A transitividade das autorias nos processos editoriais

Luciana Salazar SALGADO

Resumo




Estas considerações sobre autoria, tema de todos os tempos e de muitos campos de saber, se inscrevem numa abordagem material da intersubjetividade, isto é, estão assentadas na relação entre sujeitos e objetos técnicos por eles produzidos, os quais recaem sobre esses sujeitos, sobretudo na relação entre sujeitos, posto que não há produção de quaisquer objetos senão a partir do estabelecimento de valores construídos intersubjetivamente. O foco, aqui, é na mediação editorial, que julgamos emblemática dessa condição humana. 




Introdução

Para abordar a problemática da autoria de uma perspectiva editorial, consideremos um caso recente de grande impacto: em julho de 2015, uma notícia em circulação digital aparentemente produzida pela BBC Brasil1 e replicada em postagens bastante diversas, com adaptações variadas (de legendas, olhos, títulos e hiperlinks) faz a revelação de um achado: originais do título Pedagogia do Oprimido, escrito por Paulo Freire nos anos 1960. Atesta-se que:

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O manuscrito, que contém trechos inéditos do livro – publicado nos Estados Unidos em 1970 e proibido pelo regime militar brasileiro até 1974 – sobreviveu à ditadura chilena nas mãos de Jacques Chonchol, ex-ministro de Agricultura no governo de Salvador Allende (1970-1973).

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O historiador José Eustáquio Romão, apresentado como “amigo pessoal de Paulo Freire”, figura em imagem de destaque e faz, segundo os recortes editoriais da notícia, afirmações bombásticas, como a que foi alçada a título da matéria – “Brasil nunca aplicou Paulo Freire” –, supostamente respondendo a estímulos como o que aparece na versão postada para os leitores: o dizer “Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”, que, segundo nos informa o texto da BBC, gerou polêmica nas redes sociais depois de ser empunhado quando “Manifestantes criticaram Paulo Freire durante protestos anti-governo em março de 2015”. Ao historiador também se atribui a informação de que esse importante texto contribuiu para a implantação de um método eficaz de alfabetização em Cuba, na Finlândia, na Mongólia, na Armênia, no País Basco, na Coreia do Sul e no Japão, entre outros, mas que, tendo sido publicado primeiramente nos EUA, foi editado conforme “um princípio ideológico” que suprimiu passagens em que se “diz que o sujeito da história não são as lideranças, é o coletivo das massas oprimidas”, e isto faz do manuscrito algo realmente único: “a parte do livro em que Paulo Freire fala sobre a ‘teoria da ação revolucionária’ não existe em nenhuma edição em nenhuma parte do mundo”. Uma foto dá a ver esquemas rascunhados pelo escritor, e somos informados de que essa preciosidade está a salvo nas mãos de Romão, seu guardião legitimado:

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A família dele nos autorizou a fazer mil exemplares do texto, mas não a vendê-los. Estamos distribuindo uma versão digitalizada a editores e às grandes bibliotecas do mundo, para que as novas edições se baseiem nisso aqui. O manuscrito atualmente está escondido, eu o escondi. Ele vale milhões. Além disso, não queremos que suma novamente (risos).

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Interessante notar que exatamente um ano antes, em julho de 2014, anunciava-se no Portal Brasil > Cultura2:

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Ministério da Cultura (MinC) recebeu, nesta quinta-feira (20), do reitor da Universidade Nove de Julho (Uninove), professor Eduardo Storópoli, a doação do manuscrito do livro “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire. Ele será encaminhado à Fundação Biblioteca Nacional (FBN). O livro é uma das principais obras de Freire e foi traduzido para mais de 25 idiomas. “O Ministério da Cultura e a Fundação Biblioteca Nacional ficam muito honrados em receber os manuscritos do nosso patrono da educação”, declarou Marta Suplicy [então ministra] ao informar que os originais do livro terão lugar certo na Casa das grandes obras da nossa história.

Como se pode constatar, esse autor maior, isto é, de muitos modos referido como pertencente a um panteão, legou um tesouro que não só “vale milhões”, dada sua história de circulação restrita na versão em tela, ladeada pela história do alcance planetário da divulgação de seus conteúdos a partir da versão publicada nos EUA, como também põe em relevo um processo de edição, feito numa dada conjuntura, que agora revaloriza a obra ao revelar mais do pensamento “do homem por trás da pena”, de sua trajetória de perseguido político, das relações que estabeleceu e que puderam, com imensos riscos, fazer viver essa versão das versões, essa origem que só agora vem a público – um público restrito, diga-se: “editores e grandes bibliotecas do mundo”. Certamente cabe avaliar o valor construído por essa restrição. Também aparecem, com essa revelação, traços da família a que esse homem pertence: seus herdeiros não querem comercializar o achado, mas garantir uma distribuição que talvez seja a fonte das novas edições do texto, conforme a decisão dos atores a quem se distribuem os exemplares autorizados. Aparecem, ainda, traços das funções sociais do Instituto que leva seu nome, do modo de adesão a sua proposição metodológica em culturas aparentemente tão distintas... e duas longas trajetórias são, assim, avivadas: a do autor e a da obra. A divulgação da dedicatória – em destaque – garante em boa medida essa chave de leitura:

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Queria que vocês recebessem estes manuscritos de um livro que pode não prestar, mas que encarna a profunda crença que tenho nos homens.

Trecho da dedicatória escrita por Paulo Freire a Jacques e Maria Edy Chonchol

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Registre-se, ainda, que a dispersão da informação por um portal de notícias (com Twitter e Facebook agregados) dá circulação nova ao que fora publicado um ano antes em diversos portais governamentais, cujos tuítes costumam chegar a círculos especializados e pretendem servir de pauta à mídia de amplo espectro, embora frequentemente isso não se dê. O fato é que, de um ano a outro, a notícia do achado se difunde diferentemente e, em 2015, amplia-se seu raio de ação, produzindo-se reverberações e ressonâncias outras3. Basta examinar os comentários feitos a cada uma das postagens que replicaram a notícia da BBC para constatar uma polarização ideológica ligada à atual tensão política que, no Brasil, encarnou-se num ódio agressivo a um partido de alinhamento distinto da tradição patronal, mais amplamente num ódio às esquerdas, mais difusamente numa ojeriza aos trabalhadores e às chamadas minorias, para dizer o mínimo sobre uma conjuntura fervilhante.

Importa, aqui, levar em conta todos esses aspectos entendendo que as várias relações que se estabelecem – ou não se estabelecem – entre fontes produtoras e dispersoras (portal de notícias corporativo, portal governamental e respectivas formas de retomada nas redes) são cruciais para uma perspectiva discursiva de estudo das mediações editoriais. Os modos de dar a ler o que se dá a ler implicam articulações complexas entre materiais verbais e não verbais, consideradas aí suas inscrições materiais, fortemente condicionadas e também condicionadoras dos meios de dispersão. Feita essa consideração, certamente muito se poderá dizer a respeito da notícia sobre o precioso manuscrito do nosso patrono da educação, que difundiu pelos quatro cantos da Terra uma metodologia política de aproximação com a língua... etc. Nesta ocasião, focalizamos essa problemática pondo no centro a autoria. Tema de todos os tempos e de muitos campos de saber (Cf. HANSEN, 1993), a autoria recebe, aqui, uma abordagem material que analisa relações entre sujeitos e objetos técnicos por eles produzidos, os quais, longe de serem inertes, sobre os sujeitos recaem, produzindo subjetividade; mais especificamente, trata- se de abordar as relações entre sujeitos levando em conta que não há produção de quaisquer objetos senão a partir do estabelecimento de valores construídos intersubjetivamente (Cf. SALGADO, 2013).

Essa perspectiva se assenta no tripé definidor da análise do discurso dita de tradição francesa, a saber: i) a língua é opaca, polissêmica, e sua autonomia relativa é verificável na produção dos sentidos dada por relações parafrásticas; ii) os sujeitos são cindidos na origem, interpelados pela ideologia e, um tanto sujeitos, um tanto assujeitados, trabalham para firmar uma posição de interlocutor; iii) a história se produz no cruzamento de distintas temporalidades, que se afetam instituindo um presente, instaurado na convocação de dadas memórias e nas projeções delimitadas pelo lugar de fala. Sobre essas bases, cerca-se o tema: em nosso exemplo introdutório, o autor Paulo Freire se erige nos modos de aparecimento de traços materiais de sua obra (de sua escrita em especial), que só é obra porque é reconhecida como produtora de sentidos conforme circula em dadas comunidades, que a designam deste ou daquele modo, convocando este ou aquele traço do homem histórico, do ser no mundo, sendo que esse mundo também se define nessa convocação. A autoria é um complexo entrelaçamento.

1. Escrever, circular, existir

Embora as hipermídias venham modificando práticas de toda ordem e, sobretudo no que tange às chamadas redes sociais, venham provocando uma verdadeira explosão de paradigmas herdados de longa data4, como é o caso de valores e entendimentos relativos à autoria e à leitura, ainda são bastante frequentes trabalhos analíticos que operam com uma noção de autor apartada da de leitor, encerrada numa suposta homogeneidade sagrada, que vê a criação como um processo plenamente individual e de desligamento do comum, do mundano, dos mortais, enfim. Ou então trabalhos que operam com noções de texto e de discurso que excluem completamente de suas análises a condição humana – vale dizer histórica

– do autor, possivelmente temendo produzir biografias psicologizantes ou historiografias mecânicas, como frequentemente aconteceu (Cf. MAINGUENEAU, 2006a). Em todo caso, os materiais linguísticos se produzem aos montes, multiplicados, desdobrados, renovados, transformados conforme as características deste período, que Milton Santos (2009) chama de técnico-científico informacional, enfatizando, entre outras coisas, as novas relações espaço-temporais que as tecnologias da informação e da comunicação animam.

Nos estudos dos processos editoriais, é imprescindível compreender que essas transformações que vivemos se definem na imbricação de uma unicidade técnica, com sistemas em rede de alta fluidez, dinamizada por uma economia de motor único, que produz e distribui informação gerando uma cognoscibilidade planetária, que se assenta na experiência de uma aceleração da vida, dada pela convergência dos momentos vividos em lugares outrora apartados. Noutros termos, podemos dizer que os dispositivos (informacionais, comunicacionais, editoriais e outros), articulados, constituem uma tecnoesfera, uma malha técnica planetária (que decerto tem diferentes densidades em diferentes pontos do globo), geradora de uma psicoesfera, isto é, de disposições (crenças, valores, formas de comunhão com o Universo). Assim, o atual período produz-se na relação entre uma dada tecnoesfera e uma dada psicoesfera:

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De um lado, é abusivamente mencionado o extraordinário progresso das ciências e das técnicas, das quais um dos frutos são os novos materiais artificiais que autorizam a precisão e a intencionalidade. De outro lado, há, também, referência obrigatória à aceleração contemporânea e a todas as vertigens que cria, a começar pela própria velocidade. Todos esses, porém, são dados de um mundo físico fabricado pelo homem, cuja utilização, aliás, permite que o mundo se torne esse mundo confuso e confusamente percebido (SANTOS, 2009: 17).

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Aí se inscreve a atual divisão do trabalho intelectual, toda ela atravessada pela mediação editorial, isto é, por técnicas e normas encarnadas em objetos que formalizam materialmente os textos e seus fluxos (Cf. FLUSSER, 2007), conforme os dispositivos e as disposições característicos do período.

1.1. Um caso

Com vistas a examinar mais detidamente o modo como a formalização material de um texto em preparo para publicação implica relações diversas, considere-se o excerto a seguir, da página de agradecimentos de um livro de Bruno Latour, renomado epistemólogo das ciências, que tem publicado diversos tipos de texto nos últimos trinta anos e está, portanto, bastante familiarizado com práticas de preparo de um texto destinado a circular socialmente. A certa altura de sua página e meia de abertura do livro A esperança de Pandora (2001), lê-se:

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Tantas pessoas leram rascunhos de partes do livro que já nem sei bem o que pertence a elas e a mim. Como sempre, Michel Callon e Isabelle Stangers deram orientação essencial. Por trás da máscara de árbitro anônimo, Mario Biagioli foi decisivo para a forma final da obra. Durante mais de dez anos, beneficiei-me da generosidade de Lindsay Waters como editora – e mais uma vez ela ofereceu abrigo para meu trabalho. Minha maior gratidão, contudo, é para com John Tresch, que burilou o estilo e a lógica do manuscrito. Caso os leitores não fiquem satisfeitos com o resultado, queiram imaginar a selva emaranhada pela qual John conseguiu abrir caminho!

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Retenham-se as imagens convocadas: a da selva emaranhada e a do abrir caminhos. Esse escritor experiente decerto não escreve errado ou desconexamente, possivelmente é sua experiência com a lida da escrita, sua experiência com as leituras que são feitas de seus textos, que o leva a considerar que ser um escritor experimentado não permite crer garantida a clareza do que escreve; antes, tem a ver com buscar essa clareza, que é mais fortemente balizada quando um outro lhe diz o que lê em seu texto. Toda leitura explicitada é uma forma de levar o autor a olhar com outros olhos o que escreveu, e é olhar com esses outros olhos que permite calibrar o texto.

Possivelmente, por sua experiência, sabe, então, que o que há de selvagem e de emaranhado em seus textos não é outra coisa senão a própria linguagem em uso, que é amarração de elementos linguísticos e extra-linguísticos, com suas historicidades específicas, o que significa dizer com seus sentidos historicamente estabelecidos, portanto algo cambiantes, um tanto movediços. Sabendo disso, esse autor sabe que um texto que pretende circular publicamente não deixará de ser um complexo reunindo planos que parecem, a princípio, indiscerníveis, porque funcionam sempre implicados, imbricados, imiscuídos. Ele sabe, então, que abrir caminho não é derrubar mata e fazer clareira, fixando um ponto de descanso da lida, mas que, nessa selva, abrir caminho é um trabalho permanente para enxergar na mata percursos preferenciais.

De todo modo, nunca se estabelecerá um só caminho. Todo dizer posto em circulação ganha mundo amarrando-se à teia interdiscursiva e, assim, engrossa certos coros e desdenha outros, mete-se em certas fileiras e rejeita outras. Na dinâmica histórica, os textos se põem como partícipes desta ou daquela comunidade, e os sujeitos que constituem as comunidades vão lendo esses textos conforme o que neles faz soar esse ou aquele posicionamento. Os dizeres estão sempre ligados ao trabalho de sujeitos que, interpelados pelas condições de produção do que enunciam, manobram no miúdo de suas existências, e desse modo é que constroem seu pertencimento a dadas comunidades, sua participação em dadas polêmicas, que alimentam as instituições, ou as destroem, ou as reinventam.

Entende-se, dessa perspectiva, que o oficio de escrever supõe sempre que haverá trabalho de um outro, que um outro correrá umas linhas, tardará noutras e é provável que tropece em certas passagens, pois o encontro entre sujeitos é sempre no caminho, caminhantes que são os sujeitos ao se porem nos lugares de autor, de leitor – e correlatos.

O que John Tresch fez pelo texto de Latour foi, de certo modo, ler “em voz alta”, guiado por certos critérios editoriais, marcando as trilhas que seguia, indicando ao autor o que lhe pareceu estar escrito ali. Desse modo, Latour pôde voltar a seu texto e, no lugar de leitor, algo distanciado do que escreveu, trabalhar uma vez mais, eventualmente reescrever trechos, e só então decidir com que feições o texto se daria a ler mais amplamente. É claro que a cada nova leitura esse processo se reinicia nalguma medida. Os textos, linearizações de discursos, não têm fim. Por definição. Mas os textos têm caminhos, alguns mais autorizados que outros.

Evidentemente, todas as pessoas que Latour menciona fizeram, nalguma medida, esse papel de mostrar as veredas que o texto lhes propôs e, desde aí, essas observações e comentários também faziam parte daquilo que se escrevia. Mas a participação de Tresch tem alguma diferença em relação a essas outras contribuições, ele participou de um modo bastante específico: estabeleceu essa conversa no próprio texto, no corpo do texto, nas miúdas engrenagens, nos vãos entre elas. Mexeu em construções, em preposições, em conjunções, substituiu palavras, sugeriu partições. Poderíamos dizer que Tresch pôs o texto em franco movimento e escancarou sua condição de textualização, de trabalho em processo. E assim lembrou Latour de que ele não é só um nome de autor, uma figura que responde jurídica e socialmente pela publicação, é também um trabalhador na lida com a linguagem, filiando-se, debatendo- se, amarrando-se com seus dizeres à teia interdiscursiva que é o mundo humano.

Num processo editorial, os escritores são chamados a ler o que um outro diz ter lido em seu texto. Esse outro, leitor profissional, é também escriba, posto que lê para escrever sobre o que foi escrito, escreve coisas que devem servir para que o autor possa ser um proficiente leitor de seu próprio texto. E esse trabalho se processa porque há editores dipostos a publicar os textos de um autor, que se ocupam de coordenar coletivos que dão tratamento editorial aos textos autorais. Entram aí também as intervenções dos diagramadores, dos capistas, dos ilustradores, dos tradutores, dos cartógrafos, dos iconógrafos, dos bibliotecários, dos resenhistas, de todos os atores que, afinal, transformam os originais do autor em objeto de valor autoral.

Diante disso, a questão que se põe é: um autor não é só um escritor – aquele que escreve –, é também aquele que é lido – em diferentes etapas por diferentes estatutos de leitor – e aquele que estabelece relações institucionais variadas, viabilizando processos de escrita e de leitura. Frise-se: processos, uma vez que não se trata de pensar em ponto de partida e ponto de chegada, mas em rebatimentos dinâmicos de constituição recíproca de lugares discursivos, lugares delimitados pelas coerções de um tempo-espaço definido numa certa relação de técnicas e normas, que condiciona imaginários, sendo ela própria por eles condicionada. A autoria é um complexo entrelaçamento que é preciso gerir.

2. Gestão autoral

A perspectiva da mediação editorial é necessariamente uma abordagem material da autoria, mais além, da gestão dos processos (de que derivam produtos) que fazem de um escritor autor. O problema da transitividade fica evidente: um autor não é senão um dos nós de uma rede que se tece conjunturalmente e, então, se define conforme aquilo que escreve – um autor de artigos científicos de física nuclear, ou de uma tese de doutorado em sociologia que mobiliza esta ou aquela vertente teórica, ou um autor de romances, ou de poemas ou de uma dissertação nos estudos da literatura, ou autor de história em quadrinhos para adultos ou de um roteiro cinematográfico ficcional para grandes telas ou de um roteiro de documentário engajado para tevê, um autor de material didático de ensino de português para estrangeiros ou de material encomendando pelo Ministério da Educação para formação de neoleitores... Cada um desses objetos editoriais articula-se à condição de existência do nó que é sua autoria, imprescindível nó entre outros.

Roger Chartier, eminente estudioso da história das práticas de leitura no seu cruzamento com a sociologia dos textos, em muitos de seus trabalhos aponta como nevrálgica essa articulação entre atores sociais e materialidades inscricionais, que confere aos textos a potência de “circulação da energia social”. Em livro lançado recentemente, intitulado A mão do autor e a mente do editor, reúne ensaios escritos na última década, todos eles sobre casos desdobrados de invenções técnicas que produzem objetos de alto valor social; no prefácio, registra uma nota sobre sua própria condição autoral:

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Para um autor, mesmo um historiador-autor, reler o próprio trabalho é sempre uma provação. Os ensaios aqui reunidos foram cuidadosamente revistos para corrigir erros, evitar repetições e acrescentar as necessárias referências a obras e artigos que apareceram após terem sido publicados pela primeira vez. Se eu os reescrevesse hoje, provavelmente seriam bem diferentes, mas eles se mantêm dentro do projeto básico que os colocou numa certa trajetória de pesquisa e reflexão. Sempre pensei, e ainda penso, que os labores do historiador ou historiadora atendem a duas necessidades. Eles devem propor novas interpretações de problemas claramente definidos, mas também dialogar com colegas estudiosos das vizinhas disciplinas de Filosofia, Crítica Literária e Ciências Sociais, de modo a estar mais bem armados para refletir sobre suas próprias práticas e sobre os rumos para os quais a disciplina se dirige (2014: 14-15).

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É especialmente interessante ver como trabalha este autor que estuda o trabalho de autores, ciente do trabalho que faz, ocupado em registrá-lo num prefácio que tem função tanto de advertência aos leitores – que são também seus alunos, seus colegas, seu seguidores –, quanto uma justificativa sobre a versão que não traz novos textos, mas, sim, novas textualizações, na medida em que refaz caminhos para dialogar com outros textos que se julga importante referenciar, e talvez mesmo referendar, uma vez que, expoente numa dada comunidade, Chartier é um autor que pode legitimar outros autores ao citá-los – logo, ao designá- los como correlatos de uma obra.

E se podem verificar facilmente as variadas coerções a regular esse trabalho. Como a novidade linguística, sobretudo no texto em francês, da explicitação dos marcadores de gênero em referência a uma profissão (historiador/historiadora), uma exigência de nossos tempos, registro de um posicionamento que talvez um intelectual que se põe como progressista esteja obrigado a assumir em cada texto que leva a público. Vemos também as coerções relativas à própria profissão de um escritor que é historiador, ao posicionamento que assume diante dela: ele registra que se deve garantir, desse lugar, que um conjunto de práticas sejam não só preservadas, mas também permanentemente avaliadas, levando-se em conta tanto a função de intérprete – este é o trabalho a ser feito, e o é sobretudo pela leitura de documentos e a escrita sobre essas leituras –, quanto a de membro de uma comunidade produtora de conhecimento, que deve articular fronteiras disciplinares, como reiteradamente temos constatado nas instituições encarregadas de pensar a vida humana, sua relação com outras vidas, seu modo de condução do viver.

A “provação”, parece, consiste em trabalhar sobre seus próprios textos como historiador-autor sendo inescapavelmente um autor- historiador que, leitor dos documentos que produziu ao ler outros documentos, não pode fazer qualquer edição quando os relê para nova publicação; essa nova textualização exige, por exemplo, “evitar repetições”, o que supõe cortar, fundir, suturar flancos criados pela própria decisão de reunir estes ensaios, o que supõe uma seleção feita com critérios ligados à função social entendida ou pretendida para estes textos, revisitados na atual conjuntura, afetados pela produção de outros textos postos em circulação.

Ocioso dizer, talvez, que tudo isso está ligado ao fato de Roger Chartier ser um autor maior, isto é, de muitos modos referido como pertencente a um panteão – o que tem a ver, como no caso de Paulo Freire, com seus textos serem publicados, traduzidos, estudados, retomados num alcance editorial de logística exponencial. De fato, a logística de distribuição dos textos é parte desse panteão. Esse imaginário quase mítico se produz com a dispersão de materiais de alta potência difusora, que implicam uma cadeia criativa, uma cadeia produtiva e um farto ambiente de consumo.

Na quarta-capa da edição brasileira, o aparecimento de dois outros expoentes na mesma comunidade de circulação de Chartier endossa esse imaginário: Stephen Greenblatt, professor em Harvard, fala em “brilhantes ensaios”; Peter Burke, professor em Cambridge, atesta “o extraordinário talento” do colega. Veja-se que as próprias universidades que localizam as vozes avalizadoras institucionalizam o imaginário mítico: são famosas universidades, que figuram publicamente como abrigo de pesquisas de ponta, de um grupo seleto de pesquisadores, com resultados altamente relevantes. A imprensa, o cinema e a produção bibliográfica são os principais dispositivos geradores dessa disposição que temos para com Harvard e Cambridge.

É precisamente essa condução do problema que nos dá ocasião de apresentar três casos de mediação editorial que mostram três modos de gestão autoral, delimitados pela dimensão assumida em cada autoria.

2.1. O fiador

A seguir, será apresentada uma página de um Manual do Proprietário componente da documentação contratual na comercialização de um apartamento de alto padrão (Tamboré, SP, 2005).

Um coletivo de engenheiros e técnicos reuniu as informações que devem, finalmente, ser repassadas ao comprador da unidade habitacional, possível morador ou negociador desse bem. Em negrito, registra-se o trabalho do revisor de textos, originalmente em magenta nos arquivos pesquisados.

ESQUADRIAS DE MADEIRA

manutenção

Não se devem bater as portas, para evitar trincas na madeira e danos às fechaduras e ao revestimento das paredes.

limpeza das fechaduras e ferragens - Use um pano umedecido com água e evite produtos abrasivos.

limpeza das portas envernizadas - Use apenas uma flanela seca. Quando a porta começar a perder o brilho, pode-se usar lustra-móveis num pano levemente umedecido e depois enxugá-la com uma flanela seca, para lustrá-la e tirar todo o resíduo do lustra-móveis. (Esse produto deixa uma camada gordurosa, a que a sujeira adere facilmente.)

fixação de objetos nas portas - Não se devem fixar objetos nas portas nem perfurá-las.

Não se devem retirar as borrachas de amortecimento instaladas nos batentes.

Não se devem molhar constantemente a parte inferior e as folhas das portas, para evitar que apodreçam.

As dobradiças e os parafusos devem estar sempre firmes, e nenhum

objeto se deve interpor sob as portas.

As portas e ferragens não estão dimensionadas para suportar aparelhos de ginástica ou equipamentos que lhes imponham quaisquer formas de torção5.

As dobradiças devem ser periodicamente lubrificadas com pó de grafite ou lubrificantes específicos.

Para eventuais ajustes ou adaptações nas portas, convém consultar o fornecedor (tel. ver “Tabela de fornecedores”6).

especificações técnicas

batentes e guarnições : marca Pormade

Os batentes foram fixados com espuma de poliuretano e as guarnições, pelo sistema de encaixe kit porta pronta,7 todos com sistema de amortecimento em borracha.

(...)

Trata-se de um tipo de texto tipicamente instrucional, possivelmente de circulação ordinária, que apresentamos aqui em sua terceira versão, caminhando para o fechamento. Observa-se que ainda nesta etapa as questões levantadas pelo revisor mostram que há um processo em curso, que se volta para fora do texto: o leitor do manual se projeta na preocupação com o “nome do sistema”, com a clareza das explicações sobre “esforços adicionais”, com o modo de fornecer os telefones úteis.

Na etapa anterior, o engenheiro designado como autor do Manual anotava, em rodapé, dúvidas como “Mari, precisa deste “Mas”?”, “Não sou dona de casa e não entendo de lustra-móveis, mas creio que o produto deva ser usado num pano umidecido...”, “Outro dia a Claudia me deu uma aula sobre o deve e o devem, pelo que ela me explicou seria devem, desse jeito o aluno fica perdidinho…”, e explicações como “acho que o correto seria: ‘dobradiças funcionam bem quando estão firmes, por isso é bom verificar periodicamente os parafusos e, se for o caso, apertá-los com uma chave de fenda’”. Relações entre atores diversos, em etapas distintas, evidenciam-se numa troca de conhecimentos horizontalizada, verificável no tom estabelecido, por exemplo, pela modalização das perguntas, que muitas vezes revela desconhecimentos profundos (sobre portas, sobre a língua, sobre usos de instrumentos), convocando o saber do outro para chegar à melhor redação possível desse documento contratual – que, todavia, não é propriamente jurídico, como gênero de discurso socialmente estabelecido, embora procure juridicizar a contratação, por exemplo, usando estruturas como “não se devem”, que formalizam deveres, afetando uma neutralidade (de pessoa, de tempo e de modo) construída pelo infinitivo em uma passiva sintética, com que se põe em relevo o objeto, mais precisamente os cuidados demandados pelo objeto.

Ao fim e ao cabo, importa aqui que se trata de um tipo de texto que parece simples, mas cujo processo editorial mostra ser tão complexo quanto sempre é textualizar, que supõe dispositivos específicos e disposições concernentes. Pode-se imaginar, por exemplo, o sofisticado trabalho com as ilustrações que fazem parte destas explicações. E o engenheiro designado autor é aqui, afinal, responsável por garantir o poder juridicizante desse documento, que se assenta na pretensão de uma clareza máxima dessas explicações sobre a manutenção que ficará a cargo do comprador/morador. Tem-se aqui, segundo propomos, com base nos estudos de Dominique Maingueneau sobre autoria (ver, por exemplo, MAINGUENEAU, 2006b: 30), um fiador dos discursos que se atualizam nesse material. Esse engenheiro, que não é exatamente o escritor do manual, gere, no processo de produção editorial, a responsabilidade de responder por ele quando ganhar circulação social.

2.2. O ator

A seguir, apresentaremos um breve excerto de um mestrado em Linguística (Universidade de São Paulo, 2010) em processo de preparação de sua versão final. O documento original pesquisado opera com cores que distinguem etapas e interlocutores; por razões técnicas, aqui os negritos marcam as intervenções do revisor de textos e, nas notas, R1 e R2, de um lado, e A1 e A2, de outro, indicam, respectivamente, revisor e autor, na primeira e na segunda leituras do material.

(...) de modo que o corpus fosse transformado apenas com a mudança de marcas prosódicas em outro tipo de interação:

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exemplo1 – diálogo entre a terapeuta e Kaori, sem marcas prosódicas:

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T: Mas ele falou que a senhora veio com ele hoje.6

K: É que eu tava com pressa, pressa, muita pressa. Só que eu larguei ele lá na... Onde foi?

(In7: S1, ANEXO B, linhas 37 a 40)4

5 (R1) Pareceu útil à leitura que se separassem por uma linha o “título” (exemplo tal – conversa de Fulano com Sicrano) e o dialogo em si, e fizemos isso em todos os casos. Se você achar que não, a gente volta à forma original, ok? (R2) Devo entender que fica a linha entre o “título” e o diálogo? (A2) Sim: fica a linha entre título e exemplo, os parênteses. E a palavra Exemplo com maiúscula. E também podemos fazer como você comentou, de os exemplos serem contínuos apesar da mudança do capítulo, pode ser?

6 (R1) Podemos pôr aí um ponto final? (A1) Ok, concordo! (R2) E, portanto, podemos pôr um ponto final em todas as falas transcritas que terminam sem nada? (Há muitas e muitas...) Se sim, a gente faz na próxima leitura. (A2) Sim, é que em princípio as normas do NURC pedem para não pontuar nada, apenas para marcar com os códigos deles, mas minha orientadora não agüentou ver sem o ponto. E os exemplos das outras teses eu não alterei a pontuação... Então, em suma, podemos pontuar somente as sessões 2, 3 e 4. A sessão 1 NÃO precisa ser pontuada, porque eu ouvirei a gravação novamente e mexerei nos códigos, eu faço isso.

7 (R1) É assim que você quer indicar onde está esse excerto? Não podemos usar parênteses, como nas outras citações? Acho que melhora a leitura... (A1) Ok, concordo! Usemos parênteses. (R2) E vamos fazer isso em todos os outros exemplos, certo? (Se sim, fazemos na 3ª leitura.) (A2) Sim, é assim

Trata-se de um capítulo de apresentação de dados colhidos em entrevistas, que supõem aparatos e dispositivos variados, entre eles gravadores e protocolos como o do Projeto da Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro - NURC, referência fundamental nas transcrições de entrevistas, mas que, se ajuda a estabelecer um padrão necessário às análises científicas, não dá conta necessariamente de todas as exigências em jogo, como a da orientadora que “não aguentou ver sem o ponto”, e a própria ênfase do revisor sobre a leiturabilidade do documento em tela.

Flagramos, aqui, uma etapa de um processo que ainda continuará – prevê-se ao menos uma “3ª leitura” – e isso aparece como algo evidente na interlocução registrada entre coenunciadores – revisor e autor trabalham na tessitura dese material com o mesmo afinco, distribuem tarefas entre si, estabelecem acordos, nos quais consideram aspectos institucionais da área, que inclui hierarquias, tanto na universidade, entre orientando e orientador ou entre pesquisador e protocolos, quanto no processo de textualização, entre revisor e autor, sendo este quem define os encaminhamentos, mesmo que só depois de ser informado pelo revisor das possibilidades textuais adequadas ou desejáveis. Lembremos, ainda, que se trata de apresentar o texto a uma banca para obtenção de um título. É um tipo de texto que deve, ao mesmo tempo, atender muito corretamente a coerções instrucionais (como os protocolos de formatação), evidenciando que os domina, e, com base nisso, dar a ver resultados de uma pesquisa empreendida. Não se recebe o título de mestre por uma pesquisa feita senão pelo registro textual do que se fez.

Este autor é, segundo propomos, com base nos estudos acima referidos (ver, por exemplo, MAINGUENEAU 2006b: 30), um ator dos discursos que se atualizam nesse material. Esse mestrando escreve sua dissertação, cumprindo uma praxe que define seu lugar. Ainda está escrevendo, agora com uma interlocução editorial, que, note-se, não se resume a corrigir o texto, tampouco a fazer apreciações. É uma leitura registrada que contribui para a gestão do processo de textualização exigido pelo lugar que o define – o de mestrando – e pelo lugar que se construirá com a versão final desse texto – o de mestre. Faz parte da atuação desse autor que se ocupe das questões de que se ocupa, e também que se ocupe de registrá-las textualmente conforme certos ditames, do que decorrerá que se defina em um novo lugar na pesquisa, e talvez na docência, conforme as virtualidades da carreira.

2.3. O auctor

A seguir, apresentamos trechos de um documento da etapa editorial geralmente referida por “batida de emendas”, que ocorre na finalização dos processos, às vezes conduzida pelos autores, como é o caso aqui, às vezes conduzida pelo revisor ou pelo editor, ou por alguém designado mais ou menos formalmente, de acordo com o processo em curso. Em todo caso, é o fechamento da versão que vai a público.

Neste caso, trata-se de um documento recente, de autores que são expoentes numa dada comunidade, publicados por editora de amplo alcance logístico e investida de forte capital simbólico. Mas não é possível nem reproduzir o documento na íntegra, nem oferecer dados institucionais precisos: um sigilo da fonte é exigido pelas instituições em jogo, e isto é já um dado discursivamente relevante para entendermos a gestão dessa dimensão autoral. O documento pesquisado se intitula “Resposta às observações da revisão” e está subdivido em seções. A seguir, apresentamos itens de uma sequência referida como “Questões de caráter mais geral”:

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- “Capítulo” ou “parte”: para nós é indiferente. Mas se for o caso de usar “capítulo”, vai ser preciso uniformizar o texto todo, inclusive o sumário e os títulos.

- Ficamos preocupados ao ver que na tela não aparecem os símbolos fonéticos. Achamos que isso ainda pode dar problemas. (Ó Editora [X]: com tantos livros de lingüística que vocês editam, e já que não há custos, não estava na hora de pôr os arquivos do SIL em todos os computadores da casa?)

- Maiúscula ou minúsculas nos títulos. Há várias convenções a esse respeito. A que foi adotada pelo revisor é muito parecida com aquela que adotam os franceses que, nos títulos, escrevem em maiúsculas apenas os nomes próprios. Sem problemas.

- O revisor deixou escapar algumas referências cruzadas que remetiam a outros capítulos ou partes.

- No que diz respeito à grafia dos nomes indígenas, notamos que foram tiradas as maiúsculas e esses termos foram usados no plural. Mas continuam as letras k, w e y. Isso é provavelmente o resultado da uniformização que pedíamos ao revisor num e-mail mandado alguns dias atrás, em resposta a uma consulta de [Y]. Mas não custa perguntar: é isso mesmo ou escapou alguma coisa?

- Notamos que foram mandadas para nota de fim de capítulo todas as remissões a obras consultadas que constavam das legendas de figuras, dos boxes e das antologias. Salvo engano, todas as obras referidas constam da bibliografia. Isso permite simplificar as notas, onde a referência pode ser reduzida. Sugerimos dar apenas sobrenome do autor, data da obra e página (com isso o leitor localiza a referencia completa na bibliografia).

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Antes de qualquer outra observação, na análise comparativa salta aos olhos a diferença de tom em relação aos casos anteriores. Também fiadores e atores do que se textualiza, estes autores são ainda autoridades previamente estabelecidas, que se referem ao revisor e à revisão como terceiros nesta interlocução com uma instância editorial última. Fazem uma espécie de relatório de apreciação da revisão feita, explicitam seus conhecimentos sobre editoração mesmo quando aceitam os encaminhamentos técnicos dados, sugerem procedimentos e chamam a atenção para lapsos e descumprimentos. E, ao modo de uma súplica, passam um pito na editora que, sendo dedicada a uma área que assim o demanda, não tratou de garantir a instalação de um software de livre acesso, considerado básico num dado campo. Os autores se dizem “preocupados”, registram que “isso ainda pode dar problemas” e, entre parênteses, como um aparte, um acréscimo explicativo, bronqueiam: “(Ó Editora [X]: com tantos livros de lingüística que vocês editam, e já que não há custos, não estava na hora de pôr os arquivos do SIL em todos os computadores da casa?)”. O vocativo, retomado mais adiante por “vocês”, é revelador do coletivo que toda unidade editorial, casa editora ou não, supõe. Mas a bronca só é possível porque, mesmo como parte desse coletivo nesse processo, esses autores falam de cima para baixo, apoiados na expertise que explicitam, especificamente quanto às necessidades de sua área de atuação, mais amplamente quanto aos procedimentos editoriais adequados para atendê-la.

Mostram também o que se reitera em todos os processos de tratamento editorial de textos: há conversas em reuniões, telefonemas e emails, há combinados, diferentes etapas e atores, máquinas, transposições de códigos, protocolos e, sempre, a projeção de um leitor, que, aqui, é alguém que, entre outras coisas, “localiza a referência completa na bibliografia”.

Mas mais adiante no documento, um outro trecho pode confirmar a dimensão autoral específica assumida neste caso, que propormos ver, com base nos estudos acima referidos (ver especialmente MAINGUENEAU, 2006b: 33-38) como auctores, autores maiores, isto é, de muitos modos referidos como pertencentes a um panteão. Numa seção intitulada “Trechos incontornáveis”, lê-se:

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Há uma bagunça federal no final da página 8 da parte 2. Não dá para saber se haveria alguma coisa a fazer nesse final de página. O melhor é que a [EDITORA X] nos mande esse trecho todo em attachment de algum e-mail, nas próximas horas.

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Trata-se de uma exigência: “...nos mande esse trecho todo em attachment de algum email nas próximas horas”. Há “uma bagunça federal”, adjetivação bastante típica de uma geração, que designa algo de amplitude máxima; e ela é apontada com uma precisão técnica perimetral: “no final da página 8 da parte 2”, reiterando-se o efeito de expertise editorial na reação a uma intervenção considerada descabida. Estes escritores zelam por seu texto acima de tudo, de certo modo pondo em questão a condução do trabalho pela editora, ao dizer o que é “melhor” fazer: deixar que eles resolvam. Imediatamente.

Auctores gerem obras já consagradas. A mediação editorial não pode abrir mão de garantir um bom produto final, que é sua razão de ser, entretanto, no processo de tratamento dos textos de auctors, lida inclusive com a ideia de que não há propriamente um produto editorial, mas uma espécie de evidência material da existência – a depender das variáveis socialmente estabelecidas e das comunidades de circulação – de um pensamento e, portanto, de um pensador, ou de uma criação e, portanto, de um criador.

2.4. Efeitos da gestão autoral

Em cada uma das dimensões que gerem o texto – fiador, ator, auctor

–, escritores se inscrevem diferentemente nos processos editoriais que, afinal, lhes conferem esta ou aquela autoria. Tais processos são, assim, parte dos ritos que caracterizam os autores, são ritos genéticos editoriais. Esses ritos registram modos de gestão da autoria, ou seja, a dimensão assumida conforme se gere o complexo enlaçamento de que falamos. Os traços que definem as instâncias pessoa, escritor e inscritor, se usarmos a teminologia de MAINGUENEAU (2006b) para retomar nosso ponto de partida neste artigo, presidem à gestão da figura discursiva de autor, que está impregnada de aspectos que apontam para a existência de um ser no mundo e, na mesma mão, de um mundo que se instaura à medida que se delineia esse ser (uma profissão, uma idade, um estado civil, um tipo de família; os tropismos variam, indiciando uma vida); esses indícios só aparecem porque há uma dimensão pública do trabalho de escrever (livros, sites, roteiros etc.; entrevistas, resenhas, fotos em jornais etc.; feiras, prêmios, casas editoras, editais etc.), e há o próprio trabalho de escrever, mais precisamente de inscrever o material linguístico no não linguístico ao qual está inextricavelmente ligado (página, papel, massa de texto, tela etc.; fontário, cores, respiros etc.; ícones, imagens, itemizações etc.), cultivando ritos que caracterizam esse trabalho (escrever muito, pouco, só à noite, com café, em súbitas anotações no meio da rua, em retiro e silêncio etc.), que são mais ou menos publicizados, na medida em que se trata de um trabalho destinado a uma circulação que também o regula.

A autoria é, assim, na rede de que participa, um nó borromeano: as instâncias pessoa, escritor e inscritor só constituem uma unidade por estarem em implicação dinâmica, e a dinâmica que assumem nos processos editoriais lhes garante uma dimensão. As autorias se fundam, segundo esta perspectiva, no trabalho permanente de tessitura desse nó.

Evidentemente, esse trabalho tem efeitos. No atual período, esses efeitos são particularmente suscitados pelas técnicas e normas que os objetos técnicos digitais, com seus processos característicos, impõem a toda produção intelectual. Sobre isso, importa registrar que está em pauta a própria ideia de objeto técnico e, portanto, de sua formalização material subjetivante. Mesmo nas auto-publicações em sites e blogs e nas produções culturais remix, como nas plataformas com perfis pessoais, há algo anterior que condiciona fotemente a gestão do nó autoral. Seja em que dimensão for,

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pequenas mudanças nos detalhes de um design digital podem ter profundos e imprevistos efeitos sobre as experiências dos seres humanos que o estão manipulando. A menor mudança em um detalhe aparentemente tão trivial quanto a facilidade de utlização de um botão algumas vezes pode alterar por completo os padrões de comportamento (LANIER, 2012: 18).

Com isso, vemos que a propalada autoria livre de filtros e julgamentos se produz, todavia, nas injunções de uma formalização material dada, entre outros, por programadores, designers dos engenhos viabilizadores de futuros registros. Estes serão produzidos, portanto, num jogo de coerções típico de um período no qual a cibercultura é hegemônica, o que se verifica muito especialmente na divisão do trabalho intelectual, e muito contundentemente nos processos editoriais que a caracterizam. Quando se fala na liberdade ligada à ausência de mediação que viabiliza tipos novos de autoria na internet, desconsidera-se o complexo funcionamento dos variados fandoms e, neles, das betagens (edição de textos) e ripagens (comentários descredenciadores), desconsideram-se as comunidades de jovens resenhistas, as regras rigorosas das produções wiki, desconsidera-se, inclusive, o quanto a legitimação da criação em ambiente digital não prescinde, para sua consagração em dimensão autoral, da publicação em materialidades impressas, que supõem outra circulação e outro valor simbólico. Abundam os casos em que a desejada publicação em livro sela, finalmente, o reconhecimento social do valor de um escrito.

Também aí as autorias se estabelecem na gestão de dimensões assumidas conforme se articulam as instâncias que produzem uma unidade autoral. Por isso, em vez de pensar em autores da internet, como se sugere em muitos trabalhos atuais, por oposição a autores fora da internet, talvez fosse o caso de pensar o tema a partir da investigação dos modos como os objetos técnicos, porque são subjetivantes, configuram comunidades discursivas que os cultivam e obtêm daí sua identidade. Talvez pudéssemos registrar, sobre essas bases, efeitos da gestão autoral. Um ensaio: autores internautas como um efeito de autoria livre de mediações e de fronteiras; autores astronautas como um efeito de autoria altamente especializada, mas submetida a um sistema ao qual deve responder com destreza e eficácia; autores argonautas como efeito de autoria heroica, conjurada pela Boa Sorte em uma trajetória x ou y sempre associada à circulação dos textos. Metáforas que merecem reflexão mais detida em abordagem futura.

Conclusão

O arado e a bomba cavam a terra de maneira diversa. Vale dizer, objetos e ações juntos dão sentido à própria condição dos atores, subjetivados na objetivação suscitada pelos instrumentos que empunham, pelos resultados dessa empunhadura. Mais além: pelo modo como serão designados os produtos das interações processuais que lhes conferem valor (Cf. KOELLREUTTER, 1999).

No caso dos objetos editoriais, que são objetos técnicos caracaterísticos da produção da cultura – nas sociedades ocidentais sobretudo, crescentemente nas ocidentalizadas, e enfim em todo o planeta no período técnico-científico informacional –, esse valor releva de uma rede de interações entre sujeitos e objetos que estão sempre apontando para a relação entre sujeitos (e objetos... sucessivamente). Uma autoria se configura, então, como passagem de um estado a outro, de uma condição a outra, como um corpo em movimento num sistema, uma invenção do próprio percurso que esse corpo faz (Cf. DISCINI, 2015).

Prefácios, notas introdutórias e apresentações são tipos de texto muito reveladores dos ritos genéticos editoriais e do quanto esses ritos apontam para o caráter transitivo das autorias, que, como vimos, pressupõe gestão. Para encerrar estas considerações, reproduzimos, a seguir, o parágrafo inicial da Apresentação do primeiro livro impresso de um poeta de projeção regional, membro de uma crescente rede nacional de performances e fanzines, que criou e produziu uma “edição do autor” (POETA EM QUEDA, 2015):

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Você precisa usar um nome artístico”. Foi isso que o Jão Maresia (incesto Andar, ex-JJ the Wave) me disse quando marcamos uma apresentação no Asteroid em Sorocaba, lá pelo final de 2013, começo de 2014. Desde então o Poeta em Queda se colou à minha pele e tem me proprocionado experiências que nunca esperei ter com poesia, como passar quase a madrugada toda acordado para declamar em Votorantim num festival de música às 9 da manhã ou declamar um poema no meio de uma roda de pagode na USP em São Paulo (como diria o Rodrigo: esse dia foi louco).

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No que tange às autorias, todas elas, há sempre muito trabalho suado e, com ele, conforme a tecnoesfera e a psicoesfera do período, há frequentemente a produção de mitologias.