Formação docente: letramento digital para o ensino remoto de língua portuguesa

Ivoneide Bezerra de Araújo Santos-Marques,
Maria do Socorro Oliveira,
Alana Driziê Gonzatti dos Santos

Resumo

A necessidade de planejamento estratégico para viabilizar o ensino remoto de Língua Portuguesa na educação básica tem sido um desafio para a escola e para as instituições de ensino que atuam como agências formadoras de professores durante a pandemia da Covid-19. Com vistas a oferecer subsídios que auxiliem esses profissionais no planejamento de atividades didáticas, mobilização de saberes e desenvolvimento de práticas de letramento nesse novo formato de ensino, discutimos neste estudo ações de formação continuada e possibilidades de inovação e mudanças na prática pedagógica a serem construídas por professores situados em contextos de crise sanitária e  social. Teoricamente, este estudo ancora-se na concepção bakhtiniana de linguagem, nos estudos de letramento crítico centrados no domínio digital, nas contribuições advindas dos estudos de letramento do professor e de gêneros discursivos. Metodologicamente, configura-se como uma pesquisa qualitativa e interpretativista de caráter fortalecedor, informada por instrumentos de natureza etnográfica (questionários, notas de campo, gravação em áudio e vídeo, chats, sessões reflexivas, entre outros). A análise dos dados aponta ser preciso (re)pensar a formação continuada de professores, considerando os seguintes aspectos: 1) aproximação entre teoria e prática; 2) necessidade de domínio de recursos midiáticos e tecnológicos pelos professores; e 3) utilização de recursos de inovação e mudança, a fim de que estes possam ampliar seus letramentos digitais e dar melhores respostas às inúmeras demandas de usos sociais da linguagem que lhes são impostas no atual contexto de ensino remoto

Introdução

A necessidade de planejamento estratégico para viabilizar e implementar a modalidade de ensino remoto emergencial na educação básica tem sido um desafio que se impôs às escolas públicas brasileiras e às instituições de ensino que atuam como agências formadoras de professores no atual contexto de crise sanitária decorrente da pandemia da Covid-19, causada pelo vírus Sars-CoV-2. Para o enfrentamento dessa situação emergencial, pensar ações de formação com foco no letramento do professor para desenvolver seus letramentos digitais em uma perspectiva crítica parece-nos ser uma necessidade das mais urgentes, a fim de amenizar impactos dessa crise humanitária no contexto educacional, já que esse fenômeno abalou diretamente a educação em todo o planeta, segundo relatório divulgado em novembro de 2020 pela OCDE1, o qual colocou o Brasil no grupo dos países cujas escolas públicas estão há mais tempo fechadas desde o início da pandemia do novo coronavírus.

Com vistas à reflexão dessas ações de formação, este estudo, cuja atenção está focada em objetos de ensino que possam ancorar as práticas de letramento digitais a serem didaticamente mobilizadas pelos professores no ensino remoto, orienta-se por quatro questões: Que saberes devem ser privilegiados em um projeto de formação continuada que visa preparar professores para agir no ensino remoto de língua portuguesa? Que conteúdos e objetos de ensino selecionar? Como proceder na didatização desses conteúdos para uso em sala de aula pelos professores? Que recursos de inovação podem favorecer os processos de adequação e mudança na prática do professor? Para responder a essas questões, a noção de letramento em uma perspectiva crítica torna-se relevante por poder contribuir para redimensionar o trabalho com práticas letradas no domínio educacional, favorecendo o desenvolvimento de práticas pedagógicas inovadoras, mediadas pelo uso de tecnologias (SANTOS-MARQUES, 2016).

Nessa direção, temos por objetivo discutir ações de formação continuada e possibilidades de inovação2 e mudanças na prática pedagógica com foco nas práticas de letramento digital desenvolvidas por 182 professores no âmbito de um projeto de extensão que teve por fim oferecer subsídios teóricos e metodológicos para o planejamento de atividades, produção de material didático, mobilização de saberes e desenvolvimento de práticas pedagógicas que ofereçam possibilidades de inovação e mudanças no agir didático dos professores a ele vinculados para atuarem no ensino remoto.

Com vistas, então, a esse trabalho de formação continuada voltado para auxiliar profissionais da educação (professores de língua portuguesa, pedagogos e gestores) no planejamento, mobilização e desenvolvimento de práticas digitais a serem desenvolvidas na implementação do ensino remoto, foi planificado um projeto de extensão intitulado “Formação docente para uma situação emergencial: letramentos e ensino remoto de língua portuguesa durante a pandemia” (Edital 01/2020/PROEX/IFRN).

Como recurso operacional e de inovação, o projeto foi planificado e implementado como uma parceria interinstitucional. Para o seu desenvolvimento, foram articuladas diferentes instituições educativas: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), Secretaria de Estado da Educação e da Cultura do Rio Grande do Norte (SEEC/RN), Secretaria Municipal de Educação de Natal (SME) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação do Rio Grande do Norte (UNDIME/RN), desenvolvendo ações formativas com foco no letramento docente em um viés crítico e emancipatório.

Do ponto de vista organizacional, este trabalho divide-se em cinco seções. Na primeiraa introdução – problematizamos a realidade do contexto em que foi desenvolvida a pesquisa e justificamos a relevância desse estudo; situamos o leitor acerca do nosso objeto de investigação; apontamos as questões e os objetivos que orientam o estudo e mencionamos, sucintamente, aspectos de teor teórico e metodológico assumidos na pesquisa. Na segunda, apresentamos, em linhas gerais, alguns fundamentos teóricos que embasam o estudo. Na terceira, contextualizamos a pesquisa, apresentando aspectos de natureza metodológica; Na quarta, analisamos os dados gerados na pesquisa e apresentamos os principais achados decorrentes da análise. Na quinta, constituída pelas considerações finais, apresentamos as contribuições do estudo e/ou os impactos da experiência empreendida no contexto de formação em tela.

1 Formação docente e letramentos digitais em uma perspectiva crítica

No atual contexto da pandemia, as dificuldades de acesso às tecnologias e à internet no Brasil e no mundo têm sido ainda mais evidenciadas com o escancaramento das desigualdades sociais, conforme aponta o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2020) em sua obra recente “A cruel pedagogia do vírus”. A despeito disso, tem-se exigido das escolas públicas e dos professores a elas vinculados soluções urgentes e eficazes para a garantia da volta à normalidade da vida escolar. Essa “normalidade” implica necessariamente o acesso a tecnologias para que possam viabilizar o retorno às atividades escolares, tendo no ensino remoto uma alternativa.

O avanço tecnológico na contemporaneidade é uma realidade, contudo, o acesso à Internet, por exemplo, ainda não é algo disponível para todos os cidadãos. Segundo pesquisa de 2019, um levantamento realizado pelo Comitê Gestor da Internet, o número de usuários no Brasil chegou a 134 milhões, alcançando na época 71% dos domicílios com acesso à rede. Todavia, os dados da pesquisa apontam também que dos 47 milhões de brasileiros que não usam a internet, a maioria localiza-se nas áreas urbanas e pertence às classes sociais menos favorecidas3. Essa realidade atinge mais diretamente alunos e até mesmo professores que atuam nas escolas públicas brasileiras.

Se essa realidade de exclusão digital é um problema de ordem econômica, é também de ordem educacional e, como tal, precisa ser enfrentada pelas agências formadoras que se obrigam a dar respostas urgentes à sociedade, já que muitos professores ainda não dominam o uso de tecnologias e ferramentas necessárias à realização do trabalho docente na cultura digital. Trabalhar para ampliar os letramentos dos professores, tendo em vista o enfrentamento da crise que impacta o funcionamento das escolas públicas, parece-nos ser uma possibilidade de contribuir para uma educação cidadã e para o fortalecimento dos professores.

Para tanto, assumimos uma concepção de linguagem atravessada por valores axiológicos e ideologias, que exprimem pontos de vista e visões de mundo. Vista em uma abordagem enunciativo-discursiva, conforme esboçada no âmbito dos estudos do Círculo de Bakhtin (VOLOCHINOV, 2017), a linguagem configura-se como um processo de interação verbal, cujos textos, em que se materializam os gêneros discursivos, são produzidos e compreendidos a partir de contextos situados.

Essa perspectiva contextualizada de linguagem requer enxergar a língua como uma forma de ação orientada por motivos em uma dada situação, conforme defende Miller (2009, p. 23): “(...) se gênero representa ação, tem que envolver situação e motivo, uma vez que a ação humana, seja simbólica ou não, somente é interpretável num contexto de situação e através da atribuição de motivos”.

Implica, também, assumir o conceito de letramento a partir de uma visão sociocultural. Conforme Kleiman (1995, p. 19), letramento diz respeito a “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. No quadro da atualidade, a autora explica que a multiplicidade de práticas de letramento intersemióticas contemporâneas exige do leitor e produtor de textos competências, capacidades de leitura e abordagem da informação cuja produção e/ou interpretação dependem de uma combinação de mídias (KLEIMAN, 2014).

Em uma sociedade semiotizada, tal qual evidencia a estudiosa, uma proposta de ensino baseada nos letramentos digitais favorece o acesso à cultura letrada. Essa sociedade exige, cada vez mais, o domínio de diferentes práticas de letramento mediadas por gêneros discursivos e textos multimodais. Tudo isso contribui para desenvolver os múltiplos letramentos4 (OLIVEIRA; KLEIMAN, 2008).

Pautando-nos em uma abordagem sócio-histórica e cultural, compreendemos que as práticas de leitura, escrita e fala se constituem, localizadamente, como práticas sociais que se desenvolvem em diferentes instituições e esferas sociais. Os letramentos são, nesse sentido, situados, múltiplos, ideológicos, críticos, multimodais. Precisamos, nesse sentido, formar professores, capazes de agir, com desenvoltura, na esfera escolar ou em outras esferas, ao usar os artefatos culturais diversos, comportando-se como cidadãos digitalmente letrados (RIBEIRO; COSCARELLI, 2005).

Um projeto de formação de professores deve, nesse sentido, ter como eixo ações de linguagem situadas no local de trabalho (KLEIMAN, 2001), cujas práticas devem nortear a proposta de formação, de modo a contribuir com a melhoria da qualidade do agir do professor na sala de aula. Na experiência aqui analisada, partimos da ideia de que, na formação inicial ou continuada, pensar o letramento do professor implica considerar que práticas de leitura, escrita e fala são necessárias no seu contexto de trabalho para legitimar sua agência de letramento (KLEIMAN, 2006) junto à escola e aos alunos que atende.

Neste trabalho, é importante levar em consideração que os saberes são construídos dialogicamente. O professor (inclusive o formador) possui um conhecimento legitimado, mas os formandos também trazem consigo para o contexto de formação seus saberes e experiências. Ademais, interessa atentar para o que os alunos precisam aprender também no contexto escolar. Formar professores para uma pedagogia dialógica (FREIRE, 1987; FREIRE; SHOR, 1986) exige reconfigurar o formato das práticas de letramento do professor, tendo em vista o que isso significa:

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[...] repensar práticas pedagógicas no contexto de formação docente significa, por exemplo, flexibilizar o currículo e torná-lo mais dinâmico e emancipatório, possibilitando aos formandos a vivência de práticas pedagógicas que possam ser didatizadas na sala de aula (SANTOS-MARQUES, 2016, p. 139-140).

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No contexto de formação, tornar o currículo emancipatório pressupõe ampliar os letramentos dos professores de modo a lhe dar maior poder de voz, de acesso e de agência para a participação no desenvolvimento das atividades do curso, considerando-os sujeitos de conhecimento (TARDIF, 2002). O processo de formação docente precisa partir, pois, das experiências deles, considerando os saberes necessários ao seu agir discursivo na sala de aula na condição de um agente de letramento (KLEIMAN, 2006)5.

O currículo emancipatório é um artefato cultural que visa contribuir com a apreensão crítica da realidade, tomando como ponto de partida as experiências, os saberes prévios e as necessidades dos educandos. Assim concebido, não se limita a uma lista de conteúdos selecionados pelo professor para serem transmitidos mecanicamente aos alunos. Por estar ancorado em uma teoria crítica da emancipação, vai além da estratificação de classes sociais, no sentido de que busca compreender o modo de organização e funcionamento das relações de poder na escola e na sociedade mais ampla e é vivenciado em uma perspectiva democrática, dialógica, inclusiva e de respeito às diferenças. Constitui-se, portanto, em um mecanismo de fortalecimento.

Como nos ensina Paulo Freire, a formação de pessoas críticas, curiosas e indagadoras não pode ser baseada na memorização mecânica dos conteúdos. Esse processo não se desenvolve a partir do treinamento, pois treinar não é formar. Para ele, a educação para a formação

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Não pode ser a que “deposita” conteúdos na cabeça “vazia” dos educandos, mas a que, pelo contrário, os desafia a pensar certo6. Por isso, é a que coloca ao educador ou educadora a tarefa de, ensinando conteúdos aos educandos, ensinar-lhes a pensar criticamente (FREIRE, 2000, p. 115).

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Isso vale também para o contexto de formação docente, a qual deve ser desenvolvida como política permanente. Uma proposta curricular emancipatória pressupõe que ao professor seja garantida uma formação crítica que seja capaz de “fortalecê-lo no sentido de que ele aprenda os saberes necessários ao saber fazer, ao saber agir, ao como deve agir um agente de letramento nas suas atribuições de professor de língua portuguesa na escola” (SANTOS-MARQUES, 2016, p. 139).

Diante dos altos índices de exclusão social que ainda enfrentamos, o trabalho com as tecnologias no contexto educacional exige uma visão crítica7 sobre os letramentos, observando as relações entre letramento, acesso e poder. Nessa perspectiva, não há neutralidade nos usos sociais da linguagem e isso nos impele a abordá-la criticamente, visto que

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Letramento crítico “desafia o status quo em um esforço de descobrir caminhos alternativos para desenvolvimento do eu e do social. Esse tipo de letramento - palavras repensando mundos, a dissidência do eu na sociedade - conecta o político e o pessoal, o público e o privado, o global e o local, o econômico e o pedagógico, uma vez que repensa nossas vidas e promove a justiça em lugar da desigualdade. O letramento crítico é, portanto, uma atitude em relação à história (SHOR, 1999, p. 2).

Um ponto crucial das práticas de letramento, nessa orientação, é a natureza ideológica dos letramentos. A leitura e a escrita estão sempre atravessadas por valores axiológicos, disposições particulares, formas de silenciamento e de resistência.

No processo de desenvolvimento do letramento crítico, a sala de aula se transforma em um espaço onde se rompem relações assimétricas de poder e se instituem relações dialógicas, assim chamadas por Freire (1996) de uma pedagogia dialógica.

Trabalhar com o conceito de letramento crítico na formação do professor exige que se considere uma visão epistemológica que se coadune com uma proposta emancipatória e libertadora, em que se considera “empoderamento como uma atividade social” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 138), na qual são consideradas as vozes dos formandos, suas necessidades e práticas que eles precisam desenvolver no contexto situado em que atuam, observando problemas locais ou globais da atualidade e da realidade que os circunda. Nesse sentido, empoderamento é mais que um mero invento individual ou psicológico. Significa “um processo político das classes dominadas que buscam a própria liberdade da dominação, um longo processo histórico de que a educação é uma frente de luta” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 138).

Na realidade atual dos professores de língua portuguesa surgiram novas demandas sociais e exigências em torno dos múltiplos letramentos a serem desenvolvidos na escola. Para isso, eles necessitam se atualizar acerca da diversidade de práticas, mídias, tecnologias, modos e semioses exigidas na leitura e produção de textos que circulam na escola e nas outras esferas sociais. Em função disso, os gêneros discursivos, como usos sociais da linguagem que mediam as práticas de letramento, são instrumentos importantes e necessários para agir socialmente.

Nessa realidade mediada por tecnologias, a escrita não é a única tecnologia usada como forma de construir significados, a relação entre escrita e outros sistemas semióticos se aproxima a cada dia, uma vez que

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os modos grafocêntricos de significado podem ser complementados ou substituídos por outras formas de cruzar o tempo e a distância como gravações e transmissões orais, visuais, auditivas, gestuais e outros padrões de significado. Isso quer dizer que uma pedagogia voltada ao ensino de leitura e escrita precisa ir além da comunicação alfabética, incorporando, assim, a essas habilidades tradicionais as comunicações multimodais, particularmente, aquelas típicas das novas mídias digitais (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 20).

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No atual cenário de diversidade social e variabilidade de convenções de significado em diferentes situações (culturais, sociais ou de domínio específico), de acordo com esses autores, os textos variam em diferentes contextos, considerando experiências de vida, assunto, domínio disciplinar, campo de trabalho, conhecimento especializado, ambiente cultural, identidade de gênero etc. Além desses fatores, podemos observar uma multiplicidade e integração de modos de constituição de significado, nos quais o verbal (palavra escrita e oral) se integra ao visual, áudio, espacial, tátil, comportamental etc. (multimídias, mídia de massa e hipermídia eletrônica), determinando a multimodalidade como elemento constitutivo dos textos orais ou escritos que circulam nos ambientes digitais.

Considerando essa realidade complexa em que se desenvolvem as práticas de letramento na cultura digital, é central a compreensão do conceito de letramento digital pelos professores, o qual diz respeito

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às práticas sociais de leitura e produção de textos em ambientes digitais, isto é, ao uso de textos em ambientes propiciados pelo computador ou por dispositivos móveis, tais como, celulares e tablets, em plataformas como e-mails, redes sociais na web, entre outras (RIBEIRO; COSCARELLI, 2005, n.p.).

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Segundo as autoras, uma pessoa digitalmente letrada é aquela que sabe se comunicar em diferentes situações, com propósitos variados e nos diferentes ambientes digitais. Ela é capaz de trocar mensagens eletrônicas por e-mail, SMS, Whats App etc., mas também de ir além disso, ao buscar textos na Internet, compreendê-los criticamente, avaliar a credibilidade das informações neles contidas e observar questões de autoria, fonte etc.

De acordo com Kleiman (2014, p. 76), “o acesso à informação é considerado palavra de ordem na era da Internet”. Em tempos de pós-verdade e de fake news, quando as tecnologias facilitam o acesso à informação, convém ensinar ao professor (e ao aluno) a ler criticamente para não se deixar manipular. Essa capacidade crítica é imprescindível à competência leitora, por isso “[...] na escola, a luta para superar uma cultura de manipulação da população por meio da informação é prioridade” (KLEIMAN; SANTOS-MARQUES, 2020, p. 42). A luta contra a manipulação pela informação exige desenvolver o nível de conscientização crítica de professores e alunos, já que “[...] quanto maior for o nível de consciência das pessoas, menos eficientes serão os esforços de manipulação” (FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p. 160-161).

O agir crítico do professor na sala de aula torna-se elemento indispensável à formação crítica de seus alunos em relação aos usos sociais da leitura, escrita e fala. Ao discutir o processo de formação de professores em uma perspectiva crítica, consideramos que “ser crítico é pressupor que os humanos são agentes ativos cuja autoanálise reflexiva e cujo conhecimento de mundo leva à ação” (KINCHELOE, 1997, p. 186).

Essa formação crítica prevê, antes de tudo, que os docentes, no acesso às tecnologias, aprendam a usá-las adequadamente no seu cotidiano, levando esses valores epistemológicos para o seu cotidiano na sala de aula. Apesar de a BNCC (BRASIL, 2018) dar destaque às tecnologias no trabalho a ser realizado na sala de aula, as escolas públicas continuam desaparelhadas e muitos professores afirmam não fazer uso de tecnologias na escola por não terem, satisfatoriamente, o domínio delas para escolherem ferramentas e recursos que possam ancorar as práticas de letramento digital na escola.

Na atualidade, ensinar a ler e escrever em ambientes digitais exige que o professor atente para o fato de que as informações estão contidas em textos que não se limitam a aspectos linguísticos. Eles são constituídos por diferentes elementos semióticos: animações, vídeos, sons, cores, movimentos, ícones. Saber ler e produzir textos explorando essas linguagens “faz parte das competências dos digitalmente letrados, com exigências sociais e motivações pessoais cada vez mais precoces” (RIBEIRO; COSCARELLI, 2005, n. p.).

Como chamam à atenção Oliveira e Kleiman (2008),

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Educar cidadãos, linguisticamente, para participarem produtivamente de um mundo tecnológico cada vez mais ‘leiturizado’ ‘escriturado’ e informatizado é uma tarefa que exige voltar a atenção não só para a formação do professor e de outros agentes interessados na educação popular, como também para as orientações de letramento que norteiam esse processo formador” (OLIVEIRA; KLEIMAN, 2008, p. 9).

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No âmbito da didatização de práticas pedagógicas, o argumento das autoras destaca a indispensável relação entre o mundo tecnológico, as orientações de letramento e o letramento do professor. Se elas já eram exigidas no cotidiano do professor, atualmente, não se pode mais prescindir delas em face das exigências de sobrevivência no contexto da pandemia que nos impôs o isolamento social e a consequente substituição das atividades presenciais em milhares de escolas de todo o planeta pelo ensino remoto.

2 Construção metodológica

Metodologicamente, o trabalho se insere no escopo da Linguística Aplicada (doravante LA), assumindo-a em uma perspectiva crítica, indisciplinar, transgressiva, interdisciplinar, transdisciplinar (MOITA LOPES, 2006; KLEIMAN, 2013). Nessa perspectiva, a LA favorece o desenvolvimento de pesquisas e de programas de formação docente os quais podem se tornar instrumento de resistência e de fortalecimento dos professores (KLEIMAN, 2001).

Inserido em uma abordagem de pesquisa qualitativa e interpretativista (MOITA LOPES, 1994), este estudo traz discussões que se assentam em um conjunto de informações provenientes da implementação de um projeto de formação continuada no decorrer do qual foram utilizados instrumentos de pesquisa de natureza etnográfica, quais sejam: gravações em áudio e vídeo, questionário, sessões reflexivas, chats, entre outros). Esta ação, promovida em nível interinstitucional como ação de extensão, foi desenvolvida junto a cento e oitenta e dois (182) cursistas vinculados a Secretarias de Educação no âmbito municipal e estadual.

Intitulado “Formação docente para uma situação emergencial: letramentos e ensino remoto de língua portuguesa durante a pandemia”, este projeto foi desenvolvido no IFRN - Campus Natal Zona Leste, ao longo do semestre letivo de 2020.2, no período de 07/07 a 15/12/2020. Neste, foi oferecido um curso de formação com uma carga horária de 48 horas, em cujo desenvolvimento foram realizados treze encontros síncronos (Ao vivo na Plataforma Digital Google Meet) e dez atividades assíncronas (A distância em Ambiente Virtual de Aprendizagem do Moodle). Nessas plataformas digitais, realizamos ações formativas, eventos e práticas de letramento com foco nos letramentos do professor em uma vertente crítica e emancipatória, visando ao seu empoderamento8 (MCLAREN, 2001).

A seleção dos participantes do curso ficou sob a responsabilidade das instituições às quais os professores cursistas estavam vinculados: Secretaria de Estado da Educação, da Cultura, do Esporte e Lazer do Rio Grande do Norte (SEEC), Secretaria Municipal de Educação de Natal (SME) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), seguindo os seguintes critérios: 1) o efetivo exercício dos professores em sala de aula; 2) a composição do grupo de participantes – são professores da capital e de diferentes cidades do interior do RN cujos alunos, das diferentes escolas, apresentam dificuldades de leitura e de escrita.

O curso foi dividido em três unidades didáticas. Na unidade 1 “Concepções de linguagem na BNCC: implicações para o ensino remoto”, trabalhamos, inicialmente, especificidades da formação docente no contexto da pandemia e mapeamos necessidades e saberes previamente construídos pelos professores, partindo de suas experiências de sala de aula. Discutimos a linguagem concebida como interação, noção que norteia as orientações da BNCC (BRASIL, 2018) para o ensino da leitura, escrita e fala, destacando o papel central dos gêneros discursivos e dos textos vistos em uma perspectiva multissemiótica na produção de material didático para o ensino remoto. Além disso, realizamos uma oficina de letramento9 (SANTOS-MARQUES; KLEIMAN, 2019) com o objetivo de subsidiar o professor no uso de tecnologias, mídias e ferramentas digitais necessárias à produção de videoaulas e na postagem desse material didático na plataforma do YouTube, onde os professores criaram seus próprios canais.

Na unidade 2 “Letramentos na contemporaneidade: tecnologias na produção de material didático para o ensino remoto”, tivemos por objetivo discutir a relação entre letramentos, multiletramentos e multimodalidade, refletindo sobre o uso desses conceitos na produção de material didático. Assim, tratamos da concepção de ensino de língua portuguesa na BNCC, do papel do ensino da argumentação na formação para a cidadania, conforme prevê a competência sete da BNCC, do papel dos gêneros argumentativos (comentário e artigo de opinião), discutindo os aspectos estruturais e discursivos dos textos argumentativos, e oportunizamos a produção de comentários e artigos de opinião, os quais foram postados em redes sociais para uma efetiva circulação em jornais, blogs, sites etc.

Na unidade 3, “Organizações didáticas e ensino”, com o propósito de interligar fundamentos teóricos e metodológicos do curso, trabalhamos com três organizações didáticas: projetos de letramento, oficinas de letramento e sequências didáticas, promovendo a aproximação entre teoria e prática. Para uma melhor compreensão dos conteúdos trabalhados pelos professores em formação, operamos de forma a levar os professores a pensar possibilidades de mobilização dos saberes construídos no curso para a sala de aula no contexto do ensino remoto. Em função do trabalho com essas organizações didáticas, realizamos webinars e seminários para discutirmos aspectos teóricos e mostrar experiências práticas já realizadas pelos professores cursistas na sala de aula, transmitindo-as na plataforma do YouTube. A intenção era que os professores compreendessem como a teoria trabalhada se concretiza, efetivamente, na prática.

Os eventos de letramento10 (encontros de formação e oficinas) tiveram como suporte um Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) hospedado no Moodle, onde foi criada uma página de curso na qual os participantes foram inseridos para terem acesso à planificação de ações, a links para os encontros síncronos, a materiais didáticos de apoio (vídeos, artigos científicos, revistas pedagógicas da OLP, capítulos de livros, videoaulas, podcasts, propostas de atividades de linguagem referentes à formação etc.). Nesse ambiente virtual, os docentes em formação tiveram ainda acesso a tutoriais de uso do AVA e um fórum de dúvidas permanente à disposição deles para orientações pedagógicas, além do esclarecimento de possíveis dúvidas acerca do conteúdo trabalhado na produção e postagem de textos de diferentes gêneros discursivos (comentário, artigo de opinião, podcast etc.), cujo processo de produção e circulação envolveu diferentes modos de constituição e semioses, ampliando o letramento digital dos professores.

3 Analisando o projeto de formação docente: as oficinas de letramento digital

Os dados que aqui analisamos são provenientes, como já assinalado, de duas oficinas de letramento desenvolvidas no projeto as quais tinham como objetivo discutir tecnologias na produção de materiais didáticos para o ensino remoto de língua portuguesa: Oficina de letramento 1: Produção de videoaulas; Oficina de letramento 2: Produção de podcast. As oficinas tiveram dois momentos, um síncrono (nos turnos matutino e vespertino), mobilizado via Google Meet, e um assíncrono, no Moodle, nos quais, respectivamente, foram abordados aspectos teórico-práticos referentes a gêneros discursivos da esfera digital reconfigurados para o trabalho docente.

O enfoque dado aos gêneros voltou-se para a atividade de produção, aliada às práticas de letramento inseridas nos contextos de atuação dos professores em formação, sendo as experiências vivenciadas nesse processo, posteriormente, compartilhadas em redes sociais, sites e plataformas digitais. O trabalho com os gêneros levou em consideração o contexto sociocultural no qual os docentes, na condição de agentes de letramento, se encontravam, bem como a possibilidade de esses recursos serem usados como ferramentas para a ação docente no contexto de ensino remoto.

Embora o eixo organizador das unidades didáticas desenvolvidas nas oficinas de letramento tenha sido os gêneros discursivos que mediam a ação do professor em situações de ensino remoto, a nossa atenção voltou-se também para outros aspectos relacionados a essa questão, os quais julgamos essenciais – os recursos didáticos, as tecnologias11 e as ferramentas digitais.

A seguir, vejamos algumas das ações de formação vivenciadas nas oficinas de letramento digital as quais tinham como objetivo, além de discutir materiais didáticos para o ensino remoto, apresentar especificidades dos vídeos educativos para a internet e formar os professores para a produção de videoaulas (oficina 1); e oferecer aos professores possibilidades de uso do podcast no ensino remoto, formando-os para a sua produção (oficina 2). A título de ilustração, apresentamos alguns recortes de comentários e depoimentos escritos por três professores cursistas no chat realizado no AVA e no questionário aplicado. Para preservar a identidade dos docentes, optamos por designá-los aqui por P1, P2 e P3.

3.1 O gênero discursivo videoaula

No atual cenário de crise, as videoaulas se tornaram o principal meio de exposição de conteúdos empregados pelos professores, tendo em vista a possibilidade de contato diante de um cenário remoto de aprendizagem, e muitos não possuíam experiência prévia com o uso de ferramentas necessárias para viabilizar essa produção. Nos depoimentos dados pelos docentes a respeito dessa prática de letramento, eles destacam como desafios o pouco contato de muitos com gravações dessa natureza, dificuldades com captação de áudio, falta de familiaridade com a câmera e a necessidade de várias tentativas para obter um resultado satisfatório. Assim, vejamos o que nos diz o professor (P1) em seu depoimento:

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Como usar essas tecnologias com eficiência se muitos nem tinham um bom computador, um bom acesso à internet nem outros recursos para gravar videoaulas, por exemplo, suporte pra segurar o celular ou iluminação e acústica adequadas? Para a maioria dos participantes do curso, a videoaula era uma desconhecida na sua sala de aula. (Depoimento postado por P1 em questionário aplicado junto aos professores vinculados ao projeto).

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Ao fazermos um levantamento prévio dos saberes e experiências dos professores com os gêneros que circulam no domínio digital, observamos que muitos deles nunca haviam produzido uma videoaula, gênero discursivo cuja importância foi destacada no curso como ferramenta para a ação docente no ensino remoto, considerando-se: o alto consumo de vídeos por parte dos jovens, a diferença entre videoconferências, videoaulas e webinars/lives12, os processos envolvidos na produção de videoaula, tutoriais de uso de plataformas, softwares e programas para subsidiar as práticas docentes, bem como as possibilidades de trabalho no ensino remoto de língua portuguesa. O formato do encontro como videoconferência propiciou, também, interlocuções orais e escritas que contribuíram para uma reflexão crítica e o esclarecimento de dúvidas dos participantes a respeito da temática da oficina.

As etapas de produção da videoaula (planejamento, gravação, edição, publicação, interação, feedback e avaliação do material) foram detalhadas, de modo a propiciar um passo a passo que desse suporte à posterior produção desse gênero pelos docentes em formação. Discutimos, no planejamento – escolha da temática, seleção do formato de videoaula a ser utilizado e produção de um roteiro; na gravação – equipamentos, iluminação, acústica, ambiente e cenário, enquadramento, ângulo, orientação e materiais de apoio; na edição – softwares, modificação de áudio/imagem e inserção de elementos, como títulos, vinhetas, legendas, slides ou imagens; na publicação – um tutorial para fazer o upload dos arquivos necessários e a inserção de informações para disponibilização online da videoaula, com variados tipos de privacidade e de conteúdos possíveis, utilizando o Youtube; e na interação – feedback avaliativo de material, uso de comentários com propostas de respostas a dúvidas ou desenvolvimento de fóruns de discussão, realização de playlists por conteúdo e análise das estatísticas do vídeo.

Considerando os passos realizados e os recursos mobilizados por nós, formadoras, e pelos formandos na produção de videoaulas a ser utilizadas no seu agir docente no ensino remoto, observamos que o letramento digital

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é ainda mais poderoso e empoderador do que o letramento analógico. [...] Para nosso ensino de línguas permanecer relevante, nossas aulas têm de abarcar ampla gama de letramentos, que vão bastante além do letramento impresso tradicional (DUDENEY; HOCKLY; PEGRUM, 2016, p. 19).

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No contexto atual, limitar o ensino da língua ao letramento pelos textos impressos (print) significa negar o acesso à cultura letrada que não se limita a esses textos. Assim, no projeto de extensão, oferecemos subsídios teóricos e metodológicos aos professores em formação, visando melhor prepará-los para os usos de tecnologias, incluindo textos multimodais no exercício de sua agência de letramento na educação básica, bem como no contexto específico do ensino remoto.

3.2 O gênero discursivo ,[object Object]

Quanto ao gênero podcast13, este foi percebido com uma função diferenciada cujo propósito era disponibilizar conteúdos aos discentes. Trata-se de um gênero que valoriza e dá enfoque à oralidade, permitindo uma produção tecnológica mais simplificada e acessível em situações de acesso limitado à internet, uma realidade vivenciada por muitos alunos da rede pública da capital potiguar.

No momento síncrono, houve a definição do gênero em foco, atrelada a vantagens e possibilidades de produção no contexto de ensino de língua portuguesa, bem como a descrição passo a passo de episódios de podcast, direcionada para gravação e disponibilização dessa ação discursiva (definição de tema, escolha de formato, produção de roteiro, separação de equipamentos, gravação, edição e publicação em plataformas de streaming).

No que diz respeito à definição de tema para uma série ou para episódios de podcast, discutimos a importância de: 1) selecionar temáticas de domínio do produtor; 2) pesquisar se já existem programas nessa mesma linha; 3) considerar necessidades e preferências do público; e 4) realizar planejamento de conteúdo. Relativamente à escolha do formato, duração dos episódios e frequência das publicações, apresentamos outras espécies de gêneros que com o podcast se relacionam – comentário individual, entrevista individual, painel, x (ficcional ou não ficcional) e conteúdo “reciclado” – adaptações. Quanto à produção de roteiro, relacionamos outros gêneros (vinheta) e aspectos – apresentação do locutor e do tema, introdução, discussão do assunto, paisagens sonoras de transição, efeitos e encerramento. No que se refere à separação de equipamentos, demos destaque a instrumentos e aplicativos necessários à gravação. Acerca da gravação, edição e publicação, oferecemos possibilidades de sites/aplicações para uso, além de mostrarmos o passo a passo para sua efetivação.

Nas atividades vivenciadas, a variação de formatos mostrou-se um dado saliente, com destaque para comentários individuais, apresentação e adaptações, especialmente de contação de histórias de textos literários. Outra possibilidade que foi levantada pelos professores cursistas foi a inclusão dos alunos nessa produção, em formato de painel de discussão.

Em relação ao trabalho com podcasts, observamos que a produção colaborativa do gênero entre docentes foi realizada com frequência, o que se justifica pela facilidade de gravação desse gênero digital em conjunto, mesmo a distância, utilizando-se aplicativos de celular, indicados na formação.

Relativamente ao trabalho com esse gênero discursivo, destaquemos a seguir alguns comentários presentes nas discussões registradas na plataforma AVA.

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[Professor 1] Nunca tinha feito um podcast, achei maravilhoso, pensei muito em meus alunos. Fiz juntamente com minha colega de curso [nome da colega]. É uma maneira muito interessante e prática para utilizar em sala de aula.

[Professor 2] Como estamos finalizando o ano letivo, resolvi gravar um podcast convidando os alunos para um momento literário que iremos realizar quarta-feira (16/12). Gostei muito de realizar essa atividade. Penso que o podcast será uma ótima alternativa para garantir mais acessibilidade a um aluno meu que possui necessidades especiais.

[Professor 3] O que sabemos e queremos do Ensino Médio - Nesse podcast (formatado como mesa de discussão), os estudantes puderam aprofundar e difundir conhecimentos acerca do Ensino Médio em sua cidade, um momento de reflexão sobre o que esperam dessa etapa de escolarização, relacionando-a com seus projetos de vida, fortalecendo as identidades estudantis para decisões mais seguras acerca da continuidade dos estudos.

(Comentários postados no AVA pelos professores em formação sobre a experiência com a produção de podcasts.)

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Conforme comentário dos cursistas, as oficinas de letramento mostraram-se importantes para produzir o podcast em razão de seu potencial didático para trabalhar a oralidade e viabilizar o acesso aos conteúdos planejados. Essa ferramenta tecnológica tem ganhado, a cada dia, mais espaço nas redes sociais e tem se incorporado aos poucos às práticas pedagógicas no contexto educacional. No projeto, esse gênero que circula na esfera digital teve uma excelente aceitação no grupo de formandos pelo caráter inovador que imprimiu à prática deles, mas também pelo aspecto prático de poder ser utilizado para trabalhar, de forma expositiva dialogada, os conteúdos curriculares planificados para o ensino remoto. Outra razão apontada para a boa aceitação pelos professores é que, ao ser incorporado às práticas de ensino remoto, os alunos aderiram facilmente à proposta de trabalho com o podcast, passando a produzi-lo e não apenas a consumi-lo. Assim, esse gênero favoreceu a inserção de professores e alunos na cultura digital, garantindo-lhes maior possibilidade de acesso e poder.

3.3 Os materiais didáticos/Tecnologias

Em uma das oficinas de letramento14, foram disponibilizados no Ambiente virtual de aprendizagem (doravante AVA): 1) materiais complementares (parâmetros para produção de vídeos educacionais, discussões sobre o uso de videoaulas com estudantes com deficiência auditiva e tutoriais de uso de plataformas para produção, edição e publicação de vídeos online); e 2) um fórum de discussão, onde seriam inseridos links para videoaulas produzidas pelos docentes e relatos da experiência, conforme orientação dada na oficina para publicação online do material utilizando-se a plataforma Youtube.

No AVA, foram também inseridos: 1) os slides utilizados na formação síncrona, materiais complementares (tutoriais para gravação e edição de podcasts e experiências com o uso desse gênero discursivo no ensino); e 2) fórum de discussão, onde os professores poderiam compartilhar os podcasts produzidos e comentar o processo de produção.

4 Formação docente e empoderamento/ Impactos das ações formativas

Os impactos da participação nessas oficinas de letramento foram destacados na avaliação final do projeto, em que os professores apontaram a necessidade de produzir videoaulas, como um recurso de adaptação para o ensino remoto, capaz de possibilitar a ministração dos conteúdos e o desenvolvimento das práticas pedagógicas, o que lhes exigiu rapidez no domínio de ferramentas, equipamentos, recursos e tecnologias envolvidas nessa prática digital, conforme evidenciam comentários do tipo “aprendi a fazer fazendo” (P1) e “precisamos nos reinventar” (P2), inseridos nos depoimentos a seguir:

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[...] o projeto de extensão foi essencial, pois me deu o suporte tanto nos fundamentos da teoria para lidar com as tecnologias e os ‘multiletramentos’ como para ‘saber fazer’ na prática com os alunos, pois ‘aprendi a fazer fazendo’ nos encontros de formação. Foi estafante, é verdade, mas o projeto me deu apoio e segurança para entrar de cabeça no ensino remoto. Foi uma formação muito diferente. Não foi na base da ‘receitinha’, porque ensinou a fazer na prática mesmo, por meio de oficinas e isso foi muito legal e diferente mesmo de outras formações. Aos poucos, o medo e a insegurança foram transformados em prazer de fazer diferente, de ver os alunos gostando das aulas. (Depoimento postado em questionário aplicado junto aos professores vinculados ao projeto, aqui, designados como P1, P2 e P3).

O Projeto de Extensão Letramento e Ensino Remoto de Língua Portuguesa contribuiu pra que eu visse o ensino remoto por uma ótica de possibilidades e não apenas de dificuldades. É verdade que, no início, foi difícil pra maioria dos professores do curso, porque muitos não dominavam as tecnologias digitais, ferramentas nem os recursos necessários pra atuar nesse novo formato de ensino. O clima era um pouco tenso e angustiante com pressão pra gente voltar, mas nem todos sabiam como iriam reassumir as atividades de sala de aula num ambiente totalmente novo, sendo obrigado a mostrar uma capacidade exigida de nós sem ter sido garantida a gente a formação necessária pra isso (nem na universidade). A verdade é que, diante de tantos desafios, precisamos nos reinventar pra enfrentar essa nova realidade, por isso o projeto foi tão importante pra nós. (Depoimento postado por P3 em questionário aplicado junto aos professores vinculados ao projeto).

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Nas palavras de P2, ele aprendeu a fazer fazendo e isso lhe deu autonomia para usar esses saberes construídos na formação na sua prática cotidiana do ensino remoto. Por ter aprendido a fazer, perdeu o medo e a insegurança, isto é, ganhou autonomia. Um projeto de formação planificado em uma perspectiva inovadora, aprendendo a fazer algo novo ou de forma diferente, dialogicamente, para atender às necessidades da prática pedagógica, torna-se emancipatório. Nele, a autonomia do professor formando é “a medida da democracia e do empowerment” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 135).

Neste projeto, conhecer tornou-se uma atividade social, embora tenhamos considerado uma dimensão individual no processo de produção do conhecimento dos professores em formação, os quais aprenderam colaborativamente, baseando-se no diálogo, na partilha de experiências, na escuta e na reflexão sobre o fazer docente. A esse respeito, fazemos nossas as palavras de Freire e Shor (1986, p. 138) quando afirmam: “[...] se o curso é iluminador, ele ativa a potencialidade criativa, na medida em que se vincula a outros esforços para a transformação na sociedade”, tornando-se, assim, emancipatório.

Por tudo isso, consideramos que o curso realizado ao longo do projeto ofereceu as bases e parâmetros para fundamentar, teórica e metodologicamente, a prática docente a inserção dos professores no universo da cultura letrada e digital, preparando-os para enfrentar os desafios do ensino remoto. Revelou-se, também, como uma experiência de caráter emancipatório, ao desenvolver habilidades como criatividade, colaboração, pensamento crítico, trabalho em equipe, capacidade de resolução de problemas, inovação, flexibilidade e reflexividade, competências necessárias aos processos formativos que envolvem os letramentos digitais (DUDENEY; HOCKLY; PEGRUM, 2016).

Como o próprio P3 afirma, eles precisaram se reinventar, no sentido de adquirir a necessária formação para o novo cenário de atuação, o ensino remoto. A reinvenção da prática exigiu deles formação, inovação e reposicionamento identitário, tendo como ferramenta o letramento digital. O desafio de vencer o medo do novo, o ensino remoto, em um cenário extremamente complexo e adverso como o enfrentado por todos desde março de 2020, quando foi decretada a pandemia da Covid-19 oficialmente pela Organização Mundial de Saúde (OMS), foi certamente uma das grandes dificuldades vividas pelos formandos e formadores durante o projeto de extensão. Afinal, para todos os participantes a situação era e continua sendo inusitada, tanto pelas dificuldades de alguns em relação às condições materiais de trabalho quanto por suas lacunas na formação inicial ou continuada. E o que fazer? Como resolver ou minimizar as lacunas em tão pouco tempo?

Acerca das políticas de formação docente vigentes no país, é importante destacar que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores (BRASIL, 2015), previstas na Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE/CP2/2015), orientam que a formação deve ser tratada como processo permanente e que os currículos dos cursos promovam “processos de formação do docente em consonância com as mudanças educacionais e sociais, acompanhando as transformações gnosiológicas e epistemológicas do conhecimento” (BRASIL, 2015, p. 6). Entretanto, isso ainda não ocorre a contento e, especificamente, no que tange ao uso das tecnologias digitais, conforme apontam os resultados da nossa pesquisa frente a essa realidade.

Não basta, contudo, oferecer formação aos professores para aprenderem a operar mecanicamente ferramentas da tecnologia e inovação sem refletir sobre os impactos do avanço tecnológico na vida das pessoas. Diante da realidade complexa dessa sociedade contemporânea, a formação crítica desenvolvida na reflexão sobre a ação e sobre a sua própria realidade, oferece subsídios aos formandos para o uso adequado das tecnologias, para que possam percebê-las, criticamente, sem ingenuidade. Afinal nada em educação pode ser visto sob o prisma da neutralidade. É preciso ensinar os professores em formação a observá-las atentamente, a fim de compreenderem que o progresso científico e tecnológico deve atender, antes de tudo, aos interesses humanos, para não perder sua significação, pois “esta é uma questão ética e política e não tecnológica” (FREIRE, 1996, p. 147).

5 Considerações finais

A análise dos dados aponta ser preciso (re)pensar a formação continuada de professores, considerando os seguintes aspectos: 1) aproximação entre teoria e prática; 2) necessidade de domínio de recursos midiáticos e tecnológicos pelos professores; e 3) utilização de recursos de inovação e mudança, a fim de que estes possam ampliar seus letramentos digitais e dar melhores respostas às inúmeras demandas de usos sociais da linguagem que lhes são impostas no atual contexto de ensino remoto.

A esses pontos, referentes, de modo mais específico, ao letramento digital dos professores, soma-se às possibilidades de inovação, recursos que fortaleceriam os professores no sentido de que eles possam dar melhores respostas às inúmeras demandas de usos sociais da linguagem que lhes são impostas por uma sociedade cada vez mais semiotizada.

Evidenciam, também, que o trabalho com as oficinas de letramento (SANTOS-MARQUES; KLEIMAN, 2019), assumidas como organizações didáticas no contexto de formação docente potencializa a construção de saberes necessários ao saber fazer dos professores na sala de aula, contribuindo para desenvolver os letramentos digitais, a profissionalização e a emancipação deles.

Esta experiência de formação continuada nos revelou que o processo de transformação da prática do professor ocorre na interface entre sua ação, formação e reflexão sobre a prática, a partir do domínio de conhecimentos necessários ao saber fazer em sala de aula, articulando teoria e prática na mobilização dos saberes construídos no processo formativo.

Diante das lacunas observadas na formação dos professores para lidar com tecnologias na sala de aula, este estudo aponta a necessidade de se discutir uma agenda de políticas de letramento do professor nas quais que estes sejam vistos como sujeitos de conhecimento, tenham o seu direito à voz garantido e tenham seus próprios interesses e necessidades contemplados, a fim de que possam atuar, situadamente, com tecnologias digitais na condição de agentes de letramento criticamente e digitalmente letrados.

De acordo com os depoimentos e comentários analisados, os professores consideram importante articular teoria e prática e “aprender a fazer fazendo”, isto é, fazer na própria prática formativa. Em processos formativos críticos, a estratégia de articulação entre teoria e prática contribui para ampliar os letramentos dos professores. Quanto a nós, formadoras, reconhecemos como legítimo o que Nóvoa (2002) já nos diz há tempo: formar professor é processo permanente, é disposição para proporcionar novas aprendizagens. Enfim, é assumir o desafio de propor práticas inovadoras, é identificar as necessidades e interesses dos professores, potencializando sua agência de letramento.

Para isso, nos cursos de formação (inicial ou continuada), algumas perguntas deveriam nortear a prática de formadores e formandos: com que propósito pedagógico usar tecnologias na sala de aula? Em que medida isso pode ampliar os letramentos dos professores? Os objetos de ensino trabalhados no contexto formativo contribuem para empoderar os professores, capacitando-os para melhor desenvolverem suas atividades em sala de aula? No projeto de extensão realizado, observamos atentamente essas questões e percebemos, por exemplo, o quanto os professores em formação ampliaram seus letramentos digitais, conforme apontam P1, P2 e P3 nos dados aqui analisados.

Tendo em vista essas questões e os objetivos que delas decorrem, o sentido da formação docente reside, justamente, no fato de que a aprendizagem dos professores possa servir à reflexão sobre sua prática e não apenas para o domínio de habilidades e competências para lidar com tecnologias digitais. Formar professores em uma perspectiva crítica e emancipatória implica compreender a imbricada relação entre letramento e poder, compreendendo que o empoderamento “é a capacidade de pensar e agir criticamente” (GIROUX, 1999, p. 21).

Referências

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