Queer: o insulto, os movimentos e as linguísticas

Danillo da Conceição Pereira Silva

Resumo

Esta resenha crítica apresenta as principais questões debatidas durante a mesa “Linguística Aplicada a partir de paradigmas queer”, realizada no curso do “Abralin ao Vivo”. Para tanto, apresento uma breve contextualização acerca da trajetória dos paradigmas queer, enquanto crítica antiessencialista às normalizações de gênero, sexualidade e suas interseccionalidades. Em seguida, as discussões delineiam um escopo teórico-analítico da atual fase da Linguística Queer e seus principais interesses de pesquisa. Por fim, são apresentados os efeitos das aproximações possíveis entre paradigmas queer e perspectivas transgressivas e indisciplinares de Linguística Aplicada. Participaram da discussão as professoras Elizabeth Sara Lewis (UNIRIO), Luciana Rocha (Colégio Pedro II) e Iran Melo (UFRPE), e a mediação foi realizada pelas professoras Adriana Carvalho (UFRRJ) e Paula Szundy (UFRJ).

Paradigmas queer: o insulto, os movimentos e as teorias

De um ponto de vista histórico bastante suscinto, as teorias queer correspondem a um conjunto de estudos críticos transdisciplinares acerca dos processos de normalização social, especialmente em termos de gênero e de sexualidade, originados no final da década de 1980, nos Estados Unidos. Sua emergência ocorre em face de uma tradução acadêmica das lutas políticas contra a assimilação dos movimentos gays e lésbicos tradicionais à normatividade heterossexual e contra a produção de um regime de abjeção e abandono social ao qual pessoas de sexo e gênero dissidentes foram submetidas no contexto da epidemia de HIV, a denominada peste gay, durante o governo conservador de Ronald Regan (MISKOLCI, 2012)[2].

Nesses estudos, efeitos de um agenciamento complexo entre posições epistemológicas sobre sujeito, discurso, poder, corpo e sexualidade, advindas particularmente dos feminismos lésbicos e das filosofias pós-estruturalistas, a exemplo daquelas de origem foucaultiana e butleriana, a centralidade dessas teorias reside na crítica aos regimes de normalização da sexualidade que sustentam, em posições de poder (normalidade), identidades sexuais e de gênero heterossexuais, relegando suas dissidências a posições inferiorizadas (anormalidade), sujeitas a diferentes formas de violência. Assim, gênero e sexualidade, mais que identidades fixas, naturais e estáveis, propriedades ontológicas dos sujeitos, passam a ser tomados como efeitos de poder, socioculturais e históricos, produzidos mediante a reiteração de discursos difusos da heterossexualidade enquanto regime político e compulsório, ou seja, de uma matriz heteronormativa pautada na ficção regulatória da coerência entre sexo, gênero e desejo (BUTLER, 2017)[3].

Queer, em termos de uma etimologia anglófona, guarda relações de sentido com “excêntrico”, “estranho”, “desajustado”. Somente após os célebres eventos que envolveram a condenação e a prisão do escritor britânico Oscar Wilde, acusado de práticas homossexuais, é que tal termo passaria a ser usado como um tipo de injúria de cunho sexual, marcadamente homofóbica (BORBA, 2019)[4]. É mediante a apropriação performativa desse insulto, torcendo, assim, sua semântica, que os referidos movimentos sociais estadunidenses de contestação de uma identidade homossexual hegemônica vão se autointitular, sob o efeito de um engajamento político, como movimentos queer.

Logo, mais do que a etiqueta lexical de uma identidade reconhecível, o queer, incorporado na nomeação das Teorias Queer (TQ) e da Linguística Queer (LQ), corresponde ao índice multidirecional de uma miríade de processos de significação insultantes translocais, tanto performativa quanto politicamente apropriados, de modo que me parece mais interessante, como argumenta Borba (2019)[4], ao invés de reconstituir uma trajetória etimológica do termo, imaginar uma história não linear de repetições, modificações e contorções de sentido que complexificam a tarefa de uma possível tradução satisfatória e definitiva para o português.

Possibilidades, diálogos e (des)limites de uma Linguística Queer

Após as apresentações individuais das pesquisadoras convidadas1 e de seus atuais interesses de pesquisa, em resposta a uma primeira rodada de questões levantadas por Adriana Carvalho, as debatedoras argumentaram em torno de definições possíveis para a Linguística Queer (LQ) e de efeitos das aproximações entre perspectivas queer de gênero e sexualidade e pesquisas em Linguística Aplicada (LA) transgressiva e indisciplinar. De modo geral, ficou sublinhado que a LQ, em sua fase atual, segundo aponta Borba (2015)[5] numa releitura de seu texto seminal para a perspectiva no Brasil, se dedica a estudar criticamente a heteronormatividade, através de conceitos da TQ, examinando como discursos heteronormativos são sustentados ou subvertidos em práticas de linguagem situadas.

Assim, desde a visada filosófica e política da linguagem como forma de ação, segundo as teorias da performatividade, interessa à LQ visibilizar os efeitos das multiplicidades de semioses e de engenharias linguísticas utilizadas por sujeitos, em suas interações cotidianas, a fim de produzir inteligibilidade sobre gênero, sexualidade e suas intersecções (raça e classe, por exemplo), nas mais diversas escalas e modalidades de significação. Por essa razão, argumentam as debatedoras, a LQ não é nem uma subdisciplina da Linguística nem um campo “novo” da Linguística Aplicada, mas uma postura teórico-metodológica e ético-política em estudos da linguagem.

Tal postura, por sua vez, não possui fronteiras disciplinares rígidas nem rituais de pesquisa canonizados, de forma que, num trabalho em Linguística Queer, os procedimentos para geração e análise de dados podem ser construídos de modo sincrético, acionando construtos teórico-analíticos advindos de diferentes abordagens: linguísticas, textuais, interacionais, sociolinguísticas e/ou discursivas disponíveis num marco sociocultural dos estudos da linguagem. Assim, penso que, mediante a consideração dos significados sociais, culturais e históricos indexados pelos usos situados de recursos semióticos específicos, linguistas queer apontam a contingência radical de performances identitárias, desafiando visões deterministas de linguagem e de identidade, praticadas inclusive no interior de outras linguísticas que se põem a pensar sobre gênero e sexualidade, mas mantêm cristalizadas ideologias linguísticas essencialistas ou expressionistas, exemplo daquelas subjacentes aos empreendimentos descritivistas e universalizantes de uma suposta fala gay.

Queerizar a Linguística Aplicada: pesquisa, educação e outras imaginações

Numa segunda rodada de provocações feitas pelas medidoras às debatedoras, ficou bastante saliente na discussão que, em função dessas desestabilizações provocadas em um discurso fixista em torno da identidade, a LQ guarda semelhanças com as abordagens indisciplinares e transgressivas da LA (MOITA LOPES, 2006)[6]. Nesse sentido, foram apontadas: a) a ênfase na linguagem como prática social desde uma perspectiva situada e intersubjetiva; b) o caráter indisciplinar e a ausência estratégica de métodos e procedimentos de pesquisa pré-definidos; c) a afirmação do caráter contingente da produção do conhecimento, o que renuncia à narrativa de uma suposta “leitura privilegiada” da vida social; d) a dimensão ética e política da pesquisa, preocupada com a mitigação do sofrimento humano a partir da escuta das vozes daqueles sujeitos marginalizados.

Afora os pontos destacados, ganharam particular ênfase no debate os efeitos de uma mirada orientada tanto da LQ quanto da LA para a educação, em geral, e para a educação linguística crítica, em específico. Conforme as pesquisadoras apontaram, diante do flagrante momento político de intenso fascismo social, acirrado no contexto da pandemia de Covid-19, e do ataque sistemático à educação pública (expressa em projetos como o “Escola Sem Partido” e na ofensiva moral produzida pela pecha da “ideologia de gênero”), é cada vez mais evidente o caráter de descorporificação das práticas pedagógicas, negando vivências afetivas e generificadas de estudantes. Assim, tais debates acabam relegados ao escopo de discursos biologicistas e medicalizantes e a educação linguística reduzida à aprendizagem de um código linguístico, de um sistema abstrato de signos, que nada teria a ver com a vida e com as vivências corpóreo-identitárias dessas pessoas.

Como práticas de resistência inspiradas pela LQ e pela LA face a esse processo, as debatedoras apontaram algumas possibilidades centradas: na transversalização das questões de gênero e sexualidade nos currículos escolares, como questões de direitos humanos e de enfrentamento às violências, a partir dos cotidianos escolares; na utilização crítica – queerização – das potenciais representações identitárias cis-heteronormativas oferecidas pelos materiais didáticos disponíveis; na prática de uma educação linguística crítica que tome a língua(gem) enquanto repertório sociossemiótico performativo, ou seja, a partir do qual os sujeitos agem no mundo, (des)construindo suas performances mediante tensões e disputas de poder entre identidades e diferenças.

Ainda que as recontextualizações aqui produzidas não façam jus à totalidade dos pontos debatidos na mesa temática resenhada, como é próprio deste gênero do discurso, sua realização figura como um momento de importante visibilização da Linguística Queer praticada no Brasil enquanto uma orientação epistemológica produtiva no campos dos estudos linguísticos, dada sua construção de inteligibilidades sobre a vida social corporificada, em termos das relações entre linguagem, gênero, sexualidade e suas interseccionalidades.

Referências

BORBA, Rodrigo. Conhecendo a Linguística Queer: Entrevista com Rodrigo Borba. Revista X, Curitiba, v. 14, n. 4, p. 8-19, 2019.

BORBA, Rodrigo. Linguística queer: uma perspectiva pós-identitária para os estudos da linguagem. Entrelinhas, São Leopoldo, v. 9, n. 1, p. 91-107, jan./jun. 2015.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 13. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

MISKOLCI, Richard. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. 2. ed. São Paulo: Autêntica, 2016.

MOITA LOPES, Luiz Paulo da. (Org.). Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. 1. ed. São Paulo: Parábola, 2006.

(RE)PENSANDO a Linguística Aplicada a partir de paradigmas queer. Mesa-redonda apresentada por Elizabeth Sara Lewis, Iran Ferreira de Melo, Luciana Lins Rocha [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (2h 30min 50s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YzZ-aHFPd24 .Acesso em: 28 maio 2020.