Demonstrativos de kinds: sobre alguns usos de “aquele/aquela” no português brasileiro

Lovania Roehrig Teixeira,
Renato Miguel Basso

Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir usos de demonstrativos do Português Brasileiro ainda não analisados na literatura, os demonstrativos de kinds (DK), da forma “aquele(a) N”. Esses itens se diferenciam dos usos anafóricos e dêiticos dos demonstrativos, além dos usos NDNS (WOLTER, 2006; KING, 2001), indefinidos (WOLTER, 2006; ABBOTT, 2010; PRINCE, 1981;), emotivos (WOLTER, 2006; LAKOFF, 1974) e dêitico-discursivos (ROBERTS, 2002) por se referirem a kinds, isto é, a espécies ou a tipos indicados pelo nominal. Desse modo, o que é compartilhado por ambos os interlocutores é um tipo, espécie ou kind expresso pelo nominal e não um referente único determinado. Isso resulta do fato de os DKs não preservarem familiaridade no nível dos indivíduos, mas sim no nível dos kinds, e por isso podemos considerar DKs como definidos. Além disso, os DKs se referem a kinds altos na escala, isto é, a exemplos exemplares de kinds. Assim, DKs se referem a kinds que (i) não apresentam unicidade e familiaridade no nível dos indivíduos ordinários, e (ii) não se referem a qualquer instanciação do kind referido, mas sim a instanciações que, para um dado interlocutor, são exemplares e, por isso, estão posicionadas no alto na escala de bons exemplos do kind relevante.

Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar uma descrição e uma análise de um uso particular do demonstrativo “aquele(s)/aquela(s)” no português brasileiro (PB) que, à primeira vista, não se conforma a uma análise tradicional de demonstrativos ou de expressões definidas. Tal uso é exemplificado pelas sentenças abaixo:

(1) Que falta que faz aquela chuvinha gostosa do fim de tarde...

(2) Tô com vontade de comer aquela comida caseira.

(3) Hoje, depois de chegar do trabalho, vou dar aquela dormida!

Em termos gerais, fala-se em demonstrativos dêiticos, ou uso dêiticos de demonstrativos, quando eles vêm acompanhados por algum elemento extralinguístico, como um apontamento ou qualquer outro gesto físico, para que seu valor semântico seja determinado via referência a um elemento extralinguístico, presente no contexto de fala. Por exemplo, se estivermos em um concerto, sem que se utilize um apontamento ou indicação, não é possível determinar o referente da descrição demonstrativa “aquela pessoa”. Em usos anafóricos, demonstrativos são empregados para retomar alguma entidade já mencionada anteriormente, como em: “Eu já tive uma bicicleta de corridai1, e aquela sim era uma bicicleta leve”, em que “aquela” retoma “uma bicicleta de corrida”.

Porém, como os exemplos acima atestam, não parece que estamos diante de um uso dêitico ou anafórico de “aquele(a) N”. Tomemos o exemplo abaixo:

(4) A: Sabe aquele lugar sossegado para conversar?

B: Sim!

A: Conheço um barzinho perfeito no centro.

Em (4), “aquele lugar sossegado” não tem um uso dêitico – não há entidade relevante no contexto e não há apontamento que acompanha a expressão – e não se caracteriza como uso anafórico, pois não há antecedente linguístico para a descrição demonstrativa, e também não há uma única entidade que ambos os falantes consideram como o referente de “aquele lugar sossegado”. Na verdade, essa é a primeira menção do referente e ela é feita por meio de uma descrição demonstrativa, aspecto bastante incomum quando se trata de termos singulares como os demonstrativos.

De fato, os casos vistos acima, inclusive, levam a questionar se os demonstrativos estão sendo usados como definidos, se respeitam a unicidade associada a definidos, ou se estamos diante de usos mais próximos aos de termos indefinidos. Para tentar responder essas e outras questões, organizamos este artigo da seguinte maneira: na primeira seção, apresentamos uma descrição detalhada das interpretações possíveis e da distribuição desse tipo de estrutura; na segunda, expomos algumas possibilidades de análise para demonstrativos encontradas na literatura, que os tratam como termos referenciais, como quantificadores ou como determinantes definidos. Na seção três, apresentamos nossa proposta de análise, e na Conclusão retomamos o caminho percorrido e mencionamos alguns dos problemas em aberto.

1. Sabe aquela interpretação que só “aquele” tem? Então...

Nesta seção, discutimos alguns casos de demonstrativos do PB que colocam dificuldades para uma classificação baseada somente em dois “rótulos”: demonstrativos dêiticos e demonstrativos anafóricos; chamaremos esses casos de usos de demonstrativos do PB de “demonstrativos de kinds” (DKs). Nosso objetivo é apontar algumas de suas características que retomaremos em nossa análise na seção 3.

Os exemplos abaixo envolvem a estrutura “aquele(a) N”, em que N pode ser um nome ou uma expressão nominal complexa:

(5) Agora é hora de dar [aquela [alongada para terminar o treino]]2.

(6) O João de novo deu [aquele [showzinho sem graça]].

(7) Eu tô precisando tomar [aquele [suco gelado]] pra refrescar!

(8) Nessa época do ano costuma fazer [aquele [calor de secar mamona]].

Notamos, em primeiro lugar, que a substituição por outro determinante resulta ou em sentenças malformadas ou com interpretações diferentes. Comecemos com a substituição de “aquele(a)” por “esse(a)”:

(5a) Agora é hora de dar [essa [alongada para terminar o treino]].

(6a) O João de novo deu [esse [showzinho sem graça]].

(7a) Eu tô precisando tomar [esse [suco gelado]] pra refrescar!

(8a) Nessa época do ano costuma fazer [esse [calor de secar mamona]].

Observa-se que para os casos de (5a) a (8a) a interpretação disponível é dêitica em alguns casos – em (7a), o falante deve estar apontando para o suco em questão e em (8a), há também uma refe- rência dêitica para o calor que o falante está sentindo – e anafórica em outros – em (5a), há um “alongamento” em particular sendo retomado e em (6a), fala-se de um “showzinho sem graça” que o João costuma dar. Tanto a interpretação dêitica quanto a anafórica garantem a unicidade do referente, ou seja, há uma única entidade sobre a qual se fala, pressuposta no fundo conversacional e acomodada quando o falante profere a expressão, por exemplo, (5a) ou (6a).

Porém, a interpretação a ser dada às estruturas relevantes de (5) a (8) não envolve dêixis, pois não há nada a ser apontado ou indicado no contexto do proferimento, e também não se trata de casos de anáfora, pois não se retoma alguma entidade identificável e única do contexto. Em outras palavras, para os casos de (5) a (8) não há nada sendo apontado e nada único sendo recuperado de modo compartilhado do contexto, ou seja, os falantes podem ter sucos diferentes em mente para o caso de (7), alongamentos diferentes para o caso de (5) e assim por diante.

Essa diferença entre haver ou não um referente único sendo retomado fica ainda mais clara ao substituirmos “aquele(a)” por “a(o)”, como nos exemplos a seguir: (5b) Agora é hora de dar [a [alongada para terminar o treino]].

(6b) O João de novo deu [o [showzinho sem graça]].

(7b) Eu tô precisando tomar [o [suco gelado]] pra refrescar!

(8b) ? Nessa época do ano costuma fazer [o [calor de secar mamona]].

As sentenças (5b) a (7b) só tem a interpretação anafórica e a definida esperada, ou seja, retomam entidades que os participantes identificam como única (mesmo que como o resultado de alguma acomodação de pressuposição). Para o caso de (5b), há um alongamento específico; para (6b), trata-se de um mesmo show3; e para (7b), a única interpretação possível é que há um suco gelado específico sobre o qual se fala. Por sua vez, a sentença (8b) é estranha justamente porque não associamos “calor de secar mamona” a uma única entidade específica e recuperável do contexto4.

Os exemplos abaixo apresentam a mesma estrutura, mas agora com um artigo indefinido no lugar de “aquele(a)”:

(5c) Agora é hora de dar [uma [alongada para terminar o treino]].

(6c) O João de novo deu [um [showzinho sem graça]].

(7c) Eu tô precisando tomar [um [suco gelado]] pra refrescar!

(8c) Nessa época do ano costuma fazer [um [calor de secar mamona]].

É interessante notar que essas sentenças são todas aceitáveis e são as que mais se assemelham aos casos com “aquele(a)”, o que nos leva a pensar que DKs são casos particulares de indefinidos e não de definidos5. Nessa mesma linha, é interessante notar o contraste observado entre DKs e ex- pressões com indefinidos nos casos abaixo – (5d) a (8d) versus (5e) a (8e).

(5d) Agora é hora de dar [aquela [alongada para terminar o treino]].

- Legal! # Qual alongada?

(6d) O João de novo deu [aquele [showzinho sem graça]].

- Vixe! # Qual showzinho?

(7d) Eu tô precisando tomar [aquele [suco gelado]] pra refrescar!

Boa! # Qual suco gelado?

(8d) Nessa época do ano costuma fazer [aquele [calor de secar mamona]].

Sério? # Quantos graus?

(5e) Agora é hora de dar [uma [alongada para terminar o treino]].

- Legal! Qual alongada?

(6e) O João de novo deu [um [showzinho sem graça]].

- Vixe! Qual showzinho?

(7e) Eu tô precisando tomar [um [suco gelado]] pra refrescar!

Boa! Qual suco gelado?

(8e) Nessa época do ano costuma fazer [um [calor de secar mamona]].

Sério? Quantos graus?

Note que, quando se exige mais informação sobre a identidade do referente por meio de perguntas, o resultado é que para os DKs a solicitação de informação é inadequada ao contexto e para as expressões com indefinidos a solicitação é adequada. Conforme argumentaremos com mais detalhes adiante, a inadequação da pergunta para os DKs decorre do fato de eles não se referirem a indivíduos específicos/particulares e sim a kinds, porém, dado que a pergunta de esclarecimento é sobre indivíduo particulares, o resultado é estranho; por sua vez, a adequação das perguntas aos exemplos com os indefinidos “um” e “uma” ocorre porque eles se referem a indivíduos particulares ainda não-especificados, i.e., são necessárias informações adicionais para a determinação do referente.

Outro ponto a ser ressaltado é que os DKs podem aparecer no escopo do verbo epistêmico “saber”6, como já vimos no exemplo (4), no título desta seção e como atestam os exemplos abaixo:

(9) Sabe aquela saia justa durante a viagem? O negócio é ter jogo de cintura e manter o bom- humor. O resto vira história pra contar.

(10) Sabe aquela dor nas costas que não te deixa em paz? A quiropraxia pode te ajudar7.

(11) Sabe aquela dor de perder? Sim, dor de perder. É sentir aquele aperto no coração, sentir as borboletas morrendo no seu estômago8.

(12) A: Sabe aquele posto de beira de estrada? B: Claro!

A: Então, foi num desses que abasteci9.

Mais uma vez, nessas sentenças, as descrições demonstrativas não podem ser anafóricas e, além disso, não podem ser dêiticas, visto que não há aspectos extralinguísticos do contexto de proferimento que sejam necessários para atribuir um valor semântico às expressões. Desse modo, essas construções introduzem referentes, e não são anafóricas nem dêiticas.

Antes de nos aprofundarmos sobre a semântica dessas construções com o verbo “saber”, vamos analisá-las comparando-as aos outros determinantes do PB, como fizemos com (5)-(8), acima. De modo geral, a nossa proposta é que DKs (i) não são dêiticos nem anafóricos e (ii) não recebem a mesma interpretação que “sabe esse(a) N” e “sabe o(a) N”.

Em (12), se substituirmos “aquele” por “esse” (12a) ou “o” (12b) teremos:

(12a) A: ?? Sabe esse posto de beira de estrada?

B: Claro!

A: Então, foi lá que abasteci.

Aqui, a presença do demonstrativo “esse” torna a sentença infeliz no contexto10. Esse proferimento só é aceitável com uma interpretação dêitica em que o falante estaria apontando para o posto (presencialmente ou num mapa).

(12b) A: ?? Sabe o posto de beira de estrada?

B: Claro!

A: ??Então, foi lá que abasteci.

Com uma descrição definida ocupando o lugar do determinante “aquele”, novamente, a sentença é infeliz. A única interpretação disponível com a descrição definida é a referencial em que há um referente particular determinado, “o posto do Zé”, por exemplo.

Agora vamos substituir, na forma “sabe aquele(a) N”, o determinante demonstrativo “aquele(a)” pelos determinantes “esse(a)” e “o (a)” em (9a) em (9b), respectivamente.

(9a) ?? Sabe essa saia justa durante a viagem? O negócio é ter jogo de cintura e manter o bom-humor. O resto vira história pra contar.

Assim como ocorre com o caso em (12a), (9a) torna-se inadequada para o contexto. A única interpretação possível é a dêitica em que o falante estaria apontando para a situação de “saia justa” referida, como numa imagem, por exemplo.

(9b) ?? Sabe a saia justa durante a viagem? O negócio é ter jogo de cintura e manter o bom-humor. O resto vira história pra contar.

Com um determinante definido ocupando o lugar de “aquela”, a sentença também é infeliz para o contexto de proferimento e a única interpretação disponível com a descrição definida, assim como para o caso em (12b), é a referencial em que há um referente particular determinado para o nominal “saia justa”. Assim, ocorre uma leitura em que há uma única situação de saia justa determinada tanto para o falante quanto para o ouvinte.

É interessante ainda notar que, quando no escopo do verbo “saber”, DKs não podem ser substi- tuídos por indefinidos, como é possível para os casos (5c) - (8c):

(9c) ?? Sabe uma saia justa durante a viagem? O negócio é ter jogo de cintura e manter o bom- humor. O resto vira história pra contar.

(12c) A: ?? Sabe um posto de beira de estrada?

B: Claro!

A: ?? Então, foi lá que abasteci.

Como podemos ver, DKs têm uma interpretação particular, que os aproxima de indefinidos em alguns casos, mas não em todos, como os exemplos com “saber” evidenciam. Nesses casos, a indefinição do referente do nominal gerada por “um(a)” produz uma leitura de que o referente é desconhecido/não-identificável por ambos, falante e ouvinte do proferimento. Aparentemente, por isso, o uso do operador epistêmico “saber” gera uma sentença infeliz quando o combinamos com “um(a)”. No caso de expressões com “aquele(a)” há um nível maior de definitude do referente, indicando que há algum conhecimento compartilhado entre os indivíduos do proferimento, o que permite que esses itens fiquem sob o escopo do operador epistêmico. Esse é mais um aspecto ao qual retomaremos na seção 3.

Na seção seguinte, apresentaremos algumas possibilidades de uso de demonstrativos, e suas respectivas análises, que não são casos de dêixis e anáfora tradicionais, e que podem lançar luz sobre os DKs.

2. Demonstrativos: possibilidades de análise encontradas na literatura

Os demonstrativos e as descrições demonstrativas estão sempre envolvidos nas discussões sobre dêixis/indexicais por conta de sua óbvia associação com demonstrações e apontamentos, mas esses mesmos itens também participam de várias relações anafóricas. No que diz respeito aos usos anafóricos, uma caracterização comum é a seguinte, resumida por Wolter (2006, p. 39[1]), “[...] o referente da des- crição anafórica depende de um antecedente linguístico” (tradução nossa)11 como em “Um homemi entrou. O homemi tossiu12”. Wolter (2006, p. 73[1]) ainda afirma que em usos anafóricos, em geral, “[…] descrições definidas anafóricas e demonstrativas dependem do contexto do discurso ou da “situação descrita” ao invés do contexto físico do proferimento” (tradução nossa)13, o que os diferencia dos usos dêiticos. Abbott (2010, p. 181[2]), por sua vez, expõe dois conceitos amplos de pronomes dêiticos e anafóricos14 em que a interpretação de itens anafóricos se relaciona à ligação de um termo linguístico a um antecedente, também linguístico, e a interpretação de itens dêiticos está ligada à dependência de um item linguístico a aspectos extralinguísticos do contexto de proferimento.

Levinson (2004, p. 103[7])15 e Heim e Kratzer (1998, p. 239-240[8])16, no entanto, colocam dúvidas sobre essa distinção aparentemente tão clara entre anáfora e dêixis, que também envolve a análise de de- monstrativos. Além disso, há casos de demonstrativos que não se enquadram nessas possibilidades, como: usos NDNS, usos emotivos, usos indefinidos e usos dêitico-discursivos de demonstrativos. Esses usos se aproximam dos exemplos que encontramos no PB, citados na introdução deste artigo, na me- dida em que também não parecem ser classificados facilmente como anafóricos ou como dêiticos, e veremos cada um deles nas seções a seguir.

2.1 Usos NDNS (no demonstration, no speaker intention)

O primeiro caso de uso de demonstrativo que desafia classificações tradicionais é chamado de “no demonstration, no speaker intention” (NDNS)17, e foi discutido explicitamente pela primeira vez em King (2001[6]). Esses usos se caracterizam por serem acompanhados por modificadores pós-nominais (tais como orações relativas e adjuntos), ou, dito de outra forma, por possuírem conteúdo descritivo adicional. Um dos exemplos mais discutidos de uso NDNS é o seguinte:

(13) Aquele/Esse estudante [que tirou 100 na prova] é um gênio18.

Wolter (2006, p. 112[1]) explica que esses usos são mais comuns com núcleos nominais plurais ou massivos, e os exemplos que a autora coloca são os seguintes:

(14) Em que ponto exatamente os fatos se transformam em ficção? O livro foi escrito de forma tão perfeita que talvez nem mesmo aquelas pessoas [que possuem cópias do relatório Warren] pudessem dizer com certeza19.

(15) Os prêmios Nobel não homenageiam necessariamente o melhor ou o pior. Eles honram algumas daquelas pessoas [que de outra forma nunca ganhariam nada]20.

(16) A mensagem deste livro é simples: aqueles chineses [com sonhos grandiosos] devem se con- centrar primeiro no que é essencial21.

No exemplo (14), adaptado de King (2001[6]), conforme afirma Teixeira (2017, p.76[9]), há duas leituras possíveis a depender de uma pequena alteração no contexto. Por exemplo:

(i) Leitura referencial não-específica: se dois professores estão olhando algumas provas dificílimas e não identificadas e, de repente, um deles se depara com uma prova com a nota 100. Em (14), a descrição denota um referente semanticamente único (tem a condição de unicidade respeitada), mas tal referente não pode ser identificado; há indeterminação.

(i) Leitura não-referencial genérica: dois professores observam as questões de uma prova de matemática extremamente difícil. Depois de ver que é quase impossível acertar todas as questões, um deles poderia proferir (14). Nesse caso, não se sabe se alguém tirou cem na prova, e se foi um aluno só.

Nos exemplos de (15) a (16), observa-se que não há um referente particular determinado e as leituras das descrições demonstrativas se aproximam da leitura do exemplo de King (2001) exposta em (ii), acima.

De modo geral, Wolter (2006[1]) e King (2001[6]) afirmam que esses usos dos demonstrativos não são nem anafóricos, nem dêiticos. Segundo Wolter (2006, p. 113[1]),

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[a] interpretação dos demonstrativos não-dêiticos e não-anafóricos é surpreendentemente similar ao uso atributivo das descrições definidas. Assim como descrições definidas atributivas, a especial construção demonstrativa pode ser parafraseada com uma relativa livre contendo – qualquer [como (17) abaixo], e é compatível com a apositiva quem quer que seja (tradução nossa).22

.

Como se vê, os usos NDNS parecem ser similares aos usos atributivos das descrições definidas e, similarmente a eles, uma sentença com uso NDNS dos demonstrativos pode ser parafraseada com uma oração relativa contendo “quem quer que seja”:

(17) Quem quer que seja que tirou 100 no exame, é um gênio.

Em relação ao PB, podemos afirmar que os usos NDNS existem23 e, neles, o demonstrativo “aquele” parece ocorrer com mais frequência, se comparado ao uso de “esse”. No entanto, tais usos não parecem ser os casos de DK que nos interessam, considere a seguinte sentença:

(18) Com os tomates que colhi, vou fazer aquele molho para o macarrão!

Os usos NDNS são caracterizados por virem acompanhados por adjuntos ou orações relativas que são cruciais para a determinação do referente do demonstrativo, o que não ocorre em (18). Fundamentalmente, (18) não pode ser parafraseada como uma interpretação atributiva do DK, ou seja, (19) não é uma paráfrase adequada da interpretação de (18), o que mostra que, de fato, DKs não são casos de NDNS:

(19) Com os tomates que colhi, vou fazer qualquer molho que seja para o macarrão!

Passemos agora ao que Wolter (2006) chama de “usos emotivos”.

2.2 Usos emotivos

Wolter (2006) caracterizou os usos emotivos como segue:

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Descrições demonstrativas com uma leitura emotiva, diferentemente de descrições demonstrativas co- muns, são compatíveis com conteúdo descritivo semanticamente único, e até mesmo com conteúdo des- critivo constituído de um nome próprio, como mostrado abaixo:

(48) Aquela mãe do John é uma mulher e tanto!

(49) Aquela Mary Smith é uma mulher e tanto! (WOLTER, 2006, p. 8, tradução nossa)24.

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Esses usos dos demonstrativos do inglês também já haviam sido investigados brevemente por Lakoff (1974[4]), que os definiu como uma expressão de solidariedade entre os participantes do discurso.

Wolter (2006, p. 81[1]) compara duas sentenças e aponta que a sentença (20), abaixo, se diferencia de (21) porque a primeira carrega um tom emotivo, ou seja, (20) pode ter sido usada por uma enfermeira simpática enquanto (21) é neutra, e, como as traduções sugerem, podemos encontrar os mesmos efei- tos em PB com o demonstrativo “esse”, mas não com “aquele”.

(20) How is that nose of yours?

Como vai esse/*aquele seu nariz?

(21) How is your nose?

Como vai seu nariz?

De acordo com Wolter (2006[1]) os demonstrativos emotivos têm um comportamento particular, pois seu conteúdo se refere a um indivíduo específico e ainda eles podem acompanhar um nome próprio como ocorre em “That Henry Kissinger is a real jerk!” (Aquele Henry Kissinger é um verdadeiro idiota). Wolter (2006[1]) sugere que, na sentença anterior, o falante indica um sentimento negativo em relação a Henry Kissinger, e a emoção em relação a nose na sentença (20), “How is that nose of yours?”, apesar de não ser fácil de determinar precisamente, é positiva. Wolter (2006[1]) analisa esses casos nos seguintes moldes:

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No uso emotivo, os participantes do discurso compartilham algum conhecimento ou emoção relevante sobre o referente do demonstrativo. Como resultado, quando os participantes do discurso não compartilham a emoção ou os conhecimentos necessários, o uso do demonstrativo emotivo falha. Quando é de conhecimento público que um dos participantes do discurso não está familiarizado com o referente do demonstrativo emotivo, o uso emotivo é inaceitável:

R: Quem é John Smith?

B: #Esse John Smith é um cara muito legal! (tradução nossa)25.

.

Desse modo, se o falante e o ouvinte do contexto não compartilham algum conhecimento ou emoção sobre o referente indicado pelo demonstrativo, a sentença com um uso emotivo mostra-se inadequada naquele contexto. Logo, nos usos emotivos dos demonstrativos parece ser necessário que os participantes compartilhem a mesma opinião ou a informação abordada sobre o referente.

Em relação ao PB, os usos emotivos de demonstrativos são também possíveis, como nos exemplos a seguir:

(22a) Eu geralmente não gosto de comediantes, mas aquele Paulo Gustavo26 me agrada.

(22b) Eu geralmente não gosto de comediantes, mas esse Paulo Gustavo me agrada

(22c) Eu geralmente não gosto de comediantes, mas o Paulo Gustavo me agrada.

Observamos, nos casos em (22a), que os demonstrativos “esse” e “aquele” são aceitáveis em usos emotivos. Uma diferença entre as sentenças parece ser o fato de que “aquele”, em (22a), não precisa que o referente do nome próprio esteja saliente no contexto, já com “esse”, em (22b), isso é necessário, por exemplo, por meio de uma foto de Paulo Gustavo numa revista. Em (22c), por sua vez, com um artigo definido, a leitura emotiva não ocorre.

Nas seguintes sentenças (ditas pelo cirurgião plástico ao entrar no quarto do paciente) acontece algo diferente:

(23a) *Como está aquele nariz?

(23b) Como está esse nariz?

(23c) Como vai o nariz?

Em (23a), “aquele” é inadequado para o contexto, gerando uma sentença inaceitável27; já “esse” em (23b) é adequado e gera uma interpretação emotiva, i.e., de empatia para com o nariz recém-operado do paciente. O definido em (23c) também é aceitável, mas não veicula o mesmo tom emotivo do que “esse”.

No entanto, os usos emotivos, que ocorrem no PB também, como vimos com os exemplos acima, não são os usos DK sobre os quais nos debruçamos, considere a sentença em (24) para fins de comparação:

(24) Depois dessa viagem, eu preciso tomar aquele banho.

Em (24), não há uso emotivo da descrição demonstrativa, pois “aquele banho” não se refere a uma entidade particular determinada, e sim, como argumentaremos adiante, a um protótipo de banhos pós-viagem. Assim, não há “emoção” a ser compartilhada pelo falante e pelo ouvinte (conforme caracterís- tica apontada por Wolter (2006[1])) já que, intuitivamente, cada um desses indivíduos atribuirá um referente diferente para a descrição demonstrativa: para um deles pode ser uma ducha quente e demorada, para outro um banho de banheira, e assim por diante. Por essas razões, os DKs não podem ser classi- ficados como usos emotivos.

O próximo uso de demonstrativos que veremos são usos indefinidos, detectados no inglês por Wolter (2006, p.106[1]).

2.3 Usos indefinidos

Os usos indefinidos dos demonstrativos, segundo Wolter (2006[1]), os afastam dos rótulos de dêiticos ou de anafóricos e foram descritos primeiramente em Prince (1981[3]). Segundo a autora: “Prince mostra que os sintagmas nominais indefinidos com this tem escopo amplo sobre os indefinidos que tendem a ser referidos novamente no discurso subsequente” (tradução nossa)28. Um exemplo de uso indefinido é apresentado a seguir e, segundo Wolter (2006[1]), tais usos são comuns em inglês29:

.

(25) One time I went to the roof of this project and there’s this big black guy about six seven on top of the stairs. He had his back to me […] (PRINCE, 1981[3])30.

.

Wolter (2006) explica esses usos indefinidos dos demonstrativos como uma extensão da situação descrita por Fillmore (1997) “[...] em que o falante, mas não o ouvinte, sabe a que se refere o demonstrativo. A característica especial do indefinido this é que, em vez de identificar imediatamente o referente, o falante opta por fornecer mais informações sobre ele” (WOLTER, 2006, p. 106-107, tradução nossa[1]).31

Abbott (2010, p. 154[2]) afirma, por sua vez, que “[...] NPs indefinidos com this só podem ser interpretados especificamente” (tradução nossa)32. Considere a sentence (26), abaixo:

(26) Mary had lunch with this logician33.

Segundo Abbott (2010, p. 154[2]): o this NP “[…] (com o this indefinido, não-demonstrativo e não-anafórico) não tem uma interpretação não específica. E correspondentemente, nem certain nem o indefinido this podem ocorrer respeitando as condições de felicidade em uma oração imperativa […]” (tradução nossa)34 como mostrado na comparação das sentenças abaixo (cf. Abbott, p. 154):

(26a) #Get me a certain logician!35

(26b) #Get me this dishy logician!36

No que diz respeito ao PB, os usos indefinidos dos demonstrativos são possíveis, por exemplo:

(27) Eu fui nesse médico novo, preciso te contar tudo! Muito bom!

(28) Vou te apresentar esse produto que eu conheci ontem, você vai gostar dele.

Nessas sentenças, as expressões demonstrativas se referem a um indivíduo particular determinado, “esse novo médico” e “esse produto que eu conheci ontem”, e são usados para introduzir um referente, familiar apenas ao falante, no discurso. Trata-se de um aspecto inesperado se considerarmos os processos tradicionais de referência de que participam os demonstrativos.

Todavia, os usos DK não podem ser caracterizados como usos indefinidos dos demonstrativos, porque o demonstrativo não se refere a uma entidade particular determinada que é conhecida inicialmente somente pelo falante e depois passa a ser compartilhada por ambos, falante e ouvinte. Considere a sentença em (29):

(29) Estou louco pra tomar aquele sorvete cremoso!

Especificamente, em (29), a descrição demonstrativa não possui um referente particular determi- nado que poderia ser compartilhado pelos dois atores da interação, pois cada um desses indivíduos (falante e ouvinte) poderá atribuir um referente diferente para a expressão “aquele sorvete cremoso”. Por exemplo, para um deles, poderia ser um sorvete de chocolate, para outro um picolé etc. Esse é um dos aspectos que afasta os DKs da classificação de uso indefinido dos demonstrativos, pois sua função não parece ser a de introduzir um novo referente no discurso.

Na sequência, apresentaremos o último uso dos demonstrativos encontrado na literatura que causa problemas a uma classificação polarizada: os usos dêitico-discursivos apontados em Roberts (2002[5], 2003[10]).

2.4 Usos dêitico-discursivos

Os usos dêitico-discursivos dos demonstrativos foram discutidos em Roberts (2002[5]). Neles, segundo Wolter (2006[1]), “[…] o referente é um constituinte sintático ou semântico introduzido recentemente no próprio texto. O uso discursivo-dêitico é ilustrado em […] Esta frase é curta” (WOLTER, 2006[1], p.107, tradução nossa).37

A ideia é que nos usos dêitico-discursivos há uma transferência da noção de proximidade do dis- curso para o texto. Assim, a proximidade pode ser relacionada à ordenação temporal do texto. Desse modo, explica-se o porquê de a expressão “This NP” (Esse(a) NP) referir-se a um constituinte do texto recentemente proferido, por exemplo.

Na verdade, esses usos são bastante comuns na superfície textual no PB também. Entende-se que se trata de uma espécie de uso metalinguístico dos demonstrativos em que eles se referem ao texto dentro do texto (por meio do demonstrativo), à frase dentro da frase, e a interpretação estende metaforicamente a distância espacial, extralinguística, à distância em termos de evocação recente na superfície textual. Por exemplo:

(30) Maria correu até a padaria e ao bar da esquina para comprar água. Aquela, estava fechada; esse, só tinha refrigerante.

Comparando (30) com o DK “aquele cochilo” em (31), abaixo:

(31) Daria tudo para tirar aquele cochilo agora!

Observamos que o DK “aquele cochilo” não é uma instância de uso dêitico-discursivo, pois o demonstrativo “aquele” não faz menção a elementos linguísticos de que faz parte, ou seja, ele não tem uma função metalinguística e não se refere a porções linguísticas (frases, parágrafos, seções, textos etc.).

Após finalizar a exposição dos casos de demonstrativos encontrados na literatura que fogem à organização tradicional entre dêiticos e anafóricos e compará-los com os casos de DK, podemos afirmar que os DKs são de fato um outro tipo de uso do demonstrativo distal38 do PB, e não podem ser considerados nem casos de usos NDNS, nem usos emotivos, nem usos indefinidos e nem usos dêitico- discursivos. Na seção seguinte, propomos uma análise semântica para esse tipo de caso.

3. DKs: proposta de análise

Nossa proposta para os DKs, em resumo, é que eles se referem a kinds (espécie, tipo ou mesmo protótipos) e não a indivíduos particulares. Ou seja, ao usar uma sentença como a abaixo, mencionada em (2), primeiramente, o falante faz referência não a alguma comida caseira em particular, mas sim a um tipo particular de comida, que é comida caseira:

(32) Tô morrendo de vontade de comer aquela comidinha caseira!

Por isso, seu interlocutor não precisa ter em mente uma mesma comida particular, mas sim um tipo de comida particular – o falante pode pensar em arroz e feijão e o ouvinte em lasanha, por exemplo, desde que os pratos sejam caseiros, ou seja, que sejam exemplares ou instanciações do kind “comida caseira” relevantes para cada falante.

Consideremos novamente o exemplo dado em (4), repetido abaixo em (33):

(33) A: Sabe aquele lugar sossegado para conversar?

B: Sim!

A: Conheço um barzinho perfeito no centro.

Nesse caso, nem o falante nem seu interlocutor precisam compartilhar a referência a uma mesma entidade concreta para o diálogo funcionar – na verdade, é claro que eles não fazem isso: o diálogo só faz sentido se A não se refere a nenhum lugar específico, caso contrário, a fala de B, que justamente sugere um lugar que A provavelmente não conhece, tornaria o diálogo estranho ou inadequado. O que é compartilhado por ambos os interlocutores é um tipo, espécie ou kind, de “lugar sossegado para conversar”. Ao compartilhar um mesmo kind, pode ser o caso que os falantes consideram instanciações particulares diferentes desse kind, que é o que vemos no diálogo em (33). Isso faz com que os DKs não preservem familiaridade no nível dos indivíduos, mas sim no nível dos kinds, e por isso podemos considerar DKs como definidos.

A seguir, na seção 3.1, apresentaremos argumentos a favor da ideia de que DKs se referem a kinds, na seção 3.2 elaboraremos nossa proposta de análise, e, finalmente, na seção 3.3., apresentamos uma formalização para nossa análise.

3.1 DKs se referem a kinds

Nesta seção, apresentaremos alguns testes que fornecem evidências a favor da ideia de que DKs se referem a kinds. Um primeiro teste é realizar substituições que não preservam uma leitura prototípica ou estereotípica de referentes:

(34a) Sabe aquele cachorro bravo? Era um desses que meu vizinho tinha.

(34b) ?? Sabe aquele cachorro voador? Era um desses que meu vizinho tinha.

(35a) Sabe aquele professor cri-cri? Então, o João era bem assim.

(35b) ? Sabe aquele professor verde? Então, o João era bem assim.

(36a) Sabe aquele funcionário público incompetente? Jair era assim.

(36b) ? Sabe aquele funcionário público indicado por político ateu? Jair era assim.

(34a), (35a) e (36a) são sentenças que produzem uma leitura de kind e são seguidas por trechos que trazem justamente uma exemplificação ou instanciação do kind. A presença dos adjetivos “bravo”, “cri- cri” e “incompetente”, que podem ser modificadores de kind, é mais uma evidência a favor da nossa hipótese. Mais importante ainda é a impossibilidade de ocorrência das sequências em (34b), (35b) e (36b), que diferem de suas respectivas contrapartes justamente por conterem modificadores que não atuam sobre kinds39. Finalmente, note ainda que, mesmo se substituirmos o nominal da descrição demonstrativa por um nominal que indica um referente particular determinado, como um nome próprio, a interpretação prototípica também surge na construção, e tomamos o nome próprio como representando propriedades relevantes do indivíduo denotado; considere (37):

(37) Sabe aquela Rainha Elisabeth40? Então, minha sogra é bem assim.

Considere mais um exemplo em que se modificam os determinantes da expressão sob análise:

(38a) Depois de um dia intenso de trabalho, é hora de dar aquela relaxada.

(38b) Depois de um dia intenso de trabalho, é hora de dar uma relaxada.

(38c) ?? Depois de um dia intenso de trabalho, é hora de dar a relaxada.

Em (38a), “aquela relaxada” não é uma expressão dêitica nem anafórica, ela é uma expressão cujo referente possui uma interpretação de kind, pois sua leitura envolve um conjunto de atividades que podem ser consideradas relaxantes após um dia de trabalho, mas sem determinação de uma ou outra. Cada qual, ouvinte ou falante, terá um referente em mente, sem que isso gere problemas na interpretação, o que importa é que ambos consideram o kind “relaxada” no fundo conversacional. Em (38b), “uma relaxada” apresenta uma leitura indefinida, como esperado para sintagmas nominais indefinidos. Por sua vez, (38c) não é adequada pois não há referente a ser retomado como sendo a relaxada em questão, e sua acomodação no fundo conversacional não é feliz; dito em outras palavras, (38c) é inadequada/infeliz justamente por se referir a uma única e determinada atividade de relaxamento, o que não é satisfeito pelo contexto de (38c).

Note ainda que há uma outra importante diferença entre (38a) e (38b): “aquela relaxada” não apenas denota no domínio dos kinds, mas faz referência a uma atividade de relaxamento localizada no topo de uma escala de relaxamentos possíveis. Com isso queremos dizer que, ao usarmos “aquela relaxada” não falamos de qualquer relaxada, mas sim de relaxadas, em algum sentido, boas ou exemplares; en- quanto que “uma relaxada” se refere a qualquer atividade que se caracteriza como relaxar. Por ora, podemos argumentar que essa diferença entre (38a) e (38b) ocorre porque em (38a) fala-se de um conjunto de “relaxadas” específico, i.e., há uma escala de relaxadas e “aquela relaxada” refere-se às relaxadas altas nessa escala (relaxadas prototípicas) e “uma relaxada” é neutra em relação a isso. Nesse sentido, temos que “aquela relaxada” (i) trata de “relaxadas-kind” e ainda (ii) restringe-se às relaxadas que estão no alto da escala de relaxadas.

O exemplo abaixo ilustra mais uma vez essa diferença de leitura entre o indefinido e o DK – encontramos a mesma leitura escalar em relação à interpretação do item “dormida” que compõe o DK e a neutralidade desse item acompanhando o indefinido:

(39a) Eu preciso dar aquela dormida.

(39b) Eu preciso dar uma dormida.

Em (39a) ocorre uma leitura de que não se trata de uma dormida qualquer, mas sim uma “dormida exemplar”, pois a dormida a que o falante se refere é um excelente exemplo de dormida, muito bem avaliada como dormida – que pode ser uma instância diferente para falante e ouvinte. Isso se dá pois cada um pode conceber uma instância de dormida exemplar diferente, mas para cada um deles há um kind de dormida, e isso satisfaz a familiaridade de “aquela”. Nesse sentido, se houver uma “escala de dormidas” em que na base há dormidas ruins e no topo há dormidas ótimas, (39a) refere-se a dormidas altas nessa escala. Desse modo, essas dormidas são kinds que se localizam no topo da escala, justamente por serem “dormidas” que instanciam exemplarmente o kind, ou seja, têm as propriedades que caracterizam uma dormida como um ótimo exemplo de dormida para o falante.

Agora vamos verificar se em estruturas com o operador epistêmico antecedendo o DK a leitura de kinds posicionados no topo da escala se mantém:

(40a) Sabe aquela dormida? Então, tô precisando dela.

(40b) * Sabe uma dormida? Então, tô precisando dela41.

Tanto em (39a) quanto em (40a), respectivamente sem e com o operador epistêmico, temos o DK “aquela dormida” e em ambos os casos as sentenças são adequadas. Isso não ocorre com o indefinido, pois em (39b) temos uma sentença gramatical e em (40b), não.

O contraste entre (39a) e (40a) mostra que em “aquela dormida”: (i) “aquela” não é um indefinido, pois ele se mantém no escopo do operador epistêmico e gera sentenças adequadas ao contexto; e (ii) ele não apresenta unicidade (nem familiaridade) no nível do indivíduo. Assim, (i) e (ii) nos levam a afirmar que DKs se referem a kinds – “aquela dormida” em (39a) é familiar no nível dos kinds e por isso se combina com “sabe”. O indefinido em (40b), sob o escopo do operador epistêmico gera uma sentença inadequada, porque não atende à pressuposição de familiaridade, seja no nível de indivíduos, seja no de kinds. Esse é mais um argumento, junto aos já expostos, para se afirmar que DKs se referem a kinds. Nas seções seguintes, vamos explicitar nossa proposta de análise dos DKs.

3.2 Uma descrição semântica para os DKs

Uma vez que reconhecemos que DKs se referem a kinds e a instanciações exemplares desses kinds, ligadas aos participantes de uma conversação, temos que responder: (i) por que DKs se referem a kinds? e (ii) por que se referem a kinds no alto da escala?

Inicialmente, verificamos que a pressuposição de unicidade no nível dos indivíduos ordinários não é satisfeita por DKs, pois eles não exigem um único referente determinado em sua interpretação. Assim, em resumo, se alguém diz:

(41) Tô com vontade de comer aquela torta caseira, sabe?

Há a denotação do kind “torta caseira”, que é familiar e unívoco no domínio dos kinds, e envolve instanciações diferentes para cada indivíduo de modo que essas instanciações sejam de exemplos “exemplares” do kind – o falante não está com vontade de comer qualquer torta caseira, mas sim um exemplo / uma instanciação do que conta como uma ótima torta caseira para ele. O ouvinte, ao aceitar a sentença (41), considera também que há um kind “torta caseira”, e que há, para o ouvinte, exemplos “exemplares” que não precisam ser os mesmos do falante. Isso explica, por exemplo, o diálogo que vimos em (4) na introdução deste artigo.

Os contextos que permitem DKs são aqueles nos quais artigos definidos não cabem, como vimos nos exemplos (5b, 6b, 7b, 8b), e a explicação para tanto é que, nesses contextos, o artigo definido demanda familiaridade e unicidade com relação a indivíduos (e não a kinds42) – como já vimos, nos usos de DKs o que temos é unicidade apenas no nível dos kinds, e instanciações exemplares diferentes para cada falante. Como os DKs aparecem em contextos familiares, eles não podem ser substituídos por indefinidos, como mostram os casos dos exemplos com “saber” (9c, 12c, 40b).

Finalmente, os contextos em que aparecem DKs não permitem a presença do demonstrativo “esse” (9a, 12a) pois se tem ou uma interpretação dêitica ou uma anafórica do demonstrativo que garante a unicidade do referente. Assim, com “esse” não há leitura similar a dos DKs já que esse demonstrativo se refere a uma única entidade sobre a qual se fala, pressuposta no fundo conversacional e acomodada quando o falante profere uma sentença contexto “esse”; em outras palavras, a familiaridade de “esse” tem a ver com indivíduos e não com kinds (como ocorre nos DKs).

Por que então “aquele(a)” como DK denota kinds? Porque em contextos em que se necessita de familiaridade no nível dos kinds, com diferentes instanciações para cada indivíduo, o único item defi- nido que satisfaz o critério é “aquele”. O demonstrativo “esse”, provavelmente por ser proximal, gera somente interpretações dêiticas e anafóricas e o artigo definido não se refere a kinds nas estruturas em que temos DKs.

Em relação à leitura escalar dada aos referentes dos nominais que acompanham os DKs, especifi- camente, que se referem ao alto da escala, como ocorre em (38a), (39a) e (40a), podemos dizer que “aquele(a)” contrasta com “o(a)” e com “um(a)”, pois, pragmaticamente, “aquele(a)” é uma expressão marcada: o item traz além de marcas de definitude, gênero e número, uma marcação de distalidade. Nesse sentido, a expressão marcada “aquele” se refere a tipos de indivíduos marcados, ou seja, a kinds, enquanto os demais itens se referem a indivíduos ordinários nos mesmos contextos. Por que o falante optaria por usar uma expressão que se refere a kinds? Justamente porque o que interessa (i) não é unicidade e familiaridade no nível dos indivíduos ordinários, e (ii) não é qualquer instanciação do kind referido, mas sim instanciações que, para um dado indivíduo, são exemplares, i.e., estão posicionadas no alto na escala de bons exemplos do kind relevante.

Sendo assim, o falante opta por “aquele” para ser o mais informativo possível, indicando que se refere a kinds e não a indivíduos, e o mais específico possível dentro desse conjunto, indicando kinds altos numa escala de relevância. Dessa forma, ele se refere a um protótipo, ou seja, a um exemplo exemplar do referente, e não a um indivíduo específico.

Nesse contexto, lançamos mão da ideia de “divisão de trabalho pragmático” (HORN, 1984[11], 1989[12], 1996[13]; LEVINSON, 2000[14]), segundo a qual expressões mais simples e com menos restrições se referem a entidades e situações mais simples e comuns; no caso, contrastamos “aquele(a)” com “o(a)” e “esse(a)” por “aquele(a)”, como veremos, ter mais restrições que os outros dois43. Assim, ao usar um DK, o falante indica que não se trata de algo comum ou ordinário, mas sim de um kind e, ainda, de suas instanciações mais exemplares, segundo a avaliação de cada falante. Em resumo, usamos uma expressão definida mais marcada (“aquele”) para falarmos de entidades mais marcadas (kinds), e o resultado disso é entre- termos instanciações exemplares dos kinds referidos – se quiséssemos falar de indivíduos diferentes, usaríamos indefinidos; se quiséssemos falar de unicidade no nível do indivíduo, usaríamos artigos definidos ou o demonstrativo “esse(a)”; e se quiséssemos nos referir a kinds sem levar em conta instanciações “exemplares”, usaríamos artigos definidos ou mesmo nomes nus que se referem a kinds.

Nosso próximo passo é capturar formalmente nossa descrição dos DKs, e para tanto precisamos lançar mão de uma teoria sobre demonstrativos. É isso o que faremos na seção abaixo.

3.3 Rumo a uma caracterização formal para DKs

Devido à sua abrangência, pois dá conta tanto de usos dêiticos quanto anafóricos e catafóricos de demonstrativos, vamos adotar a teoria de definidos e demonstrativos proposta por Wolter (2006[1]).

Em sua teoria, Wolter (2006[1]) relaciona artigos definidos e demonstrativos sob a rubrica da definitude e, usando uma semântica de situações, propõe que a diferença entre artigos e demonstrativos está justamente na situação em que cada um deles vai encontrar seu referente. Segundo a autora, artigos definidos encontram seu referente na mesma situação em que os predicados verbais das sentenças são avaliados, chamada de situação máxima ou default de avaliação, ao passo que demonstrativos encontram seu referente em situação menores, partes próprias das situações maximais, chamadas de situação não-default. Em suma, artigos pressupõem familiaridade e unicidade em situações default e demonstrativos carregam as mesmas pressuposições em situações não-default. Sendo assim, a representação das entradas lexicais que a autora dá para os itens é como abaixo:

[then]: λP: P(sn) é um conjunto unitário. Se definido, ele denota ιx:P(x)(sn). (WOLTER, 2006, p. 101[1]).

[thisn]: λP: P(sn) é um conjunto unitário e sn é uma situação não-default e ιx:P(x)(sn) está próximo ao falante. Se definido, ele denota ιx:P(x)(sn). (WOLTER, 2006, p. 109[1]).

[thatn]: λP: P(sn) é um conjunto unitário e sn é uma situação não-default. Se definido, ele denota ιx:P(x)(sn). (WOLTER, 2006, p. 102[1]).

Ao observarmos as entradas lexicais propostas por Wolter (2006[1]), nota-se que a autora expõe uma hierarquia de marcação dos determinantes definidos do inglês em que: this é o mais marcado, pois carrega três pressuposições ou traços semânticos; that carrega duas; e o artigo definido somente uma. Essas entradas lexicais se ajustam às características do inglês em que o demonstrativo marcado é o this que apresenta adicionalmente, à pressuposição de unicidade e à pressuposição de avaliação na situação não-default, uma pressuposição de proximidade do falante, pois em inglês “[...] that [é] não-marcado para distância do falante”44 (WOLTER, 2006, p. 102, tradução nossa[1]). No entanto, no PB, argu- mentaremos que “aquele” é o item marcado, pois deve satisfazer às pressuposições de unicidade, de avaliação na situação não-default e de distalidade. Assim, na entrada lexical de “aquele(a)” no PB, se adicionaria uma pressuposição de distalidade45 e seria como segue:

(42) [aquele(a)n]: λP: P(sn) é um conjunto unitário, sn é uma situação não-default, e ιx:P(x)(sn) está distante do falante. Se definido, ele denota ιx:P(x)(sn).

Wolter (2006[1]), entre vários outros argumentos, justifica a ideia de diferentes tipos de situação para resolver definidos e demonstrativos com base em contrastes como o encontrado entre (43) e (44):

(43a) Esse quadro está empoeirado (apontando para um quadro, entre outros em uma galeria).

(43b) estar-empoeirado ([ιx. quadro (x, s1)], s0)

Informalmente, “quadro” é avaliado em s1, pois essa é a situação não-default e o predicado “estar-empoeirado” é avaliado na situação default (s0), i.e., a descrição demonstrativa é avaliada numa situação diferente da situação em que o predicado da sentença é avaliado. Desse modo, (43a) é verdadeira se e somente se houver um único quadro na subsituação (s1) da situação do proferimento (maximal) que está empoeirado em s0. Num uso adequado de (43), há um apontamento por parte do falante, que é justamente o que estabelecerá a subsituação na qual “quadro” será avaliado. Sendo assim, nessas teorias, o papel dos apontamentos é estabelecer as subsituações relevantes para os usos dêiticos dos demonstrativos.

Vejamos agora o caso de (44), com uma descrição definida:

(44a) O quadro está empoeirado (há um único quadro na galeria de arte)

(44b) estar-empoeirado ([ιx. quadro (x, s0)], s0)

Nesse caso, o nominal “quadro” é avaliado na mesma situação (s0) do predicado principal da sentença. Assim, (44a) é verdadeira se e somente se houver um único quadro x em s0 e x estiver empoeirado em s0 (situação do proferimento). Note ainda que uma sentença como (44a) é ruim se dita numa galeria de arte com vários quadros – a unicidade não está garantida, nesse caso, em s0.

Como o demonstrativo e o artigo devem satisfazer a pressuposição de unicidade, “o/esse/aquele quadro” denota um conjunto unitário relativo ao valor do parâmetro situacional que ele carrega, a depender do seu determinante - o demonstrativo muda o parâmetro de situação do seu nominal em relação ao parâmetro do predicado principal da sentença, mas o definido não. Em (43a), o valor do parâmetro de situação é estabelecido pelo apontamento para o quadro. Desse modo, gera-se uma subsituação (contida na situação default) em que há somente um quadro. Assim, o conteúdo descritivo da descrição demonstrativa é relativizado a uma situação não-default e a referência do demonstrativo é determinada com sucesso. Em (44a), por sua vez, só é aceitável num contexto em que há somente um quadro, pois o conteúdo descritivo que acompanha o artigo só pode ser avaliado numa situação default. Como no contexto extralinguístico do enunciado há somente um quadro, o valor semântico do definido também é determinado com sucesso.

Vejamos como essa teoria analisa os demonstrativos com usos anafóricos e com usos dêiticos. Os usos dêiticos ocorrem acompanhados de apontamento ou outro aspecto físico que colabora para a determinação do referente do demonstrativo; desse modo, um aspecto extralinguístico conta para a interpretação do demonstrativo. Por exemplo, na seguinte sentença temos:

(45a) Esse carro (apontando) está com o pneu furado.

(45b) estar-com-pneu-furado ([ιx.carro (x, s1)] s0)

Em prosa: a sentença (45a) é verdadeira se e somente se existir um único referente que satisfaz o predicado “carro” na subsituação (s1) e se ele estiver com o pneu furado na situação de proferimento (s0). Em (45), a descrição demonstrativa “esse carro” se refere a um carro particular, determinado naquela situação a partir da colaboração do conteúdo descritivo (“carro”) do demonstrativo mais o apon- tamento realizado. Segundo Wolter (2006[1]), o apontamento contribui na determinação do referente, pois é responsável por gerar uma subsituação, no interior da situação de proferimento, em que há somente um referente para o item demonstrativo.

Nos usos anafóricos, por sua vez, os demonstrativos se referem a algum elemento do contexto linguístico, por exemplo:

(46a) Maria viu um carro amareloi. Esse carroi estava abandonado.

(46b) estar-abandonado ([ιx.carro (x, s1)] s0)

Em prosa: (46a) é verdadeira se e somente se houver somente um referente que satisfaz o predicado “carro” na subsituação saliente (s1) e se ele estiver abandonado na situação de proferimento (s0).

Em (46a), “esse carro” refere-se ao carro mencionado na sentença anterior – “Maria viu um carro amarelo”. Conforme Wolter (2006[1]), a situação em que o nominal da descrição demonstrativa está sendo avaliado é uma substituição (situação saliente46 devido à evocação recente) da situação de proferi- mento (s0) da sentença contendo o demonstrativo.

No entanto, os DKs, além de não terem sido tratados por Wolter (2006[1]), como viemos apontando ao longo do artigo, não são nem dêiticos nem anafóricos, e também não se caracterizam como algum dos casos citados na seção anterior – emotivos, indefinidos, NDNS e dêitico-discursivos – que já foram apontados na literatura.

Ainda assim, a nossa proposta é que os fatos de (i) os demonstrativos encontrarem seus referentes em subsituações e (ii) “aquele(a)” ser distal possibilitam explicar o contraste com o artigo definido e com “esse” que, por ser proximal, encontra seu referente no domínio dos indivíduos ordinários, como via dêixis ou via anáfora.

Um ponto importante é que nos usos dos DKs também não há subsituação sendo instaurada no contexto de fala, o que levaria a uma falha no uso do demonstrativo. Porém, é justamente por conta dessa aparente inconsistência que a busca por referentes se dá no domínio dos kinds. Nosso raciocínio, baseado no fato de que demonstrativos buscam referentes em situações diferentes da situação máxima, pode ser descrito nos seguintes passos:

(1) o falante usa uma expressão definida distal, que não encontra seu referente na situação máxima de fala, mas sim em uma subsituação;

(2) não há apontamentos para indicar qual é a subsituação relevante e não se trata de um uso anafórico;

(3) portanto, a restrição de subsituação, por não pode ser satisfeita canonicamente, é entendida como uma busca por indivíduos familiares e únicos não no domínio dos indivíduos ordinários, que pode ser tomado como um domínio default de indivíduos, mas sim no domínio dos kinds, que pode ser análogo, com relação aos tipos de indivíduos, a indivíduos não-default – o uso de uma expressão marcada indica situações, referentes marcados, segundo o princípio da “divisão do trabalho pragmático”;

(4) ao se referir a kinds, os falantes consideram também suas possíveis instanciações e, como a referência a kinds não foi feita de modo canônico/ordinário, usando, por exemplo, um definido que se refere a kinds, a ideia é que não se trata de uma referência a quaisquer instanciações desses kinds, mas sim àquelas que melhor exemplificam47 o kind de acordo com cada falante. Além disso, por tratar-se de um termo definido, a unicidade está garantida no nível do kind, mas não sua instanciação.

Retomando a nossa adaptação em (42) para o PB da formalização oferecida por Wolter (2006) para demonstrativos distais,

(42) [aquele(a)n]: λP: P(sn) é um conjunto unitário, sn é uma situação não-default, e ιx:P(x)(sn) está distante do falante. Se definido, ele denota ιx:P(x)(sn).

Podemos analisar (47) como abaixo:

(47a) Quando chegar as férias, [Maria vai fazer [aquela festa]]48.

(47b) [Maria vai fazer [aquela festa]S1 ]s0

à falha em estabelecer s1

(47c) (vai-fazer ([ιx.festak (x)], (m, s0))

Aqui, ocorre uma falha para determinar uma subsituação distal (s1), pois não há apontamento (uso dêitico), nem expressão sendo retomada (uso anafórico) no contexto para que a subsituação seja determinada – seria o passo (3) do raciocínio acima. Mas considerando o falante cooperativo, o ouvinte leva em conta a restrição de subsituação no domínio de referentes considerado que se trata do domínio de kinds. Assim “festa” é agora “festak” (ou seja, denota o kind “festa”). A partir disso, novamente utilizando-se de princípios pragmáticos de cooperação e as máximas griceanas (GRICE, 1975[15], 1957[16]), o falante em seu proferimento fornecerá somente informações relevantes e a quantidade de informação adequada para seus propósitos conversacionais. A partir disso, o ouvinte, ao se deparar com um demonstrativo denotando kinds, ao invés de um elemento como um definido (que é menos marcado), inferirá que não se trata de kinds comuns/ordinárias de festa, e sim os kinds mais altos na escala, isto, os tipos de festa mais altos na escala de relevância, por isso o falante usa uma expressão mais marcada.

Nossa análise de (47b) prevê que o falante se refere a instanciações de festa que exemplificam positivamente o que ele considera uma boa festa, ou seja, o falante de (47b) não fala de uma única festa

em particular, mas de um tipo de festa que, de acordo com ele, são festas boas.

Em prosa: (47a) é verdadeira se e somente se houver um tipo de festa, festak, que satisfaz a escala de melhores festas para o falante e se Maria planejar fazer uma instanciação exemplar de festak para o falante na situação de proferimento (s0).

Vamos considerar outro exemplo de DK:

(48a) Ontem, [o cachorro fez [aquela bagunça]]

(48b) [O cachorro fez [aquela bagunça]s1 ]s0

-> à falha em estabelecer s1

(48c) (fazer ([ιx. bagunça (x)], (c, s0))

Em (48a), temos o mesmo tipo de análise: o uso de uma expressão marcada, a falha em determinar uma subsituação, a consideração do domínio de kinds, e de exemplos “exemplares” de instanciações desses kinds. No caso, como se trata de bagunças, os melhores exemplos serão grandes bagunças. Ou seja, em (48b) o falante se refere a instanciações de bagunça que exemplificam o que ele considera uma grande bagunça, ele não fala de uma determinada bagunça em particular, mas de um tipo de bagunça que, de acordo com ele, é uma bagunça feita por cachorros e que mais gera transtornos: espalhar o lixo pelo quintal, comer os sapatos, rasgar o sofá etc.

Isso posto, passemos às considerações finais e a alguns dos problemas em aberto.

3.4 Considerações finais

Como vimos os DKs da forma “aquele(a) N” não são dêiticos nem anafóricos nos termos tradicionais. Além disso, eles não se enquadram nos casos de demonstrativos diferenciados já estudados na literatura: NDNS, emotivos, indefinidos e dêitico-discursivos, como vemos pelo exemplo de DK em (49), reapresentado abaixo:

(49) Hoje vou fazer aquela limpeza no quarto.

Segundo Wolter (2006[1]) e King (2001[6]), os usos NDNS são usos em que há conteúdo descritivo adicional, que não é o caso em (49), por isso DKs não são casos de NDNS nos moldes apresentados pelos autores citados. Os usos emotivos, conforme Wolter (2006[1]) e Lakoff (1974[4]), são usos que se referem a entidades únicas e veiculam uma emoção ou sentimento compartilhado pelo falante e ouvinte, o que também não é o caso com o exemplo em (49). Nos usos indefinidos, conforme Wolter (2006[1]), Abbott (2010[2]), Prince (1981[3]), o demonstrativo tem um referente particular determinado, que é conhecido inicialmente somente pelo falante/escritor. No entanto em (49), a descrição demonstrativa não possui um referente particular determinado, o que impossibilita um uso indefinido. Finalmente, DKs não são instâncias de usos dêitico-discursivos, apontados por Roberts (2002[5]), pois os demonstrativos não fazem menção a elementos linguísticos de que fazem parte, ou seja, não tem uma função metalinguística e não se referem a porções linguísticas (frases, parágrafos, seções, textos etc.).

Os DKs, como (49), são usos de demonstrativos do PB que até então não foram descritos na litera- tura e que denotam kinds. No caso de (49), “aquela limpeza” se refere a tipos de limpeza e não a uma limpeza específica, particular e compartilhada entre falante e ouvinte. Assim, para o falante, o DK po- deria ser uma limpeza em que ele arruma a cama e junta as roupas do chão, enquanto que para o ouvinte pode ser uma limpeza que inclui limpar o chão, arrumar o guarda-roupas e lavar as paredes do quarto. Seja como for, o DK “aquela limpeza” indica uma limpeza alta na escala de limpezas, isto é, uma das limpezas considerada muito bem-feitas pelo falante e/ou pelo ouvinte.

Nossa análise deixa alguns problemas em aberto, que merecem, a nosso ver, uma investigação futura. Entre eles, podemos citar a comparação dos DKs com determinantes como “aquele(a)” e “aquilo” em que não se tem a estrutura “demonstrativo+NP” e sim “demonstrativo+CP”, além de uma exploração mais aprofundada dos mecanismos pragmáticos envolvidos e da computação das preferências dos par- ticipantes sobre o que é alto nas escalas consideradas. Outras estruturas importantes a serem analisa- das em trabalhos futuros são: as de forma “um NP daqueles”, como em “Hoje vai ter uma festa daquelas” ou “João vai ter chilique daqueles” que aparentemente compartilham de várias das propriedades que propomos aqui para DKs49; os demonstrativos “aquele” e “aquela” inseridos em construções com o verbo leve “dar” e nominalizações em “-ada” como em “É hora de dar aquela repaginada no visual” e a sua interação com as propriedades dos DKs do PB; e, também, a interação dos DKs com nominais no diminutivo e no aumentativo50. Seja como for, com este artigo esperamos ter contribuído para entender um fenômeno ainda não explorado no PB e também para uma maior compreensão da semântica dos demonstrativos.

Agradecimentos

Agradecemos à leitura atenta do manuscrito realizada por Maurício Sartori Resende e às relevantes contribuições dos pareceristas da Revista da ABRALIN, Luana de Conto e Marcus Vinicius Lunguinho, à versão final.

Referências

LEVINSON, S. C. Deixis In.: The Handbook of Pragmatics. Horn, Laurence R. and Gregory Ward (eds). Blackwell Publishing, 2005.

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