Entrevista com Eni Orlandi em português brasileiro
Texto
O nome próprio Eni Orlandi é incontornável e inquestionável quando se discute a Análise de Discurso no Brasil. Como intelectual de forte presença nacional e internacional, Eni rompeu paradigmas nas universidades onde fez pesquisa, deu aulas e orientou bem mais do que uma centena de alunos de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado. Seu percurso de reflexão não se inicia exatamente quando começou a atuar na universidade. Ele começa antes, nesse ponto de origem não detectável em que o sujeito se descobre impactado pela experiência da linguagem. Eni, com seu pensamento vivo, sem servilismos, aceitando o impensado, o contraditório, e sempre provocando deslocamentos, promoveu um trabalho inaugural problematizando os processos de produção e movimento dos sentidos a partir de dois campos de reflexão teórica: a Análise de Discurso, proposta por Michel Pêcheux e a História das Ideias Linguísticas, proposta por Sylvain Auroux.
Tendo o conceito de discurso como norte teórico, e colocando-se no entremeio das teorias de linguagem, as refinadas análises realizadas por Eni promoveram inovações teóricas e formulações próprias no campo do discurso, como o conceito de silêncio, de autoria, de discurso fundador, de historicidade, de compreensão, de interpretação, e de forma material, empírica e abstrata, dentre tantos outros. Reterritorializações conceituais e a necessidade epistemológica de construção de dispositivos de análise que engendrassem outros gestos de leitura de arquivos também reorganizaram o campo das Ideias Linguísticas no Brasil, pois o lugar teórico do discurso produziu efeitos nos modos de se analisar as relações entre a história da constituição da língua nacional e a história do conhecimento linguístico no processo de construção da sociedade. Assim procedendo, Eni trabalhou na desnaturalização das evidências do que seria língua, língua nacional, língua materna, política linguística e gramática.
Eni Orlandi é professora titular aposentada da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Em seu percurso pela UNICAMP, Eni Orlandi foi fundadora do Laboratório de Estudos Urbanos, espaço de uma discussão singular, qual seja, a da linguagem e saber urbano. Além disso, também foi responsável pela organização do fundo Michel Pêcheux e pela inclusão da disciplina História das Ideias Linguisticas no currículo de graduação do bacharelado em Linguística. Coordenou projetos, sempre coletivos, que inauguraram práticas e percursos originais: de seu primeiro projeto, registrado em 1981,
Nessa inédita entrevista para a Revista da ABRALIN, Eni Orlandi narra seu encontro com a Análise de Discurso, fala sobre sua formação, suas travessias entre diferentes países, especialmente a França, e sobre o modo como a AD foi socializada, mostrando ao leitor seu percurso ímpar em implementar essa teoria aqui no Brasil; discute, ainda, o político e o ideológico nas teorias linguísticas e na discursividade das minorias, ao refletir sobre a censura, o silêncio pelo excesso, a dessignificação, ao nos trazer questionamentos sobre as políticas linguísticas pensadas para os povos indígenas, entre tantas outras questões que nos ajudam a ler a cena política brasileira atual.
Com a palavra: Eni Orlandi.
Bethania e Evandra: Você introduziu a Análise de Discurso no Brasil e fez escola. Atualmente, a Análise de Discurso se encontra disciplinarizada de norte a sul em inúmeras instituições de ensino superior brasileiras. Poderia nos relatar um pouco como se deu seu encontro com a obra do Michel Pêcheux, com o próprio Pêcheux e como foi implementar uma teoria como a Análise de Discurso, que trabalha com a produção de sentidos na relação entre o linguístico, o histórico e o ideológico, aqui no Brasil, quando ainda vivíamos uma ditadura militar no país?
Eni Orlandi: São perguntas recorrentes as que me fazem sobre meu encontro com a Análise de Discurso. Muito do que digo se repete. Mas o faço porque imagino que diferentes deslizes nas formulações, na repetição de relatos, podem significar a minha experiência de formas um pouco diferentes e que seja útil para os que se interessam pela história das ideias discursivas. De todo modo, quando procuro responder questões como essas, olho para trás e o que percebo como visível, como contável, é só a ponta de um iceberg. E é isto o mais ou menos contado, o conhecido, o esperado. Mas há muito mais que fica submerso, abaixo da superfície do dizer. Que significou muito trabalho, luta, expectativas, vitórias, frustrações. Que são pouco visíveis, pois o que se vê, desse vivido, é só o que parece suficiente para a Análise de Discurso existir. E tudo foi muito mais.
Vou começar dizendo que eu sempre cheguei, e aqui vou falar especificamente da vida intelectual, um pouco antes do que viria a se instalar institucionalmente. O que nem sempre é confortável. E foi assim meu encontro com a Linguística e com a Análise de Discurso. Quanto à relação entre o linguístico, o histórico e o ideológico, desde minha graduação em Letras, em Araraquara, envolvi-me mais diretamente com a política acadêmica e a leitura do marxismo, que me abriu as portas para muitas outras leituras, envolvendo a história, a sociedade, a ideologia e o político. Além de, nesta época, eu ter me dedicado a ler muita literatura: inglesa, portuguesa, americana, brasileira e alemã. Isto enriqueceu enormemente minha vida intelectual, afetou minhas certezas, aumentou meus questionamentos, me propiciou algumas respostas, que foram base para novas interrogações.
Minha formação em Letras foi forte, e a estrutura desses cursos, nos anos 1950/1960, anos de minha formação, permitiam uma abertura maior que a atual. No final do meu curso secundário, no curso Clássico, estudava Ciências Naturais, Matemática e Química, História Geral e disciplinas da área de Letras como latim, português, francês, inglês, espanhol e grego. Língua e Literatura.
Quando comecei minha vida “intelectual” mais adulta, na Faculdade, entrei em um contato mais sistemático com o que é político, e expandi meus estudos em Letras. O histórico e o ideológico foram entrando em minha vida intelectual por vias variadas, tanto pela leitura como pela prática política. A nossa formação, nos anos 1960, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Araraquara, reunia filosofia, disciplinas específicas de Letras, Psicologia, Educação, Economia, de modo harmonioso e instigante. E isto correspondia à nossa prática, seja intelectual, seja política.
Do mesmo modo, assim como minha busca pela Análise de Discurso já estava em minhas preocupações muito tempo antes de encontrar, em Paris, em 1969, um livro, o da AAD69, do Pêcheux, na livraria Maspero, também a Linguística, como ciência da linguagem, estava presente em minhas reflexões, antes mesmo que eu tivesse dado nome a ela. A formação que tive, em Filologia Portuguesa, na graduação em Letras Anglo-Germânicas, com o prof. Clemente II Pinho, me conduziu à Linguística. Foi este professor que me mostrou que
A Linguística já me encontrou apaixonada pela vida intelectual, pela política, pelo cuidado com o social e curiosa face à história e à ideologia. No último ano do curso, veio a ditadura, em março de 1964. Fui a oradora da turma, em 1965, e fomos “convidados” a nos retirarmos de lá. Meus mestres se dispersaram. Muitos foram para o exterior. Eu fui para São Paulo fazer minha pós-graduação, trabalhar, atuar politicamente. Não havia o curso de Linguística Geral, que eu pretendia fazer. Eu e mais dois colegas encontramos, no professor Maurer, catedrático de Filologia Românica, e professor de Linguística Indoeuropéia, apoio para a criação de um curso de pós-graduação em Linguística Geral. O curso, criado pelo prof. Maurer, a nosso pedido, em 1965, foi o primeiro curso de Linguística Geral da Universidade de São Paulo (USP). Eu fui estruturalista, e penso que toda boa teoria é política, em sentido abrangente. Aprendi muito com o estruturalismo e, principalmente, com L. Hjelmslev, que considerava a semântica uma questão antropológica.
Eu buscava uma semântica que não fosse a estruturalista. Em setembro de 1968, fui para a França como leitora, para estudar Linguística. Continuei linguista, mas esqueci que era. Estudei na Universidade de Vincennes, onde meu orientador foi o prof. L. J. Prieto, do departamento de Sociologia, e que ensinava a
Encontrei a Semântica que procurava ao encontrar-me com a Análise de Discurso, em 1969, não no curso que eu fazia, mas em uma livraria, na rue St. Sévérin, em um livro, publicado exatamente em 1969. Encontrava um autor que, vindo da Filosofia, encontrara uma forma teórica de flagrar a ideologia, pela materialidade da linguagem. Este livro de Pêcheux, sua tese de doutorado, obra fundadora da Análise de Discurso, já se anunciava, com sua força teórica e analítica, original, na proposta do estudo da necessária relação da linguagem com sua exterioridade. A noção de discurso inaugura, naquele momento, um novo território nos estudos da linguagem, em que a noção de efeito de sentidos, efeito metafórico se juntam às de condições e processos de produção, propondo, por aí, novos procedimentos de análise da linguagem. Na apresentação do livro, já se ressalta a importância da noção de discurso como processo, trazida pelo seu autor, cuja análise exige o recurso a um procedimento original que se distingue dos métodos frequenciais ou temáticos da análise de conteúdo clássica, sem, no entanto, fazer uso dos esquemas sintático-semânticos pressupostos. Abre-se um campo novo nas Ciências da Linguagem e, também, do interesse dos que trabalham nas Ciências Humanas e Sociais. M. Pêcheux, quando voltava de suas reuniões e trabalho, dizia que “incomodava”. E o fazia porque tirava do lugar o já estabelecido sobre a ideologia, mexia com os métodos de análise de linguagem, punha questões que tocavam o impensado.
Desde 1970, em meu retorno ao Brasil, com o país vivendo sob ditadura, pratiquei a Análise de Discurso, na Linguística da USP, além do curso que dei para tradutores e intérpretes, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, antes mesmo que houvesse uma disciplina com o nome de Análise de Discurso, em nenhuma das instituições. Eu lia o
Só conheci Pêcheux, em 1982, em um congresso de ciência política no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), ocasião em que ele falou dos furos da ideologia, ou melhor, de que a ideologia é um ritual com falhas. E conversamos em um barzinho próximo ao IUPERJ. Ele me aconselhou a não ir a Paris naquele momento e a aprofundar em meu trabalho. Me sugeriu a leitura do
Em meu retorno a Paris, já em 1984, reencontrei a Análise de Discurso, em um Colóquio sobre Orwell, organizado por Pierre Achard, sobre Sociolinguística e Análise de Discurso, em que este “e” era um traço de união e, ao mesmo tempo, uma interrogação. Foi neste Colóquio que vi, ouvi, pela primeira vez, F. Gadet (que me vendeu o primeiro número da revista LinX), P. Sériot, D. Maingueneau. E fui convidada, por P. Achard e F. Leimdorfer, para uma reunião de trabalho, em que apresentei minha reflexão sobre o discurso das lideranças indígenas e o discurso da colonização, no Brasil, trabalhando com Análise de Discurso, explicitamente, e deslocando tanto o discurso da antropologia, sobre a questão indígena, como a questão étnica tradicional, e pondo à mostra os processos de significação que se instalam com a colonização. Fui interrompida muitas vezes por uma pesquisadora do grupo, que teimava que a Etnolinguística ou Bakhtine podiam dar conta desse assunto. Eu insisti nos princípios teóricos da Análise de Discurso e fui apoiada por P. Achard, que garantiu minha fala até o final. P. Achard, e os organizadores, publicou meu texto deste Congresso sobre Orwell, e, pouco mais tarde, publicou, na revista
Pêcheux tinha me dado o endereço do Laboratório de Psicologia Social, dirigido por Pagès
Em 1987, voltei à Paris, para meu pós-doutorado, na Universidade de Paris VII. Nenhuma universidade oferecia cursos de análise de discurso, na França, naquele momento. Fiz um seminário sobre Análise de Discurso, no Programa de Seminários, na Maison des Sciences de l´Homme (MSH), em 1987, convidada por P. Achard, que era, então, o diretor da revista
Como frequentava diariamente a Biblioteca Nacional, fui apresentada, na Biblioteca, a J.J. Courtine. Ele me deu grande número de textos, publicados por ele e colegas da equipe de Pêcheux, textos que eu usei em aulas e depositei, mais tarde, no nosso CEDU, no Laboratório de Estudos Urbanos (LABEURB-Unicamp), no Fundo Michel Pêcheux. Foi nessa época do meu pós-doutorado, em Paris VII, que Gadet me apresentou à Madame Pêcheux, e a um grupo muito grande de pesquisadores que tinham sido do grupo de Pêcheux no
Gostaria de deter-me sobre esta relação de trabalho com os colegas franceses, agora de uma perspectiva mais ampla. Não só com o grupo de Paris, mas, também outros grupos como o de Praxématique, de Montpellier. Minha relação com a França se inaugurou nos anos de 1968, quando fui leitora em Montpellier, e a França, sobretudo Paris, se tornou uma extensão da minha vida no Brasil. O que alinhavava tudo era meu trabalho incessante. Em Campinas, trabalhava, formava muitos pesquisadores, instituía a Análise de Discurso e a fazia circular. Viajava muito, pelo Brasil. Em Paris, trabalhava muito, e, muitos de meus colegas, além de me colocarem em contato com o que era feito nas ciências, sobretudo nas Ciências da Linguagem, não só em Paris, mas no exterior, em geral, também me incluíam em programas que eu chamaria sócioculturais, políticos, importantes. Uns reservavam lugares no Teatro, toda vez em que eu ia. Outros me convidavam para belíssimas exposições de arte e espetáculos de música. Alguns gostavam de me apresentar lugares menos expostos, em Paris, em que havia alguma forma de arte ou de acontecimento político e cultural. Leitura de peças. Visitas a casa de autores de romances, de escultores, de pintores etc. Lugares em que havia pequenas exposições permanentes. Outros, me convidavam para espetáculos de dança. Também ia a reuniões de trabalho em bistrôs especialíssimos. Mas, a maior parte das reuniões de trabalho se deram, no início, com vários dos pesquisadores do grupo de M. Pêcheux, no que eles chamavam de Café Théorique e que era onde se reuniam, quando a equipe ainda era um grupo, com Pêcheux, no CNRS: Le Rostand, em frente ao Luxemburgo. Ali também tive inúmeras reuniões, com H. Parret, para a organização do Colóquio de Urbino, sobre Heterogeneidade e Silêncio. Foi ali que fui apresentada a colegas ainda não conhecidos. Estive, muitas vezes, em jantares menos formais, em casa de colegas, com quem trabalhei mais frequentemente e com quem trabalhava com mais proximidade. Era a ocasião de conhecer outros colegas. Também me reunia com pessoas que iam assistir meus seminários ou conferências e que vinham de instituições e países diferentes. Lembro de uma argelina, amiga de uma alemã, com quem eu me encontrava toda vez que ia a Paris, assim como de uma jovem malgaxe e de um amigo de cultura cigana que me mostraram como importava meu trabalho em relação a tantos colegas não franceses que se encontravam em minhas apresentações. Ocasião de encontros, de discussões, de projetos. Intelectuais e políticos. E assim fui tendo contato com um grande e diversificado grupo de intelectuais. Na região da Universidade de Paris III, eram muitos os encontros de trabalho em cafés ou restaurantes que nos serviam para “home office”. E muitos colegas me apresentaram livrarias ou bibliotecas que me trouxeram muita matéria de reflexão. Livros raros ou em edições fac-similares. Atividade intensa e que resultava em tanto ou mais trabalho no Brasil, mesmo que não houvesse um curso específico de Análise de Discurso, em Paris, naquela época. Conhecimento, cultura, arte, política se misturavam. Era sempre um grande passeio pela linguagem a cada ida a Paris. Ou a Lausanne, onde também trabalhei, com frequência, com P. Sériot, com quem fui à antiga URSS, ou Lyon III, onde trabalhei com os especialistas em Francofonia, que me levaram ao Canadá, ou Fontenay-aux-Roses, ou Lyon, onde desenvolvi um grande trabalho de equipe, financiado pelo Acordo Capes/Cofecub, em História das Ideias Linguísticas.
Todas estas minhas atividades e contatos reuniram colegas, mas também foram a ocasião da estada de muitos alunos de pós-graduação, na França. As reuniões da História das Ideias Linguísticas começaram em Paris, na Universidade de Paris VII, e na rue d´Ulm, onde se davam as reuniões de trabalho, seminários, conferências, mesas-redondas, seguidas de almoços, na rue St Jacques, com colegas de muitos países, em que se discutiam as teorias da linguagem amplamente, as políticas de língua e assuntos relacionados. Foram muitos anos de trabalho e de convivência, sobretudo com S. Auroux e F. Mazière, E. Bonvini, S. Delesalle, J-Cl. Chevalier. E sempre coloquei como objetivo a elaboração da Análise de Discurso. Isto se dava, mesmo nas longas conversas com S. Auroux, na universidade de Paris VII, na formulação do projeto que ia colocar as nossas questões da colonização, da língua e do conhecimento linguístico, na pauta do amplo grupo de pesquisa internacional que Auroux dirigia. Também desenvolvi minha pesquisa em bibliotecas em Roma, para a escrita do meu livro
Quanto a implementar uma teoria como a Análise de Discurso no Brasil, no período da ditadura militar, foi parte da minha vida intelectual e fiz o necessário: não abandonei minhas escolhas e fui em frente. Muita gente se interessou pela Análise de Discurso. Os que eram contra, em geral, estranhavam que o político, a ideologia, a historicidade, fizessem parte dos estudos da linguagem. Penso que o que importa é ter uma relação real com o trabalho. Tenho a convicção de que os obstáculos podem ser – e, para mim, sempre foram - muitos, e vêm e passam, mas o trabalho, se for real, fica. Atuei politicamente como pude e, também, coloquei meu empenho em que a Análise de Discurso, que eu fazia, trouxesse a possibilidade de mudar alguma coisa. Eu lia os autores, que encontrava, de Análise de Discurso ou correlatos, e jamais deixei de procurar pensar por mim mesma, no caminho que ia construindo com minhas opções e trabalho. Sempre pensando a conjuntura intelectual, social e política no Brasil. Em uma apresentação que fiz, há algum tempo, disse que a voz de Elis Regina era a política que ela fazia. O meu trabalho sempre foi minha voz política. Ao lado de outras práticas políticas, pois, penso que não se deve confundir Análise de Discurso com militância pura e simples.
A Análise de Discurso é antes de tudo uma ciência da interpretação, que trabalha com processos de significação. Não só do discurso político. O que ela produz como análise pode, por outro lado, nos tornar melhores em nossa capacidade de praticarmos o político. Mas a posição-sujeito analista e a posição-sujeito militante têm suas especificidades e se diferenciam. Gosto muito de fazer o trabalho que faço. Desde muito cedo me interrogo sobre a linguagem. Me significo com meu trabalho. Com uma inclinação especial pela escrita. E considero, com clareza, que o lugar da Análise de Discurso que pratico, que praticamos, institucionalmente, é no departamento de Linguística. Lutei por isso.
Volto-me, agora, para um outro aspecto que considero importante no trabalho intelectual: a
Para efeitos de institucionalização, mas não só, como veremos em seguida, foi importante o apoio de Madame Pêcheux e dos pesquisadores que fizeram parte do grupo de Pêcheux, no CNRS, pelo lado europeu. E, no Brasil, foi essencial o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Durante anos seguidos, e aos poucos, foi possível trazer todos os pesquisadores deste grupo com quem tinha contato. Foram, inicialmente, quinze pesquisadores. Um a um, a Fapesp concedeu financiamento para que todos viessem à Unicamp e dessem cursos, fizessem conferências, não só para os alunos de nossos cursos, mas também outros interessados em Análise de Discurso. A situação era muito paradoxal, eu diria. Já não existia o grupo de Pêcheux no CNRS. Quando eu ia à França, poucos ainda se identificavam como analistas de discurso. Muitos até recusavam essa denominação. Ou eram linguistas, ou historiadores, ou sociolinguistas, ou psicanalistas, ou filósofos. Mas eu tinha excelente convivência com todos eles, insistindo na Análise de Discurso que era minha área de conhecimento, e, além das conversas e reuniões de trabalho, feitas, como disse, em cafés, na Biblioteca da MSH, raramente nas universidades, pois o espaço de trabalho era exíguo, eles me convidavam para fazer conferências, participar de seminários e falar em Encontros, além de dar cursos, nas universidades. Abriam espaços para meu trabalho. Quando vinham ao Brasil, além de falarem de seus interesses atuais falavam de discurso. Mesmo porque, em geral, no que faziam, estava presente a passagem pela Análise de Discurso. E eles estavam interessados em falar da experiência que tiveram no grupo de M. Pêcheux, no CNRS. Foi assim que penso ter dado sentido à Análise de Discurso dos dois lados do Atlântico. Por outro lado, já era mais difícil, quando enviava alunos para a França, para cursos específicos em Análise de Discurso, pois não existiam. Mas os alunos, que foram, souberam realizar excelentes programas de trabalhos, em qualquer das instituições em que estiveram, e nossos colegas franceses foram extremamente responsáveis na relação com todos. Só mais tarde, começaram a aparecer de novo, e já em outro momento de seu desenvolvimento, cursos em Análise de Discurso.
Madame Pêcheux colaborou com nosso programa de implantação e institucionalização da Análise de Discurso da filiação a Pêcheux, nos disponibilizando textos e liberando a tradução e publicação deles no Brasil. Assim como colegas nos cederam seus textos para tradução no Brasil. Essas iniciativas auxiliaram na
Mas há o outro lado desta questão que é o da
Mais recentemente, tem uma palavrinha chave que toma o lugar da socialização, na relação do conhecimento com a sociedade: é a palavra “empoderamento”
Mas voltemos ao processo de socialização da Análise de Discurso que procurei, procuro, praticar. Estou insistindo nesta palavra, porque, em geral, se fala mais da institucionalização da Análise de Discurso. E, é preciso distinguir institucionalizar e socializar. A institucionalização, no sistema capitalista, se faz através das instituições e discursos administrativos, e é necessária para que uma forma de conhecimento tenha um lugar específico no campo da ciência, e se possa disponibilizar para a formação e a pesquisa. Já a socialização é outra coisa. Com a socialização, não se intermedia as relações só pelas instituições, mas pela produção de condições de acessibilidade, de politização do campo de conhecimento. Ao trazer os pesquisadores do grupo de Pêcheux, ou disponibilizar a todos interessados os “bens” culturais e científicos aos quais eu tinha acesso, eu socializava a prática da Análise de Discurso, e a tornava permeável à sociedade em que vivo. Para mim, é uma necessidade social e um dever político dos que têm acesso à ciência. Eu poderia parafrasear Pêcheux, em um deslocamento do que ele diz, e afirmar que é “uma questão ética, uma questão de responsabilidade”. E foi assim que não fiquei apenas ao sabor dos jogos da instituição, nem a Análise de Discurso que eu pratico se fechou intra muros. Nós nos socializamos. Conceitos que formulei, noções que trabalhei se espalharam pelo Brasil. E mesmo para fora. São de uso social. Existem independentemente. É isso socialização.
Bethania e Evandra: Em sua obra
Eni Orlandi: A pergunta inicia dizendo que em meu livro,
Deste ponto de vista, e aí lembro o que denomino de
Lembro ainda que censura não existe só na ditadura militar. Esta é só um exemplar da presença da censura, na análise que fiz, sobretudo das músicas, em uma certa conjuntura política. Mas a política do silêncio - seja constitutiva ou local, como as denomino - é uma constante, que se apresenta em qualquer conjuntura que for favorável, que crie as condições para o silenciamento. Basta lembrar o que acontece hoje com exposição de pinturas, com pichações, ou caricaturas de humor, ou textos, que são censurados a todo momento. E até mesmo cursos inteiros de pós-graduação que são silenciados.
Minha posição teórica é que se há censura, há também movimento de sentidos, e os sentidos censurados migram para outros objetos simbólicos. E significam. Relação que não se desfaz entre o silêncio fundador e a política do silêncio. Onde está a censura está a resistência.
Passo a comentar a segunda parte desta questão que acho extremamente importante para observarmos as discursividades atuais em suas formas de silenciamento e os consequentes possíveis modos de resistência. Para o analista de discurso, resta a responsabilidade de esclarecer, por às claras, com seu dispositivo teórico e analítico, o que se apresenta atualmente. Desde o início de meus trabalhos com o silêncio, fazia parte de minhas preocupações não opor o “ruído” ao silêncio. Porque, no barulho, também há silenciamento. Ruído aí significando “alarido” de vozes, a presença constante da linguagem em paredes, em panfletos, em vídeos, em rede, por toda a parte. Uma enxurrada constante. Excesso, algazarra que acaba por produzir a insignificância. A indiferença à significação.
Somos, desde muito tempo, e todo o tempo, alvejados por linguagens de todos os tipos, tamanhos e cores. E, por outro lado, penso, como E. Dickinson, que “silêncio é infinidade”. Esta é a abertura do simbólico, o silêncio pensado como silêncio fundador, que se abre para o horizonte de sentidos. Mas, não esqueçamos, há também o que chamo de silenciamento, o que fecha, divide, silencia. Respondendo a sua pergunta mais diretamente, nós não havíamos conhecido a extrema-direita no poder, explicitamente. A direita, sim. Já tínhamos experiência vasta com isso. As ditaduras também. O inusitado, eu diria, foi nos defrontarmos com a extrema-direita. O nazismo, o fascismo são tão inaceitáveis, grotescos mesmo, que parecem inconcebíveis. Principalmente se os considerarmos a partir da posição-sujeito de uma formação discursiva de esquerda. No entanto, foi eleito um presidente de extrema-direita, dizendo com todas as palavras ser de extrema-direita. Passamos do inusitado para o que, para nós, era inconcebível. Mas existente. Isso é real. Impossível que não seja assim. Olhando, agora, pela perspectiva analítica, podemos dizer que, no(s) discurso(s) político(s) atual(is), são muitas as formas de silêncio e de silenciamento. Já falei do que chamei de
Gostaria de falar, agora, do silenciamento produzido pelo excesso, pelo ruído incessante das redes, e das falas que buscam atrair a atenção para distrair a escuta mais apurada dos sentidos que vêm junto, para fazer “passar a boiada” da extrema-direita. Há, como já disse, insegurança nas palavras, pela relação com o silenciamento que vem nelas.
Há guerra de sentidos, numa retórica que tenho chamado de “retórica da vantagem”: qualquer besteira vale para “bagunçar” sentidos, criar a confusão, o mal-entendido, a contradição, o desarrazoado. Porque essas são condições favoráveis para a sobrevivência do discurso da extrema-direita. Nessa conjuntura, o processo dominante, creio, é o da produção de
A superação da compreensibilidade é a recusa de que se possa ser compreendido universalmente. Quando Nietzsche (idem
O que é preciso é distanciar-se da situação na própria situação; diz Nietzsche “eu sinto a distância para ser diferente em cada entendimento, igualmente inconfundível, e para estar acima em comparação com cada elemento opaco”. É também Nietzsche que diz que a vida não é argumento. E as minorias muitas vezes argumentam pela vida. A formação discursiva dominante dessignifica este argumento. Não se é compreendido univocamente por todos, em nenhuma circunstância. A linguagem pode sim soar de modo estranho. Também Pêcheux nos diz isso, quando fala de reversão e deslocamento. O elogio da in-compreensão. O que diz Nietszche não nega a vida, mas seu uso como argumento. Não se pode esperar uma compreensão universal. Isso, a meu ver, não desqualifica o(s) discurso(s) das minorias, ao contrário, prepara para a diferença, para o incompreensível, e para a ideia de que um argumento não é entendido do mesmo modo por todos. Não se iguala o que é dissimétrico. De novo intervém a ideologia na interpretação. Nietzsche trabalha, face à interpretação, com o paradoxo, nós, com a contradição, o equívoco. Argumentativamente, não se pode aceitar a briga corpo-a-corpo. Os sentidos estão sempre mais além. Tampouco se têm acesso direto aos processos de dessignificação. É no desvio, no
A ironia tem sido uma maneira de fazer significar o dessignificado, trazer à tona o incognoscível. O humor sempre se carregou dessa possibilidade. O músico que tem feito isso é Arnaldo Antunes. Uma de suas músicas é exemplar:
O discurso que enfrentamos é o que busca desfazer sentidos e se dar o tempo de aparelhar o Estado como Estado Fascista. E isso sem ironia, mas com deboche, com ignorância escancarada, com a grosseria dos que não gostam, não respeitam a vida. Não é um discurso de desconstrução, mas de destruição, cabal e simples. O que a música de Arnaldo Antunes traz fortemente? Nega para afirmar mais fortemente. Isto, na retórica, se chama lítotes (H. Lausberg, 1966
Já trabalhei sobre a ironia e gostaria, aqui, de fazer referência ao que acho fundamental na compreensão discursiva da ironia: a ironia produz o sentido de
Penso que, nesta questão, respondi um pouco algumas outras. Mais especificamente, em relação à questão 7
Bethania e Evandra: Entendemos que as teorias são políticas, fazem política, embora essa política não seja visível para aqueles que as praticam. Como você situa a teoria da Análise do Discurso na prática de produção de conhecimento? Pêcheux, na abertura do colóquio
Eni Orlandi: Quanto a afirmar que as teorias são políticas, fazem política, estou plenamente de acordo. É algo que me acompanha em minha formação e em minha produção.
Entre outros, meu trabalho sobre divulgação científica no laboratório de Jornalismo, fez-me analisar mais detidamente a produção e a circulação do conhecimento, e, também, refletir sobre como analistas de discurso, com seus estudos, podem afetar as políticas públicas científicas.
Na larga experiência de trabalho no programa de pós-graduação, que implantamos no sul de Minas, que tinha como núcleo a relação linguagem e sociedade, a questão da linguagem na produção da ciência era um tema de contínua pesquisa, já que o curso, Pós Graduação em Ciências da Linguagem, atraía pesquisadoras de áreas muito diferentes. Assim como muitos cursos de Análise de Discurso o fazem, no Brasil.
Mais recentemente, tenho estudado a posição e a contribuição teórica e metodológica da Análise de Discurso na prática do conhecimento, tomando como entrada a questão das Ciências Humanas e Sociais. Na realidade, pensando o percurso de Pêcheux, a questão da ciência, em geral, e das Ciências Humanas e Sociais, em particular, sempre estiveram em sua reflexão.
O que estou querendo dizer é que a Análise de Discurso, filiada a Pêcheux, é propícia à discussão da ciência e, desde sua formação, esta é uma questão sempre presente. E penso que a Análise de Discurso permite realizar isso, teórica e metodologicamente, com maestria. Pensando no campo das Ciências Humanas, e na produção de uma intervenção, como Pêcheux pretendia, a minha resposta é sim, penso que a Análise de Discurso praticada no Brasil estaria, sim, constituindo uma intervenção no campo das Ciências Humanas e Sociais, e produzindo uma “leitura-trituração” dos sentidos, engajando-se na produção de acontecimentos. Não creio que é só no Brasil que a Análise de Discurso consegue realizar esse objetivo, dada a maneira como ela se constitui, tendo como campo metafórico, como diz Pêcheux, com que debate, o campo constituído pela Linguística, a Psicanálise e a Teoria das formações sociais ( teorias da ideologia). A relação da constituição da Análise de Discurso com estes campos, traz resultados fundamentais para o estudo da linguagem, dos sujeitos, dos sentidos. E isso mexe com as ciências em geral, não só no Brasil.
Esse campo de conhecimento, o da Linguística, Psicanálise e das Teorias do Social (da(s) ideologia(s)) adquire, pelo desenvolvimento da Análise de Discurso, importância muito grande na produção das ciências em geral. De modo plural e heterogêneo. A Análise de Discurso com seus resultados, ao longo de toda sua história, foi desenvolvendo um campo de questões que se tornaram imprescindíveis para a compreensão não só do homem, da sociedade, da história, do político, mas levantou novas questões postas pela ideologia para as ciências em geral. Penso, sim, que este desenvolvimento se dá, principalmente, ou primordialmente, no Brasil, com reflexo na Análise de Discurso produzida em outros lugares. Não porque as “influenciasse”, mas porque produzimos, com nossos estudos e pesquisas, deslocamentos no campo das ciências da linguagem, em geral. Isto se tornou objeto de interesse mesmo para os que desenvolvem seus estudos em outros países.
A Análise de Discurso produz um corte epistemológico no campo das Ciências Humanas. E vou falar pelo Brasil, e pelo trabalho que faço, mesmo que eu ache que isto pode-se estar dando também em outros lugares, como resultado do que a Análise de Discurso introduziu epistemologicamente no campo das Ciências. Ninguém mais pode desconhecer, na ciência, como se constroem seus objetos. E a questão do discurso, e estou falando do
Penso que, no campo das ciências em geral, são as Ciências Humanas, e nelas incluo a Linguística e a Análise de Discurso, que podem qualificar as novas questões que se impõem para o conhecimento contemporâneo, na conjuntura não só política, mas também científica e tecnológica. Uma ciência é ciência no meio das outras. São heterogêneas quanto a seus métodos, seus objetos. Não se podem hierarquizar. Não se é menos ou mais cientista porque se formaliza ou não se formaliza. Porque se interpreta ou não se interpreta. A natureza dos modelos se multiplica, quando se leva em conta a linguagem, as tecnologias e a construção dos diferentes objetos científicos. As políticas de validação e legitimação da ciência devem pensar o conhecimento em seu
De todo modo, já não podemos pensar as Ciências Humanas e Sociais como as pensávamos no século XIX, mas como elas existem no século XXI. E a Análise de Discurso, tendo introduzido, com sua proposta, o objeto
Bethania e Evandra: A situação das populações indígenas é uma questão do Estado. Em seu livro
Eni Orlandi: A questão indígena é uma questão que demanda muita atenção, reflexão e consistência teórico-política da parte tanto de linguistas, antropólogos e analistas de discurso. Porque seus trabalhos podem tocar as políticas públicas que afetam os Índios.
Trabalhei muitos anos com a questão indígena e senti-me, não raras vezes, nas várias pesquisas de campo que realizei, pouco apta, teórica e metodologicamente, para analisar, com consequência, situações de vida que eles têm de enfrentar em seu cotidiano. Relativas às suas línguas, a questões culturais, ou políticas. Fui, várias vezes, chamada a participar de processos de avaliação de projetos de educação indígena. Muitos projetos eram de excelente qualidade. A questão era que, ao ir para o mundo, ao se tornar prática, se mostravam incapazes de compreender a real necessidade concreta dos índios. Vi muita contradição, muito equívoco, pois, se existe uma questão que tem de ser pensada em estreita relação com as condições de existência, as condições de produção em que algum projeto se proponha, é a questão indígena.
Sou, em princípio, avessa à chamada “revitalização” da cultura indígena. Não considero que se deva reensinar língua indígena para o próprio índio. Porque teríamos
Projetos devem ser abertos sobretudo à participação do próprio Índio, pois, eles podem e devem participar dos projetos, como sujeitos que praticam suas culturas, suas línguas, transformando-se e transformando-as. Tudo se mexe. Não sou favorável à imposição de reensinar os índios a fazerem alguns de seus rituais já esquecidos, ou deixados. Porque, enquanto
Não considero que se possa mediar o índio com sua história, suas histórias. Mediação foi a catequese, a pacificação, a colonização, enfim. Mas, eu mesma, em uma situação de risco para os Pataxó hãhãhãi, fiz uma pesquisa, junto com a Aracy L. da Silva e o Greg Urban, para reencontrar palavras e frases da língua desses índios e fazer a cartilha que eles pediam, igual a qualquer uma que o Summer
E aí chegamos ao que considero a interrogação mais difícil de ser respondida. Identidade. Onde acaba o índio e começa o brasileiro? Como os Índios significam e se significam em suas relações? É realmente preciso manter o índio como temos o índio em nosso imaginário colonizatório, o índio aldeado, com tacape, com cocar? Para quem isso é necessário? Como estamos ouvindo o Índio quando nos dispomos a ouvi-lo? Lembro bem de meu susto quando, tendo ido às aldeias distantes dos Xerente - em uma viagem difícil porque naquele momento era bem difícil ter financiamento para trabalhar com índios - ao falar com um Índio, ouvi, na fala dele, a do linguista, a do antropólogo, a do Pastor. Ele mesmo disse, ao perguntar-lhe sobre sua língua, que quem sabia melhor sua língua era o Pastor. Nesse caso, da New Tribes. Desesperança. E surgiram em mim outras questões. Por que queremos que o índio fale uma língua que queremos autêntica dele e que não se movimenta na história? Para quem interessa essa língua? Polilinguismo: eu ouvia português na língua indígena, e ouvia língua indígena no português. Para onde vão estas línguas “puras”, imaginárias? Para os arquivos, os museus, o pastor, para o linguista? O que pensa o índio sobre isso? O que pensa o índio sobre nós, da sociedade brasileira? O que pensa o índio dele mesmo?
Nessa longa história de contato, vale dar passos, e perguntar como significam e se significam os Índios,
A resposta que encontrei para muitas destas questões foi que é preciso, na relação com a cultura indígena, constituir o Índio como nosso interlocutor real, pensar a posição-sujeito índio a partir dela mesma, hoje, e sempre deixar uma distância, politicamente significada, para que haja múltiplas possibilidades de interpretação, como se propõe a Análise de Discurso. E manter um princípio, que aprendi, frequentando as aldeias: a identidade é um movimento na história. Há diferenças muito grandes entre os diferentes grupos indígenas, há muita diferença entre as diferentes situações culturais, sociais, políticas, entre os índios. Há diferentes modos de contato, entre os índios e entre eles e a sociedade que os envolve, há distintas formas de relacionar-se à própria cultura e às do mundo ocidental.
Pensando a questão do ensino, tenho convicção que muitos deles querem, e podem, manter seu ensino tradicional, inclusive da língua, no momento, na forma material, em que ela estiver, e, ao mesmo tempo terem acesso ao ensino formal como os que produzimos em nossas escolas, mas escolas de qualidade e não arremedos de escolas. Eles sabem distinguir isso. Há muitos índios já vivendo na cidade. Índios de outros países nos ensinam sobre isso. No Chile, os índios participam da vida urbana, das universidades, da vida social e política. Com suas possibilidades. Suas diferentes condições de vida. Ou seja, considerar o Índio, como todo sujeito, que significa, se significa, que é um sujeito histórico e simbólico, portanto afetado também pela ideologia. Disponibilizar, sustentar projetos, que eles possam avaliar, é algo desejável, mas não acredito que nossos organismos, nossas instituições, do Brasil ou do exterior, possam se fechar como seus únicos intérpretes. E sou crítica a qualquer discurso, de dentro e de fora do Brasil, quando falam em “proteção”, em “salvar”. A proteção tem sido um modo de intervenção, de gerenciamento, de exploração. De um lado, ouve-se a vontade de proteger, de outro, o Índio que, nesta relação, seja com o Brasil, seja com o exterior, se transveste de índio imaginário, significado pela colonização. Não basta contar como o índio faz parte da sociedade brasileira, é preciso que o Índio
Projetos, propostas, devem funcionar como deveriam, para toda a sociedade, como projetos que atendam as demandas sociais tal como elas se constituem a partir dos movimentos da sociedade, em constante transformação. No caso dos Índios, como disse, considerando a possibilidade de sua participação como sujeito que se significa na prática de sua cultura e se transforma, transformando-a, assim como sua relação com a sociedade brasileira de que ele faz parte. O Índio é um sujeito sócio-político.
Entretanto, como sabemos, também na sociedade, que consideramos ocidental, o resto, o a-mais se multiplica em sua segregação face a sociedade e a história. Esta é uma condição do capitalismo, que divide sem cessar, no caso dos Índios, primeiro por sua cultura, depois por ser um ser social como os outros, sujeitos à dissimetria, à falta, à falha do Estado em seu modo de individuar sujeitos pela articulação simbólico-política, pelas instituições e discursos.
Em geral, quando se pergunta pela questão das populações indígenas se está visando só o primeiro plano dessa divisão, a que produz as “minorias”, estas que acabam por ser significadas pelo discurso da mundialização, apagando a sua concretude histórico-social. Mas são os muitos planos de divisão que o capitalismo gera e abriga. Porque a divisão é estruturante desse sistema. Por isso, ao dizer que penso que se deva propor projetos de que o Índio participe, ou ele mesmo proponha, como sujeito que pratica sua cultura, transformando-a, no movimento da história e da sociedade, acrescentaria, não desconhecendo que se está “numa sociedade capitalista”, que tem a divisão como forma de existência, e relações de poder que desqualificam a diferença.
Não há como “ajustar-se” histórica e culturalmente. O que é necessário é, como diz L. Giard, no prefácio do
Para terminar, ainda uma referência à mundialização. A ideologia da mundialização não diminui a gravidade da situação indígena. Porque, tratando como trata as minorias, em geral, ela as tem significado pelo localismo, museificando-as, folclorizando-as, administrando-as de fora para dentro, submetendo-as, não raro, ao tratamento de múltiplas organizações que não são instituições do Estado. Este se estabelece por eleição, e pode ser cobrado em suas reponsabilidades sociais, o que é mais difícil com muitas destas organizações, atualmente fortemente comercializadas, pela disputa de mercado, ou mesmo pela religião. Isso, no entanto, não imobiliza as manifestações indígenas e seus movimentos de resistência. Estes que vão na direção de conquistar seu espaço social, politicamente significado pela sua cultura, tal como ela significa hoje, no real dessa história, e não no imaginário ocidental colonizador. Onde termina o Índio e começa o brasileiro? Identidade não tem início, nem fim. É só processo e movimento.
Foi nesse laboratório que Pêcheux escreveu sua tese que resultou no livro AAD69. Ele a defendeu em 1968. Mas foi na
“Ação de se tornar poderoso, de passar a possuir poder, autoridade, domínio sobre; exemplo: processo de
N.E: Havíamos mandado para a autora um conjunto de questões mais amplas, de modo que ela poderia escolher quais responder. Assim, a questão número 7 a que a autora se refere aqui é a seguinte: No Brasil, tendo em vista o discurso político que vem circulando sobretudo a partir das eleições de 2018, o qual, para além do jogo sempre jogado de desdizer o outro, tem produzido uma discursividade do desdém e da ameaça, que orientações você daria para o trabalho com a análise do discurso político atual? Quais as contribuições que os analistas de discurso podem dar para compreendermos esse momento? Ou ainda, retomando uma pergunta de Pêcheux (2016, p. 19
Em trabalho exposto no Labeurb, sobre a construção de artefatos que nos medeiam frente a nossos objetos de conhecimento, nossas pesquisas de campo, tendo a linguagem como constitutiva, considero o que chamamos
N.E.: A referência é ao Summer Instituto of Linguistics (SIL).