práticas discursivas, sujeitos e imaginário social, o que se encontra é uma produção intelectual incessante, viva, inquieta e propositiva.

Nessa inédita entrevista para a Revista da ABRALIN, Eni Orlandi narra seu encontro com a Análise de Discurso, fala sobre sua formação, suas travessias entre diferentes países, especialmente a França, e sobre o modo como a AD foi socializada, mostrando ao leitor seu percurso ímpar em implementar essa teoria aqui no Brasil; discute, ainda, o político e o ideológico nas teorias linguísticas e na discursividade das minorias, ao refletir sobre a censura, o silêncio pelo excesso, a dessignificação, ao nos trazer questionamentos sobre as políticas linguísticas pensadas para os povos indígenas, entre tantas outras questões que nos ajudam a ler a cena política brasileira atual.

Com a palavra: Eni Orlandi.

Bethania e Evandra: Você introduziu a Análise de Discurso no Brasil e fez escola. Atualmente, a Análise de Discurso se encontra disciplinarizada de norte a sul em inúmeras instituições de ensino superior brasileiras. Poderia nos relatar um pouco como se deu seu encontro com a obra do Michel Pêcheux, com o próprio Pêcheux e como foi implementar uma teoria como a Análise de Discurso, que trabalha com a produção de sentidos na relação entre o linguístico, o histórico e o ideológico, aqui no Brasil, quando ainda vivíamos uma ditadura militar no país?

Eni Orlandi: São perguntas recorrentes as que me fazem sobre meu encontro com a Análise de Discurso. Muito do que digo se repete. Mas o faço porque imagino que diferentes deslizes nas formulações, na repetição de relatos, podem significar a minha experiência de formas um pouco diferentes e que seja útil para os que se interessam pela história das ideias discursivas. De todo modo, quando procuro responder questões como essas, olho para trás e o que percebo como visível, como contável, é só a ponta de um iceberg. E é isto o mais ou menos contado, o conhecido, o esperado. Mas há muito mais que fica submerso, abaixo da superfície do dizer. Que significou muito trabalho, luta, expectativas, vitórias, frustrações. Que são pouco visíveis, pois o que se vê, desse vivido, é só o que parece suficiente para a Análise de Discurso existir. E tudo foi muito mais.

Vou começar dizendo que eu sempre cheguei, e aqui vou falar especificamente da vida intelectual, um pouco antes do que viria a se instalar institucionalmente. O que nem sempre é confortável. E foi assim meu encontro com a Linguística e com a Análise de Discurso. Quanto à relação entre o linguístico, o histórico e o ideológico, desde minha graduação em Letras, em Araraquara, envolvi-me mais diretamente com a política acadêmica e a leitura do marxismo, que me abriu as portas para muitas outras leituras, envolvendo a história, a sociedade, a ideologia e o político. Além de, nesta época, eu ter me dedicado a ler muita literatura: inglesa, portuguesa, americana, brasileira e alemã. Isto enriqueceu enormemente minha vida intelectual, afetou minhas certezas, aumentou meus questionamentos, me propiciou algumas respostas, que foram base para novas interrogações.

Minha formação em Letras foi forte, e a estrutura desses cursos, nos anos 1950/1960, anos de minha formação, permitiam uma abertura maior que a atual. No final do meu curso secundário, no curso Clássico, estudava Ciências Naturais, Matemática e Química, História Geral e disciplinas da área de Letras como latim, português, francês, inglês, espanhol e grego. Língua e Literatura.

Quando comecei minha vida “intelectual” mais adulta, na Faculdade, entrei em um contato mais sistemático com o que é político, e expandi meus estudos em Letras. O histórico e o ideológico foram entrando em minha vida intelectual por vias variadas, tanto pela leitura como pela prática política. A nossa formação, nos anos 1960, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Araraquara, reunia filosofia, disciplinas específicas de Letras, Psicologia, Educação, Economia, de modo harmonioso e instigante. E isto correspondia à nossa prática, seja intelectual, seja política.

Do mesmo modo, assim como minha busca pela Análise de Discurso já estava em minhas preocupações muito tempo antes de encontrar, em Paris, em 1969, um livro, o da AAD69, do Pêcheux, na livraria Maspero, também a Linguística, como ciência da linguagem, estava presente em minhas reflexões, antes mesmo que eu tivesse dado nome a ela. A formação que tive, em Filologia Portuguesa, na graduação em Letras Anglo-Germânicas, com o prof. Clemente II Pinho, me conduziu à Linguística. Foi este professor que me mostrou que minhas questões, nos trabalhos que ele solicitava, como o que fiz sobre “São Jerônimo e a Vulgata”, eram mais de Linguística do que de Filologia. Li Saussure, Martinet, Jakobson, Benveniste, que acendeu o meu interesse pela questão do sujeito na linguagem. Tinha começado meu caminho como linguista, antes mesmo que houvesse a disciplina de Linguística em meu currículo e que eu soubesse muito bem o que era. No ano seguinte, veio um professor para dar o curso de Linguística e passamos a ter a disciplina regularmente.

A Linguística já me encontrou apaixonada pela vida intelectual, pela política, pelo cuidado com o social e curiosa face à história e à ideologia. No último ano do curso, veio a ditadura, em março de 1964. Fui a oradora da turma, em 1965, e fomos “convidados” a nos retirarmos de lá. Meus mestres se dispersaram. Muitos foram para o exterior. Eu fui para São Paulo fazer minha pós-graduação, trabalhar, atuar politicamente. Não havia o curso de Linguística Geral, que eu pretendia fazer. Eu e mais dois colegas encontramos, no professor Maurer, catedrático de Filologia Românica, e professor de Linguística Indoeuropéia, apoio para a criação de um curso de pós-graduação em Linguística Geral. O curso, criado pelo prof. Maurer, a nosso pedido, em 1965, foi o primeiro curso de Linguística Geral da Universidade de São Paulo (USP). Eu fui estruturalista, e penso que toda boa teoria é política, em sentido abrangente. Aprendi muito com o estruturalismo e, principalmente, com L. Hjelmslev, que considerava a semântica uma questão antropológica.

Eu buscava uma semântica que não fosse a estruturalista. Em setembro de 1968, fui para a França como leitora, para estudar Linguística. Continuei linguista, mas esqueci que era. Estudei na Universidade de Vincennes, onde meu orientador foi o prof. L. J. Prieto, do departamento de Sociologia, e que ensinava a Noologia, uma semântica estrutural que trabalhava com a significação. Assisti, também, aulas de semântica, com O. Ducrot, na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Ouvi Ruwet, ouvi Lacan, ouvi muita filosofia, na Universidade de Vincennes. Universidade em que, nas paredes, durante a aula, se podia ler: “Marighella sera vengé”. Encontrei a política, passei a entender melhor a ideologia, nos corredores, nos pátios de Vincennes, e mesmo nas disputas que se davam nos arredores da Universidade, no Bois de Vincennes.

Encontrei a Semântica que procurava ao encontrar-me com a Análise de Discurso, em 1969, não no curso que eu fazia, mas em uma livraria, na rue St. Sévérin, em um livro, publicado exatamente em 1969. Encontrava um autor que, vindo da Filosofia, encontrara uma forma teórica de flagrar a ideologia, pela materialidade da linguagem. Este livro de Pêcheux, sua tese de doutorado, obra fundadora da Análise de Discurso, já se anunciava, com sua força teórica e analítica, original, na proposta do estudo da necessária relação da linguagem com sua exterioridade. A noção de discurso inaugura, naquele momento, um novo território nos estudos da linguagem, em que a noção de efeito de sentidos, efeito metafórico se juntam às de condições e processos de produção, propondo, por aí, novos procedimentos de análise da linguagem. Na apresentação do livro, já se ressalta a importância da noção de discurso como processo, trazida pelo seu autor, cuja análise exige o recurso a um procedimento original que se distingue dos métodos frequenciais ou temáticos da análise de conteúdo clássica, sem, no entanto, fazer uso dos esquemas sintático-semânticos pressupostos. Abre-se um campo novo nas Ciências da Linguagem e, também, do interesse dos que trabalham nas Ciências Humanas e Sociais. M. Pêcheux, quando voltava de suas reuniões e trabalho, dizia que “incomodava”. E o fazia porque tirava do lugar o já estabelecido sobre a ideologia, mexia com os métodos de análise de linguagem, punha questões que tocavam o impensado.

Desde 1970, em meu retorno ao Brasil, com o país vivendo sob ditadura, pratiquei a Análise de Discurso, na Linguística da USP, além do curso que dei para tradutores e intérpretes, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, antes mesmo que houvesse uma disciplina com o nome de Análise de Discurso, em nenhuma das instituições. Eu lia o Analyse Automatique du Discours, de Pêcheux, de onde tirava o máximo que podia, e muitos artigos em revistas francesas. Na USP, eu dava cursos de Morfossintaxe, de Sintaxe, de Quadros da Matemática aplicados à linguagem, de Sociolinguística, e, no meio dos cursos, apresentava Pêcheux e a Análise de Discurso que ele propunha. Só não podia dar um curso com o nome de Análise de Discurso. Nem na graduação, nem na pós, havia um curso com este nome. Isto não me impedia de dar a aula que eu dava. Uma ciência clandestina? Uma forma de conhecimento de resistência? Eu não pensava muito nisso. Já havia, talvez, aprendido a usar o silêncio a meu favor. Eram tempos de ditadura e de cerceamento de liberdade. Os intelectuais eram, “naturalmente”, suspeitos. Como disse, no início, eu não esperava que as “coisas” existissem para me interessar por elas. Eu não nomeava meus percursos antes de fazê-los. Sempre comecei antes, e isto não foi fácil. Nesse início, em meu retorno da França, eu fazia o que eu achava que a Linguística também devia ser. Na PUC de Campinas, o diretor da Faculdade de Letras, o prof. Sampaio, era culto, amigo da inteligência, e muito cordial comigo. Não havia apoio político. Isto ficava em silêncio. Assim como ficava em silêncio o nome da disciplina, que, oficialmente, era dado pelo Programa de Linguística, no curso de Especialização para Intérpretes e Tradutores. O curso foi muito bem sucedido, pois a tradução é um campo de exploração excelente para a Análise de Discurso. Traz questões fundamentais. Os alunos, que eram em grande número, adoraram, e isto foi muito estimulante. Eram os anos de 1970.

Só conheci Pêcheux, em 1982, em um congresso de ciência política no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), ocasião em que ele falou dos furos da ideologia, ou melhor, de que a ideologia é um ritual com falhas. E conversamos em um barzinho próximo ao IUPERJ. Ele me aconselhou a não ir a Paris naquele momento e a aprofundar em meu trabalho. Me sugeriu a leitura do Les vérités de la palice, que eu ainda não havia lido. Ele viria dar um curso no Brasil. Não veio mais. Mas sua obra já estava posta. As repercussões de seus trabalhos se dariam de várias maneiras. Instalavam uma nova maneira de se trabalhar com o político e o simbólico, de significar a ideologia, fora do campo da Sociologia. Para mim foi um aceno para o futuro.

Em meu retorno a Paris, já em 1984, reencontrei a Análise de Discurso, em um Colóquio sobre Orwell, organizado por Pierre Achard, sobre Sociolinguística e Análise de Discurso, em que este “e” era um traço de união e, ao mesmo tempo, uma interrogação. Foi neste Colóquio que vi, ouvi, pela primeira vez, F. Gadet (que me vendeu o primeiro número da revista LinX), P. Sériot, D. Maingueneau. E fui convidada, por P. Achard e F. Leimdorfer, para uma reunião de trabalho, em que apresentei minha reflexão sobre o discurso das lideranças indígenas e o discurso da colonização, no Brasil, trabalhando com Análise de Discurso, explicitamente, e deslocando tanto o discurso da antropologia, sobre a questão indígena, como a questão étnica tradicional, e pondo à mostra os processos de significação que se instalam com a colonização. Fui interrompida muitas vezes por uma pesquisadora do grupo, que teimava que a Etnolinguística ou Bakhtine podiam dar conta desse assunto. Eu insisti nos princípios teóricos da Análise de Discurso e fui apoiada por P. Achard, que garantiu minha fala até o final. P. Achard, e os organizadores, publicou meu texto deste Congresso sobre Orwell, e, pouco mais tarde, publicou, na revista Langage et Société, um texto que fiz para o Congresso sobre Dialogia, realizado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), em 1981, em que eu fazia uma análise crítica às regras conversacionais e falava de discurso. Embora todos os textos aceitos para o Congresso do IEL, como o meu foi, devessem ser publicados, o meu não foi. Censura. Submeti o texto à revista Langage et Société, que o publicou. Minha convivência com o grupo da Maison des Sciences de L’Homme (MSH) continuou por muitos anos.

Pêcheux tinha me dado o endereço do Laboratório de Psicologia Social, dirigido por Pagès1, onde conheci Claudine Haroche, que convidei para vir ao Brasil para dar um curso e para participar de encontros na Unicamp e em São Paulo, na PUC, no departamento de psicologia social. A Análise de Discurso já tinha se instalado há algum tempo no departamento de Linguística do IEL, quando realizei o primeiro evento, que foi sobre discurso político, e tinha como convidados G.Gimenez (México), P. Sériot (Suíça), M. Tournier (França) e N. Goldmann (Argentina). Com a determinação de reunir e não dividir, promovi ainda muitos outros pequenos encontros que reuniam muitos interessados em Análise de Discurso. Meu procedimento foi sempre o de me defender fortemente frente às divisões, mas não o de produzi-las. Como dizia R. Barthes, é preciso sustentar seu discurso, não impô-lo. Eu sustentava. Fizemos muitas destas reuniões, seminários, conferências sobre Análise de Discurso no IEL. Já não estávamos mais no início e havia já um forte desenvolvimento da Análise de Discurso no Brasil, agora já nomeada. Denise Maldidier, quando veio ao Brasil, se emocionou com o nome Análise de Discurso na porta da minha sala no IEL. Uma ponta do iceberg.

Em 1987, voltei à Paris, para meu pós-doutorado, na Universidade de Paris VII. Nenhuma universidade oferecia cursos de análise de discurso, na França, naquele momento. Fiz um seminário sobre Análise de Discurso, no Programa de Seminários, na Maison des Sciences de l´Homme (MSH), em 1987, convidada por P. Achard, que era, então, o diretor da revista Langage et Société, e que fazia da revista um lugar de encontros regulares. Mantivemos, até sua morte, uma grande amizade e respeito intelectual. No seminário estavam presentes Denise Maldidier, F. Gadet e Francine Mazière. Denise falou, no final, sobre a importância do trabalho que apresentei, reconhecendo a filiação a M. Pêcheux. Foi assim que a conheci. Muita gente gostou desse seminário, mas havia também os que se incomodavam. O que tinha sido produzido por Pêcheux, embora silenciado, depois de sua morte, se mantinha fortemente latente e desafiante. E, todas as vezes que eu ia à França, não só nessa época, mas em outras, muitas pessoas vinham para ouvir o que eu ia construindo, também do lado de lá, a partir de minha leitura da Análise de Discurso filiada a este autor. Penso que o que atraía os frequentadores era que eu me ligava à teoria do discurso, na filiação a Pêcheux, e produzia muitas análises, o que, para eles, era um pouco inusitado. As análises que eu fazia não eram análise automática, nem só do discurso político. Eu explorava a materialidade do discurso em suas diferentes manifestações. As noções de interdiscurso, de formação discursiva, de metáfora, de sujeitos, trabalhadas no Vérités de la palice de Pêcheux, já permitiam que eu encontrasse procedimentos analíticos, sobretudo a partir das noções de paráfrase e polissemia, que elaborei em suas relações, apurando, assim, o método de análise.

Como frequentava diariamente a Biblioteca Nacional, fui apresentada, na Biblioteca, a J.J. Courtine. Ele me deu grande número de textos, publicados por ele e colegas da equipe de Pêcheux, textos que eu usei em aulas e depositei, mais tarde, no nosso CEDU, no Laboratório de Estudos Urbanos (LABEURB-Unicamp), no Fundo Michel Pêcheux. Foi nessa época do meu pós-doutorado, em Paris VII, que Gadet me apresentou à Madame Pêcheux, e a um grupo muito grande de pesquisadores que tinham sido do grupo de Pêcheux no Centre National Centre Nationale de la Recherche Scientifique (CNRS). O primeiro com quem me encontrei foi Paul Henry. Como desenvolverei, mais adiante, a relação com Madame Pêcheux, e com este grupo, concorreu para a maneira como administrei a institucionalização da Análise de Discurso no Brasil.

Gostaria de deter-me sobre esta relação de trabalho com os colegas franceses, agora de uma perspectiva mais ampla. Não só com o grupo de Paris, mas, também outros grupos como o de Praxématique, de Montpellier. Minha relação com a França se inaugurou nos anos de 1968, quando fui leitora em Montpellier, e a França, sobretudo Paris, se tornou uma extensão da minha vida no Brasil. O que alinhavava tudo era meu trabalho incessante. Em Campinas, trabalhava, formava muitos pesquisadores, instituía a Análise de Discurso e a fazia circular. Viajava muito, pelo Brasil. Em Paris, trabalhava muito, e, muitos de meus colegas, além de me colocarem em contato com o que era feito nas ciências, sobretudo nas Ciências da Linguagem, não só em Paris, mas no exterior, em geral, também me incluíam em programas que eu chamaria sócioculturais, políticos, importantes. Uns reservavam lugares no Teatro, toda vez em que eu ia. Outros me convidavam para belíssimas exposições de arte e espetáculos de música. Alguns gostavam de me apresentar lugares menos expostos, em Paris, em que havia alguma forma de arte ou de acontecimento político e cultural. Leitura de peças. Visitas a casa de autores de romances, de escultores, de pintores etc. Lugares em que havia pequenas exposições permanentes. Outros, me convidavam para espetáculos de dança. Também ia a reuniões de trabalho em bistrôs especialíssimos. Mas, a maior parte das reuniões de trabalho se deram, no início, com vários dos pesquisadores do grupo de M. Pêcheux, no que eles chamavam de Café Théorique e que era onde se reuniam, quando a equipe ainda era um grupo, com Pêcheux, no CNRS: Le Rostand, em frente ao Luxemburgo. Ali também tive inúmeras reuniões, com H. Parret, para a organização do Colóquio de Urbino, sobre Heterogeneidade e Silêncio. Foi ali que fui apresentada a colegas ainda não conhecidos. Estive, muitas vezes, em jantares menos formais, em casa de colegas, com quem trabalhei mais frequentemente e com quem trabalhava com mais proximidade. Era a ocasião de conhecer outros colegas. Também me reunia com pessoas que iam assistir meus seminários ou conferências e que vinham de instituições e países diferentes. Lembro de uma argelina, amiga de uma alemã, com quem eu me encontrava toda vez que ia a Paris, assim como de uma jovem malgaxe e de um amigo de cultura cigana que me mostraram como importava meu trabalho em relação a tantos colegas não franceses que se encontravam em minhas apresentações. Ocasião de encontros, de discussões, de projetos. Intelectuais e políticos. E assim fui tendo contato com um grande e diversificado grupo de intelectuais. Na região da Universidade de Paris III, eram muitos os encontros de trabalho em cafés ou restaurantes que nos serviam para “home office”. E muitos colegas me apresentaram livrarias ou bibliotecas que me trouxeram muita matéria de reflexão. Livros raros ou em edições fac-similares. Atividade intensa e que resultava em tanto ou mais trabalho no Brasil, mesmo que não houvesse um curso específico de Análise de Discurso, em Paris, naquela época. Conhecimento, cultura, arte, política se misturavam. Era sempre um grande passeio pela linguagem a cada ida a Paris. Ou a Lausanne, onde também trabalhei, com frequência, com P. Sériot, com quem fui à antiga URSS, ou Lyon III, onde trabalhei com os especialistas em Francofonia, que me levaram ao Canadá, ou Fontenay-aux-Roses, ou Lyon, onde desenvolvi um grande trabalho de equipe, financiado pelo Acordo Capes/Cofecub, em História das Ideias Linguísticas.

Todas estas minhas atividades e contatos reuniram colegas, mas também foram a ocasião da estada de muitos alunos de pós-graduação, na França. As reuniões da História das Ideias Linguísticas começaram em Paris, na Universidade de Paris VII, e na rue d´Ulm, onde se davam as reuniões de trabalho, seminários, conferências, mesas-redondas, seguidas de almoços, na rue St Jacques, com colegas de muitos países, em que se discutiam as teorias da linguagem amplamente, as políticas de língua e assuntos relacionados. Foram muitos anos de trabalho e de convivência, sobretudo com S. Auroux e F. Mazière, E. Bonvini, S. Delesalle, J-Cl. Chevalier. E sempre coloquei como objetivo a elaboração da Análise de Discurso. Isto se dava, mesmo nas longas conversas com S. Auroux, na universidade de Paris VII, na formulação do projeto que ia colocar as nossas questões da colonização, da língua e do conhecimento linguístico, na pauta do amplo grupo de pesquisa internacional que Auroux dirigia. Também desenvolvi minha pesquisa em bibliotecas em Roma, para a escrita do meu livro Terra à Vista, na época de meu pós-doutorado e conheci, em Roma, um grupo de intelectuais dedicados à linguagem. Incluo no meu trabalho em Análise de Discurso a minha participação na Comissão de Língua Portuguesa, que me proporcionou uma boa convivência com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e, também, com colegas portugueses. Eu olhava a(s) língua(s) de uma perspectiva discursiva. Se falo disso tudo, é para mostrar a importância de uma relação de trabalho internacional quando ela se dá efetivamente, sustentada em trabalhos concretos. Eram “trocas” culturais, científicas, políticas, acadêmicas, tanto quando meus colegas, de Análise de Discurso, ou de História das Ideias Linguísticas, vinham e, ou, quando eu ia, ou enviava alunos. E, mais recentemente, muitas novas relações surgiram e que alimentam nossas relações de trabalho acadêmico. Estendendo-se também para a Itália, com quem temos realizado frutuosos projetos, na área de discurso. A isso eu chamaria internacionalização. Que não são apenas Congressos, com alguns convidados do exterior, e em que, muitas vezes, as pessoas mal se conhecem e aos seus trabalhos.

Quanto a implementar uma teoria como a Análise de Discurso no Brasil, no período da ditadura militar, foi parte da minha vida intelectual e fiz o necessário: não abandonei minhas escolhas e fui em frente. Muita gente se interessou pela Análise de Discurso. Os que eram contra, em geral, estranhavam que o político, a ideologia, a historicidade, fizessem parte dos estudos da linguagem. Penso que o que importa é ter uma relação real com o trabalho. Tenho a convicção de que os obstáculos podem ser – e, para mim, sempre foram - muitos, e vêm e passam, mas o trabalho, se for real, fica. Atuei politicamente como pude e, também, coloquei meu empenho em que a Análise de Discurso, que eu fazia, trouxesse a possibilidade de mudar alguma coisa. Eu lia os autores, que encontrava, de Análise de Discurso ou correlatos, e jamais deixei de procurar pensar por mim mesma, no caminho que ia construindo com minhas opções e trabalho. Sempre pensando a conjuntura intelectual, social e política no Brasil. Em uma apresentação que fiz, há algum tempo, disse que a voz de Elis Regina era a política que ela fazia. O meu trabalho sempre foi minha voz política. Ao lado de outras práticas políticas, pois, penso que não se deve confundir Análise de Discurso com militância pura e simples.

A Análise de Discurso é antes de tudo uma ciência da interpretação, que trabalha com processos de significação. Não só do discurso político. O que ela produz como análise pode, por outro lado, nos tornar melhores em nossa capacidade de praticarmos o político. Mas a posição-sujeito analista e a posição-sujeito militante têm suas especificidades e se diferenciam. Gosto muito de fazer o trabalho que faço. Desde muito cedo me interrogo sobre a linguagem. Me significo com meu trabalho. Com uma inclinação especial pela escrita. E considero, com clareza, que o lugar da Análise de Discurso que pratico, que praticamos, institucionalmente, é no departamento de Linguística. Lutei por isso.

Volto-me, agora, para um outro aspecto que considero importante no trabalho intelectual: a socialização do conhecimento. Já na Unicamp, quando deixei a USP, no final dos anos 1970, procurei elaborar um processo de institucionalização da Análise de Discurso. Investi muito tempo e trabalho nisso. Penso que uma forma de conhecimento se faz com muito estudo e pesquisa, muito trabalho e muita insistência. E, também, pela criação de condições favoráveis à sua existência e à constituição de uma conjuntura em que esse conhecimento se desenvolva e circule, produzindo seus efeitos. Era preciso criar condições para que houvesse uma prática de qualidade da Análise de Discurso. Em relação à institucionalização, a primeira coisa era trabalhar para que houvesse a disciplina na instituição tanto na graduação como na pós-graduação. E isso foi um empenho de muito tempo. Além disso, era necessário ter alunos, portanto oferecer cursos de qualidade e regulares. Formar os alunos, tanto como professores como pesquisadores. Foram muitos os cursos dados e muitos os alunos. Na graduação e na pós graduação. Fazermos circular o trabalho através da presença nos eventos, sermos reconhecidos nas instituições de fomento à pesquisa. Sermos bem avaliados pela Capes.

Para efeitos de institucionalização, mas não só, como veremos em seguida, foi importante o apoio de Madame Pêcheux e dos pesquisadores que fizeram parte do grupo de Pêcheux, no CNRS, pelo lado europeu. E, no Brasil, foi essencial o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Durante anos seguidos, e aos poucos, foi possível trazer todos os pesquisadores deste grupo com quem tinha contato. Foram, inicialmente, quinze pesquisadores. Um a um, a Fapesp concedeu financiamento para que todos viessem à Unicamp e dessem cursos, fizessem conferências, não só para os alunos de nossos cursos, mas também outros interessados em Análise de Discurso. A situação era muito paradoxal, eu diria. Já não existia o grupo de Pêcheux no CNRS. Quando eu ia à França, poucos ainda se identificavam como analistas de discurso. Muitos até recusavam essa denominação. Ou eram linguistas, ou historiadores, ou sociolinguistas, ou psicanalistas, ou filósofos. Mas eu tinha excelente convivência com todos eles, insistindo na Análise de Discurso que era minha área de conhecimento, e, além das conversas e reuniões de trabalho, feitas, como disse, em cafés, na Biblioteca da MSH, raramente nas universidades, pois o espaço de trabalho era exíguo, eles me convidavam para fazer conferências, participar de seminários e falar em Encontros, além de dar cursos, nas universidades. Abriam espaços para meu trabalho. Quando vinham ao Brasil, além de falarem de seus interesses atuais falavam de discurso. Mesmo porque, em geral, no que faziam, estava presente a passagem pela Análise de Discurso. E eles estavam interessados em falar da experiência que tiveram no grupo de M. Pêcheux, no CNRS. Foi assim que penso ter dado sentido à Análise de Discurso dos dois lados do Atlântico. Por outro lado, já era mais difícil, quando enviava alunos para a França, para cursos específicos em Análise de Discurso, pois não existiam. Mas os alunos, que foram, souberam realizar excelentes programas de trabalhos, em qualquer das instituições em que estiveram, e nossos colegas franceses foram extremamente responsáveis na relação com todos. Só mais tarde, começaram a aparecer de novo, e já em outro momento de seu desenvolvimento, cursos em Análise de Discurso.

Madame Pêcheux colaborou com nosso programa de implantação e institucionalização da Análise de Discurso da filiação a Pêcheux, nos disponibilizando textos e liberando a tradução e publicação deles no Brasil. Assim como colegas nos cederam seus textos para tradução no Brasil. Essas iniciativas auxiliaram na institucionalização da Análise de Discurso.

Mas há o outro lado desta questão que é o da socialização do conhecimento produzido pela Análise de Discurso. Esse é também um processo importantíssimo. Eles podem vir juntos, mas se distinguem. A institucionalização é uma prática necessária, já que a ciência, na conjuntura política em que vivemos, é também objeto de interesse, mercadoria. A socialização é uma forma de relativizar o sentido da produção do conhecimento como mercado e, em um gesto político, trazê-la para a relação do homem com a história, a sociedade e a natureza, na direção de sua transformação. Desde que tive acesso à Análise de Discurso procurei colocar à disposição de meus alunos e interessados, não apenas o que eu tratava na aula, mas as minhas fontes de leitura, e os contatos que tinha conquistado, e a que tinha acesso, após muitos esforços de trabalho. Quanto às leituras, passei não só a disponibilizar os textos, em geral, em francês, que eram parte do meu trabalho com os alunos, mas também a traduzir estes textos para que pudessem circular mais largamente e produzir um campo de leitores, de forma crítica. A isso chamo socializar o conhecimento, algo que aprendi com meus mestres nos anos 1960. Insisto na data, pois cada vez mais, com o tempo, fui ouvindo pessoas da Universidade que falam em socialismo, sociedade, social e cada vez menos socializam seu conhecimento.

Mais recentemente, tem uma palavrinha chave que toma o lugar da socialização, na relação do conhecimento com a sociedade: é a palavra “empoderamento”2. E, por ela, vem o discurso da mundialização e o das minorias, tomadas pela mundialização, significadas pela conjuntura política e ideológica capitalista. São novas formas do político, novas formas da divisão. A palavra empoderamento privilegia as relações de força às relações de sentido. Reivindica poder. E significa a partir do próprio sistema capitalista. Não toma distância da situação, na própria situação, como diria Nietzsche. E esta forma de produzir um gesto que se diz gesto de resistência é própria da mundialização, que equaciona as divisões não pela luta e pelo reconhecimento das divisões e da ideologia, mas pela vontade e pela disponibilização dos meios capitalistas. Somos todos iguais, aí, soa como somos “tropa”. Não há só isso na mundialização, mas é isto que, em geral, se disponibiliza, quando a prática é uma prática que desconhece a concretude do mundo e apela para a vontade e a consciência. E fala em “classes desfavorecidas”.

Mas voltemos ao processo de socialização da Análise de Discurso que procurei, procuro, praticar. Estou insistindo nesta palavra, porque, em geral, se fala mais da institucionalização da Análise de Discurso. E, é preciso distinguir institucionalizar e socializar. A institucionalização, no sistema capitalista, se faz através das instituições e discursos administrativos, e é necessária para que uma forma de conhecimento tenha um lugar específico no campo da ciência, e se possa disponibilizar para a formação e a pesquisa. Já a socialização é outra coisa. Com a socialização, não se intermedia as relações só pelas instituições, mas pela produção de condições de acessibilidade, de politização do campo de conhecimento. Ao trazer os pesquisadores do grupo de Pêcheux, ou disponibilizar a todos interessados os “bens” culturais e científicos aos quais eu tinha acesso, eu socializava a prática da Análise de Discurso, e a tornava permeável à sociedade em que vivo. Para mim, é uma necessidade social e um dever político dos que têm acesso à ciência. Eu poderia parafrasear Pêcheux, em um deslocamento do que ele diz, e afirmar que é “uma questão ética, uma questão de responsabilidade”. E foi assim que não fiquei apenas ao sabor dos jogos da instituição, nem a Análise de Discurso que eu pratico se fechou intra muros. Nós nos socializamos. Conceitos que formulei, noções que trabalhei se espalharam pelo Brasil. E mesmo para fora. São de uso social. Existem independentemente. É isso socialização.

Bethania e Evandra: Em sua obra As formas do silêncio: no movimento dos sentidos (1992[1]), livro que recebeu o prêmio Jabuti, você se propõe a escutar o dizível em circulação durante o período da ditadura militar. Na segunda parte desse livro, você analisa o movimento dos sentidos tanto no funcionamento da censura “que impede o trabalho histórico dos sentidos” (ORLANDI, 1992, p. 11[1]), quanto no trabalho de resistência que se inscreve nesse sítio de significância dos sentidos censurados. Daí a importância em se pensar o silêncio fundador e suas formas, no movimento dos sentidos, pois, de acordo com a noção proposta, “o silêncio está na base da divisão dos sentidos.” (ORLANDI, 1992, p. 111[1]). Com o verso do poema de E. Dickinson “Silêncio é infinidade”, epígrafe do texto Política e silêncio na América Latina: quando se fala pelo outro, publicado em 2019[2], você traz uma pontuação para a noção de silêncio pensando na atualidade, nos discursos das minorias. Você poderia falar um pouco mais sobre o engodo do “alarido” e a escuta do in-congoscível, do in-compreendido e do inusitado?

Eni Orlandi: A pergunta inicia dizendo que em meu livro, As formas do silêncio, eu me proponho a escutar o dizível em circulação durante o período da ditadura militar. Eu diria que o indizível também, mas é mais complicado um pouco. Gostaria de fazer uma observação que considero muito importante, porque constitutiva mesma da teoria do silêncio que proponho. Indicar as nuances que é preciso observar. Quando me propus trabalhar com o silêncio, e digo isto nas primeiras páginas do livro, viso o material concreto da significação, como uma materialidade distinta da matéria significante das palavras, do dizível, e mesmo da linguagem, como tal. O silêncio não fala, ele significa. Não se trata do dizível, pois, mas do significável. Se “traduzo” o silêncio em palavras, se o faço falar, os sentidos já não serão os mesmos, e implicam gestos de interpretação diferentes, dada sua matéria significante.

Deste ponto de vista, e aí lembro o que denomino de silêncio fundador, considero o silêncio como a própria condição da produção do sentido. Não estou falando do silêncio em sua qualidade física, mas do silêncio como sentido, como história, silêncio humano, matéria significante. Distinta da linguagem. Silêncio que não é falta, não é o vazio, é horizonte. Desse modo, e pela minha filiação ao materialismo, pude inscrever minha concepção de silêncio, tal como desenvolvi, nesta filiação, como processo de significação. Mesmo que não se estabeleça uma relação consciente do sujeito com o silêncio, em face do discurso, o sujeito tem necessidade do silêncio, como fundamento necessário ao sentido e que ele reinstala falando. É pensando a política do silêncio, esta que divide os sentidos, que separa o significável do não significável, e o dizível do não-dizível, que se poderia dizer que me proponho a escutar o significável e o dizível, mas também, eu diria, o não significável e o indizível, quando se trata da política do silêncio, da censura.

Lembro ainda que censura não existe só na ditadura militar. Esta é só um exemplar da presença da censura, na análise que fiz, sobretudo das músicas, em uma certa conjuntura política. Mas a política do silêncio - seja constitutiva ou local, como as denomino - é uma constante, que se apresenta em qualquer conjuntura que for favorável, que crie as condições para o silenciamento. Basta lembrar o que acontece hoje com exposição de pinturas, com pichações, ou caricaturas de humor, ou textos, que são censurados a todo momento. E até mesmo cursos inteiros de pós-graduação que são silenciados.

Minha posição teórica é que se há censura, há também movimento de sentidos, e os sentidos censurados migram para outros objetos simbólicos. E significam. Relação que não se desfaz entre o silêncio fundador e a política do silêncio. Onde está a censura está a resistência.

Passo a comentar a segunda parte desta questão que acho extremamente importante para observarmos as discursividades atuais em suas formas de silenciamento e os consequentes possíveis modos de resistência. Para o analista de discurso, resta a responsabilidade de esclarecer, por às claras, com seu dispositivo teórico e analítico, o que se apresenta atualmente. Desde o início de meus trabalhos com o silêncio, fazia parte de minhas preocupações não opor o “ruído” ao silêncio. Porque, no barulho, também há silenciamento. Ruído aí significando “alarido” de vozes, a presença constante da linguagem em paredes, em panfletos, em vídeos, em rede, por toda a parte. Uma enxurrada constante. Excesso, algazarra que acaba por produzir a insignificância. A indiferença à significação.

Somos, desde muito tempo, e todo o tempo, alvejados por linguagens de todos os tipos, tamanhos e cores. E, por outro lado, penso, como E. Dickinson, que “silêncio é infinidade”. Esta é a abertura do simbólico, o silêncio pensado como silêncio fundador, que se abre para o horizonte de sentidos. Mas, não esqueçamos, há também o que chamo de silenciamento, o que fecha, divide, silencia. Respondendo a sua pergunta mais diretamente, nós não havíamos conhecido a extrema-direita no poder, explicitamente. A direita, sim. Já tínhamos experiência vasta com isso. As ditaduras também. O inusitado, eu diria, foi nos defrontarmos com a extrema-direita. O nazismo, o fascismo são tão inaceitáveis, grotescos mesmo, que parecem inconcebíveis. Principalmente se os considerarmos a partir da posição-sujeito de uma formação discursiva de esquerda. No entanto, foi eleito um presidente de extrema-direita, dizendo com todas as palavras ser de extrema-direita. Passamos do inusitado para o que, para nós, era inconcebível. Mas existente. Isso é real. Impossível que não seja assim. Olhando, agora, pela perspectiva analítica, podemos dizer que, no(s) discurso(s) político(s) atual(is), são muitas as formas de silêncio e de silenciamento. Já falei do que chamei de volatilidade da interpretação, em que se dilui o real da significação, apaga-se o real da história.

Gostaria de falar, agora, do silenciamento produzido pelo excesso, pelo ruído incessante das redes, e das falas que buscam atrair a atenção para distrair a escuta mais apurada dos sentidos que vêm junto, para fazer “passar a boiada” da extrema-direita. Há, como já disse, insegurança nas palavras, pela relação com o silenciamento que vem nelas.

Há guerra de sentidos, numa retórica que tenho chamado de “retórica da vantagem”: qualquer besteira vale para “bagunçar” sentidos, criar a confusão, o mal-entendido, a contradição, o desarrazoado. Porque essas são condições favoráveis para a sobrevivência do discurso da extrema-direita. Nessa conjuntura, o processo dominante, creio, é o da produção de processos de dessignificação. No Chile, lutam para que se possa ter uma nova Constituição. Imediatamente, começam a insinuar a ideia de que, no Brasil, temos também de fazer o mesmo. Que mesmo? Fala-se em pensar em uma nova Constituição para o Brasil, e apaga-se, silencia-se o sentido do que está se produzindo no Chile, quando lá se vota para não ter mais a Constituição da época de Pinochet. Nesse momento histórico, a Constituição, no Brasil, tem o sentido da democracia. Dessignifica-se o político, pela guerra ideológica. Tentam-se silenciar formações discursivas, apagam-se distinções. Porque o que já vem posto, pré-construído, nessa formação discursiva da extrema-direita, é o apagamento da esquerda, o silenciamento de seu discurso. E erige-se a irracionalidade como modo de silenciar. É inconcebível que não se queira vacinar todos os brasileiros. É inacreditável que não se leve a sério o ponto de vista da ciência. São formulações que nos parecem absurdas. Roubam-se, roubam-nos, assim, os sentidos com a maior desfaçatez. E isso também faz parte do processo de dessignificação: algo que era dito pela esquerda, aparece dito pela extrema-direita, o que destrói a especificidade da significação. Se você responder ao pré-construído, fica preso a ele, no argumento do outro. Como distinguir-se, como tomar distância? Como desfazer o equívoco? Não há como apoiar-se no sentido, quando ele está sendo dessignificado. Penso que um modo de se produzir uma escuta nessas condições, é usar as formas de silêncio – “o silêncio é infinidade” – para apoiar-se: superar a compreensibilidade, como diria Nietszche (2001[3], A Gaia Ciência, entre outros). Não se embrulhar com fake news, não responder diretamente à dessignificação, não querer compreender ou ser compreendido. Aceitar o desafio do incognoscível. Nestas condições vale arriscar-se no non-sense. Trabalhar e produzir nuances, delicadezas, finuras da linguagem, inteligência. Não ir nunca direto ao ponto. Isto é fatal. A mídia tem feito frequentemente isso e fica respondendo, girando em falso na insegurança das palavras, na dessignificação, aumentando o ruído. O ruído é a voz deste tipo de governo.

A superação da compreensibilidade é a recusa de que se possa ser compreendido universalmente. Quando Nietzsche (idem[3]) propõe a superação da compreensibilidade, e do supra-individual, ele está questionando a interpretação, criticando a doutrina que afirma que se pode perfeitamente ser compreendido universalmente. Sua crítica leva a uma individualização, pois, segundo o autor, não se pode pensar que “a comunicação em nada altera o comunicado”. Quando ele diz isso, está negando a exigência de uma compreensão universal que, esta, des-individualiza o próprio homem (diríamos o sujeito) e suas condições peculiares de vida (diríamos condições de existência). Nesse sentido é que considero importante, como diz Nietzsche, “individualizar” a interpretação, no sentido em que tomo o sujeito-individuado (não mais o psicobiológico, mas o sócio-político) e levo em conta as condições de produção dos sentidos. Não há, desta perspectiva, uma compreensão supra-individual. A da tropa, diria Nietzsche. Esta pretensão, que Nietzsche chama de metafísica é a mesma a que se contrapõe o materialismo da Análise de Discurso, quando pensa as condições e o processo de produção de sentidos, a ideologia, a interpretação.

O que é preciso é distanciar-se da situação na própria situação; diz Nietzsche “eu sinto a distância para ser diferente em cada entendimento, igualmente inconfundível, e para estar acima em comparação com cada elemento opaco”. É também Nietzsche que diz que a vida não é argumento. E as minorias muitas vezes argumentam pela vida. A formação discursiva dominante dessignifica este argumento. Não se é compreendido univocamente por todos, em nenhuma circunstância. A linguagem pode sim soar de modo estranho. Também Pêcheux nos diz isso, quando fala de reversão e deslocamento. O elogio da in-compreensão. O que diz Nietszche não nega a vida, mas seu uso como argumento. Não se pode esperar uma compreensão universal. Isso, a meu ver, não desqualifica o(s) discurso(s) das minorias, ao contrário, prepara para a diferença, para o incompreensível, e para a ideia de que um argumento não é entendido do mesmo modo por todos. Não se iguala o que é dissimétrico. De novo intervém a ideologia na interpretação. Nietzsche trabalha, face à interpretação, com o paradoxo, nós, com a contradição, o equívoco. Argumentativamente, não se pode aceitar a briga corpo-a-corpo. Os sentidos estão sempre mais além. Tampouco se têm acesso direto aos processos de dessignificação. É no desvio, no outro lugar que os sentidos podem fazer sentido, que se podem descosturarem-se os processos de dessignificação. Fazer significar, de preferência, o que está silenciado. Ao desarrazoado se responde com o equívoco, a ironia, a reversão.

A ironia tem sido uma maneira de fazer significar o dessignificado, trazer à tona o incognoscível. O humor sempre se carregou dessa possibilidade. O músico que tem feito isso é Arnaldo Antunes. Uma de suas músicas é exemplar: O real resiste. Você não pode interpretar diretamente, tampouco pelo avesso. Trabalho da metáfora em alto nível de sofisticação, você tem de superar a compreensibilidade. Des-entender. “Autoritarismo não existe (....), homofobia não existe (...) fantasma, bicho papão não existe”. “É só pesadelo e depois passa”. Dizer que não existe, que tudo é ilusão e, ao mesmo tempo, afirmar: o real resiste. Seria então, possível pensar que o real, que existe, não existe? É ilusão? Mas o real resiste. E isto é significado por dizeres e imagens que atestam fortemente o real que está sendo negado. E que resiste. A linguagem, esticada ao seu limite, significa pela dessignificação como resposta ao processo de dessignificação. Veneno, contra o veneno, cura. Mas não é tão simples assim. “O real resiste/é só pesadelo e depois passa”, isso dito do fascismo que nos espia dia-a-dia é de uma beleza, uma força atordoante. Arnaldo Antunes, Nando Reis são os poetas que melhor lidam com este discurso. Outro exemplo é a música “Não vou me adaptar”, em que dizem, no começo: “Será que eu falei o que ninguém ouvia? Será que eu escutei o que ninguém dizia?” e terminam, afirmando: “Será que eu falei o que ninguém dizia/ Será que eu escutei o que ninguém ouvia?”. Pulos, derivas contínuas, desamarrando equívocos, se expondo a eles. Indistintos, confusos, de difícil compreensão. A interpretação não tem a ver com a lógica, com o racional, nem também com o fantástico, com a fantasia. É com o incompreensível, com o improvável, com o insensato, o inusitado, o espantoso, o irracional.

O discurso que enfrentamos é o que busca desfazer sentidos e se dar o tempo de aparelhar o Estado como Estado Fascista. E isso sem ironia, mas com deboche, com ignorância escancarada, com a grosseria dos que não gostam, não respeitam a vida. Não é um discurso de desconstrução, mas de destruição, cabal e simples. O que a música de Arnaldo Antunes traz fortemente? Nega para afirmar mais fortemente. Isto, na retórica, se chama lítotes (H. Lausberg, 1966[4]), ou seja, falar “não”, para afirmar o “sim”. Mais que isto, podemos compreender a lítotes como um misto de ironia e ênfase.

Já trabalhei sobre a ironia e gostaria, aqui, de fazer referência ao que acho fundamental na compreensão discursiva da ironia: a ironia produz o sentido de interrogação. Ao ironizar você está interrogando e fazendo o sujeito que é intérprete (se) interrogar. E isso vai-se dando gradualmente, em que aparece muito a repetição, a restrição do espaço de significação e a insistência. O paradoxo, de que se serve Nietzsche, está presente na música de Arnaldo Antunes, e é, também, uma das propriedades da lítotes. Contradição da contradição. Nega-se o contrário do que se quer afirmar, e, por aí, se produz o repúdio forte pelo afrontamento com a violência do que é negado. Ao mesmo tempo que, na música, Arnaldo afirma que x não existe, ele exibe imagens que mostram cenas do negado, e, no entremeio, repete o refrão “O real resiste”. A relação de existe e resiste atrapalhados por um “não”, impossibilita qualquer paralelismo, qualquer reversibilidade. E nos joga para o “onde”, o “o quê”, a interrogação que nos balança no ar ritmado pelo ressoo de palavras, sons e imagens. E por aí podemos ir além da compreensibilidade. Atravessando a dessignificação.

Penso que, nesta questão, respondi um pouco algumas outras. Mais especificamente, em relação à questão 73, sobre o discurso político atual, eu só acrescentaria algo. À pergunta “Considerar o discurso do adversário: é sustentá-lo, apreendê-lo, invertê-lo, tomá-lo ao pé da letra?”, penso que já respondi, em parte, quanto ao como responder. Não é um corpo-a-corpo. Especificamente, diria que é tudo isso, e nada disso, ao mesmo tempo, porque a questão é a argumentação, observatório do político, concebida discursivamente, ou seja, como tenho proposto, a argumentação se estrutura ideologicamente e é aí que se pode confrontar ao discurso político atual. Não respondendo a ele, mas produzindo um distanciamento, tirando dele o sentido universal, evidente, que ele tenta passar e devolvendo-o a seus compromissos com as formações discursivas em que ele produz e faz sentido (o da extrema-direita), ir além da compreensibilidade e saber trazer o que ainda não está significado. Afinal, nesses processos de silenciamento, de apagamentos, de volatilização de sentidos, não podemos esquecer que o discurso tem materialidade e minha aposta é, pela análise, conseguir chegar ao real do processo de significação. O real resiste. O real (r)existe.

Bethania e Evandra: Entendemos que as teorias são políticas, fazem política, embora essa política não seja visível para aqueles que as praticam. Como você situa a teoria da Análise do Discurso na prática de produção de conhecimento? Pêcheux, na abertura do colóquio materialidades discursivas (1980), ponderava que a Análise de Discurso poderia constituir uma intervenção no campo das ciências humanas e sociais, produzindo uma leitura-trituração dos sentidos, engajando-se na “produção de acontecimentos.” (PÊCHEUX, 2016, p. 27[5]). Você sempre recebeu orientandos de vários campos do saber e isso tem se repetido com vários colegas pesquisadores e estudiosos. Será que a Análise de Discurso praticada no Brasil estaria atingindo esse ideal formulado por Pêcheux?

Eni Orlandi: Quanto a afirmar que as teorias são políticas, fazem política, estou plenamente de acordo. É algo que me acompanha em minha formação e em minha produção.

Entre outros, meu trabalho sobre divulgação científica no laboratório de Jornalismo, fez-me analisar mais detidamente a produção e a circulação do conhecimento, e, também, refletir sobre como analistas de discurso, com seus estudos, podem afetar as políticas públicas científicas.

Na larga experiência de trabalho no programa de pós-graduação, que implantamos no sul de Minas, que tinha como núcleo a relação linguagem e sociedade, a questão da linguagem na produção da ciência era um tema de contínua pesquisa, já que o curso, Pós Graduação em Ciências da Linguagem, atraía pesquisadoras de áreas muito diferentes. Assim como muitos cursos de Análise de Discurso o fazem, no Brasil.

Mais recentemente, tenho estudado a posição e a contribuição teórica e metodológica da Análise de Discurso na prática do conhecimento, tomando como entrada a questão das Ciências Humanas e Sociais. Na realidade, pensando o percurso de Pêcheux, a questão da ciência, em geral, e das Ciências Humanas e Sociais, em particular, sempre estiveram em sua reflexão. Formações ideológicas e objetos epistemológicos sempre ocuparam seus projetos. A relação das Ciências com a linguagem está vastamente tratada, inclusive, no Vérités de la palice. A crítica que ele faz das Ciências Humanas e Sociais - que têm dificuldade em produzir a necessária ruptura entre teoria e prática, e que estão na continuidade da ideologia - corresponde à crítica que ele faz das Ciências da Linguagem que, para tratar do sujeito e da situação, tendem a fazer alianças com a psicologia, a sociologia ou a história. Daí sua crítica ao sociologismo, ao psicologismo, ao historicismo. Mais diretamente, quando ele retoma e comenta a afirmação de D. Lecourt de que “as ideologias práticas atribuem suas formas e seus limites às ideologias teóricas”, Pêcheux (1975[6]) diz que isto significa que o sistema das ideologias teóricas próprio a uma época histórica dada é determinado pelo todo complexo com dominante das formações ideológicas. E a sua busca é a de constituir a Análise de Discurso em descontinuidade com a ideologia, rompendo a relação entre teoria e prática. Isso se dá, na Análise de Discurso, passando, na análise da linguagem, da noção de função para a de funcionamento; relacionando as condições com o processo de produção do discurso. O que resulta na possibilidade de analisar discursos. Assim como a Análise de Discurso afasta-se da análise de conteúdo e propõe expor o olhar leitor à opacidade da linguagem, desfazendo a transparência, o efeito de evidência produzido pela ideologia. Daí seu trabalho com noções como a mudança de terreno, o trabalho do impensado no pensamento, as questões novas que coloca em circulação no campo da linguagem, os deslocamentos.

O que estou querendo dizer é que a Análise de Discurso, filiada a Pêcheux, é propícia à discussão da ciência e, desde sua formação, esta é uma questão sempre presente. E penso que a Análise de Discurso permite realizar isso, teórica e metodologicamente, com maestria. Pensando no campo das Ciências Humanas, e na produção de uma intervenção, como Pêcheux pretendia, a minha resposta é sim, penso que a Análise de Discurso praticada no Brasil estaria, sim, constituindo uma intervenção no campo das Ciências Humanas e Sociais, e produzindo uma “leitura-trituração” dos sentidos, engajando-se na produção de acontecimentos. Não creio que é só no Brasil que a Análise de Discurso consegue realizar esse objetivo, dada a maneira como ela se constitui, tendo como campo metafórico, como diz Pêcheux, com que debate, o campo constituído pela Linguística, a Psicanálise e a Teoria das formações sociais ( teorias da ideologia). A relação da constituição da Análise de Discurso com estes campos, traz resultados fundamentais para o estudo da linguagem, dos sujeitos, dos sentidos. E isso mexe com as ciências em geral, não só no Brasil.

Esse campo de conhecimento, o da Linguística, Psicanálise e das Teorias do Social (da(s) ideologia(s)) adquire, pelo desenvolvimento da Análise de Discurso, importância muito grande na produção das ciências em geral. De modo plural e heterogêneo. A Análise de Discurso com seus resultados, ao longo de toda sua história, foi desenvolvendo um campo de questões que se tornaram imprescindíveis para a compreensão não só do homem, da sociedade, da história, do político, mas levantou novas questões postas pela ideologia para as ciências em geral. Penso, sim, que este desenvolvimento se dá, principalmente, ou primordialmente, no Brasil, com reflexo na Análise de Discurso produzida em outros lugares. Não porque as “influenciasse”, mas porque produzimos, com nossos estudos e pesquisas, deslocamentos no campo das ciências da linguagem, em geral. Isto se tornou objeto de interesse mesmo para os que desenvolvem seus estudos em outros países.

A Análise de Discurso produz um corte epistemológico no campo das Ciências Humanas. E vou falar pelo Brasil, e pelo trabalho que faço, mesmo que eu ache que isto pode-se estar dando também em outros lugares, como resultado do que a Análise de Discurso introduziu epistemologicamente no campo das Ciências. Ninguém mais pode desconhecer, na ciência, como se constroem seus objetos. E a questão do discurso, e estou falando do objeto discurso, está investida nisso. O que proponho em minhas reflexões sobre a relação da Análise de Discurso com as Ciências Humanas e Sociais é considerar o que significa, entre as Ciências, ser uma Ciência da Interpretação. Destaco, então, a questão da interpretação para mostrar como a Análise de Discurso, com seus princípios teóricos e metodológicos, produz um corte epistemológico em que a questão da interpretação deixa de ser um obstáculo a que essas ciências, as da interpretação, tenham sua importância, justamente por não ignorarem, mas se interrogarem sobre a interpretação, enquanto ciências. Discuto a natureza dos conceitos (resíduos de metáfora, como diz Nietzsche) e sobretudo a questão, na escrita das ciências da interpretação, do lugar da metáfora. Metáfora não como figura, mas como transferência, em que podemos observar a necessária abstração que se produz com a metáfora como instrumento teórico, parte dos procedimentos analíticos das Ciências Humanas, face à interpretação, à ideologia4. A metáfora, de que falo, pensada na escrita científica, relativamente ao conceito, demanda sofisticado processo de abstração.

Penso que, no campo das ciências em geral, são as Ciências Humanas, e nelas incluo a Linguística e a Análise de Discurso, que podem qualificar as novas questões que se impõem para o conhecimento contemporâneo, na conjuntura não só política, mas também científica e tecnológica. Uma ciência é ciência no meio das outras. São heterogêneas quanto a seus métodos, seus objetos. Não se podem hierarquizar. Não se é menos ou mais cientista porque se formaliza ou não se formaliza. Porque se interpreta ou não se interpreta. A natureza dos modelos se multiplica, quando se leva em conta a linguagem, as tecnologias e a construção dos diferentes objetos científicos. As políticas de validação e legitimação da ciência devem pensar o conhecimento em seu processo de produção e toda ciência tem de ter seus critérios fundamentados em seus processos de significação, em bases epistemológicas sólidas, de acordo com seus próprios princípios, respeitando as filiações teóricas e analíticas e a especificidade de seus objetos. Porque não há objeto de conhecimento que possa ignorar a questão da produção de sentidos como parte de sua reflexão, na construção de seus objetos. Seja por procedimentos informatizados, ou através da metaforização, como nos propomos tratar a questão da interpretação na construção de um acontecimento de conhecimento.

De todo modo, já não podemos pensar as Ciências Humanas e Sociais como as pensávamos no século XIX, mas como elas existem no século XXI. E a Análise de Discurso, tendo introduzido, com sua proposta, o objeto discurso, produz um deslocamento nesse campo científico. Quando refletimos sobre a ciência em sua história, e considerando como o acontecimento científico, produzido em um momento, tem consequências sobre passos dados em outro momento, e às vezes, muito indiretamente, penso que, em nossos estudos e pesquisas, em Análise de Discurso no Brasil, demos passos fundamentais para a consecução desses objetivos, criamos as condições. E não só. Dito isso, tenho convicção que a Análise de Discurso no Brasil, em sua elaboração e desenvolvimento, certamente criou as condições para esta intervenção no campo das Ciências Humanas e Sociais, engajando-se na produção dos acontecimentos. Estou certa de que nos preparamos para isso.

Bethania e Evandra: A situação das populações indígenas é uma questão do Estado. Em seu livro Língua e conhecimento linguístico (2002[7]), você mostra que as políticas de Estado não podem negar a história dos indígenas, já que “tanto a identidade indígena quanto a sua cultura estão em movimento, sobretudo na situação de contato em que esses processos de identificação trabalham aguçadamente.” Ao que acrescenta: “Melhor, a meu ver, é propor projetos de que o índio participe ativamente como sujeito que pratica sua cultura, e se transforma, transformando-a.” (ORLANDI, 2002, p. 233[7]). Diante dessa sua proposta, pensada e elaborada em outro contexto sócio-histórico, como você vislumbra, no momento atual, as políticas públicas que permitam ao sujeito indígena praticar e transformar sua cultura? E os movimentos de resistência das populações indígenas contra políticas autoritárias, de destruição da sua população e, por sua, vez, de sua cultura?

Eni Orlandi: A questão indígena é uma questão que demanda muita atenção, reflexão e consistência teórico-política da parte tanto de linguistas, antropólogos e analistas de discurso. Porque seus trabalhos podem tocar as políticas públicas que afetam os Índios.

Trabalhei muitos anos com a questão indígena e senti-me, não raras vezes, nas várias pesquisas de campo que realizei, pouco apta, teórica e metodologicamente, para analisar, com consequência, situações de vida que eles têm de enfrentar em seu cotidiano. Relativas às suas línguas, a questões culturais, ou políticas. Fui, várias vezes, chamada a participar de processos de avaliação de projetos de educação indígena. Muitos projetos eram de excelente qualidade. A questão era que, ao ir para o mundo, ao se tornar prática, se mostravam incapazes de compreender a real necessidade concreta dos índios. Vi muita contradição, muito equívoco, pois, se existe uma questão que tem de ser pensada em estreita relação com as condições de existência, as condições de produção em que algum projeto se proponha, é a questão indígena.

Sou, em princípio, avessa à chamada “revitalização” da cultura indígena. Não considero que se deva reensinar língua indígena para o próprio índio. Porque teríamos usuários da língua e não sujeitos falantes, em seus processos de identificação, na sua filiação à memória. Tenho proposto o que tenho chamado de polilinguismo, ou seja, o reconhecimento de que as línguas são polissêmicas, e, em suas relações, elas continuam a sê-lo, ou seja, há polissemia também nas relações entre línguas, havendo derivas, deslizamentos nas e entre línguas. Nenhuma língua permanece imóvel, fora de suas possibilidades de mudança.

Projetos devem ser abertos sobretudo à participação do próprio Índio, pois, eles podem e devem participar dos projetos, como sujeitos que praticam suas culturas, suas línguas, transformando-se e transformando-as. Tudo se mexe. Não sou favorável à imposição de reensinar os índios a fazerem alguns de seus rituais já esquecidos, ou deixados. Porque, enquanto mediadores entre o índio e sua própria língua, entre o índio e sua própria cultura, entre o índio e seus próprios rituais já somos interventores, não somos transparentes. E, se se constroem alianças, elas devem representar uma relação ponderada, respeitosa à liberdade, e às decisões dos interessados.

Não considero que se possa mediar o índio com sua história, suas histórias. Mediação foi a catequese, a pacificação, a colonização, enfim. Mas, eu mesma, em uma situação de risco para os Pataxó hãhãhãi, fiz uma pesquisa, junto com a Aracy L. da Silva e o Greg Urban, para reencontrar palavras e frases da língua desses índios e fazer a cartilha que eles pediam, igual a qualquer uma que o Summer5 fazia, porque, apresentar, documentar sua língua às autoridades era um instrumento para eles serem reconhecidos como Índios e terem direito a sua terra. Pararem de serem expulsos de um lugar para outro. Já que eles viviam a diáspora tão comum entre os índios e tão destruidora de suas identidades. Não só com os Índios, mas com qualquer brasileiro, não devemos intervir, mediar, impor modelos, mas também não devemos ignorar, ficar alheios. São relações dinâmicas e que se movimentam. O que fizemos foi, a pedido deles, colocar a sua disposição nosso conhecimento.

E aí chegamos ao que considero a interrogação mais difícil de ser respondida. Identidade. Onde acaba o índio e começa o brasileiro? Como os Índios significam e se significam em suas relações? É realmente preciso manter o índio como temos o índio em nosso imaginário colonizatório, o índio aldeado, com tacape, com cocar? Para quem isso é necessário? Como estamos ouvindo o Índio quando nos dispomos a ouvi-lo? Lembro bem de meu susto quando, tendo ido às aldeias distantes dos Xerente - em uma viagem difícil porque naquele momento era bem difícil ter financiamento para trabalhar com índios - ao falar com um Índio, ouvi, na fala dele, a do linguista, a do antropólogo, a do Pastor. Ele mesmo disse, ao perguntar-lhe sobre sua língua, que quem sabia melhor sua língua era o Pastor. Nesse caso, da New Tribes. Desesperança. E surgiram em mim outras questões. Por que queremos que o índio fale uma língua que queremos autêntica dele e que não se movimenta na história? Para quem interessa essa língua? Polilinguismo: eu ouvia português na língua indígena, e ouvia língua indígena no português. Para onde vão estas línguas “puras”, imaginárias? Para os arquivos, os museus, o pastor, para o linguista? O que pensa o índio sobre isso? O que pensa o índio sobre nós, da sociedade brasileira? O que pensa o índio dele mesmo?

Nessa longa história de contato, vale dar passos, e perguntar como significam e se significam os Índios, hoje, presentes na sociedade brasileira, os que resistiram e aí estão. Os aldeados, os urbanizados, os já parte de nossa sociedade há muitos anos. São distintas as suas formas de vida. E, falando em resistência, é preciso saber que alguns grupos indígenas são mais resistentes que outros às dificuldades da cultura ocidental, capitalista. Não há homogeneidade em nada. E é isto também que é preciso levar em conta nessas reflexões.

A resposta que encontrei para muitas destas questões foi que é preciso, na relação com a cultura indígena, constituir o Índio como nosso interlocutor real, pensar a posição-sujeito índio a partir dela mesma, hoje, e sempre deixar uma distância, politicamente significada, para que haja múltiplas possibilidades de interpretação, como se propõe a Análise de Discurso. E manter um princípio, que aprendi, frequentando as aldeias: a identidade é um movimento na história. Há diferenças muito grandes entre os diferentes grupos indígenas, há muita diferença entre as diferentes situações culturais, sociais, políticas, entre os índios. Há diferentes modos de contato, entre os índios e entre eles e a sociedade que os envolve, há distintas formas de relacionar-se à própria cultura e às do mundo ocidental.

Pensando a questão do ensino, tenho convicção que muitos deles querem, e podem, manter seu ensino tradicional, inclusive da língua, no momento, na forma material, em que ela estiver, e, ao mesmo tempo terem acesso ao ensino formal como os que produzimos em nossas escolas, mas escolas de qualidade e não arremedos de escolas. Eles sabem distinguir isso. Há muitos índios já vivendo na cidade. Índios de outros países nos ensinam sobre isso. No Chile, os índios participam da vida urbana, das universidades, da vida social e política. Com suas possibilidades. Suas diferentes condições de vida. Ou seja, considerar o Índio, como todo sujeito, que significa, se significa, que é um sujeito histórico e simbólico, portanto afetado também pela ideologia. Disponibilizar, sustentar projetos, que eles possam avaliar, é algo desejável, mas não acredito que nossos organismos, nossas instituições, do Brasil ou do exterior, possam se fechar como seus únicos intérpretes. E sou crítica a qualquer discurso, de dentro e de fora do Brasil, quando falam em “proteção”, em “salvar”. A proteção tem sido um modo de intervenção, de gerenciamento, de exploração. De um lado, ouve-se a vontade de proteger, de outro, o Índio que, nesta relação, seja com o Brasil, seja com o exterior, se transveste de índio imaginário, significado pela colonização. Não basta contar como o índio faz parte da sociedade brasileira, é preciso que o Índio conte na sociedade brasileira.

Projetos, propostas, devem funcionar como deveriam, para toda a sociedade, como projetos que atendam as demandas sociais tal como elas se constituem a partir dos movimentos da sociedade, em constante transformação. No caso dos Índios, como disse, considerando a possibilidade de sua participação como sujeito que se significa na prática de sua cultura e se transforma, transformando-a, assim como sua relação com a sociedade brasileira de que ele faz parte. O Índio é um sujeito sócio-político.

Entretanto, como sabemos, também na sociedade, que consideramos ocidental, o resto, o a-mais se multiplica em sua segregação face a sociedade e a história. Esta é uma condição do capitalismo, que divide sem cessar, no caso dos Índios, primeiro por sua cultura, depois por ser um ser social como os outros, sujeitos à dissimetria, à falta, à falha do Estado em seu modo de individuar sujeitos pela articulação simbólico-política, pelas instituições e discursos.

Em geral, quando se pergunta pela questão das populações indígenas se está visando só o primeiro plano dessa divisão, a que produz as “minorias”, estas que acabam por ser significadas pelo discurso da mundialização, apagando a sua concretude histórico-social. Mas são os muitos planos de divisão que o capitalismo gera e abriga. Porque a divisão é estruturante desse sistema. Por isso, ao dizer que penso que se deva propor projetos de que o Índio participe, ou ele mesmo proponha, como sujeito que pratica sua cultura, transformando-a, no movimento da história e da sociedade, acrescentaria, não desconhecendo que se está “numa sociedade capitalista”, que tem a divisão como forma de existência, e relações de poder que desqualificam a diferença.

Não há como “ajustar-se” histórica e culturalmente. O que é necessário é, como diz L. Giard, no prefácio do A cultura no plural, de De Certeau (2005[8]), interrogar “os caminhos obscuros (...) pelos quais um grupo social consegue tirar proveito das condições impostas para inventar sua liberdade, se arrumar um espaço de movimento”. Ou, como diz Nietzsche, um espaço de manobra. É essa liberdade, esse espaço de movimento, de manobra, que deve orientar qualquer tomada de posição, considerando que toda cultura tem seus modos de apropriação, em suas trocas e suas formas de transformação. Não podemos evitar a contradição nas relações que propomos, reconhecendo as diferenças. Ninguém fica fora da história. É nela que significamos.

Para terminar, ainda uma referência à mundialização. A ideologia da mundialização não diminui a gravidade da situação indígena. Porque, tratando como trata as minorias, em geral, ela as tem significado pelo localismo, museificando-as, folclorizando-as, administrando-as de fora para dentro, submetendo-as, não raro, ao tratamento de múltiplas organizações que não são instituições do Estado. Este se estabelece por eleição, e pode ser cobrado em suas reponsabilidades sociais, o que é mais difícil com muitas destas organizações, atualmente fortemente comercializadas, pela disputa de mercado, ou mesmo pela religião. Isso, no entanto, não imobiliza as manifestações indígenas e seus movimentos de resistência. Estes que vão na direção de conquistar seu espaço social, politicamente significado pela sua cultura, tal como ela significa hoje, no real dessa história, e não no imaginário ocidental colonizador. Onde termina o Índio e começa o brasileiro? Identidade não tem início, nem fim. É só processo e movimento.

Referências

GIARD, L. Prefácio. In: DE CERTEAU, M. A cultura no plural. Tradução de Enid Abreu Dobránsky. 4ª Ed., Campinas: 2005.

LAUSBERG, H. Elementos de retórica literária. Lisboa: Gulbenkian, 1966.

NIETZCHE, F. A gaia ciência. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

PÊCHEUX, M. Les vérités da la palice: linguistique, sémantique, philosophie. Paris: François Maspero, 1975. Tradução para o português com título Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Orlandi et al. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.

PÊCHEUX, M. [1980] Abertura do colóquio. In: CONEIN, B. et al.(org.) Materialidade discursivas. Tradução de Débora Massmann. Campinas: Editora da Unicamp, 2016.

ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.

ORLANDI, E. Língua e conhecimento linguístico: para uma história das ideias no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.

ORLANDI. E. Política e silêncio na América Latina: quando se fala pelo outro. In: GRIGOLETTO, E.; DE NARDI, F. S.; DA SILVA SOBRINHO, H. F. (org.). Silêncio, memória, resistência: a política e o político no discurso. Campinas: Pontes Editores, 2019, p. 19 – 39.