Ser e Estar em sentenças locativas: observações voltadas à formação de professores de PLE
Resumo
Este artigo tem por objetivo a realização de uma análise preliminar de sentenças com os verbos ser e estar, em particular em contextos locativos. Para este fim, vamos nos apoiar na literatura gerativista existente e em análises disponíveis para a discussão dos dados referentes ao português brasileiro (PB). Essa proposta também visa fornecer subsídios para a formação de professores de português como língua estrangeira (PLE) no que se refere ao ensino dos usos dos verbos ser e estar. Geralmente a esses verbos são atribuídas as características “permanente” e “não permanente”, explicação que é desafiada por sentenças como: A ilha do Mel está localizada no estado do Paraná. Concluiremos o estudo apontando possibilidades de explicação e de análise para a distribuição dos verbos copulares e explorando possibilidades de transposição, para a prática de ensino, das contribuições de estudos teóricos gerativistas.
Introdução
É largamente conhecida na área de ensino de português como língua estrangeira (PLE1) a dificuldade em tornar compreensível para os alunos o uso dos verbos ser e estar. Tal dificuldade ocorre devido à superficialidade com que o tema é tratado nas gramáticas da língua portuguesa em geral. Além disso, em relação ao ensino-aprendizagem de PLE, mesmo quando estamos considerando línguas próximas ou aparentadas, como português e espanhol, esses verbos não se distribuem da mesma maneira, isto é, embora as línguas possam conter os dois verbos de cópula (ser e estar), seu uso muitas vezes não coincide. Vemos isso Debería estar prohibido estudiar nos domingos (em espanhol) com sua tradução para o português Deveria ser proibido estudar nos domingos2. Ainda mais complexa talvez seja a utilização adequada desses verbos por parte de estudantes de PLE quando são falantes de línguas que têm apenas uma forma morfológica para os dois verbos. É o caso da língua chinesa com o verbo 是的 (shi), e também o da língua inglesa com o verbo to be:
(1)
a. John is tall.
b. John is happy.
.
Nos contextos em que o predicado é um adjetivo e ambas as cópulas3 são possíveis, os professores se desdobram na tentativa de explicar quais as nuances de significado que cada cópula aporta para a sentença. Os exemplos (1), seguindo a tradição da área, podem ter seus significados grosseiramente descritos como: (i) permanente ou tendencialmente estável, caso em que se traduzem em português como (2a,b); ou (ii) transitório ou episódico, caso em que receberiam a tradução em (2c,d):
(2)
a. João é alto.
b. João é feliz.
c. João está alto4.
d. João está feliz.
Essa forma de entender o uso dos verbos ser e estar vem sendo utilizada como fonte de orientação para a elaboração de materiais didáticos para ensino de PLE. A título de ilustração, vejamos como três manuais tratam o assunto:
Exemplo 1:
Exemplo 2:
Exemplo 3:
Como se pode ver, é a qualidade ou o caráter da permanência (ou da não permanência) o critério utilizado para a seleção de uma das cópulas. Porém, esse critério encontra problemas frente a exemplos como os que vemos em (3) a seguir:
(3)
a. A mulher está (*é) morta.5
b. A Ilha do Mel está (?é) localizada no litoral do Paraná.
c. O Pedro é (#está) solteiro.
d. O Pedro é (*está) adolescente.
.
Em (3a,b) temos propriedades claramente permanentes, mas a cópula (preferencial pelo menos) é estar; por outro lado, em (3c,d) temos exemplos de propriedades potencialmente não permanentes, e ainda assim a cópula é preferencialmente ser. Portanto, algo ainda deve ser dito para que os alunos de PLE possam construir uma generalização mais robusta sobre o uso desses verbos.
Vamos nos ater, no presente artigo, à discussão de sentenças como (3b), uma sentença particular porque, embora contenha uma forma participial idêntica à de um adjetivo, tem interpretação locativa. Nosso objetivo último aqui é fornecer subsídios para que os professores de PLE estejam em condições de ajudar seus alunos a entenderem por que estar é uma opção em sentenças locativas em geral e em construções como (3b) em particular, mesmo quando obviamente se faz referência a uma propriedade tida como permanente – o seu lugar geográfico.
Organizamos este artigo da seguinte forma: na seção 1 vamos iniciar com uma reflexão sobre o uso dos verbos de cópula considerando as noções mais sofisticadas que se encontram na literatura sobre o tema, tais como os conceitos de individual-level e stage-level; faremos aqui alguns testes propostos por Cunha (2004) para observar o comportamento desses verbos tendo como foco da análise o seu predicado. Na seção 2 vamos apresentar o que diz a literatura gerativista sobre a distribuição de ser e estar em geral e, com base nisso, analisaremos o que está em jogo no caso das sentenças adjetivais com interpretação locativa com estar. Ainda na seção 2 também faremos observações relacionadas à possibilidade de ambos os verbos de cópula e ao uso excludente de um e de outro verbo. Na última seção concluiremos nossa reflexão fornecendo observações voltadas a algumas características dos verbos copulares em geral com o intuito de contribuir para a formação de professores de PLE a respeito do ensino das cópulas do PB.
1. Um olhar mais atento sobre as construções copulares
1.1. Uma aplicação de testes em predicados adjetivais com o verbo estar
Nesta seção, vamos nos concentrar na análise de estruturas locativas acompanhadas pelos verbos de cópula ser e estar, especialmente em exemplos encontrados frequentemente em sites de turismo para se referir à localização de pontos turísticos, como no excerto a seguir:
Ao se deparar com sentenças como:
(4) A Ilha do Mel está localizada no estado do Paraná.
.
alunos de PLE, que receberam a orientação para associar o verbo ser com situações permanentes e estar com as não permanentes, certamente vão perceber que a regra apresentada é deficitária ou não se aplica. Na verdade, no exemplo (4), a construção com estar assume interpretação diametralmente oposta a dos casos típicos que denotam transitoriedade, já que aqui estamos frente a algo que não pode mudar e nem se mover.
Na literatura semântica da área, encontramos noções mais sofisticadas que poderiam ser usadas para descrever a distribuição de ser e estar nas línguas que possuem as duas cópulas. Carlson (1977, apud Chierchia, 1995, p. 176)6 identificou que os predicados podem ser classificados em duas classes naturais: predicados de indivíduos, conhecidos como individual-level predicates (IL), e os predicados de estágio, conhecidos como stage-level predicates (SL), que podem ser assim definidos:
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“Um estágio é concebido como sendo, grosso modo, uma manifestação espacial e temporalmente delimitada de alguma coisa [...] Um indivíduo, então, é (pelo menos) esse o-que-quer-que-seja que une uma série de estágios para torná-los estágios de uma mesma coisa.” (Carlson, 1977, p. 115)7
.
Para o autor, esta distinção existe em uma grande variedade de línguas e é possível mostrar que estes dois tipos de predicado se distinguem em vários aspectos, como em construções com advérbios temporais, na complementação de verbos de percepção, em construções existenciais e em construções com locativos.
Com base no estudo de Carlson (1977), Cunha (2004) apresenta alguns testes para distinguir predicados IL de predicados SL em línguas como o português. O interesse desta discussão é que se pode hipotetizar que o uso canônico dos verbos de cópula ser e estar é exatamente o de lexicalizar predicados IL e SL, respectivamente, o que pode fornecer uma base mais sólida à análise da distribuição dessas cópulas do que simplesmente a correlação intuitiva de ser com o critério ou a qualidade permanente e estar com o critério ou a qualidade não permanente, conforme vimos nos exemplos (1)-(3) na introdução deste trabalho.
O primeiro teste está relacionado ao “perfil” temporal das sentenças e o objetivo é analisar a possibilidade ou impossibilidade de ocorrência com adverbiais que imprimam restrições de nível temporal aos predicados de um ou de outro tipo. De acordo com análises como a de Kratzer (1995 apud CHIERCHIA 1995)8, apenas os predicados SL têm um argumento de evento, e assim a combinação de advérbios temporais pontuais com predicados IL deve resultar em sentenças agramaticais, o que aparentemente se confirma nos exemplos retirados de Cunha (2004, p. 83):
(5)
a. * O João foi alto ontem/durante a semana passada.
b. * Esta mesa foi redonda ontem/desde sábado até terça.
(6)
a. A Maria esteve doente ontem/durante a semana passada.
b. Este livro esteve na minha mesa ontem/desde sábado até terça.
.
O segundo teste está relacionado a processos de quantificação. Observa-se que predicados IL não podem ser quantificados através de operadores que propiciem uma leitura iterativa. Cunha (2004, p. 84) apresenta os seguintes exemplos:
(7)
a. * Sempre que o João é alto, joga basketball.
b. * Esta mesa foi redonda muitas vezes.
(8)
a. Sempre que a Maria está doente, toma chá de limão com mel.
b. Este livro esteve na minha mesa muitas vezes.
.
O terceiro teste envolve expressões locativas. De acordo com Kratzer (1995, apud CHIERCHIA 1995) apenas os predicados SL incluem em sua representação uma variável espaço-temporal, o que leva à hipótese de que somente esses predicados possam se combinar com expressões locativas. Seguem os exemplos (9a,b) e (10a) retirados de Cunha (2004, p. 84) e também o exemplo (10b) traduzido de Carlson (1977, apud CHIERCHIA 1995):
(9)
a. * O João é alto na casa da avó.
b. * Esta mesa é redonda na sala.
(10)
a. O João está contente na escola.
b. O João está sempre doente na França.
.
No entanto, como observa Maienborn (2005, apud CAMACHO 2010)9, é preciso observar que existem diferentes tipos de “localização”: há uma diferença entre sintagmas preposicionais que sejam efetivamente de localização de um evento ou estado e aqueles que são modificadores do tipo frame-setting (ou seja, que colocam uma moldura dentro da qual se desenvolve o evento ou estado). Quando tal diferença é controlada, o que se revela é que também os predicados SL são impossíveis com verdadeiros locativos – observe- se que os exemplos abaixo são possíveis, mas crucialmente não com a interpretação relevante para a discussão em tela:
(11)
a. * A camisa está molhada sobre a cadeira.
b. * Carol está grávida em seu quarto.
.
Adicionalmente, observe-se que podemos ter em português sentenças como:
.
(12) O Jean é feliz no Brasil,
um caso em que aparentemente usamos um predicado IL combinado com um locativo (um frame-setting modifier, nos termos de Maienborn 2005), ao lado de:
.
(13) O Jean está feliz no Brasil,
que poderia ser classificada como SL, dado o uso da cópula estar. Também temos que considerar aqui que o predicado adjetival feliz, em português, admite tanto a leitura de IL, quanto a de SL – ou seja, nos termos em que a discussão está formulada, ele é compatível tanto com ser quanto com estar, o que talvez seja um complicador neste caso.
De qualquer modo, o fato mesmo de não ser claro se a sentença (12) deve ser classificada de modo categórico como sendo IL (pois sua interpretação parece sugerir referência a um período vivido anteriormente fora do Brasil em que Jean não era feliz) faz pensar que a distinção IL/SL pode estar na dependência de fatores contextuais ou, o que é ainda mais delicado, que não é automática a classificação de sentenças com a cópula ser como uma construção de tipo IL e uma sentença com estar, como uma construção de tipo SL, ao menos em português. Ainda assim, vamos explorar a seguir a aplicação desses mesmos testes para as sentenças adjetivais locativas como em (4), foco do nosso estudo.
1.2. Uma aplicação de testes em predicados adjetivais locativos com verbo estar
Com intuito de analisar o uso dos verbos ser e estar na sentença objeto deste estudo, apresentada em (4), vamos nesta subseção aplicar a ela os testes propostos por Cunha (2004), descritos na subseção anterior. Lembremosqueessestestesforamconcebidosparamostrar a diferença entre predicados adjetivais SL e IL em português.
O primeiro teste coloca em jogo adverbiais que implementam restriçõesdeníveltemporalàssentenças. Seéverdadequepredicados com a cópula estar são de tipo SL mesmo quando exibem um sintagma preposicional locativo na presença de um particípio adjetival, o que se espera é que a sua combinação com os advérbios temporais resulte em sentenças gramaticais, graças ao seu argumento de evento, contrariamente ao que acontece com predicado IL, que devem ser agramaticais na combinação com esses adverbiais temporais. Não é isso, contudo, o que se observa:
(14)
a. *A ilha do Mel esteve localizada no Paraná ontem/ durante a semana passada.
b. *A Ilha do Mel estava localizada no Paraná ontem/de terça a sexta passada.
c. *A Ilha do Mel foi localizada no estado do Paraná durante a semana passada.
d. *A Ilha do Mel era localizada no Paraná durante a semana passada.
.
Surpreendentemente, não se verifica nenhuma diferença de gramaticalidade nas sentenças, esteja em jogo a cópula ser ou a cópula estar. Contudo, a inaceitabilidade dessas sentenças pode ser fruto do conhecimento de mundo dos falantes, que supõem que uma ilha não pode ter sua localização mudada em uma semana ou um dia. Se construídas com um adverbial temporal restrito, mas compatível pragmaticamente com o conhecimento de mundo dos falantes, as sentenças não parecem mais inaceitáveis:
(14’)
a. A Ilha do Mel esteve localizada no Paraná durante a era glacial.
b. A Ilha do Mel estava localizada no Paraná durante toda a era glacial.
c. ?A Ilha do Mel foi localizada no estado do Paraná durante a era glacial10.
d. A Ilha do Mel era localizada no Paraná durante toda a era glacial.
.
A ausência de contrastes claros aqui faz pensar que talvez o fenômeno em questão seja pragmático e não semântico (cf. KISS 2015, que discute o mesmo ponto com respeito aos exemplos com predicados adjetivais). Em todo o caso, seja uma coisa ou outra, neste contexto não parece haver diferença entre usar a cópula ser ou a cópula estar.
O segundo teste utilizado por Cunha (2004) com os predicados adjetivais foi o dos quantificadores de leitura iterativa. Novamente, o que se espera deste teste é que os predicados IL não aceitem quantificação de operadores que promovam leitura iterativa, o que deve ser possível com predicados SL. Contudo, uma vez mais, os resultados do teste estão longe de fornecer um quadro claro do que se passa aqui:
(15)
a. *Sempre que a ilha do Mel é/está localizada, os marinheiros comemoram.
b. *A Ilha do Mel foi/esteve localizada no litoral do Paraná muitas vezes.
c. *A Ilha do Mel era/estava no estado do Paraná muitas vezes.
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Embora com o verbo ser as sentenças pareçam possíveis, na interpretação relevante elas não o são – na verdade, em (15a) a interpretação possível com ser é a da passiva, que remete ao ato de localizar, uma interpretação impossível com estar. Contudo, novamente aqui é possível que estejamos frente a uma restrição (também) pragmática, sobretudo nas sentenças (15b,c), de modo que este teste igualmente não chega a elucidar a questão de se as sentenças com estar devem ser interpretadas como predicados SL ou não.
O terceiro teste é o de uso de expressões locativas. Ora, a sentença em análise contém uma expressão locativa (no estado do Paraná), e aqui estamos frente a um caso de localização efetiva, não um modificador do tipo frame-setting, nos termos de Maienborn (2005, apud CAMACHO, 2010). O que esperaríamos, então, é que as sentenças com ser ou estar fossem agramaticais (como as sentenças com predicados adjetivais IL ou SL discutidas na seção anterior, considerando-se inclusive que há um particípio adjetival na estrutura), mas não é isso o que acontece: o que nos mostra (16) é que não há qualquer indício de agramaticalidade com nenhum dos verbos de cópula, ser, estar ou mesmo ficar – no máximo, observa-se que é mais frequente a formulação desse tipo de afirmação com o verbo estar. Essa frequência pode ser observada em sites de turismo e em textos relacionados à descrição geográfica de lugares. O uso de (4), retomada aqui em (16a), é provavelmente mais comum no registro formal escrito e tem talvez alguma conotação de ordem político- geográfica.
(16)
a. A Ilha do Mel está localizada no Estado do Paraná (*pelos marinheiros).
b. ?A Ilha do Mel é localizada no Estado do Paraná (*pelos marinheiros).
c. A Ilha do Mel fica localizada no Estado do Paraná (*pelos marinheiros).
.
Notemos primeiramente a impossibilidade da presença de um agente em qualquer das três sentenças, pelo menos quando a cópula está no presente. A própria insensibilidade da construção às diferentes cópulas nos leva a pensar que é o fato de utilizarmos uma forma adjetival que é igualmente um particípio verbal o que licencia a construção com as características que ela tem. Assim, vamos nos debruçar a seguir sobre a forma participial.
1.3. Análise parcial da forma participial localizada em combinação com estar
Acabamos de ver que a sentença em estudo (4), submetida aos mesmos testes que os predicados adjetivos em (14), (15) e (16), não chega a se definir claramente quanto às suas propriedades de predicado SL ou IL. Contudo, ainda podemos aplicar a ela outros testes para verificar se é estativa a construção “estar + forma participial”.
De acordo com Cunha (2004, p. 198), as construções com “estar + particípio” apresentam o perfil aspectual de estado resultativo, tanto com verbos transitivos, como em (17), quanto inacusativos, como (18):
(17)
a. Os vidros estão partidos.
b. O carro está estacionado.
c. A casa está pintada. (
18)
a. O Zé está desmaiado.
b. O muro está caído.
c. As árvores estão floridas.
.
Poderíamos pensar que as estruturas formadas por estar seguido do particípio dos verbos localizar e morrer se enquadram nos casos listados acima em (17) e (18) respectivamente, uma vez que localizar parece ser um verbo transitivo e morrer um inacusativo, o que nos levaria a analisar nossa sentença (4) como (19a):
(19)
a. A ilha está localizada. (Estado resultativo com verbo transitivo).
b. O João está morto. (Estado resultativo com verbo inacusativo).
.
Observe que as sentenças em (19) podem aceitar um locativo, como mostra a gramaticalidade das sentenças em (20) a seguir:
(20)
a. A ilha está localizada no mapa.
b. João está morto no hospital.
.
Todavia, não é claro que estamos falando nos dois casos do mesmo processo de localização (cf. a discussão dos exemplos (11) sobre a diferença de um verdadeiro locativo e um modificador do tipo frame- setting) e nem, a rigor, da mesma interpretação para a estrutura estar + particípio – o exemplo (4), repetido em (16a), do mesmo modo que (16b,c), pode ser grosseiramente parafraseado por (21a) a seguir, mas essa não é uma paráfrase adequada para (20a) que, ao contrário, exibe um significado mais próximo de (21b):
(21)
a. A ilha do Mel se localiza no litoral do Paraná.
b. A ilha tem seu lugar identificado no mapa.
.
Portanto, a possibilidade ou não de uma leitura resultativa parece ser independente da estrutura que estamos examinando.
Kratzer (2000, apud MEDEIROS, 2008)11 entende que, do ponto de vista semântico, as passivas adjetivais estativas não formam uma classe única, mas duas subclasses devem ser reconhecidas: ao lado das passivas de estado resultante, temos as passivas de estado alvo. Estas descrevem estados em princípio reversíveis, e por isso aceitam a presença de um advérbio como ainda, como se vê em (22a), ao contrário das estativas resultativas, que fazem referência a um estado que permanece e que assim não pode ser revertido – e, portanto, também não aceita a ocorrência de um advérbio como ainda, como mostra a agramaticalidade de (22b) – exemplos extraídos de Medeiros (2008, p. 172-3):
(22)
a. Os caramelos ainda estão escondidos.
b. A casa (*ainda) está construída.
.
Como mostra (23), a nossa sentença de (4) também não pode coocorrer com o advérbio ainda, o que sugere que não estamos frente tampouco a uma sentença estativa alvo.
.
(23) A ilha do mel (#ainda) está localizada no litoral do Paraná.
.
Somos levados à conclusão, assim, de que a sentença em (4) não é um exemplo de passiva adjetival. E dada a especificidade desta sentença, talvez seja interessante fazer uma análise morfológica mínima tanto do verbo localizar quanto do seu particípio, localizado. Comecemos observando que o verbo localizar tem basicamente três significados listados no dicionário – aqui tomamos o dicionário Priberiam, disponível na rede (https://dicionario.priberam.org/ localizar), mas a diferença para outros dicionários é mínima: Localizar:
1. Pôr em lugar certo.
2. Determinar o lugar (em que uma coisa se passa ou em que há de ficar).
3. Impedir que se estenda, que se propague; circunscrever.
O significado que parece estar em jogo no caso do exemplo (4) é o segundo, o que quer dizer que a forma participial teria o significado aproximado de “ter determinado o seu local”.
Além disso, como nota Lemle (2002), os verbos com o sufixo -izar tendem a ter regência fixa, isto é, não apresentam alternância incoativa (como os verbos em -ecer, por exemplo) e por isso ou são verbosintransitivos(comcausaçãointerna) ou sãoverbostransitivos (que exibem causação externa), como parece ser o caso de localizar, um verbo transitivo. O paradigma relevante seria então – observe a impossibilidade da alternância incoativa em (24c):
(24)
a. A polícia localizou o carro roubado (na periferia da cidade).
b. O carro roubado foi localizado pela polícia (na periferia da cidade).
c. * O carro roubado localizou.
d. O carro roubado está localizado (*pela polícia).
e. ? O carro roubado está localizado na periferia da cidade.
.
Os exemplos (24d,e) revelam uma outra propriedade dos verbos em -izar notada por Lemle (2002): eles selecionam a propriedade aspectual [estado estável]; prova disso é que são incompatíveis com contextos como o de “começar a ficar -ado”, como vemos em (25) – o exemplo (25a) foi inspirado no de Lemle (2002, p. 293):
(25)
a. * O assunto começou a ficar polemizado (na semana passada).
b. * O carro começou a ser localizado pela polícia (ontem).
c. * A ilha começou a estar localizada (no século passado).
.
Que implicações têm essas observações para a análise das sentenças em (24d,e)? Primeiramente, notemos que a sentença (24d) é gramatical mas apenas com a suposta interpretação resultativa, como vimos na discussão de (19a), (20a) e (21b). Na interpretação locativa que temos em (4) a sentença seria agramatical sem o sintagmapreposicionallocativo. Contudo, mesmocomestesintagma expresso, como em (24e), a sentença é marginal, o que pode ser explicado pelo fato de localizar ter a propriedade lexicais do sintagma nominal sujeito, que sugerem movimento. Ao contrário, os traços lexicais do sujeito da sentença (4), a ilha do Mel, são compatíveis com essa propriedade aspectual e por isso (4) é uma sentença perfeita quando comparada com (24e).
Ora, se a presença do sintagma preposicional locativo é crucial para a gramaticalidade da construção em (4), precisamos agora entender o que exatamente rege a distribuição de locativos nas sentenças com ser e estar. Ainda mais: se os traços do sintagma nominal sujeito da sentença também são relevantes, entramos em um terreno ainda não explorado pela literatura mais tradicional. Assim, é objetivo da próxima seção trabalhar nessas duas frentes: o papel dos locativos e dos sintagmas nominais sujeitos nas sentenças copulares com ser e estar no português.
2. Breve descrição da distribuição de ser e estar na literatura
Da discussão promovida até aqui, as noções de IL e SL, apesar de serem mais bem fundadas teoricamente, não parecem ser suficientes para oferecer um tratamento adequado para a sentença foco deste trabalho; além disso, apenas a análise da forma participial localizada não nos leva ao entendimento cabal da distribuição geral das cópulas ser e estar, considerandoemparticularassentençascominterpretação locativa. Ao contrário, como vimos na última seção, parece relevante examinarmos as condições específicas em que os (diferentes tipos de) locativos são admitidos e também certas compatibilidades de traços até agora não aventadas, em particular no tocante ao sujeito da sentença copular.
Vamos por isso olhar agora o que a literatura da área tem a nos dizer sobre a distribuição das cópulas ser e estar quando se combinam com formas adjetivais (e participiais) e com sintagmas locativos, para averiguar se existem restrições de alguma natureza a essas combinações para além daquelas que se ligam à própria cópula.
2.1. Contextos em que se pode escolher apenas uma das cópulas - ser ou estar
Segundo Camacho (2010), em espanhol, vários são os contextos em que não é possível trocar uma cópula por outra; com predicados identificacionais ou predicados nominais (isto é, DPs) e como auxiliar de passivas verbais, apenas ser é admitido. Vale o mesmo para o português, como mostram os exemplos em (26) abaixo, inspirados nos exemplos (2)-(7) de Camacho (2010):
(26)
a. A coordenadora é (*está) ela.
b. O João é (*está) o coordenador do projeto.
c. A Maria foi (*esteve) entrevistada pelo IBOPE.
.
Por outro lado, apenas estar pode ser usado como auxiliar aspectual, seguido pelo gerúndio no português brasileiro (PB) e por a + infinitivo no português europeu (PE), como mostram (27a,b); ademais, em construções em que o predicado nominal é antecedido pela preposição de, é também estar a cópula escolhida, como mostra (27c):
(27)
a. O Pedro está (*é) cantando.
b. O Pedro está (*é) a cantar.
c. O Pedro está (*é) de babá hoje.
.
A princípio, esses são os contextos mais fáceis para ensinar aos alunos de PLE, já que não há opção: num certo conjunto de casos usa- se ser; em outro conjunto, usa-se estar. A generalização pertinente pode ser formulada na seguinte tabela:
Contextos em que se usa apenas ser | Contextos em que se usa apenas estar |
1. Com predicados nominais | 1. Como auxiliar em tempos verbais progressivos: estar + gerúndio em PB |
2. Nas sentenças de voz passiva | 2. Com predicados nominais antecedidos da preposição de. |
Quando estão em jogo predicados adjetivais ou preposicionais, a situação já é mais delicada, mas ainda assim existem contextos em que apenas uma das cópulas pode ser selecionada - ou ser ou estar. Por exemplo, adjetivos como arruinado, cansado, cheio, contente e ausente podem apenas ser utilizados com estar, nunca com ser, como mostram os contrastes em (28) - os exemplos se inspiram em Camacho (2010):
(28)
a. O Pedro está (*é) arruinado.
b. O Pedro está (*é) cansado.
c. O filtro está (*é) cheio.
d. A Maria está (*é) grávida.
.
Por outro lado, há casos em que apenas ser é uma possibilidade, como na combinação com os predicados mortal e transitório - exemplos inspirados em Camacho (2010) e Schmitt e Miller (2007), respectivamente:
(29)
a. O homem é (*está) mortal.
b. Esse problema é (*está) transitório.
c. O Pedro é (*está) inteligente.
.
É importante fazer notar aqui que, embora em alguns desses exemplos realmente esteja em jogo o contraste entre propriedade permanente versus propriedade não permanente, nem sempre é este o caso: em (28a), não se tem qualquer implicação de não permanência da propriedade arruinado embora a cópula selecionada seja estar; por outro lado, a significação lexical do adjetivo transitório aponta para a não permanência da propriedade, mas a cópula utilizada é ser. E é sem qualquer dúvida um trabalho futuro importante tentar formular um critério que possa colocar juntos os adjetivos de um tipo, separados dos adjetivos do outro tipo, de modo que o aluno de PLE possa ter acesso a uma generalização ou a uma regra formulada explicitamente e não apenas a uma lista de membros desta ou daquela subclasse.
Também o caso da combinação dessas cópulas com predicados preposicionais oferece dificuldades. É fato que há contextos que não admitem qualquer opção, sendo favorecida a seleção da cópula ser, em particular quando o sintagma preposicional é encabeçado pela preposição de (cf. PESSANHA e FOLTRAN, 2015 para uma discussão detalhada desses casos). Contudo, estar deve ser a cópula escolhida em alguns casos, como quando o sintagma preposicional é encabeçado pela preposição com – novamente, os exemplos são de Camacho (2010):
(30)
a. O anel é (*está) de ouro.
b. Pedro é (*está) de São Paulo.
c. O vestido é (*está) de listras.
d. A Maria está (*é) com uma amiga.
.
Ainda mais complicado é o caso da distribuição das cópulas em construções locativas. De acordo com Zagona (2010, apud CAMACHO, 2010)12, existe contraste claro entre as preposições que indicam localização e as que indicam trajetória (path em inglês), como vemos em (31) abaixo:
(31)
a. Pedro está (*é) no Egito.
b. Esse presente é (*está) para Pedro.
.
Em (31a), temos em jogo a interpretação de localização, caso em que apenas estar pode ser usado; por outro lado, em (31b), temos uma trajetória sendo descrita (o presente segue um caminho até chegar em Pedro) e neste caso é a cópula ser que deve ser utilizada.
Finalmente, Camacho (2010) chama nossa atenção para outra particularidade das construções com locativos: nos casos em que os sujeitos devam ser interpretados como um evento, estar não é possível; por outro lado, nos casos em que os sujeitos são interpretados referencialmente, ser não é possível. Os exemplos do autor para o espanhol estão em (32) a seguir, e sua tradução para o português mostra que os fatos são fundamentalmente os mesmos nesta língua:
(32)
a. La fiesta es/#está en la discoteca.13 ‘A festa é/#está na discoteca’.
b. La pelota está/*es en la mesa. ‘A bola está/*é na mesa’.
.
Esse conjunto de observações também pode ser apresentado em um quadro como o que vai abaixo:
Contextos em que se usa apenas ser | Contextos em que se usa apenas estar |
1. Com predicados adjetivais como mortal, transitório e inteligente | 1. Como predicados adjetivais como cansado, arruinado e grávida |
2. Com sintagmas preposicionais encabeçados pela preposição de | 2. Com sintagmas preposicionais encabeçados pela preposição com |
3. Com sintagmas preposicionais locativos que expressam trajetória | 3. Com sintagmas preposicionais locativos que expressam localização genuína |
4. Em sentenças locativas em que o sujeito é um nominal eventivo | 4. Em sentenças locativas em que o sujeito é um nominal referencial |
2.2. Contextos em que ambas as cópulas – ser e estar – são possíveis
Como é largamente sabido, há contextos em que tanto a seleção da cópula ser quanto a de estar são possíveis: quando temos predicados adjetivais provenientes de um certo conjunto de adjetivos, como em (33a,b), e quando temos predicados preposicionais também de uma certa natureza, exemplificados por (33c,d):
33)
a. A Maria é/está bonita.
b. O Rio é/está quente.
c. A farmácia é/está na esquina.
d. A Ilha do Mel ?é/está localizada no litoral do Paraná.
.
Com respeito aos exemplos em (33c,d), há uma observação adicional de Camacho (2010), segundo a qual, no caso de construções que expressam localização, nota-se uma correlação entre a cópula selecionada e a animacidade do sujeito, isto é, sujeitos inanimados podem escolher tanto ser quanto estar, mas sujeitos animados podem se combinar apenas com estar:
(34)
a. A farmácia é/está ali na esquina.
b. Pedro está (*é) em São Paulo.
.
Esta última generalização apresentada por Camacho (2010) nos parece particularmente interessante para o caso da nossa sentença (4), dada a discussão que encerrou a seção 1 acima. Na verdade, talvez possamos ser mais precisos na formulação da generalização pertinente: sintagmas nominais que exibam o traço aspectual [estado estável] são possíveis em construções locativas com estar; os que não exibem esse traço aspectual em sua interpretação só podem se combinar com ser.
A razão para este estado de coisas será objeto da próxima seção, que conclui a discussão sobre as propriedades das cópulas ser e estar. Antes de irmos a ela, porém, vamos apresentar um quadro com os fatos elencados nesta subseção.
Contextos em que podem ser usados ambos os verbos de cópula – ser e estar |
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1. Com predicados adjetivais (de uma certa natureza, ainda a precisar) Exemplos: a. Pedro é feliz. / b. Pedro está feliz. |
2. Com locativos (de significação locativa estrita) desde que com sujeito dotado do traço aspectual [estado estável]. Exemplos: a. A farmácia é na esquina. / b. A farmácia está na esquina. |
3. Referindo-se a estados civis (com particípios adjetivais) Exemplos: a. Pedro é casado. / b. Pedro está casado. (É possível que essas frases sejam casos de coerção aspectual – cf. MARQUES e BASSO, 2017) |
2.3. Conclusões parciais: as sentenças copulares locativas e o uso de estar
A nossa incursão na literatura gerativista sobre a distribuição das cópulas ser e estar em contextos locativos nos trouxe até aqui às seguintes conclusões:
1. a classe de sintagmas nominais que grosso modo faz referência a locais pode ser dividida em dois grandes grupos: os locativos propriamente ditos (que marcam o local onde de fato se desenvolve o evento ou o estado descrito pela sentença) e modificadores de moldura (frame setting em inglês). No caso da sentença em (4), estamos frente a um verdadeiro locativo, embora esse não seja um contexto em que se faz diferença entre ser e estar;
2. existe também um contraste entre as preposições que indicam localização e aquelas que indicam trajetória (path, em inglês); no caso da sentença (4) estamos frente a uma sentença de localização, compatível com o verbo estar se outras condições forem satisfeitas; sentenças que exibem sintagmas preposicionais de trajetória são compatíveis apenas com ser;
3. a animacidade ou, mais precisamente, a propriedade aspectual de [estado estável] do sintagma nominal sujeito desempenha um papel importante na seleção das cópulas: um sintagma nominal que exiba esta propriedade aspectual é compatível tanto com ser quanto com estar; um sintagma nominal que não exibe esta propriedade é compatível apenas com estar.
Esta última observação é um pouco surpreendente, se tomarmos seriamente a análise tradicional que atribui a estar a propriedade de exprimir estados não permanentes, transitórios; mesmo a análise semântica mais sofisticada na esteira de Carlson (1977) vê estar como o candidato mais adequado para lexicalizar a propriedade dos predicados de estágio, enquanto ser seria o candidato mais natural para lexicalizar a propriedade dos predicados de indivíduo, esta sim, uma propriedade dotada de alguma estabilidade no tempo.
Neste ponto é necessário fazer uso de alguma hipótese mais propriamente semântica: como supõem Schmitt e Miller (2007, p. 1913), é possível que tenhamos que reconhecer dois tipos distintos de predicados estativos, ao lado de admitir que há uma dimensão pragmática na escolha das cópulas que deve ainda ser considerada.
Para essas autoras, a estatividade pode vir de duas fontes diferentes: um predicado é estativo ou porque é atemporal (cf. BACH 1981, apud SCHMITT & MILLER, 2007)14 ou porque denota um ESTADO (cf. SMITH, 1991, apud SCHMITT & MILLER, 2007)15.
ESTADOS têm a propriedade do subintervalo, que diz basicamente que sempre que um estado é verdadeiro num intervalo aberto I, ele é verdadeiro em qualqr subintervalo aberto I’ de I.
Nesse quadro teórico, ser é o estativo atemporal; trata-se de um item default, já que não possui conteúdo intrínseco de nenhum tipo e por isso não impõe restrições ao seu complemento; por outro lado, estar contribui com um subevento do tipo ESTADO para a interpretaçãodasentença;emvirtudedapropriedadedosubintervalo, a sua predicação será sempre ancorada temporalmente. Segue-se daí que a escolha de estar cria a implicatura de que a propriedade não é válida sempre, já que a língua tem como opção uma cópula, ser, que não é obrigatoriamente ancorada.
Voltando à sentença foco do nosso estudo, somos levadas a concluir que este é um caso em que a implicatura de que a propriedade não é válida sempre não é desencadeada - possivelmente, o subintervalo I’ é tomado como idêntico ao intervalo I. É digno de nota o fato de que a sentença possui vários elementos apontando para a interpretação de estabilidade da propriedade: seu sujeito é um sintagma nominal referencial [inanimado] ou, mais precisamente [estado estável]; o tempo verbal da sentença, o presente, exibe aspecto não pontual, ou durativo; e a presença do particípio do verbo localizar, um verbo que exibe a propriedade [estado estável] é a garantia final da interpretação que efetivamente temos da sentença.
Finalmente, essa análise faz a predição de que também a cópula ser seria uma opção para esta sentença, já que é a cópula default e, portanto, deveria ser adequada neste contexto. No entanto, ela não é a opção preferida, talvez porque esteja implicada na voz passiva, uma possibilidade real para a sentença (4), que coloca em jogo um verbo transitivo. Na ausência do particípio, ser é novamente a opção preferida, como mostram as sentenças abaixo:
(35)
a. A Ilha do Mel está localizada no estado do Paraná
b. ? A Ilha do Mel é localizada no estado do Paraná
c. ? A Ilha do Mel está no estado do Paraná
d. A Ilha do Mel é no estado do Paraná
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3. Observações quanto à prática de ensino dos verbos ser e estar
Concluímos esse estudo destacando que ensinar e aprender a distribuição dos verbos ser e estar em português não é tarefa fácil. As generalizações mais simples e intuitivas parecem ser insuficientes ou simplificadoras. Pudemos constatar isso nos exemplos de livros didáticos de PLE mostrados na introdução deste artigo. O primeiro exemplo associa o verbo ser à qualidade permanente e a outros casos como: posse, nacionalidade/origem, material (constituição de materiais), profissão/cargo, tempo cronológico, expressões impessoais. Por outro lado, para o verbo estar é atribuída a qualidade temporária. Embora essas orientações sejam didaticamente úteis no momento inicial da aprendizagem, sabemos que não dão conta de boa parte das situações de uso.
O segundo exemplo também procura dar orientações gerais, mas esbarra na mesma dificuldade apresentada pelo exemplo 1. Vemos que o item 5, o qual atribui a interpretação de caráter permanente ao verbo ser, não dá conta do uso da sentença (4) que foi objeto de análise deste artigo. O exemplo 2 diz que em sentenças com sentido de localização de prédios, ruas (coisas que não podem mudar de lugar) deve ser usado o verbo ser.
O exemplo 3 coloca os professores diante de uma situação ainda mais complexa para explicar quando se usa um e outro verbo. Ali se pede para que os alunos associem os termos “permanente” = P e “não permanente” = N-P a algumas sentenças. No entanto, aí está a dificuldade, pois sentenças que falam sobre estados civis trazem complicações inesperadas para a análise e exigem observação do contexto situacional; este é o caso de “Ele é casado” e “Eles estão separados”, além de outras situações.
Diante disso tudo, atribuir a qualidade de “permanente” e “não permanente” aos verbos ser e estar é pouco consistente e é útil apenas para alguns casos. Por isso, sugerimos que logo de início os alunos sejam informados de que há situações em que esses verbos são usados sem possibilidade de escolha, mas que existem outros contextos em que ambos podem ser usados. Além disso, é útil observar os outros elementos da frase, como a composição do predicado e as características do sujeito (se inanimado ou animado, por exemplo), que podem se revelar determinantes para a escolha da cópula afinal. Destacamos também que quando possível é interessante inserir o verbo ficay como um contraponto nessa discussão de seleção das cópulas. O diagrama a seguir apresenta um quadro bastante claro das possibilidades de uso das cópulas em PB:
Como vemos acima, esses verbos possuem uma área de interseção que significa que todos podem ser usados, ou apenas dois deles, embora possa existir alguma diferença de interpretação na escolha de um ou outro. No entanto, existem situações que apenas um deles pode ser usado ou apenas um deles forma sentenças gramaticalmente possíveis. A área indicada pela letra “A” refere-se a situações em que sey e estay podem ser usados indiferentemente (à parte a diferença de significado). A área referente a letra “B” indica que todos os três verbos mostrados podem ser usados. Essas são as construções locativas. Observe também que existe uma área de interseção entre os verbos estay e ficay, que também podem ser usados indiferentemente (à parte a diferença de significado) em algumas sentenças como (36):
(36)
a. Esse vestido está bem em você.
b. Esse vestido fica bem em você.
.
Por seu turno, pode-se perguntar se a interseção entre ficay e sey de fato ocorre além das situações de localização.
Salientamos que, como tudo nas aulas de língua estrangeira, a exploração dos verbos de cópula nas aulas de PLE deve procurar aproveitar momentos em que tais verbos aparecem nos conteúdos propostos e que sejam destacadas as condições contextuais, tanto aquelas referentes aos outros elementos frasais quanto aquelas referentes ao contexto situacional e pragmático.
Vamos finalizar este estudo com uma proposta de atividade/ exercício para explorar os verbos de cópula no ensino de PLE para estudantes de nível básico. Entendemos que essa proposta será parte de um caderno de exercícios como apoio ou para estudos de sistematização caso os alunos solicitem ou sintam necessidade deles. Frisamos aqui que as explicações de tópicos gramaticais precisam ser inseridasemocasiõesapropriados: integradasaotrabalhocomtextos, como preparação para a produção de tarefas de produção de textos ou quando solicitadas pelos estudantes, entre outras situações. Na proposta a seguir incluímos alguns usos, mas evidentemente existem outros tantos que podem ser exploradas como: problemas de saúde (Ela está doente); características do clima (Hoje está muito fyio), etc.
Considerações finais
Os verbos sey e estay apresentam semelhanças entre si, pois ambos são (também) verbos de cópula e são usados em contextos relativamente próximos. No entanto, vemos que em português esses verbos se distinguem semanticamente em alguns casos e essa distinção oferece dificuldade tanto para as crianças em processo de aquisição da sua língua materna, quanto para os estrangeiros que a aprendem/adquirem na fase adulta. Ainda pior, existem contextos em que ambos os verbos podem ser usados. Embora nosso foco de estudo neste estudo tenha sido uma construção em que o uso de estay é inesperado mas sem dúvida é a cópula preferencial, também abordamos os casos em que ambas as cópulas são possíveis e, com o intuito de estabelecer os critérios que guiam a distribuição de sey e estay, foram realizados alguns testes com o objetivo de determinar a sua distribuição.
Observamos que elementos presentes na sentença influenciam na construção geral do seu sentido. De acordo com Cunha (2004, p. 116), podemos verificar “uma interdependência entre os vários elementos que dão corpo à predicação, e não a sua actuação de forma isolada”. Pudemos ver também, na subseção 3.2, que também a constituição do sujeito poderá contribuir ou interferir na escolha dos verbos de cópula. Assim, componentes lexicais podem influenciar ou desempenhar papéis modificadores em relação à constituição ou a caracterização aspectual da sentença.
Nosso estudo aqui nos conduziu a várias generalizações interessantes, porque a construção que foi guia do estudo colocava em jogo o verbo estay, um particípio - em forma idêntico a um adjetivo - e a interpretação locativa, elementos presentes individualmente em outras construções que igualmente colocam a questão de qual cópula pode ou deve ser usada. Na medida em que fomos discutindo as diversas construções, também fomos mostrando as limitações das abordagensaparentementemaissimpleseintuitivasparaoproblema, mostrando que elas não chegam a dar conta da complexidade que a seleção das cópulas coloca para os aprendizes de uma língua como o português. Finalmente, apresentamos uma hipótese para o tratamento das cópulas que leva em consideração um componente pragmático que ainda não havia aparecido na discussão no contexto do ensino de português língua estrangeira.
Finalizamos destacando a importância de uma formação mais propriamente teórica para os professores de PLE, de modo que seja possível para eles oferecer um tratamento adequado para os contextos de uso dos verbos sey e estay nas práticas de ensino de PLE sem que sejam levados a falsas explicações generalizadoras.
Referências
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MEDEIROS, A. B. de. Traços morfossintáticos e subespecificação morfológica na gramática do português: um estudo das formas participiais. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2008.
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SCHMITT, C.; MILLER, K. Making discourse-dependent decisions: the case of the copulas ser and estar in Spanish. Lingua 117, Amsterdam, p. 1907-1929. 2007.