Para abordar a problemática da autoria de uma perspectiva editorial, consideremos um caso recente de grande impacto: em julho de 2015, uma notícia em circulação digital aparentemente produzida pela BBC Brasil
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O manuscrito, que contém trechos inéditos do livro – publicado nos Estados Unidos em 1970 e proibido pelo regime militar brasileiro até 1974 – sobreviveu à ditadura chilena nas mãos de Jacques Chonchol, ex-ministro de Agricultura no governo de Salvador Allende (1970-1973).
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O historiador José Eustáquio Romão, apresentado como “amigo pessoal de Paulo Freire”, figura em imagem de destaque e faz, segundo os recortes editoriais da notícia, afirmações bombásticas, como a que foi alçada a título da matéria – “Brasil nunca aplicou Paulo Freire” –, supostamente respondendo a estímulos como o que aparece na versão postada para os leitores: o dizer “Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”, que, segundo nos informa o texto da BBC, gerou polêmica nas redes sociais depois de ser empunhado quando “Manifestantes criticaram Paulo Freire durante protestos anti-governo em março de 2015”. Ao historiador também se atribui a informação de que esse importante texto contribuiu para a implantação de um método eficaz de alfabetização em Cuba, na Finlândia, na Mongólia, na Armênia, no País Basco, na Coreia do Sul e no Japão, entre outros, mas que, tendo sido publicado primeiramente nos EUA, foi editado conforme “um princípio ideológico” que suprimiu passagens em que se “diz que o sujeito da história não são as lideranças, é o coletivo das massas oprimidas”, e isto faz do manuscrito algo realmente único: “a parte do livro em que Paulo Freire fala sobre a ‘teoria da ação revolucionária’ não existe em nenhuma edição em nenhuma parte do mundo”. Uma foto dá a ver esquemas rascunhados pelo escritor, e somos informados de que essa preciosidade está a salvo nas mãos de Romão, seu guardião legitimado:
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A família dele nos autorizou a fazer mil exemplares do texto, mas não a vendê-los. Estamos distribuindo uma versão digitalizada a editores e às grandes bibliotecas do mundo, para que as novas edições se baseiem nisso aqui. O manuscrito atualmente está escondido, eu o escondi. Ele vale milhões. Além disso, não queremos que suma novamente (risos).
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Interessante notar que exatamente um ano antes, em julho de 2014, anunciava-se no Portal Brasil > Cultura
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Ministério da Cultura (MinC) recebeu, nesta quinta-feira (20), do reitor da Universidade Nove de Julho (Uninove), professor Eduardo Storópoli, a doação do manuscrito do livro “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire. Ele será encaminhado à Fundação Biblioteca Nacional (FBN). O livro é uma das principais obras de Freire e foi traduzido para mais de 25 idiomas. “O Ministério da Cultura e a Fundação Biblioteca Nacional ficam muito honrados em receber os manuscritos do nosso patrono da educação”, declarou Marta Suplicy [então ministra] ao informar que os originais do livro terão lugar certo na Casa das grandes obras da nossa história.
Como se pode constatar, esse autor maior, isto é, de muitos modos referido como pertencente a um panteão, legou um
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Trecho da dedicatória escrita por Paulo Freire a Jacques e Maria Edy Chonchol
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Registre-se, ainda, que a dispersão da informação por um portal de notícias (com Twitter e Facebook agregados) dá circulação nova ao que fora publicado um ano antes em diversos portais governamentais, cujos tuítes costumam chegar a círculos especializados e pretendem servir de pauta à mídia de amplo espectro, embora frequentemente isso não se dê. O fato é que, de um ano a outro, a notícia do achado se difunde diferentemente e, em 2015, amplia-se seu raio de ação, produzindo-se reverberações e ressonâncias outras
Importa, aqui, levar em conta todos esses aspectos entendendo que as várias relações que se estabelecem – ou não se estabelecem – entre fontes produtoras e dispersoras (portal de notícias corporativo, portal governamental e respectivas formas de retomada nas redes) são cruciais para uma perspectiva discursiva de estudo das mediações editoriais. Os modos de dar a ler o que se dá a ler implicam articulações complexas entre materiais verbais e não verbais, consideradas aí suas inscrições materiais, fortemente condicionadas e também condicionadoras dos meios de dispersão. Feita essa consideração, certamente muito se poderá dizer a respeito da notícia sobre o precioso manuscrito do nosso patrono da educação, que difundiu pelos quatro cantos da Terra uma metodologia política de aproximação com a língua... etc. Nesta ocasião, focalizamos essa problemática pondo no centro a autoria. Tema de todos os tempos e de muitos campos de saber (Cf. HANSEN, 1993), a autoria recebe, aqui, uma abordagem material que analisa relações entre sujeitos e objetos técnicos por eles produzidos, os quais, longe de serem inertes, sobre os sujeitos recaem, produzindo subjetividade; mais especificamente, trata- se de abordar as relações entre sujeitos levando em conta que não há produção de quaisquer objetos senão a partir do estabelecimento de valores construídos intersubjetivamente (Cf. SALGADO, 2013).
Essa perspectiva se assenta no tripé definidor da análise do discurso dita de tradição francesa, a saber: i) a língua é opaca, polissêmica, e sua autonomia relativa é verificável na produção dos sentidos dada por relações parafrásticas; ii) os sujeitos são cindidos na origem, interpelados pela ideologia e, um tanto sujeitos, um tanto assujeitados, trabalham para firmar uma posição de interlocutor; iii) a história se produz no cruzamento de distintas temporalidades, que se afetam instituindo um presente, instaurado na convocação de dadas memórias e nas projeções delimitadas pelo lugar de fala. Sobre essas bases, cerca-se o tema: em nosso exemplo introdutório, o autor Paulo Freire se erige nos modos de aparecimento de traços materiais de sua obra (de sua escrita em especial), que só é
Embora as hipermídias venham modificando práticas de toda ordem e, sobretudo no que tange às chamadas redes sociais, venham provocando uma verdadeira explosão de paradigmas herdados de longa data
– do autor, possivelmente temendo produzir biografias psicologizantes ou historiografias mecânicas, como frequentemente aconteceu (Cf. MAINGUENEAU, 2006a). Em todo caso, os materiais linguísticos se produzem aos montes, multiplicados, desdobrados, renovados, transformados conforme as características deste período, que Milton Santos (2009) chama de
Nos estudos dos processos editoriais, é imprescindível compreender que essas transformações que vivemos se definem na imbricação de uma unicidade técnica
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De um lado, é abusivamente mencionado o extraordinário progresso das ciências e das técnicas, das quais um dos frutos são os novos materiais artificiais que autorizam a precisão e a intencionalidade. De outro lado, há, também, referência obrigatória à aceleração contemporânea e a todas as vertigens que cria, a começar pela própria velocidade. Todos esses, porém, são dados de um mundo físico fabricado pelo homem, cuja utilização, aliás, permite que o mundo se torne esse mundo confuso e confusamente percebido (SANTOS, 2009: 17).
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Aí se inscreve a atual divisão do trabalho intelectual, toda ela atravessada pela mediação editorial, isto é, por técnicas e normas encarnadas em objetos que formalizam materialmente os textos e seus fluxos (Cf. FLUSSER, 2007), conforme os dispositivos e as disposições característicos do período.
Com vistas a examinar mais detidamente o modo como a formalização material de um texto em preparo para publicação implica relações diversas, considere-se o excerto a seguir, da página de agradecimentos de um livro de Bruno Latour, renomado epistemólogo das ciências, que tem publicado diversos tipos de texto nos últimos trinta anos e está, portanto, bastante familiarizado com práticas de preparo de um texto destinado a circular socialmente. A certa altura de sua página e meia de abertura do livro
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Tantas pessoas leram rascunhos de partes do livro que já nem sei bem o que pertence a elas e a mim. Como sempre, Michel Callon e Isabelle Stangers deram orientação essencial. Por trás da máscara de árbitro anônimo, Mario Biagioli foi decisivo para a forma final da obra. Durante mais de dez anos, beneficiei-me da generosidade de Lindsay Waters como editora – e mais uma vez ela ofereceu abrigo para meu trabalho. Minha maior gratidão, contudo, é para com John Tresch, que burilou o estilo e a lógica do manuscrito. Caso os leitores não fiquem satisfeitos com o resultado, queiram imaginar a selva emaranhada pela qual John conseguiu abrir caminho!
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Retenham-se as imagens convocadas: a da selva emaranhada e a do abrir caminhos. Esse escritor experiente decerto não escreve errado ou desconexamente, possivelmente é sua experiência com a lida da escrita, sua experiência com as leituras que são feitas de seus textos, que o leva a considerar que ser um escritor experimentado não permite crer garantida a clareza do que escreve; antes, tem a ver com buscar essa clareza, que é mais fortemente balizada quando um outro lhe diz o que lê em seu texto. Toda leitura explicitada é uma forma de levar o autor a olhar com outros olhos o que escreveu, e é olhar com esses outros olhos que permite calibrar o texto.
Possivelmente, por sua experiência, sabe, então, que o que há de
De todo modo, nunca se estabelecerá um só caminho. Todo dizer posto em circulação ganha mundo amarrando-se à teia interdiscursiva e, assim, engrossa certos coros e desdenha outros, mete-se em certas fileiras e rejeita outras. Na dinâmica histórica, os textos se põem como partícipes desta ou daquela comunidade, e os sujeitos que constituem as comunidades vão lendo esses textos conforme o que neles faz soar esse ou aquele posicionamento. Os dizeres estão sempre ligados ao trabalho de sujeitos que, interpelados pelas condições de produção do que enunciam, manobram no miúdo de suas existências, e desse modo é que constroem seu pertencimento a dadas comunidades, sua participação em dadas polêmicas, que alimentam as instituições, ou as destroem, ou as reinventam.
Entende-se, dessa perspectiva, que o oficio de escrever supõe sempre que haverá trabalho de um outro, que um outro correrá umas linhas, tardará noutras e é provável que tropece em certas passagens, pois o encontro entre sujeitos é sempre no caminho, caminhantes que são os sujeitos ao se porem nos lugares de autor, de leitor – e correlatos.
O que John Tresch fez pelo texto de Latour foi, de certo modo, ler “em voz alta”, guiado por certos critérios editoriais, marcando as trilhas que seguia, indicando ao autor o que lhe pareceu estar escrito ali. Desse modo, Latour pôde voltar a seu texto e, no lugar de leitor, algo distanciado do que escreveu, trabalhar uma vez mais, eventualmente reescrever trechos, e só então decidir com que feições o texto se daria a ler mais amplamente. É claro que a cada nova leitura esse processo se reinicia nalguma medida. Os textos, linearizações de discursos, não têm fim. Por definição. Mas os textos têm caminhos, alguns mais autorizados que outros.
Evidentemente, todas as pessoas que Latour menciona fizeram, nalguma medida, esse papel de mostrar as veredas que o texto lhes propôs e, desde aí, essas observações e comentários também faziam parte daquilo que se escrevia. Mas a participação de Tresch tem alguma diferença em relação a essas outras contribuições, ele participou de um modo bastante específico: estabeleceu essa conversa no próprio texto, no corpo do texto, nas miúdas engrenagens, nos vãos entre elas. Mexeu em construções, em preposições, em conjunções, substituiu palavras, sugeriu partições. Poderíamos dizer que Tresch pôs o texto em franco movimento e escancarou sua condição de
Num processo editorial, os escritores são chamados a ler o que um outro diz ter lido em seu texto. Esse outro, leitor profissional, é também escriba, posto que lê para escrever sobre o que foi escrito, escreve coisas que devem servir para que o autor possa ser um proficiente leitor de seu próprio texto. E esse trabalho se processa porque há editores dipostos a publicar os textos de um autor, que se ocupam de coordenar coletivos que dão tratamento editorial aos textos autorais. Entram aí também as intervenções dos diagramadores, dos capistas, dos ilustradores, dos tradutores, dos cartógrafos, dos iconógrafos, dos bibliotecários, dos resenhistas, de todos os atores que, afinal, transformam os originais do autor em objeto de valor autoral.
Diante disso, a questão que se põe é: um autor não é só um escritor – aquele que escreve –, é também aquele que é lido – em diferentes etapas por diferentes estatutos de leitor – e aquele que estabelece relações institucionais variadas, viabilizando processos de escrita e de leitura. Frise-se:
A perspectiva da mediação editorial é necessariamente uma abordagem material da autoria, mais além, da gestão dos processos (de que derivam produtos) que fazem de um escritor autor. O problema da transitividade fica evidente: um autor não é senão um dos nós de uma rede que se tece conjunturalmente e, então, se define conforme aquilo que escreve – um autor de artigos científicos de física nuclear, ou de uma tese de doutorado em sociologia que mobiliza esta ou aquela vertente teórica, ou um autor de romances, ou de poemas ou de uma dissertação nos estudos da literatura, ou autor de história em quadrinhos para adultos ou de um roteiro cinematográfico ficcional para grandes telas ou de um roteiro de documentário engajado para tevê, um autor de material didático de ensino de português para estrangeiros ou de material encomendando pelo Ministério da Educação para formação de neoleitores... Cada um desses objetos editoriais articula-se à condição de existência do nó que é sua autoria, imprescindível nó entre outros.
Roger Chartier, eminente estudioso da história das práticas de leitura no seu cruzamento com a sociologia dos textos, em muitos de seus trabalhos aponta como nevrálgica essa articulação entre atores sociais e materialidades inscricionais, que confere aos textos a potência de “circulação da energia social”. Em livro lançado recentemente, intitulado
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Para um autor, mesmo um historiador-autor, reler o próprio trabalho é sempre uma provação. Os ensaios aqui reunidos foram cuidadosamente revistos para corrigir erros, evitar repetições e acrescentar as necessárias referências a obras e artigos que apareceram após terem sido publicados pela primeira vez. Se eu os reescrevesse hoje, provavelmente seriam bem diferentes, mas eles se mantêm dentro do projeto básico que os colocou numa certa trajetória de pesquisa e reflexão. Sempre pensei, e ainda penso, que os labores do historiador ou historiadora atendem a duas necessidades. Eles devem propor novas interpretações de problemas claramente definidos, mas também dialogar com colegas estudiosos das vizinhas disciplinas de Filosofia, Crítica Literária e Ciências Sociais, de modo a estar mais bem armados para refletir sobre suas próprias práticas e sobre os rumos para os quais a disciplina se dirige (2014: 14-15).
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É especialmente interessante ver como trabalha este autor que estuda o trabalho de autores, ciente do trabalho que faz, ocupado em registrá-lo num prefácio que tem função tanto de advertência aos leitores – que são também seus alunos, seus colegas, seu seguidores –, quanto uma justificativa sobre a versão que não traz novos textos, mas, sim, novas textualizações, na medida em que refaz caminhos para dialogar com outros textos que se julga importante referenciar, e talvez mesmo referendar, uma vez que, expoente numa dada comunidade, Chartier é um autor que pode legitimar outros autores ao citá-los – logo, ao designá- los como correlatos de uma obra.
E se podem verificar facilmente as variadas coerções a regular esse trabalho. Como a novidade linguística, sobretudo no texto em francês, da explicitação dos marcadores de gênero em referência a uma profissão (historiador/historiadora), uma exigência de nossos tempos, registro de um posicionamento que talvez um intelectual que se põe como progressista esteja obrigado a assumir em cada texto que leva a público. Vemos também as coerções relativas à própria profissão de um escritor que é historiador, ao posicionamento que assume diante dela: ele registra que se deve garantir, desse lugar, que um conjunto de práticas sejam não só preservadas, mas também permanentemente avaliadas, levando-se em conta tanto a função de intérprete – este é o trabalho a ser feito, e o é sobretudo pela leitura de documentos e a escrita sobre essas leituras –, quanto a de membro de uma comunidade produtora de conhecimento, que deve articular fronteiras disciplinares, como reiteradamente temos constatado nas instituições encarregadas de pensar a vida humana, sua relação com outras vidas, seu modo de condução do viver.
A “provação”, parece, consiste em trabalhar sobre seus próprios textos como historiador-autor sendo inescapavelmente um autor- historiador que, leitor dos documentos que produziu ao ler outros documentos, não pode fazer qualquer edição quando os relê para nova publicação; essa nova textualização exige, por exemplo, “evitar repetições”, o que supõe cortar, fundir, suturar flancos criados pela própria decisão de reunir estes ensaios, o que supõe uma seleção feita com critérios ligados à função social entendida ou pretendida para estes textos, revisitados na atual conjuntura, afetados pela produção de outros textos postos em circulação.
Ocioso dizer, talvez, que tudo isso está ligado ao fato de Roger Chartier ser um autor maior, isto é, de muitos modos referido como pertencente a um panteão – o que tem a ver, como no caso de Paulo Freire, com seus textos serem publicados, traduzidos, estudados, retomados num alcance editorial de logística exponencial. De fato, a logística de distribuição dos textos é parte desse panteão. Esse imaginário quase mítico se produz com a dispersão de materiais de alta potência difusora, que implicam uma cadeia criativa, uma cadeia produtiva e um farto ambiente de consumo.
Na quarta-capa da edição brasileira, o aparecimento de dois outros expoentes na mesma comunidade de circulação de Chartier endossa esse imaginário: Stephen Greenblatt, professor em Harvard, fala em “brilhantes ensaios”; Peter Burke, professor em Cambridge, atesta “o extraordinário talento” do colega. Veja-se que as próprias universidades que localizam as vozes avalizadoras institucionalizam o imaginário mítico: são famosas universidades, que figuram publicamente como abrigo de pesquisas de ponta, de um grupo seleto de pesquisadores, com resultados altamente relevantes. A imprensa, o cinema e a produção bibliográfica são os principais dispositivos geradores dessa disposição que temos para com Harvard e Cambridge.
É precisamente essa condução do problema que nos dá ocasião de apresentar três casos de mediação editorial que mostram três modos de gestão autoral, delimitados pela dimensão assumida em cada autoria.
A seguir, será apresentada uma página de um Manual do Proprietário componente da documentação contratual na comercialização de um apartamento de alto padrão (Tamboré, SP, 2005).
Um coletivo de engenheiros e técnicos reuniu as informações que devem, finalmente, ser repassadas ao comprador da unidade habitacional, possível morador ou negociador desse bem. Em negrito, registra-se o trabalho do revisor de textos, originalmente em magenta nos arquivos pesquisados.
manutenção
As dobradiças e os parafusos devem estar sempre firmes,
As portas e ferragens não estão dimensionadas para suportar aparelhos de ginástica ou equipamentos
As dobradiças devem ser periodicamente lubrificadas com pó de grafite ou lubrificantes específicos.
Para eventuais ajustes ou adaptações nas portas,
especificações técnicas
Os batentes foram fixados com espuma de poliuretano e as guarnições, pelo sistema de encaixe
(...)
Trata-se de um tipo de texto tipicamente instrucional, possivelmente de circulação ordinária, que apresentamos aqui em sua terceira versão, caminhando para o fechamento. Observa-se que ainda nesta etapa as questões levantadas pelo revisor mostram que há um processo em curso, que se volta para fora do texto: o leitor do manual se projeta na preocupação com o “nome do sistema”, com a clareza das explicações sobre “esforços adicionais”, com o modo de fornecer os telefones úteis.
Na etapa anterior, o engenheiro designado como autor do Manual anotava, em rodapé, dúvidas como “Mari, precisa deste “Mas”?”, “Não sou dona de casa e não entendo de lustra-móveis, mas creio que o produto deva ser usado num pano
Ao fim e ao cabo, importa aqui que se trata de um tipo de texto que parece simples, mas cujo processo editorial mostra ser tão complexo quanto sempre é textualizar, que supõe dispositivos específicos e disposições concernentes. Pode-se imaginar, por exemplo, o sofisticado trabalho com as ilustrações que fazem parte destas explicações. E o engenheiro designado autor é aqui, afinal, responsável por garantir o poder juridicizante desse documento, que se assenta na pretensão de uma clareza máxima dessas explicações sobre a manutenção que ficará a cargo do comprador/morador. Tem-se aqui, segundo propomos, com base nos estudos de Dominique Maingueneau sobre autoria (ver, por exemplo, MAINGUENEAU, 2006b: 30), um
A seguir, apresentaremos um breve excerto de um mestrado em Linguística (Universidade de São Paulo, 2010) em processo de preparação de sua versão final. O documento original pesquisado opera com cores que distinguem etapas e interlocutores; por razões técnicas, aqui os negritos marcam as intervenções do revisor de textos e, nas notas, R1 e R2, de um lado, e A1 e A2, de outro, indicam, respectivamente, revisor e autor, na primeira e na segunda leituras do material.
(...) de modo que o
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exemplo1 – diálogo entre a terapeuta e Kaori, sem marcas prosódicas:
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T: Mas ele falou que a senhora veio com ele hoje.6
K: É que eu tava com pressa, pressa, muita pressa. Só que eu larguei ele lá na... Onde foi?
(In7: S1, ANEXO B, linhas 37 a 40)4
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Trata-se de um capítulo de apresentação de dados colhidos em entrevistas, que supõem aparatos e dispositivos variados, entre eles gravadores e protocolos como o do Projeto da Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro - NURC, referência fundamental nas transcrições de entrevistas, mas que, se ajuda a estabelecer um padrão necessário às análises científicas, não dá conta necessariamente de todas as exigências em jogo, como a da orientadora que “não aguentou ver sem o ponto”, e a própria ênfase do revisor sobre a leiturabilidade do documento em tela.
Flagramos, aqui, uma etapa de um processo que ainda continuará – prevê-se ao menos uma “3ª leitura” – e isso aparece como algo evidente na interlocução registrada entre coenunciadores – revisor e autor trabalham na tessitura dese material com o mesmo afinco, distribuem tarefas entre si, estabelecem acordos, nos quais consideram aspectos institucionais da área, que inclui hierarquias, tanto na universidade, entre orientando e orientador ou entre pesquisador e protocolos, quanto no processo de textualização, entre revisor e autor, sendo este quem define os encaminhamentos, mesmo que só depois de ser informado pelo revisor das possibilidades textuais adequadas ou desejáveis. Lembremos, ainda, que se trata de apresentar o texto a uma banca para obtenção de um título. É um tipo de texto que deve, ao mesmo tempo, atender muito corretamente a coerções instrucionais (como os protocolos de formatação), evidenciando que os domina, e, com base nisso, dar a ver resultados de uma pesquisa empreendida. Não se recebe o título de mestre por uma pesquisa feita senão pelo registro textual do que se fez.
Este autor é, segundo propomos, com base nos estudos acima referidos (ver, por exemplo, MAINGUENEAU 2006b: 30), um
A seguir, apresentamos trechos de um documento da etapa editorial geralmente referida por “batida de emendas”, que ocorre na finalização dos processos, às vezes conduzida pelos autores, como é o caso aqui, às vezes conduzida pelo revisor ou pelo editor, ou por alguém designado mais ou menos formalmente, de acordo com o processo em curso. Em todo caso, é o fechamento da versão que vai a público.
Neste caso, trata-se de um documento recente, de autores que são expoentes numa dada comunidade, publicados por editora de amplo alcance logístico e investida de forte capital simbólico. Mas não é possível nem reproduzir o documento na íntegra, nem oferecer dados institucionais precisos: um sigilo da fonte é exigido pelas instituições em jogo, e isto é já um dado discursivamente relevante para entendermos a gestão dessa dimensão autoral. O documento pesquisado se intitula “Resposta às observações da revisão” e está subdivido em seções. A seguir, apresentamos itens de uma sequência referida como “Questões de caráter mais geral”:
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- “Capítulo” ou “parte”: para nós é indiferente. Mas se for o caso de usar “capítulo”, vai ser preciso uniformizar o texto todo, inclusive o sumário e os títulos.
- Ficamos preocupados ao ver que na tela não aparecem os símbolos fonéticos. Achamos que isso ainda pode dar problemas. (Ó Editora [X]: com tantos livros de lingüística que vocês editam, e já que não há custos, não estava na hora de pôr os arquivos do SIL em todos os computadores da casa?)
- Maiúscula ou minúsculas nos títulos. Há várias convenções a esse respeito. A que foi adotada pelo revisor é muito parecida com aquela que adotam os franceses que, nos títulos, escrevem em maiúsculas apenas os nomes próprios. Sem problemas.
- O revisor deixou escapar algumas referências cruzadas que remetiam a outros capítulos ou partes.
- No que diz respeito à grafia dos nomes indígenas, notamos que foram tiradas as maiúsculas e esses termos foram usados no plural. Mas continuam as letras k, w e y. Isso é provavelmente o resultado da uniformização que pedíamos ao revisor num e-mail mandado alguns dias atrás, em resposta a uma consulta de [Y]. Mas não custa perguntar: é isso mesmo ou escapou alguma coisa?
- Notamos que foram mandadas para nota de fim de capítulo todas as remissões a obras consultadas que constavam das legendas de figuras, dos boxes e das antologias. Salvo engano, todas as obras referidas constam da bibliografia. Isso permite simplificar as notas, onde a referência pode ser reduzida. Sugerimos dar apenas sobrenome do autor, data da obra e página (com isso o leitor localiza a referencia completa na bibliografia).
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Antes de qualquer outra observação, na análise comparativa salta aos olhos a diferença de tom em relação aos casos anteriores. Também fiadores e atores do que se textualiza, estes autores são ainda autoridades previamente estabelecidas, que se referem ao revisor e à revisão como terceiros nesta interlocução com uma instância editorial última. Fazem uma espécie de relatório de apreciação da revisão feita, explicitam seus conhecimentos sobre editoração mesmo quando aceitam os encaminhamentos técnicos dados, sugerem procedimentos e chamam a atenção para lapsos e descumprimentos. E, ao modo de uma súplica, passam um pito na editora que, sendo dedicada a uma área que assim o demanda, não tratou de garantir a instalação de um software de livre acesso, considerado básico num dado campo. Os autores se dizem “preocupados”, registram que “isso ainda pode dar problemas” e, entre parênteses, como um aparte, um acréscimo explicativo, bronqueiam: “(Ó Editora [X]: com tantos livros de lingüística que vocês editam, e já que não há custos, não estava na hora de pôr os arquivos do SIL em todos os computadores da casa?)”. O vocativo, retomado mais adiante por “vocês”, é revelador do coletivo que toda unidade editorial, casa editora ou não, supõe. Mas a bronca só é possível porque, mesmo como parte desse coletivo nesse processo, esses autores falam de cima para baixo, apoiados na expertise que explicitam, especificamente quanto às necessidades de sua área de atuação, mais amplamente quanto aos procedimentos editoriais adequados para atendê-la.
Mostram também o que se reitera em todos os processos de tratamento editorial de textos: há conversas em reuniões, telefonemas e emails, há combinados, diferentes etapas e atores, máquinas, transposições de códigos, protocolos e, sempre, a projeção de um leitor, que, aqui, é alguém que, entre outras coisas, “localiza a referência completa na bibliografia”.
Mas mais adiante no documento, um outro trecho pode confirmar a dimensão autoral específica assumida neste caso, que propormos ver, com base nos estudos acima referidos (ver especialmente MAINGUENEAU, 2006b: 33-38) como
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Há uma bagunça federal no final da página 8 da parte 2. Não dá para saber se haveria alguma coisa a fazer nesse final de página. O melhor é que a [EDITORA X] nos mande esse trecho todo em attachment de algum e-mail, nas próximas horas.
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Trata-se de uma exigência: “...nos mande esse trecho todo em attachment de algum email
Auctores gerem obras já consagradas. A mediação editorial não pode abrir mão de garantir um bom produto final, que é sua razão de ser, entretanto, no processo de tratamento dos textos de auctors, lida inclusive com a ideia de que não há propriamente um produto editorial, mas uma espécie de evidência material da existência – a depender das variáveis socialmente estabelecidas e das comunidades de circulação – de um pensamento e, portanto, de um pensador, ou de uma criação e, portanto, de um criador.
Em cada uma das dimensões que gerem o texto –
–, escritores se inscrevem diferentemente nos processos editoriais que, afinal, lhes conferem esta ou aquela autoria. Tais processos são, assim, parte dos ritos que caracterizam os autores, são
A autoria é, assim, na rede de que participa, um nó borromeano: as instâncias
Evidentemente, esse trabalho tem efeitos. No atual período, esses efeitos são particularmente suscitados pelas técnicas e normas que os objetos técnicos digitais, com seus processos característicos, impõem a toda produção intelectual. Sobre isso, importa registrar que está em pauta a própria ideia de objeto técnico e, portanto, de sua formalização material subjetivante. Mesmo nas auto-publicações em sites e blogs e nas produções culturais remix, como nas plataformas com perfis pessoais, há algo anterior que condiciona fotemente a gestão do nó autoral. Seja em que dimensão for,
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pequenas mudanças nos detalhes de um design digital podem ter profundos e imprevistos efeitos sobre as experiências dos seres humanos que o estão manipulando. A menor mudança em um detalhe aparentemente tão trivial quanto a facilidade de utlização de um botão algumas vezes pode alterar por completo os padrões de comportamento (LANIER, 2012: 18).
Com isso, vemos que a propalada autoria livre de filtros e julgamentos se produz, todavia, nas injunções de uma formalização material dada, entre outros, por programadores, designers dos engenhos viabilizadores de futuros registros. Estes serão produzidos, portanto, num jogo de coerções típico de um período no qual a cibercultura é hegemônica, o que se verifica muito especialmente na divisão do trabalho intelectual, e muito contundentemente nos processos editoriais que a caracterizam. Quando se fala na
Também aí as autorias se estabelecem na gestão de dimensões assumidas conforme se articulam as instâncias que produzem uma unidade autoral. Por isso, em vez de pensar em
O arado e a bomba cavam a terra de maneira diversa. Vale dizer, objetos e ações juntos dão sentido à própria condição dos atores, subjetivados na objetivação suscitada pelos instrumentos que empunham, pelos resultados dessa empunhadura. Mais além: pelo modo como serão designados os produtos das interações processuais que lhes conferem valor (Cf. KOELLREUTTER, 1999).
No caso dos objetos editoriais, que são objetos técnicos caracaterísticos da produção da cultura – nas sociedades ocidentais sobretudo, crescentemente nas ocidentalizadas, e enfim em todo o planeta no período técnico-científico informacional –, esse valor releva de uma rede de interações entre sujeitos e objetos que estão sempre apontando para a relação entre sujeitos (e objetos... sucessivamente). Uma autoria se configura, então, como passagem de um estado a outro, de uma condição a outra, como um corpo em movimento num sistema, uma invenção do próprio percurso que esse corpo faz (Cf. DISCINI, 2015).
Prefácios, notas introdutórias e apresentações são tipos de texto muito reveladores dos ritos genéticos editoriais e do quanto esses ritos apontam para o caráter transitivo das autorias, que, como vimos, pressupõe gestão. Para encerrar estas considerações, reproduzimos, a seguir, o parágrafo inicial da Apresentação do primeiro livro impresso de um poeta de projeção regional, membro de uma crescente rede nacional de performances e fanzines, que criou e produziu uma “edição do autor” (POETA EM QUEDA, 2015):
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No que tange às autorias, todas elas, há sempre muito trabalho suado e, com ele, conforme a tecnoesfera e a psicoesfera do período, há frequentemente a produção de mitologias.
A título de algum esclarecimento sobre esse movimento de alta pregnância que se pode produzir nas redes digitais, consideremos o que Gastón Bachelard assim distingue: “as ressonâncias se dispersam nos diferentes planos da nossa vida no mundo, a repercussão nos chama a um aprofundamento de nossa própria existência. (…) A multiplicidade das ressonâncias sai, então, da unidade do ser da repercussão.” (1988: 99)
Nas palavras frequentemente citadas de Manuel Castells: “Embora extremamente diversa em seu conteúdo, a fonte comunitária da Internet a caracteriza de fato como um meio tecnológico para a comunicação horizontal e uma nova forma de livre expressão. Assenta também as bases para a formação autônoma de redes como um instrumento de organização, ação coletiva e construção de significado.” (2003: 49).