A demarcação de terras indígenas como política linguística

Carlos Maroto GUEROLA

Resumo

Este artigo tem como objetivo ilustrar um exercício de construção teórica a partir dos princípios da pesquisa etnográfica no âmbito da Linguística Aplicada indisciplinar. Em específico, disserto, num relato autoetnográfico, a respeito de como desenvolver trabalho de campo durante oito anos no universo indígena de Santa Catarina, particularmente em comunidades e escolas Guarani, Kaingang e Laklãnõ-Xokleng, assim como em programas de formação de professores da Universidade Federal de Santa Catarina para essas comunidades, tem me levado a fundamentar teoricamente as línguas indígenas enquanto processos sociais, construindo uma resposta à seguinte pergunta: de que forma é possível fundamentar teoricamente a demarcação de terras enquanto política indispensável para o fortalecimento das línguas indígenas?

Introdução

O objetivo deste artigo é ilustrar um exercício de construção teórica com base nos princípios da pesquisa etnográfica no âmbito da Linguística Aplicada indisciplinar. Particularmente, este texto almeja ilustrar o modo em que fundamentações e construtos teóricos transdisciplinares podem ser desenvolvidos dentro desse paradigma epistemológico, no intuito final de argumentar em favor da demarcação de terras como política linguística indispensável para o fortalecimento das línguas e processos sociais indígenas no Brasil.

O contexto aplicado no qual minha experiência etnográfica tem tido lugar ao longo dos últimos oito anos é o universo indígena do estado de Santa Catarina1, particularmente comunidades e escolas Guarani, Kaingang e Laklãnõ-Xokleng, assim como programas de formação de professores da Universidade Federal de Santa Catarina — doravante UFSC — direcionados a eles.

Como linguista aplicado nesse universo, tenho trabalhado para contribuir academicamente na reflexão em torno das seguintes questões: i) a ameaça à vitalidade e ao papel das línguas guarani, kaingang e laklãnõ-xokleng no dia a dia das comunidades; ii) o papel que as escolas podem desempenhar para fortalecer seu aprendizagem e uso; iii) o impacto da escola nas práticas de linguagem das comunidades; e iv) o modo em que o ensino-aprendizagem escolar dessas línguas pode vir a fortalecer a luta guarani, kaingang e laklãnõ-xokleng em prol da demarcação de suas terras. Assim sendo, dissertando sobre como a experiência em campo junto aos meus parceiros Guarani, Kaingang e Laklãnõ-Xokleng me levou a fundamentar teoricamente as línguas indígenas enquanto processos sociais, respondo neste texto a seguinte pergunta: de que forma é possível fundamentar teoricamente a demarcação de terrasenquanto política indispensável para o fortalecimento de línguas indígenas? A ilustração desse exercício de construção teórica anseia desestabilizar visões naturalizadas sobre as línguas e contribuir para que os estudos da linguagem sirvam em maior medida aos interesses da luta política indígena no Brasil.

Na próxima seção, aponto para os traços que definem a Linguística Aplicada indisciplinar no Brasil e a etnografia dentro dela. Posteriormente, construo um relato autoetnográfico sobre a minha experiência junto às comunidades Guarani, Kaingang e Laklãnõ-Xokleng e sobre o exercício de reflexão teórica desenvolvido com base nela. Na seção final, fundamentarei teoricamente as línguas indígenas enquanto processos sociais e apontarei para a demarcação de terras indígenas como a principal política para o seu fortalecimento.

1. A etnografia na linguística aplicada indisciplinar

A Linguística Aplicada — doravante LA — é uma área de conhecimento autônoma (CAVALCANTI, 2004[1]; MOITA LOPES, 2006b[2]) que estuda línguas reais, faladas por falantes reais, nas suas práticas reais e específicas (SIGNORINI, 1998[3]) e, consequentemente, em tempos, espaços, sociedades e culturas específicas (KLEIMAN, 1998[4]). A LA dirige o seu foco às práticas linguísticas de comunidades minorizadas — como, por exemplo, mulheres, comunidades negras, comunidades de surdos, comunidades indígenas, LGBTs, etc. —, particularmente no que diz respeito às práticas de linguagem em que se embrenham para batalharem e sobreviverem dentro da sociedade dita dominante (KLEIMAN; CAVALCANTI, 2007[5]).

Os linguistas aplicados desenvolvem suas pesquisas em contextos aplicados, isto é, nos contextos em que os indivíduos vivem, agem e participam nas práticas sociais nas quais constituem suas línguas (MOITA LOPES, 2006b[2]). Pesquisando dentro dessas comunidades e contextos minorizados, e identificando as questões a serem investigadas junto àqueles que pertencem a eles, os linguistas aplicados tencionam contribuir para enfrentar desafios, problemas e desigualdades nos quais a linguagem e o discurso desempenham um papel central (KLEIMAN, 1998[4]; KLEIMAN, 2013[6]; MOITA LOPES, 1998[7]).

A etnografia é considerada maioritariamente a metodologia mais apropriada para tais fins: ela estuda os interesses, visões e interpretações dos participantes dos contextos aplicados de pesquisa (KLEIMAN, 1998[4]; MOITA LOPES, 1998[7]; CAVALCANTI, 2004[1]). Os etnógrafos interpretam “o fluxo do discurso social”2 (GEERTZ, 1973, p. 20[8]) por meio da investigação de como os agentes da vida social compreendem, experienciam, produzem e representam suas realidades (MASON, 1996[9]). Assim, fazendo etnografia, os pesquisadores buscam interpretar e comunicar “as perspectivas de significado das pessoas que estudam, do mesmo modo que um intérprete faz quando traduz o discurso de um falante ou de um escritor” (ERICKSON, 1990, p. 89[10]).

É esse o modo em que os etnógrafos tentam servir aos propósitos políticos daqueles junto aos quais e para os quais pesquisam: eles traduzem seus discursos para a linguagem e gêneros acadêmicos no intuito de favorecerem a possibilidade de tais discursos serem mais amplamente estudados, divulgados e legitimados. Alinhado com essa perspectiva, Blommaert (2009, p. 258-259[11]) associa a natureza “democrática e anti-hegemônica” da etnografia ao fato da mesma oferecer voz àqueles que estuda, construindo um discurso sobre os usos sociais da linguagem e as dimensões sociais do comportamento semiótico “que difere substancialmente das normas e expectativas estabelecidas, equenãoestáalinhadocomointeressedospoderosos”. O método para se investigar a vida e o discurso social na etnografia é a experiência pessoal e o convívio direto em trabalho de campo. Os etnógrafos apenas conseguem aplicar tal método através de instrumentos humanos — eles próprios. Contudo, uma vez que a vida e o discurso são construções sociais (SPRY, 2001[12]), o que os etnógrafos fazem enquanto instrumentos de pesquisa é mediarem entre as suas próprias construções ou perspectivas de significado e aquelas dos habitantes dos contextos em estudo (DAVIES, 1999[13]). É isso que torna o trabalho etnográfico um ato imaginativo, através do qual os etnógrafos produzem “verdades inventadas” ou “ficções verdadeiras” (CLIFFORD, 1986, p. 6[14]).

Produzidas através da experiência e convívio junto a outros sujeitos — sendo, portanto, “extremamente particulares”, “inquie- tantemente pessoais” (VAN MAANEN, 1988, p. 9[15]) e “inerentemente parciais” (CLIFFORD, 1986, p. 7[14]) — as narrativas etnográficas adotam necessariamente abordagens autobiográficas, nas quais os etnógrafos, personagens de ficção, ocupam um lugar central (CLIFFORD, 1986[14]). Para Spry (2001, p. 720[12]), a abertura de formas estilísticas na escrita acadêmica constitui uma oportunidade para se favorecer uma maior diversidade de conteúdos; é por isso que ela defende a autoetnografia enquanto “espaço para a emancipação da voz e do corpo”. Nesse sentido, para Clifford (1986, p. 26[14]), as etnografias devem transgredir as fronteiras entre literatura e ciência, uma vez que elas resultam de uma “atividade textual híbrida” que “atravessa gêneros e disciplinas”.

A principal atividade de pesquisa que os etnógrafos executam durante a pesquisa de campo é a observação participante (ERICKSON, 1990[10]; DAVIES, 1999[13]), a qual consiste em observar, registrar e analisar sistematicamente tempos-espaços e interações específicas (HEATH; STREET, 2008[16]). Essa atividade constitui “um modo de ação teorizado” (BLOMMAERT; JIE, 2010, p. 1[17]) ou uma “empreitada de construção de teoria” (HEATH; STREET, 2008, p. 29[16]), uma vez que são os dados gerados em campo através da observação participante que devem pautar a orientação e construção da fundamentação que dará sustento teórico à análise de dados e ao relato etnográfico final.

Por essa empreitada precisar ser “tão intuitiva — ou tão radicalmente indutiva — quanto possível” (ERICKSON, 1990, p. 135[10]), a observação participante em trabalho de campo exige flexibilidade. Flexibilidade significa começar a pesquisa apenas com um conjunto inicial de questões e uma área geral de interesse e não com hipóteses pré-estabelecidas (GEERTZ, 1973[8]; ERICKSON, 1990[10]; MASON, 1996[9]), pois, se a etnografia tem como propósito interpretar o fluxo do discurso social descobrindo e comunicando as perspectivas de significado dos habitantes dos contextos aplicados, são essas perspectivas de significado que devem guiar e fundamentar as escolhas teóricas que os etnógrafos fazem durante a geração e análise de dados. Ainda, elas devem guiar e fundamentar também as perguntas de pesquisa, que devem ser consolidadas apenas nos estágios finais do processo (ERICKSON, 1990[10]; DAVIES, 1999[13]).

Guiadas pela flexibilidade, fundamentações teóricas baseadas em trabalho de campo etnográfico no âmbito da LA precisam ser transdisciplinares. Para Moita Lopes (2006b, p. 16[2]), a transdisciplinaridade é necessária nessa área de conhecimento porque as áreas das ciências sociais e humanas que investigam questões relevantes a respeito das práticas de linguagem são muitas e muito diversas. Os linguistas aplicados, consequentemente, precisam circular por essas diferentes áreas de estudo, desafiando o conhecimento disciplinar e assumindo, portanto, uma atitude indisciplinar (MOITA LOPES, 2006a[18]; MOITA LOPES, 2006b[2]).

Essas são as características que definem a etnografia no âmbito da LA indisciplinar. O relato autoetnográfico a seguir as exemplifica.

2. Direitos linguísticos e educação indígena

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira na história do Brasil em reconhecer os direitos das comunidades indígenas3. Graças a ela, elas tiveram reconhecido, dentre outros, o direito de usarem as suas “línguas maternas” e “processos próprios de aprendizagem” no ensino fundamental (BRASIL, 2016, p. 124[19]). Essa novidade favoreceu a emergência de um discurso segundo o qual os “princípios básicos” das escolas indígenas, pautadas numa política educacional “diferenciada, intercultural e bilíngue”, são a “preservação e valorização” das línguas e culturas indígenas (SOUZA, 2006, p. 144[20]). Esse novo discurso e a conjuntura jurídica que o sustenta têm propiciado de fato uma guinada radical em relação à tradição de o Estado e as igrejas usarem a escola contra as populações indígenas, como uma ferramenta “para a eliminação da diferença” e “para a assimilação à cultura e à língua nacional” (SOUZA, 2006, p. 143[20]).

Dentro das aldeias guarani, a existência de escolas é bastante recente — a primeira delas em Santa Catarina foi inaugurada em 1994 (BRIGHENTI; NÖTZOLD, 2010[21]). Antes disso, os poucos Guarani que frequentavam a escola o faziam em escolas regulares nas áreas urbanas próximas às aldeias. A escola do tekoa Itaty — fotografada na figura 1 abaixo —, na Terra Indígena — doravante TI — Morro dos Cavalos4, foi oficialmente inaugurada em 2002.

Figure 1. Figura 2 - Escola Itaty e algumas das casas da TI Morro dos Cavalos, frente à BR-101. Fonte: Fotografia do autor, 2011.

O Ministério da Justiça demarcou oficialmente o Morro dos Cavalos como terra indígena, com 1988 hectares, em 2008. Porém, o último passo do processo demarcatório, a homologação da demarcação por parte da presidência da república, ainda não se concretizou, apesar da intensa mobilização política dos Guarani para tanto.5 Em decorrência dessa situação, os Guarani do Morro dos Cavalos, conforme pode ser observado na fig. 1, apenas conseguem habitar áreas restritas da TI, anexas à rodovia que a divide.

A área geral de interesse a partir da qual dei início ao meu trabalho de campo na TI Morro dos Cavalos e na escola Itaty dizia respeito a direitos humanos linguísticos escolares. Posteriormente, nos seus estágios finais, o objetivo definitivo da minha dissertação de mestrado, elaborada com base nessa experiência, foi visibilizar as perspectivas guarani sobre as suas práticas de linguagem e sobre os direitos que reivindicam em relação a elas na escola, assim como a ligação entre essas práticas e reivindicações e o contexto educacional, político e econômico em que se enquadram (cf. GUEROLA, 2012[22]).

A noção de direitos humanos linguísticos escolares que norteava inicialmente o meu raciocínio teórico mudou radicalmente quando compreendi, a partir do contato com as perspectivas de significado guarani, que os direitos humanos precisam ser reconstruídos interculturalmente (SOUSA SANTOS, 2010[23]). O sistema capitalista tem cercado historicamente — e está cercando cada dia mais — as comunidades ditas tradicionais em minúsculos pedaços de terra — desse cerco, o Brasil é um exemplo ímpar. Uma das consequências dessa violência territorial, que inviabiliza a soberania econômica dessas comunidades, tem sido tornar os indígenas dependentes da escola e do letramento para a sua sobrevivência financeira e cultural (GUEROLA, 2012[22]; GUEROLA, 2014[24]; GUEROLA, 2017a[25]). A escola e o letramento constituem hoje para os Guarani, portanto, uma necessidade, além de uma obrigação6, antes que um direito. Porém, a partir do momento em que os Guarani começaram a fazer um uso estratégico, em benefício da sua luta política, da escola e do letramento enquanto “armas de defesa e sobrevivência”, eles passaram a constituir, simultaneamente, direitos interculturais (GUEROLA, 2014, p. 57[24]).

Nas nossas conversas, os professores Guarani do Morro dos Cavalos começaram a expor suas perspectivas de significado a respeito dos laços entre práticas de linguagem e território/espaço desde os primeiros dias do trabalho de campo. Tais ligações podemser visualizadas através das seguintes palavras da liderança e professora Guarani Kerexu Yxapyry7, registradas durante a nossa entrevista em novembro de 2011:

Antigamente [...] toda criança tinha que ficar na Casa de Reza, aprendendo... o ensinamento era passado na oralidade mas ele era praticado, você chegava assim, a criança falava assim “Ô, eu quero pescar, eu quero aprender a pescar”. O vô, o tio, o pai chamava [...] o filho e ele sentava ali e ele passava todos os conhecimentos oralmente, depois ele pegava e falava “agora vamo pescar”. Então quando o filho chegasse lá no rio, tudo aquilo que o pai tinha passado ele ia praticando e aprendendo, então é assim que ele aprendia, com tudo, na agricultura, mesma coisa [...] Era toda a questão religiosa e tudo, envolvia tudo [...] Quando os europeus invadiram, começaram a catequizar, eles tiraram, tiraram a criança da Casa de Reza, do dia a dia dele, do aprendizado dele e trouxeram pra escola, a criança começou a perder os ensinamentos, começou a ficar sentado ali aprendendo a ler e escrever [...] Ai deu-se um conflito, claro, e dai a criança já não tava aprendendo aquilo que era pra ser, que era pra ele aprender, e hoje, hoje a gente já... aqui não tem como eu tar passando na oralidade [...] Não tem um rio próximo pra eles tar pescando, caça, não tem como, agricultura, piorou [...] Então pra as crianças aqui do Morro dos Cavalos crescer aprendendo a tradição é difícil [...] Ai a escola aqui eu acho importante porque [...] nós como professores temos a obrigação de passar a parte cultural, que é a questão da religião, da tradição, nem que seja no papel [...] Eu acho que se não tivesse escola a cultura hoje ia se perder. (Kerexu Yxapyry)

Em consonância com muitas outras lideranças e intelectuais Guarani de hoje, no seu discurso político sobre educação, Kerexu associa tempo, espaço, conhecimento e práticas de linguagem. O tempo-espaço8 guarani tem sofrido uma violenta transformação desde tempos imemoriais — “antigamente” —, tempos nos quais o ensino-aprendizagem tinha lugar na Casa de Reza e em lugares ao ar livre como à beira do rio. Essa violenta transformação tem tido como resultado um tempo-espaço presente no qual não há mais rios, nem lugares para caça ou para cultivo, e no qual as crianças continuam sendo tiradas da Casa de Reza.

De acordo com o Mbya Reko, filosofia e modo de viver guarani, a Casa de Reza, ou Opy, constitui simultaneamente o seu templo, a sua escola e o seu hospital9. A Opy fotografada na fig. 2 abaixo foi construída para albergar atividades da escola Itaty e ainda se encontra atrás da mesma. Todavia, ela se localiza fora dos limites oficiais da escola e não infrequentemente tem sido banida como espaço para atividades escolares pela instância governamental à qual a escola Itaty é subordinada institucional e financeiramente (GUEROLA, 2012[22]).

Figure 2. Figura 2 - Opy atrás da escola Itaty, anexa à trilha principal da aldeia. Fonte: Fotografia do autor, 2011.

Transformaçõesnotempo-espaçodesencadeiamtransformações nas práticas de linguagem: as ocorridas no território guarani têm tornado inviável “tar passando na oralidade”, e é essa a razão pela qual os professores Guarani hoje têm a “obrigação” de ensinar a cultura guarani “nem que seja no papel”. Essa é uma das obrigações que tem tornado a escola indígena diferenciada, intercultural e bilíngue uma necessidade compulsória e, concomitantemente, um direito humano linguístico intercultural.

3. Consequências insidiosas da invenção colonial das línguas para as escolas indígenas

A segunda mudança radical na minha empreitada de construção teórica no universo da escola indígena em Santa Catarina ocorreu quando comecei a colaborar como docente na Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica na UFSC. Lá comecei a trabalhar também com lideranças e professores de comunidades Kaingang e Laklãnõ-Xokleng.

A história dessas comunidades no que diz respeito a terra, línguas e escola é significativamente diferente da do povo Guarani (cf. GUEROLA, 2018[26]). Uma das principais diferenças é o fato de o grosso das populações Kaingang e Laklãnõ-Xokleng em Santa Catarina terem se visto obrigadas a ficar confinadas em duas reservas indígenas desde as primeiras décadas do século XX. No contexto desse confinamento, a transformação do seu tempo-espaço foi marcada igualmente pela violência: em primeiro lugar, por essa transformação ter se dado no âmbito de um genocídio — que, no caso dos Laklãnõ- Xokleng, reduziu a sua população a 150 indivíduos nas primeiras décadas do século XX (WIIK, 1998[27]; WITTMANN, 2005[28]); em segundo lugar, por os órgãos indigenistas governamentais no comando das reservas — Serviço de Proteção ao Índio (SPI), entre 1910 e 1967, e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) posteriormente — terem orquestrado uma exploração irrestrita dos seus recursos naturais — particularmente, porém não exclusivamente, de madeiras de lei como a araucária (SANTOS, 1987[29]; NACKE; BLOEMER, 2007[30]) —, desflorestando as áreas. As crianças Kaingang e Laklãnõ-Xokleng foram obrigadas a frequentar as escolas construídas dentro das reservas, nas quais as línguas indígenas eram estritamente proibidas. Tal proibição foi implementada com afinco na Reserva Indígena Xapecó, onde os Kaingang eram repreendidos ou até punidos quando ouvidos falando na sua língua nativa tanto dentro da escola como fora dela (SALVARO, 2009[31]).

A transformação do seu tempo-espaço e práticas de linguagem foi tão violenta que, hoje, os adultos Kaingang e Laklãnõ-Xokleng em Santa Catarina, mesmo aqueles que tiveram a língua indígena como única língua materna, não infrequentemente vêem os seus filhos crescerem com o português como a sua única língua. Por não estar sendo aprendida mais no ambiente doméstico, muitos desses adultos desejam que os seus filhos aprendam a língua indígena na escola, num paradigma educacional diferenciado, intercultural e bilíngue.

Não obstante, dentre os adultos Kaingang e Laklãnõ-Xokleng, particularmente dentre aqueles que tive o privilégio de ter como alunos na UFSC, de idades entre 25 e 60 anos, o número dos que se entendem como tendo a capacidade de ler e escrever na sua língua indígena é surpreendentemente maior que o número dos que se dizem capazes de falá-la ou entendê-la oralmente (GUEROLA, 2015a[32]). Entretanto, a maioria daqueles meus alunos haviam sido estudantes — e já atuavam na altura como professores — em escolas indígenas ditas bilíngues. Esse dado me deixou perplexo. Perguntei-me: Como é possível que, embora pertencentes a sociedades consideradas de tradição oral, indivíduos Kaingang e Laklãnõ-Xokleng completem a sua educação escolar sem a habilidade de falar e compreender oralmente as línguas indígenas que supostamente lêem e escrevem? O que falar, compreender, ler e escrever significa para eles? Quais são suas perspectivas de significado a respeito das suas línguas?

No que diz respeito à habilidade de ler e escrever em línguas que não se fala ou compreende oralmente, chegamos a concordar, depois de muitas discussões em sala, na “disciplinarização letrada” das línguas indígenas: a redução, no âmbito das escolas indígenas, das práticas discursivas nessas línguas a espaços específicos (a sala de aula), tempos (a carga horária de disciplinas específicas como Língua Kaingang, Língua Xokleng ou Artes Indígenas) e atividades focadas exclusivamente na representação escrita das mesmas (GUEROLA, 2015a, p. 564[32]). Atestando o mesmo processo, D’Angelis (2012, p. 191[33]) afirma que, nesse tipo de práticas, as línguas indígenas são abordadas como “línguas estrangeiras em terras indígenas”.

Enquanto refletia teoricamente a respeito da disciplinarização letrada das línguas indígenas em escolas diferenciadas bilíngues, em Guerola (2015b[34]), pude apontar para dois problemas discursivos em textos governamentais e midiáticos sobre escolas indígenas no Brasil: i) signos ideológicos como educação, língua ou cultura são tornados monovalentes (BAKHTIN, 2006[35]), isto é, tratados como se tivessem apenas um único significado; e ii) a agência atribuída aos atores representados nesses textos é alocada de forma visivelmente assimétrica. A identificação desses fenômenos ajuda a vislumbrar o modo em que indivíduos e comunidades indígenas são representados, em leis e matérias de telejornais sobre as suas escolas, enquanto agentes passivos, destinatários de políticas desenhadas e implementadas para eles por parte do Estado. Simultaneamente, nesses discursos, as noções de educação ou língua que os permeiam nunca são colocadas em discussão. Por serem considerados monovalentes, a diversidade de significados que podem ser atribuídos a esses conceitos é abafada, e, consequentemente, apenas um único significado (hegemônico) é suposto para eles.

Por conta do abafamento da diversidade de significados que lhes podem ser atribuídas, as línguas têm sido historicamente reduzidas — tal como foram nos textos analisados em Guerola (2015b[34]) — a “ficções convenientes de sala de aula” (HARRIS 2010, n.p[36]), as quais, segundo Bakhtin (2006, p. 110[35]), limitam nossas práticas de linguagem e nos distanciam da “realidade evolutiva e viva da língua e de suas funções sociais”. Para Harris (2010, n.p[36]), tais ficções são reforçadas por governos que buscam impor às populações sob o seu controle uma “camisa de força normativa num fluxo aberto de relações entre atos linguísticos e o mundo”. Para Makoni e Pennycook (2006[37]) e para Garcés (2007[38]), essa invenção simbólica e epistemologicamente violenta e racista a respeito das línguas constitui um elemento fundamental do projeto colonial.

Aqui é importante apontar que, de acordo com Makoni e Pennycook (2006, p. 21-31[37]), as formas de se pensar sobre a linguagem “não são apenas uma questão conceitual”. Antes, elas têm “efeitos potencialmente negativos” sobre os usuários das línguas, donde o “imperativo político de se trabalhar em direção à sua desinvenção e à reformulação de conceitos básicos da Linguística e da Linguística Aplicada”. A desinvenção e reinvenção das línguas pode evitar as “consequências insidiosas” que a invenção colonial das mesmas tem tido para as comunidades indígenas: essas consequências podem estar na raiz do insucesso de muitos professores indígenas em Santa Catarina nas suas tentativas de ensinarem as línguas que tão ansiosamente desejam ensinar — e que tão ansiosamente se espera que consigam ensinar.

Maria Librantina Campos, uma das anciãs e sábias da TI Xapecó, na sua palestra no primeiro dos grandes encontros organizados no contexto kaingang pelo programa de formação continuada de professores Ação Saberes Indígenas na Escola em Santa Catarina — doravante ASIE-SC —, em 2015, discursou sobre tal insucesso nos seguintes termos:

Se deixar desse jeito, do jeito que tá indo, vai tudo água abaixo. Já tá terminando. Já, pra encurtar, a língua kaingang já tá muito pouquinho. É muito poucas pessoa que fala a língua kaingang! Às vezes eu comento com o compadre Pedro: “É vergonhoso a gente falar dos nossos irmão índio, que estudam anos e anos a língua kaingang com os professor: ‘eu sou professor de língua kaingang, eu tô dando aula de língua kaingang’. Mas qual é o aluno que hoje é dominante da língua kaingang?! Não tem! Eu falo porque eu tenho os meus filho, tudo eles estudaram a língua kaingang, mas nenhum é dominante da língua! (Maria Librantina Campos, registro audiovisual disponível em: https://vimeo.com/20253453710).

Durante o planejamento da ASIE-SC — programa11 em cuja equipe de coordenação tive o privilégio de atuar entre 2015 e 2017 —, os professores indígenas demandaram ficar a cargo da organização e desenvolvimento de reuniões de especialistas em educação indígena. Nessas reuniões — ou Grandes Encontros, como viriam a ser chamadas, organizadas nas terras indígenas separadamente em cada contexto étnico — os professores partilhariam e debateriam, sob a orientação de sábios e lideranças, as suas experiências e perspectivas em relação à educação indígena e em relação a como a escola diferenciada pode vir a fortalecê-la. Eles escolheriam as datas e locais nos quais os encontros teriam lugar, selecionariam e convidariam os palestrantes e organizariam as atividades, governando diretamente sobre a configuração espaço-temporal dos encontros.

E assim fizeram. A seguir, disserto sobre as suas escolhas sobre o espaço-tempo — especificamente sobre os locais escolhidos para os grandes encontros de 2015 e 2016 — e sobre o impacto dessas escolhas nas práticas de linguagem constituídas neles. Assim fazendo, estarei pronto por fim para fundamentar teoricamente as línguas guarani, kaingang e laklãnõ-xokleng enquanto processos sociais.

4. A experiência da ação saberes indígenas na escola

Dado que as comunidades Guarani são pequenas — com uma média de 20 famílias em cada uma delas —, as suas escolas também o são, particularmente perante o desafio de sediarem reuniões de mais de 200 participantes entre professores, lideranças, sábios, professores universitários e técnicos e autoridades de instituições educacionais e outros órgãos públicos que atuam diretamente nas comunidades indígenas, como a FUNAI, a SESAI ou o Ministério Público Federal. Assim, outros locais para os grandes encontros precisariam ser escolhidos.

O local do primeiro grande encontro guarani da ASIE-SC, ocorrido em julho de 2015, foi o galpão que aparece representado nas figs. 3 e 4 abaixo, anexo à escola do tekoa ou aldeia Marangatu. O local escolhido para o segundo, ocorrido no tekoa Yvyã Yvate em outubro daquele mesmo ano, foi uma tenda alugada especialmente para a ocasião, fotografada na fig. 5. As lideranças do tekoa Mymba Roka, que receberia o terceiro grande encontro, em maio de 2016, fizeram a solicitação de receberem o recurso que seria empregado na locação de outra tenda para eles próprios construírem um espaço, representado nas figs. 6 e 7, especialmente concebido para o evento. A mesma solicitação foi feita pelas lideranças do tekoa Vy’a, cujos membros construíram a Oo Jere — casa redonda — representada nas figs. 8, 9 e 10, para o quarto grande encontro, ocorrido em novembro de 2016.

Figure 3. Figuras 3 e 4: Local do I Grande Encontro Guarani da ASIE-SC, no tekoa Marangatu. Fonte: Fotografias do autor, 2015.

Figure 4. Figura 5: Local do II Grande Encontro Guarani da ASIE-SC, no tekoa Yvyã Yvate. Fonte: Fotografia do autor, 2015.

Figure 5. Figuras 6 e 7: Local do III Grande Encontro Guarani da ASIE-SC, no tekoa Mymba Roka. Fonte: Fotografias do autor, 2016.

Figure 6. Figuras 8, 9 e 10 - Local do IV Grande Encontro Guarani da ASIE-SC, no tekoa Vy’a. Fonte: Fotografias do autor, 2016.

Esses quatro locais compartilham diversas características: aqueles que se reuniram no seu interior para assistirem às discussões e palestras sentavam em bancos de madeira — como os da fig. 10 —, tendo as paredes como encosto — conforme podemos ver na fig. 4. Quando o número de assistentes era elevado, fileiras concêntricas de cadeiras e bancos se formavam em disposição paralela àquelas junto às paredes — como é possível observar nas figs. 9 e 512. Quando possível, uma das paredes ficava sem assentos — como se vê na fig. 5 — ou com assentos reservados apenas para os sábios — como é o caso entre as duas portas na fig. 9 —, esse espaço servindo como margem de um estrado invisível sobre o qual os anciões e sábios faziam uso da palavra. Em Guerola (2017b, p. 186[39]), minha tese de doutorado, desenvolvida no âmbito da ASIE-SC, me referi a esse estrado como um “vão discursivo”, onde os enunciadores Guarani, “principalmente aqueles pertencentes às gerações mais velhas [xeramõi e xejaryi], discursam caminhando [...], perambulando em ambos os sentidos enquanto buscam inspiração fumando os seus petyngua”. Na fig. 4, um amplo vão discursivo pode ser notado em frente ao sábio fotografado fazendo uso da palavra. Nas figs. 5 e 9, embora menores, outros vãos discursivos podem ser notados, circundados pelas fileiras concêntricas de assistentes, muitos dos quais fumavam também os seus petyngua — nome para o cachimbo guarani — para se concentrarem nas falas dos palestrantes. Imagens como as figs. 7 e 10 ilustram a onipresença do fogo, cujas brasas serviam para acender o fumo dos petyngua e cujas chamas esquentavam a água do ka’a, ou chimarrão, que os Guarani tomavam nas cuias que faziam circular entre todos os presentes — nas imagens, contudo, apenas as brasas e algumas toras nas fogueiras apagadas podem ser percebidas.

Essas características espelham a organização espacial da Opy, o lugar sagrado de conhecimento para os Guarani: a disposição dos assistentes sentados em bancos encostados na parede, a presença do fogo no centro do vão discursivo, a parede destinada à autoridade — no caso da Opy, o ambá, ou altar, com os instrumentos musicais, sendo essa parede o lugar a que os rezadores se dirigem para, após fumarem sobre os instrumentos, começarem a entoar seus rezos ou a proferir seus discursos —, a fala e a escuta auxiliadas pela fumaça dos petyngua, as cuias de ka’a passando de mão em mão.

Com base nessa organização espacial, a organização do tempo também espelhou em boa medida a organização do tempo ao redor da Opy e dentro dela: as palestras e atividades da manhã e da tarde foram precedidas pelos cantos dos corais infantis e encerradas com a dança dos xondaro, a dança dos guerreiros Guarani, na qual testam sua atenção e destreza física perante os desafiadores e imprevisíveis movimentos do seu chefe ou xondaro ruvitcha — tanto o trabalho dos corais como dos xondaro ocorre, via de regra, no terreiro em frente à Opy. Por outro lado, ao contrário do que costumeiramente ocorre em eventos acadêmicos, o uso da palavra não foi estritamente regulado: não foi regulada a ordem na qual os palestrantes interviriam nem a duração das suas falas, o que espelha a forma em que as práticas de linguagem ocorrem dentro da Opy. Em todas as práticas de linguagem dentro desses espaços — com exceção daquelas nas quais se buscava diretamente a escuta e compreensão dos não indígenas—, foi constituída a língua guarani, língua costumeiramente constituída em todas as práticas de linguagem que ocorrem dentro da Opy.

Já as atividades dos grandes encontros da ASIE-SC no contexto laklãnõ-xokleng foram planejadas para acontecer em diferentes locais em diferentes períodos do dia. De manhã e de tarde, as atividades ocorreriam dentro das escolas da TI Ibirama-Laklãnõ13 — dentro da escola Laklãnõ, fotografada na fig. 11, no primeiro grande encontro, em agosto de 2015; na escola Vanhecu Patté, fotografada na fig. 12, no segundo, em outubro de 2015; e na escola João Bonelli, fotografada na fig. 13, no terceiro e quarto encontros, ocorridos respectivamente em março e novembro de 2016. As atividades à noite ocorreriam fora da escola, ao redor do fogo — veja-se a fig. 14 para o primeiro grande encontro, a fig. 15 para o segundo e a fig. 16 para o terceiro e o quarto.

Figure 7. Figura 11: Interior da escola Laklãnõ durante o I Grande Encontro Laklãnõ- Xokleng da ASIE-SC. Fonte: Fotografia do autor, 2015.

Figure 8. Figura 12: Interior da escola Vanhecu Patte durante o II Grande Encontro Laklãnõ-Xokleng da ASIE-SC. Fonte: Fotografia do autor, 2015.

Figure 9. Figura 13: Escola João Bonelli durante o III Grande Encontro Laklãnõ-Xokleng da ASIE-SC. Fonte: Fotografia do autor, 2015.

Figure 10. Figura 14: Anciões e professores ao redor da fogueira durante o I Grande Encontro Laklãnõ-Xokleng da ASIE-SC. Fonte: Fotografia do autor, 2015.

Figure 11. Figura 15: Anciões e alunos ao redor do fogo durante o II Grande Encontro Laklãnõ- Xokleng da ASIE-SC. Fonte: Fotografia do autor, 2015.

Figure 12. Figura 16: Fogueira na área externa da escola João Bonelli durante o IV Grande Encontro Laklãnõ-Xokleng da ASIE-SC. Fonte: Fotografia do autor, 2016.

As razões para as escolas laklãnõ-xokleng terem sido escolhidas como locais para sediar as atividades matutinas e vespertinas dos grandes encontros estão relacionadas não apenas com o fato dos prédios das escolas possuírem espaço suficiente para acomodarem o público esperado. Elas também estão ligadas ao fato de, em grande medida por terem ficado sob tutela do SPI e da FUNAI durante tantas décadas — foi sob o comando dessas instituições que as escolas foram introduzidas nas suas terras já na década de 1940 (WEBER, 2007[40]) —, os Laklãnõ-Xokleng já terem se acostumado com a escola como espaço privilegiado para o ensino-aprendizagem: hoje em dia entendem que, se é para se falar de educação, as escolas são o espaço adequado para tanto.

Como pode ser observado parcialmente nas figs. 11 e 12, a organização dos espaços para as atividades diurnas espelhava a das salas de aula — cadeiras organizadas em fileiras paralelas defronte à mesa das autoridades. Nesse arranjo espacial, habitual em atividades acadêmico-escolares, os professores Laklãnõ-Xokleng ficaram surpresos e contrariados quando, durante o primeiro grande encontro, os anciões convidados enquanto especialistas em educação laklãnõ-xokleng recusaram com veemência o convite a ocuparem as cadeiras reservadas para eles na mesa de autoridades. Em prol de se evitar uma nova situação de constrangimento, o espaço foi organizado de forma diferente em encontros posteriores, como pode se ver na fig. 13.

É inegável o caráter translíngue (GARCÍA, 2009[41]) das práticas de linguagem laklãnõ-xokleng, nas quais recursos do laklãnõ-xokleng e do português são combinados em função da performance identitária dos falantes e dos seus propósitos comunicativos. Todavia, é possível afirmar que, dentro da organização espacial descrita acima, as práticas de linguagem entre os anciões e professores Laklãnõ- Xokleng constituíram um português translíngue e não um laklãnõ-xokleng translíngue, particularmente por os não falantes de laklãnõ- xokleng termos podido acompanhar as discussões e participar ativamente nelas.

À noite, porém, a situação era diferente. Dispostos ao redor da fogueira — quer na área externa da escola Laklãnõ, na fig. 14; quer dentro da casa de artesanato erguida atrás da escola Vanhecu Patte, na fig. 15; quer sob o telhado de palha da construção anexa à escola João Bonelli, na fig. 16 — os mesmos indivíduos que durante o dia tinham passado horas constituindo um português translíngue dentro da escola, espontaneamente performavam suas práticas de linguagem num laklãnõ-xokleng translíngue. Tal fenômeno pôde ser testemunhado em todos e cada um dos encontros: independentemente do tema tratado, os Laklãnõ-Xokleng fluíam espontaneamente na sua língua nativa ao redor da fogueira, com as gargalhadas hilárias e contagiantes que costumam ressoar nas suas práticas nessa língua. Independentemente do tema abordado, o público assistente se embrenhava com entusiasmo na escuta das palavras dos sábios e anciões que, ao redor do fogo — ao contrário do que no interior da escola —, se sentiam confortáveis para assumirem o seu papel de autoridades e se dirigirem enquanto tais aos seus parentes, em laklãnõ-xokleng.

Outros locais que os professores Laklãnõ-Xokleng consideram particularmente adequados para o fluxo da língua laklãnõ-xokleng é no mato e à beira do rio. Nesses espaços, de acordo com os seus depoimentos, as práticas de linguagem são substancialmente diferentes daquelas que acontecem dentro da escola. Os seguintes depoimentos a esse respeito foram enunciados durante o I Grande Encontro Laklãnõ-Xokleng da ASIE-SC:

Aqui [dentro da escola] é o ambiente que o ancião vai contar a história de uma maneira. Ali fora ele vai contar de outra forma. São todas essas coisas... Então... no mato, são outras coisas. E aí começa a vir passar filme na mente dos anciões e eles começam a lembrar das coisa pra contar (Copacãm Tschucambang, registro audiovisual disponível em: https://vimeo. com/202546511).

Eu sei o nome das madeiras, dos animais, porque eu me criei — alguns mais velhos sabem — que eu me criei com a minha vó, meu tio Munhã, desde pequeno ia no mato com ele. Então, nome de muitas madeira eu sei. Agora, tanto tempo que não fui mais pro mato que até esqueci. Eu vendo, vou lembrar. Agora, imagina as pessoas que nunca tiveram no mato... Nunca vão saber! (Copacãm Tschucambang, registro audiovisual disponível em: https://vimeo.com/202542195).

Hoje nossos filho, meus neto, não sabe nada [...] que nem meus filho, não tiveram tempo de eu chegar e levar eles lá, “vamo aprender aqui: o nome dessa madeira é assim, o nome daquela é assim...” Eles têm que tar na escola. Eu já fui diferente: eu ia pra escola, ficava, uns dias ia lá pescar com os meus pai, lá ele me ensinava o nome dos peixe... Então aí voltava pra escola, ficava uns três, quatro dia. Então parece que ficou... antigamente era melhor, e hoje tá difícil. (João Paté, registro audiovisual disponível em: https:// vimeo.com/202542500).

A partir das palavras do professor e liderança Copacãm Tschucambang e do ancião e sábio João Paté, é possível apontar mais uma vez para o vínculo entre espaço, tempo, conhecimento e língua. Certos locais favorecem a enunciação de certos discursos, sobre certos conhecimentos, enunciados através de certas palavras e línguas. Ao redor da fogueira, no mato ou na beira do rio, discursos e memórias abrem passagem para as palavras e a língua através das quais foram vivenciados originalmente. Para que essa língua possa ser ensinada a novos aprendizes, esses lugares não apenas precisam ser revisitados como frequentados com assiduidade — para tanto, a disponibilidade de tempo é essencial. Para os Laklãnõ-Xokleng, o fato de não estarem frequentando mais esses lugares e de não disporem de tempo para tal fim — por terem que empregar esse tempo em outros espaços, como, por exemplo, no interior das escolas, nos quais a língua laklãnõ-xokleng não é constituída — resulta prejudicial para que os membros das novas gerações consigam aprender a língua com os seus parentes mais velhos.

Contudo, para que possam ser frequentados, é necessário, em primeiro lugar, que os lugares onde os discursos e línguas indígenas têm sido tradicionalmente performados ainda se encontrem acessíveis. Porém, na TI Xapecó, vítima de uma exploração ambiental desmesurada durante décadas — na qual residem atualmente mais de 5000 Kaingang —, esses lugares virtualmente não existem mais, não estando mais, portanto, à disposição de estudantes e professores:

A realidade é diferente: não tem mais matas. Talvez isso seja nossa grande dificuldade. Então, o que trabalhar agora dentro das leis que garante pra nós? Mas o que que eu vou trabalhar enquanto professor Kaingang? Que conteúdos eu vou trabalhar com os meus alunos quando quer que eles continuem sendo povo Kaingang? Outra coisa: quando não tem-se mais a mata, muda todo o sistema. As roças, por exemplo, muda todo o sistema... não existe mais. (Pedro Kresó de Assis, registro audiovisual disponível em: https:// vimeo.com/202545344).

Meu esposo... várias vezes nós dois em casa, olhando para poucos de mata que nós temos. Até muitas vezes nós comentava: “por que será que os pássaro, os animais que existia no mato no passado, estão sumindo?” [...] Queremos uma reserva para criar, criar a mata, criar as abelha, criar caça. Não para granjear, não para envenenar a terra. Para criar peixe, não para contaminar as água, os rio, que antes nós não tomava água com cloro, nós tomava água pura, água natural, fazia bem para o nosso organismo. E hoje estão tudo diferente. Quantos vêem que é diferente nas aldeia? Eu vejo que é diferente, porque muitos estão acabando com as mata nas aldeia [...] Nós temos até medo de tirar [ervas, plantas] no meio das granja, porque nós temos medo até de comer algumas comida intoxicada de veneno. Nós temos medo até de beber a água dos rios! (Marilene Feliciano, registro audiovisual disponível em: https://vimeo.com/202545432).

Tal como afirmado por Silva (2002[42]) e Fernandes e Piovezana (2015[43]), a mata virgem — por ela ter representado tradicionalmente a fonte por excelência de alimento e de remédio, assim como por ela ser a morada dos espíritos e dos guias animais que dão poder aos xamãs ou kuiã Kaingang — tem desempenhado desde tempos imemoriáveis um papel estratégico na mitologia, ideologia e sociologia Kaingang — o próprio etnônimo Kaingang significa “homens do mato”. A extinção da mata virgem do universo kaingang, junto à acirrada poluição do meio-ambiente por parte das atividades do agro-negócio, tem acarretado a transformação radical de “todo o sistema”, do processo social kaingang como um todo e, com ele, das práticas de linguagem que ocorrem dentro dele e que outrora constituíam a língua kaingang.

É significativo apontar aqui que todos os grandes encontros kaingang da ASIE-SC foram planejados pelos professores para ocorrerem exclusivamente dentro das escolas ou de espaços organizados de forma análoga à sala de aula — dentro da escola Cacique Vanhkrê, na fig. 17, em setembro de 2015 e novembro de 2016; dentro de um galpão, na fig. 18, anexo à escola Cacique Pirã, em outubro de 2015; e dentro da escola Fen’no, na fig. 19, em março de 2016. De acordo com a teoria em favor da qual arguo nas considerações finais a seguir, não surpreende, portanto, que dentro desses espaços — e, consequentemente, em todos os encontros kaingang da ASIE- SC — a única língua constituída fosse o português translíngue.

Figure 13. Figura 17: A escola Cacique Vanhkrê durante o I Grande Encontro Kaingang da ASIE-SC. Fonte: Fotografia do autor, 2015.

Figure 14. Figura 18: Galpão anexo à escola Cacique Pirã durante o II Grande Encontro Kaingang da ASIE-SC. Fonte: Fotografia do autor, 2015.

Figure 15. Figura 19: Escola Fen’no durante o III Grande Encontro Kaingang da ASIE-SC Fonte: Fotografia do autor, 2016.

5. Línguas como processos sociais e demarcação de terras indígenas

Com base no relato etnográfico acima, no qual expus uma pequena parte do meu trabalho de campo junto aos meus parceiros Guarani, Kaingang e Laklãnõ-Xokleng, é possível agora sistematizar a contribuiçãoquetragoaquiparaareinvençãoefundamentaçãoteórica das línguas indígenas enquanto processos sociais — compreensão natural da linguagem desde uma perspectiva etnográfica, segundo Blommaert (2009).

Em prol dessa reinvenção, recorro a Bakhtin (2006, p. 126[35]), para quem a linguagem é um fluxo ou “corrente de comunicação verbal ininterrupta”. Essa corrente é composta por “ações executadas por gente num ambiente social” (BLOMMAERT, 2009, p. 264), ações semióticas — enunciações, nos termos de Bakhtin (2006[35]) — que são um produto da interação social — “realidade fundamental” ou “verdadeira substância” da língua (BAKHTIN, 2006, p. 125[35]) — e cuja forma e conteúdo são determinados pela situação em que são produzidas. Recorro também a Pennycook (2010, p. 1[44]), para quem a linguagem é uma forma de ação em lugares e tempos específicos, uma “prática local por meio da qual as línguas constituem um produto das atividades profundamente sociais e culturais nas quais as pessoas se engajam”.

Assim, se as línguas consistem numa série de práticas e ações locais em tempos e espaços específicos, elas precisam ser consideradas criações histórico-geográficas e não podem “ser tratadas de forma autônoma em relação ao fluxo mais geral de mudanças histórico-geográficas” (HARVEY, 1996, p. 88[45]). Ademais, se a linguagem é ação histórico-geográfica, os falantes não podem ser considerados usuários das línguas e sim “fazedores de línguas, que é, por sinal, o seu papel natural na evolução infinda da comunicação humana” (HARRIS, 2010, n.p[36]).

Pode-se dizer, assim, que, reinventadas à luz da definição de processos sociais de Harvey (1996, p. 79[45]), as línguas e as correntes de ações semióticas que as constituem resultam da articulação dos seguintes elementos: 1) práticas materiais; 2) instituições; 3) relações sociais; 4) poder; 5) discursos; 6) crenças, valores e desejos. As línguas “internalizam” todos os elementos dos processos sociais. Porém, cada um desses elementos em si mesmo internaliza todos os outros, pois cada um deles “é constituído enquanto relação interna dos outros dentro do fluxo de vida material e social” (HARVEY, 1996, p. 80[45]).

As práticas materiais organizam tempos e espaços em arranjos específicos, enquanto, simultaneamente, tempos e espaços específicos e os seus arranjos favorecem certas práticas materiais em detrimento de outras. Por internalizarem todos os elementos dos processos sociais, arranjos espaço-temporais e as práticas materiais a eles relacionados estabelecem ordens sociais particulares ao alocarem certos indivíduos e atividades em tempos e espaços específicos, estabelecendo assim hierarquias ao atribuírem poder de forma desigual aos sujeitos nelas engajados. Quando arranjos espaço- temporais, práticas materiais e relações sociais e de poder se firmam de forma duradoura, firmam-se instituições. As instituições, por sua vez, manifestam e reificam — e encontram sustento em — certas crenças, valores e desejos, favorecendo certos discursos enquanto inibem outros. Os processos sociais resultam da articulação de todos esses momentos, assim como fazem, quando compreendidas enquanto processos sociais, as línguas.

A educação escolar indígena constitui hoje um direito apenas por ter se tornado primeiramente uma obrigação e uma necessidade da qual os indígenas dependem para a sua sobrevivência econômica e cultural em decorrência do assédio do capitalismo que usurpa, explora, desmata e polui as suas terras. Esse direito é intercultural porque os indígenas têm se apropriado da escola enquanto ferramenta de defesa e sobrevivência que deve servir aos propósitos e interesses da sua luta política. O ensino-aprendizagem de línguas indígenas constitui, dentro desse paradigma educacional e político, também um direito intercultural, que deve ser garantido dentro de uma educação escolar diferenciada, intercultural e bilíngue. Porém, para que essa aprendizagem resulte bem sucedida e sirva realmente aos interesses das comunidades, é necessário desinventar e reinventar as línguas em prol da superação das consequências insidiosas da invenção colonial das mesmas.

Os grandes encontros de especialistas em educação indígena organizados no âmbito do programa de formação de professores Ação Saberes Indígenas na Escola em Santa Catarina ilustraram, da mesma forma que este artigo buscou ilustrar, que certos tempos-espaços, como, por exemplo, o interior da Opy para os Guarani e ao redor da fogueira, no mato ou à beira do rio para os Laklãnõ-Xokleng — e não outros, principalmente se obedecerem à organização espaço- temporal tradicional das salas de aula — propiciam certas práticas materiais que favorecem uma ordem social na qual os mais velhos e os sábios acreditados pelos princípios epistemológicos indígenas recebem, e se sentem confortáveis para receber, o grau mais alto de poder simbólico. No âmbito das práticas materiais propiciadas por esses espaços-tempos e seus arranjos, suas crenças, valores e desejos podem ser transmitidos através dos seus discursos, favorecidos pelas instituições construídas com base neles. Os processos sociais guarani, kaingang e laklãnõ-xokleng eram assim até a violenta transformação do seu tempo-espaço. Essa era sua língua, a língua que tanto desejam conseguir aprender e ensinar através de uma escola diferenciada, intercultural e bilíngue.

Em prol do fortalecimento das línguas indígenas e do seu ensino e aprendizagem, os espaços-tempos indígenas e as práticas materiais, relações sociais e de poder, instituições, discursos, crenças, valores e desejos associados a eles — isto é, seus processos sociais como um todo — precisam ser fortalecidos. A medida mais eficaz para tanto, defendem eles, é a demarcação das suas terras, política indispensável, portanto, para o fortalecimento das suas línguas; política indispensável, linguisticamente ou não, para a sua sobrevivência.

Agradecimentos

Meu mais sincero agradecimento a todas as comunidades e professores Guarani, Kaingang e Laklãnõ-Xokleng com quem tenho tido o privilégio de trabalhar ao longo destes anos. Agradeço também à CAPES e ao CNPq pelas bolsas de estudo que possibilitaram a elaboração da minha dissertação de mestrado e da minha tese de doutorado, assim como ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC, à Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica e à Ação Saberes Indígenas na Escola em Santa Catarina.

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