Bases para uma Pedagogia da variação linguística: Entre a utopia e a esperança

Leandra Cristina de Oliveira

Resumo

Trata o presente manuscrito da materialização escrita de reflexões que emergiam na audiência da conferência remota "Bases para uma pedagogia da variação linguística", ministrada pelo Dr. Carlos Alberto Faraco, através do Abralin ao vivo, com ênfase sobre o tema da Pedagogia da Variação Linguística. A motivação decorre de minha experiência como orientadora de pesquisas sobre a sociolinguística educacional, desenvolvidas por egressas da Pedagogia no âmbito do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina, com quem tenho travado importantes diálogos sobre os temas pontuados. A centralidade da discussão aqui proposta recai sobre o espaço para uma pedagogia da variação linguística em um contexto sob constante vigilância midiática, legitimada por discursos de repressão e censura que fácil e agilmente distorce as práticas docentes, expõe e descredita a figura de professoras e professores em uma sociedade na qual a desvalorização a esses profissionais é uma constante lamentável.

Texto

O subtítulo que encabeça esta resenha sobre a conferência "Bases para uma Pedagogia da variação linguística"[1], apresentada pelo linguista Carlos Alberto Faraco (UFPR) no projeto Abralin ao vivo e mediada por Raquel Freitag (UFSE), tenta dar luz ao recorte que se faz neste texto de uma fala que suscita debates múltiplos em diferentes frentes e temáticas. A centralidade da discussão aqui proposta recai sobre o espaço para uma pedagogia da variação linguística em um contexto sob constante vigilância midiática, legitimada por discursos de repressão e censura que fácil e agilmente distorce as práticas docentes, expõe e descredita a figura de professoras e professores em uma sociedade na qual a desvalorização a esses profissionais é uma constante lamentável. Refiro-me ao espaço social da sala de aula. Para tanto, coloco em diálogo a enunciação de Faraco (2020) com textos dele próprio (FARACO, 2015; 2016[2,3]) e de pares (BAGNO, 2019[4]; CYRANKA, 2015[5]; LUCCHESI, 2015[6]). Sob o ethos da pesquisadora que surge na e pela experiência docente na Educação Básica, endosso a conversa com episódios pessoais.

Faraco encontra-se certamente no quadro dos grandes linguistas brasileiros. Professor experiente, aposentado pela Universidade Federal do Paraná e em exercício como professor colaborador nessa mesma instituição, o linguista tem marcado em seu currículo um expressivo vigor intelectual, com a publicação de mais de 20 livros, dezenas de capítulos e artigos publicados em revistas científicas de prestígio, inúmeras conferências, palestras, entrevistas e outras produções. Suas incursões pelo amplo campo da Linguística são invejavelmente diversificadas, reverberando um linguista plural, cujas publicações não perdem de vista o compromisso social do pesquisador.

As falas do Abralin ao vivo situam-se em um cenário de crise, que, como tal, irrompe e desestabiliza repentinamente as categoriais usuais. Sem ignorar o grande drama da pandemia do novo coronavírus, do qual o Brasil não se exclui, com a agravante de encontrar-se sujeito a uma política perniciosa que ataca a Ciência, as Humanidades, as Organizações não-governamentais, os setores públicos, entre outros espaços divergentes ao modelo imposto, Faraco estabelece sua discussão no seio da pedagogia da língua – Pedagogia da variação linguística, nos termos com que opera Faraco (2015; 2020[1,2]), e Sociolinguística Educacional, na esteira dos debates de Bortoni-Ricardo (2004)[7] –, a qual se pauta na defesa de uma pedagogia da língua portuguesa “sociolinguisticamente bem informada”. Segundo o conferencista, os objetivos centrais da pedagogia da variação linguística se situam em três conjunções: conhecer e entender, entender e respeitar, e entender e transitar com segurança pelo universo da variação, os quais, nos termos da fala apresentada, não são facilmente alcançáveis, dadas as diferentes circunstâncias, muitas delas relacionadas à formação linguística de estudantes de Letras (ao que urge acrescentar, estudantes da Pedagogia). A esse respeito, registro o que, na audiência imediata, questionei-me: será mesmo tão difícil atingir esses objetivos na prática em sala de aula? Desloquei-me temporalmente no ano 2000, quando ingressava na carreira docente, retornei ao ano 2020 e minha resposta equilibrou-se entre “não” e “sim”.

Há exatos 20 anos, introduzia-me na carreira docente como professora das Séries Iniciais (atual Ensino Fundamental I). Com coleções didáticas disponíveis pelo poder público, entre elas o livro de português, deparava-me com a abissal diferença entre a pedagogia debatida na Licenciatura e a realidade escolar. Focando-me na questão linguística, havia, entre a língua do livro de português e a língua compartilhada por aquela turma do 3º ano, uma fenda expressiva. Não me lembro qual era a autoria do livro, mas não me foge da memória o fato de, sem sucesso, procurar naquelas coleções, qualquer tipo de elo com a realidade daquelas crianças que viviam nos limites entre o rural e o urbano; algo, em termos de imagens, textos, atividades ou reflexões, a que elas pudessem vincular-se. Questões sobre diversidade – entre elas, a linguística – estavam totalmente ausentes. Importa lembrar que, apenas dois anos antes dessa experiência, em 1998, publicavam-se os Parâmetros Curriculares Nacionais, um documento norteador para as disciplinas da Educação Básica, que, concernente à Língua Portuguesa, invocava, finalmente, o enfrentamento ao preconceito linguístico na escola e a superação do mito da existência de uma única forma correta de falar (LUCCHESI, 2015, p. 13[6]). Sem o amadurecimento linguístico que desenvolvi com o tempo, as primeiras conjunções que informam sobre os objetivos da pedagogia da variação linguística – conhecer e entender, entender e respeitar – eram pontos basilares na minha prática. Trata-se de entender que a variação linguística na sala de aula é, antes de uma orientação cientificamente informada, uma questão de direitos humanos, de ver, entender e respeitar a pessoa pelo que ela é, o que não implica desprovê-la de conhecimentos para além de seu entorno. É essa sensibilidade a questões humanas que envolvem nosso campo de conhecimento que me leva a ter um olhar otimista sobre a possibilidade de alcançarmos os objetivos da pedagogia da variação linguística, mas que dela (da subjetiva sensibilidade) não podemos depender.

Vinte anos depois, a áurea antiuniversitária e o anticientificismo instaurados nos últimos quatro anos no Brasil, com grande expressividade em meses recentes, me trazem certo pessimismo. E essa preocupação aparece também contemplada no chat da conferência, em que se indagava a respeito da dificuldade em levar a pedagogia da variação para a prática neste momento em que ideologias fascistas avançam no Brasil e no mundo. O padrão linguístico, como bem pontua Lucchesi (2015, p. 188[6]) reverbera um “discurso conservador que atua fortemente na construção da hegemonia ideológica da dominação de classe no Brasil”, ao que, pela herança de séculos (FARACO, 2008; 2016[3,8]; BAGNO, 2018[4]; LAGARES, 2018[9]), podemos acrescentar, a construção de uma ideologia puritana, que, não ingenuamente, ofusca e rechaça as diferenças do país. É esse discurso conservador e violento que persegue, incita a vigilância e o linchamento virtual a professoras e professores.

A esse ponto, vincula-se também o apelo por uma [nova] norma de referência sob o argumento de resultados “robustos” alcançados pela descrição sociolinguística – uma das questões levantadas pela audiência. Ao lançar o questionamento, Freitag contesta o adjetivo acima entre aspas e, oportunamente, recupera os limites com que se esbarra a pesquisa sociolinguística nos protocolos tradicionais assumidos, que, inevitavelmente, não conseguiu recobrir – ao menos não a contento – territorialidades rurais e periféricas, grande parte interiorana do Brasil, bem como questões de estilo, de indexação identitária, entre outros fatores. O que dizer do multilinguismo presente no imenso território brasileiro que atua sobre as diferentes variedades, com a existência de centenas de línguas indígenas, línguas alóctones e de fronteiras (FARACO, 2016, p. 138[3])? Assumir que o Brasil precisa de uma nova norma de referência, assim no singular, é uma forma de sustentar um monolinguismo ideologicamente ilusório e de legitimar uma variedade em detrimento de outras – tudo de que não precisamos enquanto cientistas da linguagem. A variação não pode ser compreendida também por nós como algo intolerável.

Nesse sentido, mesmo após mais de 40 anos de estudos sociolinguísticos no Brasil, a agenda parece ser, ainda, e talvez por longo tempo, a da resistência, da denúncia contra o preconceito e a exclusão social em decorrência do uso que se faz da língua. Uma agenda que siga reivindicando e legitimando o ensino de português sob a perspectiva do letramento, em que a gramática esteja a serviço da constituição de textos e discursos; que ofereça a “excluídas e excluídos” o acesso “às mesmas armas simbólicas da gente privilegiada” (BAGNO, 2019, p. 23[4]), sem com isso reforçar a baixa autoestima que milhares de brasileiras e brasileiros, inclusive os mais letrados, têm em relação a sua língua ou sustentar a ilusão profana de que o acesso ao modo de falar da classe privilegiada é solução a seus problemas sociais (LUCCHESI, 2015[6]; BAGNO, 2019[4]). Nos termos de Cyranka (2015, p. 51[5]), é necessário compreender o papel da disciplina de língua portuguesa não mais para negar o que os alunos já sabem, “mas para ampliar sua competência comunicativa, abrindo-lhes caminhos para sua inserção social, construindo a própria autonomia”. Enquanto formadores de professores, é nosso papel, portanto, desconstruir essa perspectiva fascista da língua que impõe UM modo do qual ninguém pode escapar (BAGNO, 2019, p. 29[4]).

A leitora e o leitor mais experientes devem questionar se essa é ainda nossa empreitada. Basta retomar comentários e perguntas no chat da conferência aqui em discussão para verificar que a resposta afirmativa ali se sustenta. Superar os efeitos perniciosos da ideologia da norma padrão nos diferentes espaços sociais e estender no contexto escolar a pedagogia da variação linguística, ao lado da pedagogia da leitura, da produção textual, da expressão oral, da gramática, etc., podem ser utopias que não perdemos nessa trajetória, como assinala Faraco em algumas ocasiões. Pois, em direção a uma pedagogia da esperança, nos termos de Freire (1992)[11], o que somos nós sem um pouco de utopia e muito de esperança? Algo nos diz as palavras do poeta argentino: “o futuro nunca se anima ser de todo presente, sem antes ensaiar e que esse ensaio é a esperança”1 (BORGES, 1926 apud GUERRERO, 2008, p. 71, tradução minha[10]). Esperancemos, portanto!

Referências

BAGNO, M. Objeto língua. São Paulo: Parábola, 2019. 264p.
BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004. 108p.

CYRANCA, L. F. M. A pedagogia da variação linguística é possível? In: ZILLES, Ana M. S.; FARACO, Carlos A. Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e ensino. São Paulo: Parábola, 2015. p. 31-51.

FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola Ed., 2008. 207p.

FARACO, C. A. Norma culta brasileira: construção e ensino. In: ZILLES, A. M. S.; FARACO, c. A. Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e ensino. São Paulo: Parábola, 2015. p. 19-30.

FARACO, C. A. História Sociopolítica da Língua Portuguesa. 1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2016. 400p.

FARACO, C. A. Bases para uma Pedagogia da variação linguística. Abralin ao vivo, conferência, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3kS-RHie0Zw

FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 245p.

GUERRERO, H. G. Poética narrativa de Jorge Luis Borges. Madrid: Iberoamericana Editorial, 2008. 191p.

LAGARES, X. Qual política linguística? Desafios glotopolíticos contemporâneos. São Paulo: Parábola, 2018.

LUCKESI, D. Língua e sociedade partidas: a polarização sociolinguística do Brasil. São Paulo: Contexto, 2015. 320p.