Mudança no sistema de contraste do português: entre codificação e inferenciação

Sanderléia Roberta Longhin,
Luísa Ferrari

Resumo

Neste trabalho, investigamos dois fenômenos de mudança que contribuem para a renovação do sistema de contraste em português: as construções complexas com ‘enquanto (que)’ e com ‘agora’. Filiando-nos a uma abordagem de mudança de fundo cognitivo-pragmático (TRAUGOTT; DASHER, 2002), que opera com esquemas cognitivos e contextos de uso, nosso propósito é oferecer uma explicação para as mudanças que levaram à reinterpretação de tempo em termos de contraste. Assumindo que as mudanças envolvem uma fronteira flexível entre codificação e inferenciação, analisamos as fontes temporais, os contextos e o tipo de contraste, à luz de um protótipo de juntor contrastivo. Em viés diacrônico, os dados mostram construções que experimentam codificação crescente no tempo e, em viés sincrônico, a convivência de construções com graus variáveis de codificação e inferência.

Introdução

Este trabalho trata da expressão de contraste em português. Concebemos contraste como uma relação de natureza linguístico-cognitiva que, baseada em representações mentais, resulta da percepção de uma diferença, incompatibilidade ou conflito entre entidades de algum modo cotejáveis. Desse conceito decorre o entendimento de que as relações de contraste não existem a priori no mundo sociofísico, mas emergem da interpretação subjetiva dos falantes e escreventes, que avaliam estados de coisas e constroem entre eles relações contrastivas (SWEETSER, 1991; RUDOLPH, 1996; LANG, 2000; MAURI, 2008[1-4]).

A depender da natureza do conflito, é reconhecida na literatura uma tipologia de nuanças contrastivas (LAKOFF, 1971; DUCROT, 1977; NEVES, 1984; RUDOLPH, 1996; LANG, 2000; HASPELMATH, 2004; MAURI, 2008[2-8]), e há um consenso quanto à existência de três tipos principais: oposição semântica, em que predicados paralelos trazem antônimos semânticos, como em o cão é apegado ao dono, mas o gato é apegado à casa; correção, em que os membros da construção trazem, respectivamente, uma refutação explícita e uma retificação, como em ele não é inteligente, mas esperto; e quebra de expectativa, em que os conteúdos das orações remetem a conclusões distintas, que têm pesos argumentativos também distintos, como em ele ficou preso no trânsito, mas conseguiu chegar.

Nas línguas, a classe dos juntores1 contrastivos é propensa à renovação no tempo, diferentemente de outras classes, como, por exemplo, a dos aditivos e disjuntivos, que mostram estabilidade muito maior.2 Essa dinâmica diferenciada, já reconhecida e descrita desde Meillet (1912)[9] e, mais recentemente, por Ramat e Mauri (2011)[10], se explica sobretudo pelo alto grau de subjetividade que é peculiar ao significado de contraste, além de encontrar fundamento na heterogeneidade da classe dos juntores e nos diferentes mecanismos de ligação de que participam (BLÜHDORN, 2008)[11].

Os juntores contrastivos têm um componente conceitual, semanticamente codificado, que permite acesso a modelos cognitivos de representação de mundo; e um componente procedural ou instrucional, dependente do contexto, que impõe restrições sobre como interpretar a junção dos conteúdos, levando a conclusões que não poderiam ser obtidas em sua ausência (LANG, 2000; MOESCHLER, 2002; MAURI; AUWERA, 2012[3,12,13]). Dessa maneira, processos de inferenciação pragmática sempre subjazem, em alguma medida, a construção do significado contrastivo.

Neste trabalho, procedemos a uma reconstrução de parte do sistema de junção contrastiva do português, ao focalizar os processos graduais de constituição de dois juntores contrastivos relativamente novos, enquanto (que) e agora, comumente atestados no português contemporâneo em dados de enunciação falada e escrita, embora pouco reconhecidos pela tradição gramatical. As ocorrências em (1) e (2), a seguir, extraídas do corpus desta pesquisa, são representativas dos usos contrastivos:

(1) (...) pela primeira vez na História brasileira o MEC tem um papel mais protagonista em relação à educação básica né, enquanto que até agora praticamente ele só trabalhava com o ensino superior. (21LFSP)

(2) Porque o Cristo não fez do vinho - da água o vinho? Quer dizer, que a bebida não faz mal, agora a pessoa tem que saber beber, se controlar. (20INPE)

Os processos de criação de juntores nas línguas envolvem alterações semântico-pragmáticas, acompanhadas ou não por alterações categoriais. Nesse aspecto, há uma diferença fundamental nos percursos evolutivos seguidos por enquanto (que) e por agora: o primeiro já era conjuncional, portanto, não houve mudança na categoria;3 já o segundo era adverbial e sofreu recategorização. Em Longhin (2016)[14] e em Ferrari (2018)[15], apresentamos alguns dos resultados de investigações diacrônicas, respectivamente, sobre os processos de emergência de enquanto (que) e de agora, com respaldo de uma teoria de mudança voltada à pragmática e aos processos cognitivos e comunicativos envolvidos na (re)construção da gramática (TRAUGOTT; DASHER, 2002)[16]. Os estudos reúnem evidências de que ambos os desenvolvimentos históricos têm origem em contextos que somam a relações temporais originais inferências de contraste.

Estudos tipológicos, como Kortmann (1997)[17], atestam a produtividade das relações temporais como fontes para significados causais, condicionais e contrastivos, dada a forte afinidade semântico-cognitiva existente entre esses domínios de significação. O autor evidencia que, no interior desses domínios, há uma estreita relação entre determinadas relações temporais e o tipo de contraste resultante, o que indica maior previsibilidade acerca dos caminhos de mudança (cf. As fontes para expressão de contraste).

Considerando as evidências diacrônicas em torno do canal Tempo > Contraste, este trabalho tem por objetivo investigar, de maneira circunstanciada, a interação entre o domínio temporal fonte e os correlatos contextuais diversos, para a constituição das formas de contraste presentes nas construções com enquanto (que) e agora. Mais especificamente, as trajetórias diacrônicas rumo a contraste serão analisadas, comparativamente, à luz da dinâmica flexível entre codificação semântica e inferenciação pragmática, que será aferida, em termos escalares, de menor codificação (mais inferência) à maior codificação (menos inferência).

Organizamos o texto em três seções, além desta Introdução e das Considerações Finais. Na seção 1, abordamos os pressupostos teórico-metodológicos relativos à mudança e à junção; na seção 2, sistematizamos o universo cognitivo-perceptual das fontes para expressão de contraste nas línguas; na seção 3, apresentamos a análise dos dados. Nas Considerações Finais, cotejamos as trajetórias, com balanço das similaridades e das divergências.

1. Quadro teórico-metodológico

Para abordagem da mudança semântico-pragmática de enquanto (que) e agora, filiamo-nos a correntes teóricas de base funcionalista que têm entre seus principais pressupostos o da indissociabilidade entre sistema e uso, no sentido de o sistema linguístico operar junto às forças cognitivas e socioculturais (TRAUGOTT; DASHER, 2002; BYBEE, 2010[16,18]). Desse ponto de vista, assumimos que as experiências, conhecimentos e crenças do ser humano fornecem as percepções que alicerçam as interpretações no âmbito da linguagem. Isso equivale a dizer que processos cognitivos de conexão fundamentam processos linguísticos de conexão e estão, assim, na gênese da produção dos significados.

Outro pressuposto importante é o da instabilidade do sistema, evidenciado no contínuo fazer-se da gramática, em trajetórias históricas que contrabalançam fatos de permanência e de sucessão. Nesse fazer-se, a pragmática tem um protagonismo decisivo, já que, nessa perspectiva, é o uso da língua, com todas as implicações em termos comunicativos e cognitivos, que abre espaço para o remodelamento constante e gradual do sistema (TRAUGOTT; DASHER, 2002[16]).

Admitindo que a extensão contextual e a emergência de polissemias estão na origem da mudança, exploraremos, como recurso metodológico, as polissemias contextuais em correlação com estágios de mudança, com vistas a apreender aspectos do modo como um significado se liga a uma construção e, com o tempo, pode se tornar parte dela. Em termos gerais, interessa verificar nas construções com enquanto (que) e com agora o curso da pragmática à semântica.

A esse respeito, Mauri e Auwera (2012)[13] argumentam acerca de uma dinâmica entre codificação e inferenciação na expressão dos nexos interoracionais, i.e., entre a parte do significado que é codificada e a parte calculada via processos inferenciais. Essa dinâmica é apreensível, em viés sincrônico, na fluidez com que uma relação de significado mostra graus variáveis de codificação e inferenciação; e, em viés diacrônico, a partir de construções subcodificadas que experimentam codificação crescente no tempo, com redução gradual da inferência, promovendo alteração de padrões. Entendemos por subcodificação, à maneira de Prandi (2004)[19], casos em que há alguma codificação e a ela são associados enriquecimentos inferenciais. É a subcodificação, portanto, que põe em evidência o papel das forças cognitivo-pragmáticas na expressão dos significados.

Seguindo Prandi (2004)[19] e Mauri e Auwera (2012)[13], admitimos que, na constituição histórica dos significados conjuncionais, existe uma fronteira flexível entre a semântica e a pragmática. Juntores novos surgem a partir de construções subcodificadas, dependentes da pragmática, em maior ou menor grau. Considerando as mudanças percorridas por enquanto (que) e agora e lançando mão de um protótipo de juntor contrastivo que equaciona semântica, pragmática e gramática, a questão é fornecer uma explicação sobre como os juntores em foco tiveram reanalisados seus componentes conceitual e procedural e em que nível de codificação se situam hoje.

Em consonância com esses pressupostos, nosso protótipo de juntor contrastivo, nos moldes de Lang (2000)[3], reúne informações de vários níveis de análise, algumas relativas ao juntor, outras à construção de que ele participa, de modo que a interpretação envolve passos inferenciais que dependem fundamentalmente do contexto prévio, do estatuto das orações, da semântica lexical e dos traços da sintaxe do juntor.

Lang (2000)[3] postula que cabe ao juntor contrastivo uma contribuição dupla: i) relacionar as unidades como instâncias de um integrador comum,4 espécie de frame dentro do qual o contraste é criado; e, ii) indicar que a asserção expressa pela segunda oração está em contraste com uma suposição explícita ou inferida a partir de informação prévia.

É na suposição, segundo Lang (2000)[3], que está o elo entre gramática e pragmática. Para sinalizar que o segundo membro está em contraste com alguma suposição, o juntor opera sobre a estrutura gramatical e, para a descoberta da suposição, opera com a pragmática, com o conhecimento de mundo, base para um raciocínio abdutivo. Conforme os postulados de Lang (2000)[3], em uma construção como Paulo é muito alto, mas não joga basquete, representativa de contraste por quebra de expectativa, a asserção introduzida por mas, no segundo membro, está em contraste com a suposição, obtida a partir de informações prévias aliadas ao conhecimento de mundo, “pessoas muito altas frequentemente jogam basquete”. Em acréscimo a esses postulados, Lang (2000)[3] relaciona os traços gramaticais tipicamente exibidos por um juntor contrastivo: i) estabelece uma forma binária de conexão; ii) é assimétrico quanto à ordenação dos membros: a mudança na ordem gera interpretação diferente; e, iii) marca limite de escopo, ou seja, não pode estar no escopo da negação ou de outro operador de escopo.

A análise que apresentamos adiante é construída em perspectiva diacrônica, sob os vieses qualitativo e quantitativo, com prevalência do qualitativo. O material de pesquisa foi extraído das seguintes plataformas eletrônicas: Tycho Brahe Parsed Corpus of Historical Portuguese; Corpus Informatizado do Português Medieval; Corpus do Projeto de História do Português Brasileiro; Corpus Diacrônico do Português; Acervo digital da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin; Corpus do Projeto de História do Português Paulista; Biblioteca Digital de Peças Teatrais; Corpus do Grupo de Pesquisas em Dramaturgia; Corpus do Projeto Análise Contrastiva de Variedades do Português; Coleção Digital Machado de Assis; Corpus Eletrônico de Documentos Históricos do Sertão; Corpus do Projeto Oficina de Teatro; Corpus do Projeto Teatro para Todos; Corpus do Projeto Norma Linguística Urbana Culta; Corpus do Programa de Estudos sobre o Uso da Língua; Amostra Linguística do Interior Paulista; Corpus do Grupo Companhia das Letras e Corpus do Projeto Padrões do Português Popular Escrito.

A seleção dos textos para a constituição dos corpora, considerando a especificidade e a frequência dos juntores enquanto (que) e agora, foi norteada por três critérios: temporal, pelo qual selecionamos textos produzidos em diferentes estados de língua, do português arcaico ao contemporâneo;5 tipologia textual, pelo qual elegemos uma variedade de tipologias similar o quanto possível para cada estado de língua; e quantitativo, pelo qual garantimos uma distribuição quantitativa balanceada para cada sincronia, monitorada por número de palavras. Em Anexo, apresentamos a relação completa dos textos com as respectivas siglas de referência. Outras informações sobre os procedimentos metodológicos para obtenção dos corpora podem ser conferidas em Longhin (2016)[14] e em Ferrari (2018)[15].

2. As fontes para expressão de contraste

Nesta seção, em viés onomasiológico, examinamos os principais canais de derivação que levam à expressão de contraste. Como já referido, no processo de formação dos sistemas de contraste nas línguas românicas, não foram preservados os juntores que em latim clássico expressavam significados contrastivos (MAURER, 1959; CÂMARA, 1975; CUENCA, 1993; HERRERO-RUIZ, 2005; TORREGO, 2009[20-24]). Segundo Torrego (2009, p. 468)[24], as mudanças que afetaram as adversativas latinas incluíram o enfraquecimento gradual da conjunção padrão sed e o uso crescente do advérbio comparativo magis para a função de contraste. A gramaticalização de magis parece ter sido condicionada por contextos de retificação de uma asserção prévia, cf. Id, Manli, non est turpe, magis miserum est (Catul. 68) ‘Isso não é vergonhoso, Manli, mas é doloroso’;6 às vezes, com magis contíguo a sed, atuando como uma espécie de reforço, cf. non ex iure manum consertum, sed magis ferro (Enn, 272) ‘eles vão se engajar na batalha não pela lei, mas mais pela espada’.

A semântica de comparação inerente a magis é uma das fontes para expressão de contraste. O trânsito entre os significados de comparação e contraste é legitimado pela noção de superioridade, em que, ao comparar seres, objetos ou eventos, o locutor assume atitudes de preferência e de negação, de seleção e de descarte, de modo que a superioridade na comparação é reinterpretada em termos de superioridade argumentativa. Além da comparação, outros domínios semântico-cognitivos, como espaço, tempo e causa atuam, historicamente, como fonte para novas relações contrastivas (RUDOLPH, 1996; KORTMANN, 1997; GONZÁLEZ-CRUZ, 2007; MAURI, 2008[2,4,17,25]).

No domínio espacial, a precedência física mobiliza um esquema perceptivo básico que se desdobra por outros domínios de significação, em que a anterioridade no espaço é reinterpretada como preferência ou prioridade, fundada na suposição de que no mundo o que vem antes é melhor ou preferível, e o que vem depois é secundário (CUENCA, 1992)[22]. Nesse caso, o elo entre os significados está na noção de prioridade, em que, de uma relação físico-espacial, a construção pode avançar, por projeção metafórica, para uma relação prioritária no tempo e, com maior abstração ainda, para uma relação no plano mental, enquanto prioridade nas preferências e na argumentação.

Esse trânsito metafórico subjaz, por exemplo, às mudanças sofridas por antes. A fonte adverbial latina, ante, exprimia anterioridade no espaço e no tempo. Em português, esse emprego adverbial se manteve, e dele derivaram duas construções ainda mais abstratizadas: a correlação comparativa antes... (do) que..., cf. e ante cometeria pecado mortal que deixarsse morrer (15S), em que a estruturação binária garante ao primeiro membro, encabeçado por ante, uma prioridade avaliativa; e a conjunção contrastiva ante, cf. tolerante, que não guerreie, antes respeite a nossa Religião (19AJB), que tem no segundo membro, introduzido por antes, o conteúdo informacional e argumentativo mais decisivo.

No domínio da causalidade, o elo que justifica a sucessão entre causa e contraste repousa na copresença entre uma expectativa de causalidade, construída com recursos linguísticos e validada nos modelos e expectativas de mundo, e a negação explícita do vínculo causal. Esse movimento levou però, do italiano, e porém, do português, a transmudarem-se do universo causal ou resultativo, equivalente a por isso, para o universo de contraste (LONGHIN, 2009; MAURI; RAMAT, 2012[26,27]). A mudança foi favorecida por contextos de negação, como em: posto que o hom seya muy engenhoso e muy sotil, nõ deue por cessar de leer pellas Sanctas Scripturas (15OE), em que por admite dupla interpretação entre causa (por isso) e contraste (apesar disso). De modo similar, no italiano: (...) e tu studiosissimo d' essermi ad utile e onore, non però fra noi sarebbe ch'io potessi riputarti amico, né tu di me potessi (cf. Mauri e Ramat, 2012)[27].

As fontes temporais, foco deste trabalho, são suscetíveis a reinterpretação em várias vias de enriquecimento inferencial. Segundo Kortmann (1997), a polissemia inerente ao próprio domínio temporal, em que se distinguem sequencialidade, simultaneidade, habitualidade, está relacionada a trajetórias específicas de mudança, nas quais se reconhecem diferentes elos na ressignificação de tempo em contraste.

Rudolph (1996)[2] explora o modo como processos cognitivos básicos da mente humana criam moldes conceituais que subjazem ao uso da língua em direção à expressão de significados contrastivos. Na presença de correlatos contextuais específicos, as inferências de contraste podem derivar da percepção de que certas entidades e eventos existem ou ocorrem simultaneamente no mundo; da percepção de sequenciamento entre as ações humanas; ou ainda da percepção de que certas situações se repetem com habitualidade como resultado das mesmas ações. A seguir, trazemos algumas evidências da atuação desses processos cognitivos.

O molde conceitual em que dois eventos ocorrem em concomitância foi aproveitado para expressão de contraste por oposição nas construções com en même temps que, do francês, cf. em même temps que John aime le sport, il deteste le football (cf. PEKBA, 2006, p. 194)[28] e nas construções com mentre, do italiano, cf. mentre tutta la terra era innondata d'acqua, una mentre sola gocciola non li tocc (cf. MAURI; RAMAT, 2012)[27]. Em ambos os casos, a oposição se sustenta, em parte, em pares antonímicos.

Do molde conceitual em que o contraste advém da recorrência de eventos no tempo, emergem tuttavia, do italiano, e todavia, do português, que evoluíram para a marcação de contraste por quebra de expectativa. A mudança parece ter lugar quando um dos eventos traz uma circunstância desfavorável para a ocorrência do outro, gerando uma interpretação conflituosa diante da habitualidade dos eventos, cf. chè noi mangiamo sì poveramente in questo luogo, u voi mi vedete, che a grande pena ne possiamo sostenere nostra vita; né non 'sciamo giammai di qua entro; tuttavia ci dimoriamo sì come noi lo possiamo fare (MAURI; RAMAT, 2012)[21,27].

No molde conceitual que se utiliza da sequencialidade e da distância temporal para instaurar contraste, eventos que estão em relação sequencial no tempo são concebidos como desiguais ou incompatíveis, emergindo inferências de oposição ou de quebra de expectativa. Esse molde está na base das mudanças de or, do francês, que desenvolveu usos para expressão de quebra de expectativa a partir da interpretação de que um evento presente não corresponde a expectativas alimentadas por um evento prévio, cf. Je parti de vos avant ier / Pas vostre gré et par amor, / Sanz mal talant et sanz iror; / Or ont tant fait li losengier / Que de moi se veulent vengier / Et vos m’avez jugié a mort (HANSEN, 2018, p. 138)[29].

3. Estudos de caso: as trajetórias de enquanto (que) e de agora

Nesta seção, em viés semasiológico, focalizamos as mudanças atravessadas pelas construções com enquanto (que) e agora, ao longo do tempo, em direção ao significado contrastivo. À luz do pressuposto de que as transformações envolvem, de modo variável, a fronteira entre codificação e inferenciação, exploramos as polissemias contextuais em busca da natureza das fontes temporais, da especificidade dos correlatos contextuais e do tipo de contraste veiculado. A Tabela 1, que contempla ambos os juntores, apresenta, em perspectiva longitudinal, a frequência absoluta dos padrões de enquanto (que) e de agora: padrão fonte temporal, padrão polissêmico que habilita dupla interpretação em tempo e contraste e padrão que permite apenas leitura contrastiva:

Figure 1. TABELA 1 – Frequência absoluta dos padrões de enquanto (que) e de agora em perspectiva longitudinal Fonte: elaborado pelas autoras

Os dados sugerem que ambas as formações são recentes. Os usos contrastivos de enquanto (que) foram identificados apenas no último estado de língua analisado, embora as instâncias de dupla interpretação entre tempo e contraste já aparecessem no século XV. Usos contrastivos de agora aparecem nos dados com frequência importante apenas nos séculos XX e XXI, mas os casos de dupla interpretação já exibem frequência significativa nos séculos XVIII e XIX. A constatação de casos de dupla interpretação em estados de língua anteriores é um índice fundamental da contínua associação, no tempo, dos significados temporais primitivos com os novos significados contrastivos.

Como se verá nas trajetórias percorridas pelos novos juntores, apresentadas a seguir, para ambos os fenômenos, a descrição dos processos de mudança de significado perpassa a abordagem da mudança do próprio modo de composição das orações. Para nós, as construções contrastivas com enquanto (que) e com agora vêm se aproximando gradativamente de um modo de composição tipicamente coordenativo, alicerçado em uma relação entre unidades funcionalmente equivalentes, que têm forças assertivas e perfis cognitivos autônomos (MAURI, 2008). A emergência do integrador comum e da suposição inferida, parâmetros que extraímos de Lang (2000) para definição de um protótipo de juntor contrastivo, são, na perspectiva desse autor, parâmetros que ajudam a definir relações coordenativas.

3.1 O percurso de enquanto (que)

Do português arcaico ao contemporâneo, enquanto atua como um subordinador temporal, veiculando uma extensa rede de nuanças que, na classificação de Kortmann (1997)[17], abrange as relações de simultaneidade, simultaneidade com coextensão, duração com limite e contingência. Os tipos temporais de enquanto mobilizam esquemas morfossintáticos distintos e se relacionam a diferentes extensões de significados. Dessa rede polissêmica, somente a simultaneidade (SIMUL), cf. ocorrências em (3) e (4), está na origem do contraste. A construção fonte (Estágio I) se caracteriza por um modo de articulação assimétrico, de dependência, entre dois estados de coisas (EsCo), em que enquanto abre um intervalo de tempo dentro do qual o conteúdo do outro EsCo deve ocorrer ao menos parcialmente. Em termos morfossintáticos, as orações-enquanto são em geral antepostas, realizam-se no indicativo, com tempos do pretérito. Nesses contextos, enquanto tem significado temporal codificado, sem qualquer nuança contrastiva e pode estar no escopo de negação.7

(3) E elle se foy aa porta e sayusse do curral. E, en quanto el estava em esto, prenderõ os mouros as gentes do iffante. (14CA, 38)

(4) emquanto injeria os alimentos muito vagarozamente, ia propondo cazos intermeiados de gostozas anedotas. (20DNG, 64)

Considerando os principais postulados de Lang (2000)[3], expostos em Quadro teórico-metodológico, o trânsito de enquanto ao estatuto de juntor contrastivo (e também de agora, conforme próxima seção) implica a consolidação gradual de dois ganhos cruciais: o postulado do integrador comum, que vai conferir à construção complexa uma feição simétrica, de natureza mais coordenativa; e o postulado da busca por uma suposição que reúna condições para o contraste, que, impelida pela estrutura gramatical (oração-enquanto assertiva, ordem, entoação, escopo) aliada ao raciocínio inferencial, irá indiciar a divisão do trabalho entre gramática e pragmática.

Os dados sugerem que o ponto de partida das mudanças está em ocorrências similares a (5) e (6), a seguir, oriundas do século XV, em que as construções subordinadas temporais são enriquecidas pragmaticamente com uma inferência de diferença, que emerge a partir de uma comparação entre os conteúdos dos EsCo (Estágio II). Se enquanto equaciona conteúdos, colocando-os em comparação em alguma dimensão, então os conteúdos só podem estar envolvidos sob um integrador comum, que legitima a comparação e que, nos termos de Lang (2000)[3], é traço constitutivo das construções contrastivas. Por outro lado, nesse estágio, enquanto ainda não tem a habilidade de disparar uma suposição, não se conformando, assim, ao segundo postulado.

(5) E emquanto nos outros comiamos, elle segundo seu costume se hia sempre comer escondido a Igreiia por causa de mais liuremente orar (15VST, 1)

(6) Enquanto este fala c'os de casa, falo eu com vós outros (15TSM)

Os contextos sintáticos de (5) e (6) incluem um duplo paralelismo estrutural, cujas lacunas são preenchidas com antônimos lexicais. Em (5), com o predicado comer, são cotejados nós outros vs. elle, e conforme o costume vs. escondido; em (6), com o predicado falar, são cotejados este vs. eu, e com os da casa vs. com vós outros. A anteposição da oração-enquanto continua sendo a ordem não-marcada, e a simultaneidade temporal, o significado mais saliente. Esses dois traços juntamente com o paralelismo acionam a inferência de diferença.

Em outro estágio (Estágio III), mais tardio, verificado em fontes dos séculos XIX e XX, a dupla interpretação se mantêm, mas o valor temporal se torna mais opaco, conforme mostram (7) e (8). Em função do contexto prévio e do conhecimento de mundo, a inferência de diferença ganha em saliência e é reinterpretada em termos de uma oposição, sensível a uma análise de base escalar, da menor à maior subjetividade (MAURI; RAMAT, 2012).8 Nesse estágio, os paralelismos estruturais continuam participando da construção dos significados, mas a ordenação das orações apresenta uma tendência crescente à posposição da oração-enquanto, o que aponta para o início de consolidação de mais um traço típico das contrastivas.

(7) Uni-vos mais depressa a uma mulher, do que a um homem, se quereis dar largos passos pela estrada da fortuna. Uma mulher cuidará em vós com fervor, emquanto os vossos protectores e amigos cuidam de si. (19FPA)

(8) (…) a quadra chuvosa do ano era a pior geradora e alimentadora de doenças entre eles, já tendo morrido João Wendevile, capitão da guarda do Conde, e bem assim o capitão Israel Twyn e diversos soldados rasos; que, dia a dia, rareavam as fieiras, sem haver socorros às mãos, enquanto para os adversários crescia a força e o exército. (20HDF)

Em (7) e (8), a oposição é que está em primeiro plano às custas do recuo do significado temporal, e essa oposição ainda se sustenta, em grande parte, sobre as bases de uma coexistência no tempo e sobre o paralelismo contextual. Em outras palavras, nesse estágio, o contraste por oposição é uma inferência pragmática. E, para nós, ele é mais evidente em (7) do que em (8), já que a primeira envolve crenças e avaliações. Em (7), o frame ou integrador comum, que permite o cotejo, está na avaliação de possíveis alianças pessoais (às mulheres, aos amigos, aos protetores) para alcance de sucesso, ao passo que, em (8), o integrador comum está nas constatações acerca da integridade dos dois exércitos em conflito.

Nesse mesmo estado de língua, reconhecemos outro estágio (Estágio IV), em que convivem construções passíveis de dupla interpretação, com contraste em foco, nas quais, além do integrador comum e da posposição da oração-enquanto, há também uma suposição inferida. É o caso das ocorrências em (9) a (11), em que a leitura de contraste depende mais fundamentalmente da relação entre asserção e suposição, do que dos paralelismos estruturais, nem sempre tão rígidos.

(9) (...) os Onayvanesses, são pequenos, valorosos, e barrigudos, tendo os cabellos mui cumpridos; os Anaynassones, são simples e de boa altura, bem feitos, mas mui preguiçosos, passam os dias dormindo, em quanto que as mulheres trabalham. (19FPA)

(10) É, muito magrinha. E a pediatra disse que tá bom. Nasceu com dois quilo, quarenta e cinco centímetros a criança, mas é uma coisa muito chata pra comer. Agora o João Pedro já mama peito e mama mamadeira, tem três meses tá óh. Isso aqui dele já não vê [o pescoço], não vê nem o pescoço dele. Enquanto Catherine não come nada. (20CEN)

(11) (...) é só ela e a irmã dela... as duas irmã... então sempre tem que lavar louça fazer almoço fazer faxina na casa inteiRA enquanto a madrasta tá lá deitada no sofá. (21IBO)

Nas três ocorrências, ainda estão latentes os intervalos de tempo simultâneo, que atuam na construção dos significados. Mas a suposição, de natureza hipotética, é decisiva. Em (9), a asserção as mulheres trabalham está em contraste com uma suposição, comum em muitas sociedades, em que, na instituição família, homens preguiçosos dormirem ao mesmo tempo em que mulheres trabalham é uma situação altamente conflituosa. Em (10), a suposição que entra em contraste com a asserção Catherine não come nada se refere à hipótese de relação estreita entre alimentação, peso e saúde da criança. Em (11), contrasta com a asserção a madrasta está lá deitada no sofá a suposição implícita de que uma convivência familiar mais justa implica a participação de todos na realização das tarefas domésticas.

Nesse estágio, embora enquanto (que) se aproxime do protótipo de juntor contrastivo, proposto em Lang (2000)[3], ele ainda mostra flutuação semântica, ao reter traços do significado fonte. Os dados apontam para diferenças entre os usos contrastivos perifrástico e não-perifrástico de enquanto: nas contrativas com enquanto, há variabilidade posicional entre as orações, mas nas contrastivas perifrásticas, a posposição é categórica.

Há ainda, no português contemporâneo, um estágio de mudança (Estágio V) em que as construções contrastivas com enquanto (que) são incompatíveis com o significado fonte. Ou seja, a simultaneidade temporal fica bloqueada. É o caso de (12), a seguir, e de (1), repetido aqui sob nova numeração, em (13):

(12) Fizeram menção do açúcar Plínio, Dioscórides. Galeno e Hesíquio. Os botânicos, porém, discutem se êste é o mesmo açúcar do nosso tempo. Os que sustentam que é outro dizem que o dos antigos se cristalizava nas próprias canas, enquanto o nosso se espreme líquido e se condensa ao lume. (20HDF, 98)

(13) (...) pela primeira vez na História brasileira o MEC tem um papel mais protagonista em relação à educação básica né, enquanto que até agora praticamente ele só trabalhava com o ensino superior. (21LFSP)

Em (12) e (13), a comparação não mais se estabelece entre fatos simultâneos, mas entre fatos sucessivos. O antes e o agora dão suporte à comparação, à indicação das diferenças e à oposição. Em (12), o açúcar dos antigos vs. o nosso preenchem lacunas paralelas, mas também se correlacionam aos tempos verbais, respectivamente, imperfeito e presente do indicativo. Em (13), comparam-se as atuações do MEC em um momento anterior, quando privilegiava o ensino superior, e no atual, em que a educação básica ganha protagonismo.

Todos os cinco estágios de mudança identificados nas construções com enquanto (que) podem ser verificados em dados do português contemporâneo, em situação de layering e em frequências variáveis, evidenciando graus também variáveis de codificação e de inferenciação que resultam em construções difusas, o que equivale a dizer que se trata de um fenômeno de mudança ainda em curso.

3.2 O percurso de agora

Desde seus usos primeiros até o português contemporâneo, agora se constitui no advérbio dêitico proximal9 preferido na língua, codificando localização temporal de EsCos em relação ao momento da enunciação. Pode sinalizar relações de simultaneidade, em que o EsCo referido corresponde, ao menos em parte, ao momento em que o enunciado é produzido, e relações de anterioridade e de posterioridade, em que o EsCo a que faz referência se desenvolve em intervalo de tempo anterior ou posterior ao momento da enunciação. As ocorrências em (14), (15) e (16) ilustram, respectivamente, cada tipo de relação temporal.

(14) E agora estão instalando somente neste trecho escalavrado duas lombadas eletrônicas que já se encontram em sua fase final de conclusão. (20CARE)

(15) Eu não tenho nenhum Natal para dizer assim: "esse foi melhor de que aquele." Mas, esse último agora, é o seguinte: foi um Natal muito bom para mim. (20INPE)

(16) Não é essa criança assim retraída assim... Tanto que ela está na escola, já vai para o segundo ano, ainda não estranhou não. Vai terminar agora esse ano, não é? (20INPE)

Nos usos em que atua como advérbio (Estágio I), agora pode ocupar diferentes posições sentenciais, como é típico da categoria, e integrar construções de natureza diversa, desde orações simples até complexas, podendo, em todos os casos, estar no escopo de negação (cf. não estão instalando agora). É em alguns tipos de construções complexas que o item encontra condições para se desenvolver em juntor contrastivo, tendo seu significado enriquecido, a partir de inferenciação pragmática, com algum tipo de desigualdade no tempo.

Conforme nossos dados, a principal fonte temporal que atua em favor de inferências de contraste é tempo sequencial, que, a depender dos correlatos contextuais a que se associa, favorece a constituição de contraste opositivo ou de contraste por quebra de expectativa. Em ambos os caminhos de derivação, a construção mais ampla de que agora participa contém dispositivos gramaticais que indiciam uma relação de sequencialidade entre os EsCos descritos. Nessa relação sequencial, agora, em nossos dados, faz sempre referência ao EsCo que é posterior, constituindo com a morfologia verbal10 e/ou com expressões adverbiais que veiculam tempo anterior11 o conjunto de mecanismos gramaticais que codificam sequencialidade temporal.

No processo que é base para a constituição de contraste opositivo, são concebidas relações de oposição entre os EsCos sequenciais a partir da interpretação de expressões lexicais presentes no contexto ou das próprias predicações que descrevem cada EsCo como pares antonímicos. Essa interpretação se respalda, em parte, na estrutura sintático-semântica da construção, já que o ponto de partida está no próprio léxico e no arranjo sintático pautado em paralelismos estruturais. No entanto, a contribuição da pragmática é fundamental, já que o conhecimento de mundo e as crenças subjetivas dos falantes/escreventes são imprescindíveis para que partes da construção sejam percebidas como instâncias de oposição.

No processo que leva à constituição de quebra de expectativa, por outro lado, admitimos que o enriquecimento do significado temporal com inferências de contraste tem respaldo ainda maior de mecanismos inferenciais, uma vez que não há estruturas paralelas que tornam salientes as predicações concebidas como incompatíveis. Para leitura de quebra de expectativa, é preciso que crenças e modelos cognitivos de representação do mundo alimentem, a partir do EsCo anterior, expectativas que não se concretizam no EsCo posterior, referido por agora.

Há também, com menor frequência nos dados, construções em que a fonte temporal que alimenta inferências de contraste é tempo contingente, do qual deriva apenas contraste pautado em quebra de expectativa. Nesse caso, a leitura pragmática de contraste deriva da interpretação de que o EsCo referido por agora interrompe o fluxo contínuo de um EsCo caracterizado por pluralidade indefinida,12 formulada tanto por mecanismos lexicais e gramaticais (por exemplo, a semântica verbal, o aspecto imperfectivo e advérbios aspectuais, como sempre) quanto por um molde conceitual que prevê a permanência no tempo de EsCos habituais. As diferentes fontes temporais e os diferentes tipos de contraste delas derivados podem ser observados em ocorrências apresentadas adiante.

Independentemente da fonte temporal e do tipo de contraste, para todos os canais de derivação, os dados revelam que a mudança tem início em um estágio caracterizado por construções em que apenas uma das orações do complexo tem natureza assertiva (Estágio II) e, conforme os dados, essa oração tende a ser aquela que agora integra. Admitimos que a ausência de força assertiva em uma das orações da construção complexa exige maior cálculo de sentido para a interpretação de uma relação comparativa entre elas, de modo que o integrador comum que sustenta a comparação, ainda que passível de identificação por processos inferenciais, está mais opaco. Conforme já sinalizado, na junção contrastiva típica, ambas as orações são assertivas, isto é, pragmaticamente simétricas, de modo que, apesar de habilitarem inferências de contraste, trata-se de construções que ainda se distanciam das construções contrastivas típicas, conforme ilustram (17) e (18). Em (17), a fonte é tempo sequencial, e o contraste inferido é oposição; em (18), o valor de contingência habilita inferências de quebra de expectativa.

(17) Elle que até hoje, por não saber o francez, não pudera dar todo o desenvolvimento às effusões do seu coração, sómente enunciadas por meio de interpretes, que as explicavão; sente agora hum duplicado prazer pelo discurso que ouvio, e por poder fallar em sua lingua com uma senhora franceza. (19ROPC)

(18) Um manco que a gente encontra sempre, na Colombo, aparecendo agora, aqui, na esquina! (20PTMP)

Em outro tipo de construções polissêmicas (Estágio III), representadas por (19) e (20), verifica-se ganho em codificação semântica do ponto de vista da construção complexa como um todo, pois a relação temporal-contrastiva tem estatuto coordenativo, explicitado por e. Enquanto juntor multifuncional, e é altamente dependente de processos inferenciais para que a conexão que sinaliza seja interpretada como contrastiva, mas seu valor semântico de combinação é suficiente para codificar, no material linguístico, a interdependência semântica entre as orações e relacioná-las como instâncias de um integrador comum, e subcodificar a suposição base do contraste, já que depende de enriquecimentos inferenciais para veicular uma relação contrastiva. Assim, embora agora ainda se distancie do protótipo de juntor contrastivo, participa de uma construção que apresenta traços de forma e de significado típicos de construções de contraste, uma vez que exibe tanto o integrador comum quanto a suposição inferida que contribuem para a formulação do contraste.

A configuração de uma relação coordenativa, além de dispor as orações como instâncias de um integrador comum e favorecer a busca por uma suposição, confere a ambas estatuto assertivo, o que, em nossa análise, torna a relação comparativa e, por consequência, o significado pragmático de contraste mais acessíveis do que nos contextos em que apenas uma das orações é assertiva. Em ambas as ocorrências (19) e (20), instauram-se relações de sequencialidade, que favorecem, respectivamente, quebra de expectativa e contraste opositivo.

(19) Senhor, foi o caso: Eu sou uma moça donzela e solteira. Fui pecadora, caí na tentação do Diabo: um magano... Já vossa mercê me entende! E agora, diz que não quer casar comigo. (18PTDQ)

(20) Sorprehendidos com a vista do pagé, que havia tantos annos não sabia da gruta e agora se apresentava no meio delles, como um juiz que vinha punir-lhes os desvarios, não podiam pronunciar uma palavra. (19ROAY)

Os dados mostram construções em que não só a construção complexa se aproxima do protótipo de construção contrastiva, mas também agora, embora ainda advérbio dêitico, adquire traços de juntor (Estágio IV), conforme mostram os dados em (21) e (22), representativos de contextos em que tempo sequencial fornece condições para oposição e quebra de expectativa, respectivamente. Nessas construções, agora ocupa a posição inicial do segundo membro de uma relação coordenativa (posição típica de juntores contrastivos, cf. QUIRK et al., 1985; KORTMANN, 1997[17,30]), na qual tem condições favoráveis à sua reinterpretação como o elemento que estabelece o elo temporal-contrastivo entre os EsCo, indiciando a relação comparativa entre eles.

Na medida em que agora ocupa a posição inicial do segundo membro coordenado, as construções em análise mostram posposição categórica da oração que agora encabeça, traço da morfossintaxe que é fundamental para a constituição da construção contrastiva. É importante notar que, nos estágios II e III, já é possível observar uma tendência à posposição, de maneira distinta em cada estágio. Em II, ainda que partes da oração integrada pelo item estejam separadas por uma oração intercalada, como, por exemplo, em (17) e (18), acima, agora tende a ocupar a parte localizada mais à direita da construção complexa. Em III, o item sempre ocupa a oração encabeçada por e, também figurando, portanto, em oração posposta.

(21) Antes teu passo te guiava para as frescas serras e os alegres taboleiros; teu pé gostava de pisar a terra da felicidade e seguir o rastro da raposa. Agora só buscas as praias ardentes, porque o mar que lá murmura vem dos campos em que nasceste; e o morro das areais, porque do alto se avista a igara que passa. (19ROIR)

(22) Ele já tinha ido pro C.D.P três vez essa é a quarta... agora num sabemo(s) se ele vai saí(r) agora. (21INIB)

Admitimos que, nos contextos do estágio IV, agora atua como advérbio juntivo, contribuindo para indicação de que a oração que encabeça e a oração precedente configuram instâncias de um integrador comum, de modo que se aproxima de uma das funções que, segundo Lang (2000), são típicas de juntores contrastivos. Ao atuar como advérbio juntivo, agora também favorece a busca por uma suposição que legitime a relação contrastiva: em posição inicial, se tem condições para ser reinterpretado como elemento juntivo que sinaliza contraste, agora também encontra um ambiente favorável à sua reanálise como índice de que uma suposição deve ser explorada para a construção do sentido. Dessa forma, consideramos que, no estágio de mudança em pauta, agora experimenta uma mudança conceitual mais expressiva.

Conforme a Tabela 1, apresentada na Seção 3, há, no português contemporâneo, construções com agora em que uma leitura exclusivamente contrastiva está disponível, ficando bloqueado o significado temporal, como mostram (23) e (24).

(23) Quando tô aqui...que todo dia o pessoal vem....mostra coisa....eu discuto...eu vejo...interajo.... agora...cê tá fora...com a cabeça na lua...na lua não né? no Museu...vendo mil coisas...você não interage com a sua pesquisa. (21LPSP)

(24) Tem lá uma pimenta lá em casa, agora se ela é comprada pronta eu não sei. (20DIDN)

Em (23), o contraste veiculado é de natureza opositiva; em (24), consiste em quebra de expectativa. O refinamento da interpretação do contraste depende do contexto, que fornece instruções sobre a manobra de contraste em jogo. Trata-se do componente procedural que é inerente a todo mecanismo de junção (cf. Introdução). Quanto ao componente conceitual, assumimos que, nessas construções, a codificação de contraste, independentemente da acepção, deriva apenas em parte de agora, ainda demandando suporte do arranjo contextual para que o significado temporal seja cancelado.

Todos os estágios atestados no percurso evolutivo de agora estão presentes nos dados do século XVIII ao XXI, de modo que não há correlação entre estágios de mudança e intervalos de tempo particulares. Observa-se, no entanto, um papel mais decisivo dos contextos polissêmicos de feição coordenativa, em todos os estados de língua analisados, sejam aqueles em que a coordenação está sinalizada por e ou aqueles em que agora atua como advérbio juntivo e indicia a relação coordenativa. De modo similar à trajetória de enquanto (que), as construções com agora também revelam um cenário de layering, ainda experimentando mudança.

Considerações Finais

Nos Quadros 1 e 2, sistematizamos os percursos evolutivos de enquanto (que) e agora à luz do ganho gradual dos traços típicos de juntores e construções contrastivas. As trajetórias evidenciam que o ganho em codificação semântica de contraste é sistematicamente paralelo ao ganho de um integrador comum e de uma suposição que é base para o contraste.

Figure 2. QUADRO 1 - Enquanto (que): estágios de mudança e traços da construção Fonte: elaborado pelas autoras

Figure 3. QUADRO 2 - Agora: estágios de mudança e traços da construção Fonte: elaborado pelas autoras

Em ambos os percursos, a conjugação do significado de comparação com os valores temporais originais de enquanto (que) e agora tem papel decisivo e pode explicar, ao menos em parte, a constituição de relações de contraste de natureza coordenativa. Ao envolver o cotejo de EsCo sob um mesmo viés, a comparação alimenta o desenvolvimento de um integrador comum, que, como mostraram as análises, é traço essencial nas mudanças. A constituição de contraste, por sua vez, encontra explicação na correlação entre as fontes temporais e outros traços do contexto, que dão contornos de desigualdade às relações comparativas.

Ainda que similares em termos da origem no domínio semântico de tempo e no significado de comparação, os percursos revelam a atuação de diferentes moldes conceituais na motivação das mudanças. No percurso de enquanto (que), opera o molde pautado em relações de concomitância, nos termos de Rudolph (1996)[2], ao passo que, no de agora, atuam tanto o molde baseado na sequencialidade entre eventos quanto aquele relativo à recorrência de eventos no tempo. Ao alimentarem modelos e expectativas de mundo, esses moldes possibilitam, em contextos específicos, a reinterpretação das relações temporais como temporal-contrastivas.

Em nossa análise, enquanto (que) e agora ainda não têm semantizados seus significados contrastivos. As decisões em torno das interpretações temporais, contrastivas e temporal-contrastivas se pautam nas fronteiras fluidas entre inferenciação pragmática e codificação semântica, que evidenciam, do ponto de vista sincrônico, a complexidade da construção do sentido, dependente de informações de diferentes níveis de análise, e, do ponto de vista diacrônico, a complexidade da mudança, motivada por fatores tanto intra quanto extralinguísticos, a partir da interação sistemática entre o sistema da língua e as forças cognitivo-comunicativas que operam sobre ele.

Agradecimentos

Agradecemos ao apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), no âmbito dos processos 2015/04512-1, 2015/21358-6 e 2019/01411-0; e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no âmbito do processo 305901/2017-6.

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