A necessidade de planejamento estratégico para viabilizar o ensino remoto de Língua Portuguesa na educação básica tem sido um desafio para a escola e para as instituições de ensino que atuam como agências formadoras de professores durante a pandemia da Covid-19. Com vistas a oferecer subsídios que auxiliem esses profissionais no planejamento de atividades didáticas, mobilização de saberes e desenvolvimento de práticas de letramento nesse novo formato de ensino, discutimos neste estudo ações de formação continuada e possibilidades de inovação e mudanças na prática pedagógica a serem construídas por professores situados em contextos de crise sanitária e social. Teoricamente, este estudo ancora-se na concepção bakhtiniana de linguagem, nos estudos de letramento crítico centrados no domínio digital, nas contribuições advindas dos estudos de letramento do professor e de gêneros discursivos. Metodologicamente, configura-se como uma pesquisa qualitativa e interpretativista de caráter fortalecedor, informada por instrumentos de natureza etnográfica (questionários, notas de campo, gravação em áudio e vídeo, chats, sessões reflexivas, entre outros). A análise dos dados aponta ser preciso (re)pensar a formação continuada de professores, considerando os seguintes aspectos: 1) aproximação entre teoria e prática; 2) necessidade de domínio de recursos midiáticos e tecnológicos pelos professores; e 3) utilização de recursos de inovação e mudança, a fim de que estes possam ampliar seus letramentos digitais e dar melhores respostas às inúmeras demandas de usos sociais da linguagem que lhes são impostas no atual contexto de ensino remoto.
A necessidade de planejamento estratégico para viabilizar e implementar a modalidade de ensino remoto emergencial na educação básica tem sido um desafio que se impôs às escolas públicas brasileiras e às instituições de ensino que atuam como agências formadoras de professores no atual contexto de crise sanitária decorrente da pandemia da Covid-19, causada pelo vírus Sars-CoV-2. Para o enfrentamento dessa situação emergencial, pensar ações de formação com foco no letramento do professor para desenvolver seus letramentos digitais em uma perspectiva crítica parece-nos ser uma necessidade das mais urgentes, a fim de amenizar impactos dessa crise humanitária no contexto educacional, já que esse fenômeno abalou diretamente a educação em todo o planeta, segundo relatório divulgado em novembro de 2020 pela OCDE
Com vistas à reflexão dessas ações de formação, este estudo, cuja atenção está focada em objetos de ensino que possam ancorar as práticas de letramento digitais a serem didaticamente mobilizadas pelos professores no ensino remoto, orienta-se por quatro questões: Que saberes devem ser privilegiados em um projeto de formação continuada que visa preparar professores para agir no ensino remoto de língua portuguesa? Que conteúdos e objetos de ensino selecionar? Como proceder na didatização desses conteúdos para uso em sala de aula pelos professores? Que recursos de inovação podem favorecer os processos de adequação e mudança na prática do professor? Para responder a essas questões, a noção de letramento em uma perspectiva crítica torna-se relevante por poder contribuir para redimensionar o trabalho com práticas letradas no domínio educacional, favorecendo o desenvolvimento de práticas pedagógicas inovadoras, mediadas pelo uso de tecnologias (SANTOS-MARQUES, 2016).
Nessa direção, temos por objetivo discutir ações de formação continuada e possibilidades de inovação
Com vistas, então, a esse trabalho de formação continuada voltado para auxiliar profissionais da educação (professores de língua portuguesa, pedagogos e gestores) no planejamento, mobilização e desenvolvimento de práticas digitais a serem desenvolvidas na implementação do ensino remoto, foi planificado um projeto de extensão intitulado “Formação docente para uma situação emergencial: letramentos e ensino remoto de língua portuguesa durante a pandemia” (Edital 01/2020/PROEX/IFRN).
Como recurso operacional e de inovação, o projeto foi planificado e implementado como uma parceria interinstitucional. Para o seu desenvolvimento, foram articuladas diferentes instituições educativas: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), Secretaria de Estado da Educação e da Cultura do Rio Grande do Norte (SEEC/RN), Secretaria Municipal de Educação de Natal (SME) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação do Rio Grande do Norte (UNDIME/RN), desenvolvendo ações formativas com foco no letramento docente em um viés crítico e emancipatório.
Do ponto de vista organizacional, este trabalho divide-se em cinco seções. Na primeira
No atual contexto da pandemia, as dificuldades de acesso às tecnologias e à internet no Brasil e no mundo têm sido ainda mais evidenciadas com o escancaramento das desigualdades sociais, conforme aponta o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2020) em sua obra recente “A cruel pedagogia do vírus”. A despeito disso, tem-se exigido das escolas públicas e dos professores a elas vinculados soluções urgentes e eficazes para a garantia da volta à normalidade da vida escolar. Essa “normalidade” implica necessariamente o acesso a tecnologias para que possam viabilizar o retorno às atividades escolares, tendo no ensino remoto uma alternativa.
O avanço tecnológico na contemporaneidade é uma realidade, contudo, o acesso à Internet, por exemplo, ainda não é algo disponível para todos os cidadãos. Segundo pesquisa de 2019, um levantamento realizado pelo Comitê Gestor da Internet, o número de usuários no Brasil chegou a 134 milhões, alcançando na época 71% dos domicílios com acesso à rede. Todavia, os dados da pesquisa apontam também que dos 47 milhões de brasileiros que não usam a internet, a maioria localiza-se nas áreas urbanas e pertence às classes sociais menos favorecidas
Se essa realidade de exclusão digital é um problema de ordem econômica, é também de ordem educacional e, como tal, precisa ser enfrentada pelas agências formadoras que se obrigam a dar respostas urgentes à sociedade, já que muitos professores ainda não dominam o uso de tecnologias e ferramentas necessárias à realização do trabalho docente na cultura digital. Trabalhar para ampliar os letramentos dos professores, tendo em vista o enfrentamento da crise que impacta o funcionamento das escolas públicas, parece-nos ser uma possibilidade de contribuir para uma educação cidadã e para o fortalecimento dos professores.
Para tanto, assumimos uma concepção de linguagem atravessada por valores axiológicos e ideologias, que exprimem pontos de vista e visões de mundo. Vista em uma abordagem enunciativo-discursiva, conforme esboçada no âmbito dos estudos do
Essa perspectiva contextualizada de linguagem requer enxergar a língua como uma
Implica, também, assumir o conceito de letramento a partir de uma visão sociocultural. Conforme Kleiman (1995, p. 19), letramento diz respeito a “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. No quadro da atualidade, a autora explica que a multiplicidade de práticas de letramento intersemióticas contemporâneas exige do leitor e produtor de textos competências, capacidades de leitura e abordagem da informação cuja produção e/ou interpretação dependem de uma combinação de mídias (KLEIMAN, 2014).
Em uma sociedade semiotizada, tal qual evidencia a estudiosa, uma proposta de ensino baseada nos letramentos digitais favorece o acesso à cultura letrada. Essa sociedade exige, cada vez mais, o domínio de diferentes práticas de letramento mediadas por gêneros discursivos e textos multimodais. Tudo isso contribui para desenvolver os múltiplos letramentos
Pautando-nos em uma abordagem sócio-histórica e cultural, compreendemos que as práticas de leitura, escrita e fala se constituem, localizadamente, como práticas sociais que se desenvolvem em diferentes instituições e esferas sociais. Os letramentos são, nesse sentido, situados, múltiplos, ideológicos, críticos, multimodais. Precisamos, nesse sentido, formar professores, capazes de agir, com desenvoltura, na esfera escolar ou em outras esferas, ao usar os artefatos culturais diversos, comportando-se como cidadãos digitalmente letrados (RIBEIRO; COSCARELLI, 2005).
Um projeto de formação de professores deve, nesse sentido, ter como eixo ações de linguagem situadas no local de trabalho (KLEIMAN, 2001), cujas práticas devem nortear a proposta de formação, de modo a contribuir com a melhoria da qualidade do agir do professor na sala de aula. Na experiência aqui analisada, partimos da ideia de que, na formação inicial ou continuada, pensar o letramento do professor implica considerar que práticas de leitura, escrita e fala são necessárias no seu contexto de trabalho para legitimar sua agência de letramento (KLEIMAN, 2006) junto à escola e aos alunos que atende.
Neste trabalho, é importante levar em consideração que os saberes são construídos dialogicamente. O professor (inclusive o formador) possui um conhecimento legitimado, mas os formandos também trazem consigo para o contexto de formação seus saberes e experiências. Ademais, interessa atentar para o que os alunos precisam aprender também no contexto escolar. Formar professores para uma pedagogia dialógica (FREIRE, 1987; FREIRE; SHOR, 1986) exige reconfigurar o formato das práticas de letramento do professor, tendo em vista o que isso significa:
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[...] repensar práticas pedagógicas no contexto de formação docente significa, por exemplo, flexibilizar o currículo e torná-lo mais dinâmico e emancipatório, possibilitando aos formandos a vivência de práticas pedagógicas que possam ser didatizadas na sala de aula (SANTOS-MARQUES, 2016, p. 139-140).
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No contexto de formação, tornar o currículo emancipatório pressupõe ampliar os letramentos dos professores de modo a lhe dar maior poder de voz, de acesso e de agência para a participação no desenvolvimento das atividades do curso, considerando-os sujeitos de conhecimento (TARDIF, 2002). O processo de formação docente precisa partir, pois, das experiências deles, considerando os saberes necessários ao seu agir discursivo na sala de aula na condição de um agente de letramento (KLEIMAN, 2006)
O
Como nos ensina Paulo Freire, a formação de pessoas críticas, curiosas e indagadoras não pode ser baseada na memorização mecânica dos conteúdos. Esse processo não se desenvolve a partir do treinamento, pois treinar não é formar. Para ele, a educação para a formação
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Não pode ser a que “deposita” conteúdos na cabeça “vazia” dos educandos, mas a que, pelo contrário, os desafia a
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Isso vale também para o contexto de formação docente, a qual deve ser desenvolvida como política permanente. Uma proposta curricular emancipatória pressupõe que ao professor seja garantida uma formação crítica que seja capaz de “fortalecê-lo no sentido de que ele aprenda os saberes necessários ao saber fazer, ao saber agir, ao como deve agir um agente de letramento nas suas atribuições de professor de língua portuguesa na escola” (SANTOS-MARQUES, 2016, p. 139).
Diante dos altos índices de exclusão social que ainda enfrentamos, o trabalho com as tecnologias no contexto educacional exige uma visão crítica
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Letramento crítico “desafia o
Um ponto crucial das práticas de letramento, nessa orientação, é a natureza ideológica dos letramentos. A leitura e a escrita estão sempre atravessadas por valores axiológicos, disposições particulares, formas de silenciamento e de resistência.
No processo de desenvolvimento do letramento crítico, a sala de aula se transforma em um espaço onde se rompem relações assimétricas de poder e se instituem relações dialógicas, assim chamadas por Freire (1996) de uma pedagogia dialógica.
Trabalhar com o conceito de letramento crítico na formação do professor exige que se considere uma visão epistemológica que se coadune com uma proposta emancipatória e libertadora, em que se considera “empoderamento como uma atividade social” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 138), na qual são consideradas as vozes dos formandos, suas necessidades e práticas que eles precisam desenvolver no contexto situado em que atuam, observando problemas locais ou globais da atualidade e da realidade que os circunda. Nesse sentido, empoderamento é mais que um mero invento individual ou psicológico. Significa “um processo político das classes dominadas que buscam a própria liberdade da dominação, um longo processo histórico de que a educação é uma frente de luta” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 138).
Na realidade atual dos professores de língua portuguesa surgiram novas demandas sociais e exigências em torno dos múltiplos letramentos a serem desenvolvidos na escola. Para isso, eles necessitam se atualizar acerca da diversidade de práticas, mídias, tecnologias, modos e semioses exigidas na leitura e produção de textos que circulam na escola e nas outras esferas sociais. Em função disso, os gêneros discursivos, como usos sociais da linguagem que mediam as práticas de letramento, são instrumentos importantes e necessários para agir socialmente.
Nessa realidade mediada por tecnologias, a escrita não é a única tecnologia usada como forma de construir significados, a relação entre escrita e outros sistemas semióticos se aproxima a cada dia, uma vez que
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os modos grafocêntricos de significado podem ser complementados ou substituídos por outras formas de cruzar o tempo e a distância como gravações e transmissões orais, visuais, auditivas, gestuais e outros padrões de significado. Isso quer dizer que uma pedagogia voltada ao ensino de leitura e escrita precisa ir além da comunicação alfabética, incorporando, assim, a essas habilidades tradicionais as comunicações multimodais, particularmente, aquelas típicas das novas mídias digitais (
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No atual cenário de diversidade social e variabilidade de convenções de significado em diferentes situações (culturais, sociais ou de domínio específico), de acordo com esses autores, os textos variam em diferentes contextos, considerando experiências de vida, assunto, domínio disciplinar, campo de trabalho, conhecimento especializado, ambiente cultural, identidade de gênero etc. Além desses fatores, podemos observar uma multiplicidade e integração de modos de constituição de significado, nos quais o verbal (palavra escrita e oral) se integra ao visual, áudio, espacial, tátil, comportamental etc. (multimídias, mídia de massa e hipermídia eletrônica), determinando a multimodalidade como elemento constitutivo dos textos orais ou escritos que circulam nos ambientes digitais.
Considerando essa realidade complexa em que se desenvolvem as práticas de letramento na cultura digital, é central a compreensão do conceito de letramento digital pelos professores, o qual diz respeito
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às práticas sociais de leitura e produção de textos em ambientes digitais, isto é, ao uso de textos em ambientes propiciados pelo computador ou por dispositivos móveis, tais como, celulares e tablets, em plataformas como e-mails, redes sociais na web, entre outras (RIBEIRO; COSCARELLI, 2005, n.p.).
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Segundo as autoras, uma pessoa digitalmente letrada é aquela que sabe se comunicar em diferentes situações, com propósitos variados e nos diferentes ambientes digitais. Ela é capaz de trocar mensagens eletrônicas por e-mail, SMS, Whats App etc., mas também de ir além disso, ao buscar textos na Internet, compreendê-los criticamente, avaliar a credibilidade das informações neles contidas e observar questões de autoria, fonte etc.
De acordo com Kleiman (2014, p. 76), “o acesso à informação é considerado palavra de ordem na era da Internet”. Em tempos de pós-verdade e de
O agir crítico do professor na sala de aula torna-se elemento indispensável à formação crítica de seus alunos em relação aos usos sociais da leitura, escrita e fala. Ao discutir o processo de formação de professores em uma perspectiva crítica, consideramos que “ser crítico é pressupor que os humanos são agentes ativos cuja autoanálise reflexiva e cujo conhecimento de mundo leva à ação” (KINCHELOE, 1997, p. 186).
Essa formação crítica prevê, antes de tudo, que os docentes, no acesso às tecnologias, aprendam a usá-las adequadamente no seu cotidiano, levando esses valores epistemológicos para o seu cotidiano na sala de aula. Apesar de a BNCC (BRASIL, 2018) dar destaque às tecnologias no trabalho a ser realizado na sala de aula, as escolas públicas continuam desaparelhadas e muitos professores afirmam não fazer uso de tecnologias na escola por não terem, satisfatoriamente, o domínio delas para escolherem ferramentas e recursos que possam ancorar as práticas de letramento digital na escola.
Como chamam à atenção Oliveira e Kleiman (2008),
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Educar cidadãos, linguisticamente, para participarem produtivamente de um mundo tecnológico cada vez mais ‘leiturizado’ ‘escriturado’ e informatizado é uma tarefa que exige voltar a atenção não só para a formação do professor e de outros agentes interessados na educação popular, como também para as orientações de letramento que norteiam esse processo formador” (OLIVEIRA; KLEIMAN, 2008, p. 9).
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No âmbito da didatização de práticas pedagógicas, o argumento das autoras destaca a indispensável relação entre o mundo tecnológico, as orientações de letramento e o letramento do professor. Se elas já eram exigidas no cotidiano do professor, atualmente, não se pode mais prescindir delas em face das exigências de sobrevivência no contexto da pandemia que nos impôs o isolamento social e a consequente substituição das atividades presenciais em milhares de escolas de todo o planeta pelo ensino remoto.
Metodologicamente, o trabalho se insere no escopo da Linguística Aplicada (doravante LA), assumindo-a em uma perspectiva crítica, indisciplinar, transgressiva, interdisciplinar, transdisciplinar (MOITA LOPES, 2006; KLEIMAN, 2013). Nessa perspectiva, a LA favorece o desenvolvimento de pesquisas e de programas de formação docente os quais podem se tornar instrumento de resistência e de fortalecimento dos professores (KLEIMAN, 2001).
Inserido em uma abordagem de pesquisa qualitativa e interpretativista (MOITA LOPES, 1994), este estudo traz discussões que se assentam em um conjunto de informações provenientes da implementação de um projeto de formação continuada no decorrer do qual foram utilizados instrumentos de pesquisa de natureza etnográfica, quais sejam: gravações em áudio e vídeo, questionário, sessões reflexivas, chats, entre outros). Esta ação, promovida em nível interinstitucional como ação de extensão, foi desenvolvida junto a cento e oitenta e dois (182) cursistas vinculados a Secretarias de Educação no âmbito municipal e estadual.
Intitulado “Formação docente para uma situação emergencial: letramentos e ensino remoto de língua portuguesa durante a pandemia”, este projeto foi desenvolvido no IFRN - Campus Natal Zona Leste, ao longo do semestre letivo de 2020.2, no período de 07/07 a 15/12/2020. Neste, foi oferecido um curso de formação com uma carga horária de 48 horas, em cujo desenvolvimento foram realizados treze encontros síncronos (Ao vivo na Plataforma Digital
A seleção dos participantes do curso ficou sob a responsabilidade das instituições às quais os professores cursistas estavam vinculados: Secretaria de Estado da Educação, da Cultura, do Esporte e Lazer do Rio Grande do Norte (SEEC), Secretaria Municipal de Educação de Natal (SME) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), seguindo os seguintes critérios: 1) o efetivo exercício dos professores em sala de aula; 2) a composição do grupo de participantes – são professores da capital e de diferentes cidades do interior do RN cujos alunos, das diferentes escolas, apresentam dificuldades de leitura e de escrita.
O curso foi dividido em três unidades didáticas. Na unidade 1 “Concepções de linguagem na BNCC: implicações para o ensino remoto”, trabalhamos, inicialmente, especificidades da formação docente no contexto da pandemia e mapeamos necessidades e saberes previamente construídos pelos professores, partindo de suas experiências de sala de aula. Discutimos a linguagem concebida como interação, noção que norteia as orientações da BNCC (BRASIL, 2018) para o ensino da leitura, escrita e fala, destacando o papel central dos gêneros discursivos e dos textos vistos em uma perspectiva multissemiótica na produção de material didático para o ensino remoto. Além disso, realizamos uma oficina de letramento
Na unidade 2 “Letramentos na contemporaneidade: tecnologias na produção de material didático para o ensino remoto”, tivemos por objetivo discutir a relação entre letramentos, multiletramentos e multimodalidade, refletindo sobre o uso desses conceitos na produção de material didático. Assim, tratamos da concepção de ensino de língua portuguesa na BNCC, do papel do ensino da argumentação na formação para a cidadania, conforme prevê a competência sete da BNCC, do papel dos gêneros argumentativos (comentário e artigo de opinião), discutindo os aspectos estruturais e discursivos dos textos argumentativos, e oportunizamos a produção de comentários e artigos de opinião, os quais foram postados em redes sociais para uma efetiva circulação em jornais, blogs, sites etc.
Na unidade 3, “Organizações didáticas e ensino”, com o propósito de interligar fundamentos teóricos e metodológicos do curso, trabalhamos com três organizações didáticas: projetos de letramento, oficinas de letramento e sequências didáticas, promovendo a aproximação entre teoria e prática. Para uma melhor compreensão dos conteúdos trabalhados pelos professores em formação, operamos de forma a levar os professores a pensar possibilidades de mobilização dos saberes construídos no curso para a sala de aula no contexto do ensino remoto. Em função do trabalho com essas organizações didáticas, realizamos
Os eventos de letramento
Os dados que aqui analisamos são provenientes, como já assinalado, de duas oficinas de letramento desenvolvidas no projeto as quais tinham como objetivo discutir tecnologias na produção de materiais didáticos para o ensino remoto de língua portuguesa:
O enfoque dado aos gêneros voltou-se para a atividade de produção, aliada às práticas de letramento inseridas nos contextos de atuação dos professores em formação, sendo as experiências vivenciadas nesse processo, posteriormente, compartilhadas em redes sociais, sites e plataformas digitais. O trabalho com os gêneros levou em consideração o contexto sociocultural no qual os docentes, na condição de agentes de letramento, se encontravam, bem como a possibilidade de esses recursos serem usados como ferramentas para a ação docente no contexto de ensino remoto.
Embora o eixo organizador das unidades didáticas desenvolvidas nas oficinas de letramento tenha sido os gêneros discursivos que mediam a ação do professor em situações de ensino remoto, a nossa atenção voltou-se também para outros aspectos relacionados a essa questão, os quais julgamos essenciais – os recursos didáticos, as tecnologias
A seguir, vejamos algumas das ações de formação vivenciadas nas oficinas de letramento digital as quais tinham como objetivo, além de discutir materiais didáticos para o ensino remoto, apresentar especificidades dos vídeos educativos para a internet e formar os professores para a produção de
No atual cenário de crise, as videoaulas se tornaram o principal meio de exposição de conteúdos empregados pelos professores, tendo em vista a possibilidade de contato diante de um cenário remoto de aprendizagem, e muitos não possuíam experiência prévia com o uso de ferramentas necessárias para viabilizar essa produção. Nos depoimentos dados pelos docentes a respeito dessa prática de letramento, eles destacam como desafios o pouco contato de muitos com gravações dessa natureza, dificuldades com captação de áudio, falta de familiaridade com a câmera e a necessidade de várias tentativas para obter um resultado satisfatório. Assim, vejamos o que nos diz o professor (P1) em seu depoimento:
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Como usar essas tecnologias com eficiência se muitos nem tinham um bom computador, um bom acesso à internet nem outros recursos para gravar videoaulas, por exemplo, suporte pra segurar o celular ou iluminação e acústica adequadas? Para a maioria dos participantes do curso, a videoaula era uma desconhecida na sua sala de aula. (Depoimento postado por P1 em questionário aplicado junto aos professores vinculados ao projeto).
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Ao fazermos um levantamento prévio dos saberes e experiências dos professores com os gêneros que circulam no domínio digital, observamos que muitos deles nunca haviam produzido uma videoaula, gênero discursivo cuja importância foi destacada no curso como ferramenta para a ação docente no ensino remoto, considerando-se: o alto consumo de vídeos por parte dos jovens, a diferença entre videoconferências, videoaulas e
As etapas de produção da videoaula (planejamento, gravação, edição, publicação, interação,
Considerando os passos realizados e os recursos mobilizados por nós, formadoras, e pelos formandos na produção de videoaulas a ser utilizadas no seu agir docente no ensino remoto, observamos que o letramento digital
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é ainda mais poderoso e empoderador do que o letramento analógico. [...] Para nosso ensino de línguas permanecer relevante, nossas aulas têm de abarcar ampla gama de letramentos, que vão bastante além do letramento impresso tradicional (DUDENEY; HOCKLY; PEGRUM, 2016, p. 19).
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No contexto atual, limitar o ensino da língua ao letramento pelos textos impressos (
Quanto ao
No momento síncrono, houve a definição do gênero em foco, atrelada a vantagens e possibilidades de produção no contexto de ensino de língua portuguesa, bem como a descrição passo a passo de episódios de
No que diz respeito à definição de tema para uma série ou para episódios de
Nas atividades vivenciadas, a variação de formatos mostrou-se um dado saliente, com destaque para comentários individuais, apresentação e adaptações, especialmente de contação de histórias de textos literários. Outra possibilidade que foi levantada pelos professores cursistas foi a inclusão dos alunos nessa produção, em formato de painel de discussão.
Em relação ao trabalho com
Relativamente ao trabalho com esse gênero discursivo, destaquemos a seguir alguns comentários presentes nas discussões registradas na plataforma AVA.
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(Comentários postados no AVA pelos professores em formação sobre a experiência com a produção de
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Conforme comentário dos cursistas, as oficinas de letramento mostraram-se importantes para produzir o
Em uma das oficinas de letramento
No AVA, foram também inseridos: 1) os slides utilizados na formação síncrona, materiais complementares (tutoriais para gravação e edição de
Os impactos da participação nessas oficinas de letramento foram destacados na avaliação final do projeto, em que os professores apontaram a necessidade de produzir videoaulas, como um recurso de adaptação para o ensino remoto, capaz de possibilitar a ministração dos conteúdos e o desenvolvimento das práticas pedagógicas, o que lhes exigiu rapidez no domínio de ferramentas, equipamentos, recursos e tecnologias envolvidas nessa prática digital, conforme evidenciam comentários do tipo “
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[...] o projeto de extensão foi essencial, pois me deu o suporte tanto nos fundamentos da teoria para lidar com as tecnologias e os ‘multiletramentos’ como para ‘saber fazer’ na prática com os alunos, pois ‘
O Projeto de Extensão Letramento e Ensino Remoto de Língua Portuguesa contribuiu pra que eu visse o ensino remoto por uma ótica de possibilidades e não apenas de dificuldades. É verdade que, no início, foi difícil pra maioria dos professores do curso, porque muitos não dominavam as tecnologias digitais, ferramentas nem os recursos necessários pra atuar nesse novo formato de ensino. O clima era um pouco tenso e angustiante com pressão pra gente voltar, mas nem todos sabiam como iriam reassumir as atividades de sala de aula num ambiente totalmente novo, sendo obrigado a mostrar uma capacidade exigida de nós sem ter sido garantida a gente a formação necessária pra isso (nem na universidade). A verdade é que, diante de tantos desafios,
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Nas palavras de P2, ele aprendeu a
Neste projeto, conhecer tornou-se uma atividade social, embora tenhamos considerado uma dimensão individual no processo de produção do conhecimento dos professores em formação, os quais aprenderam colaborativamente, baseando-se no diálogo, na partilha de experiências, na escuta e na reflexão sobre o fazer docente. A esse respeito, fazemos nossas as palavras de Freire e Shor (1986, p. 138) quando afirmam: “[...] se o curso é iluminador, ele ativa a potencialidade criativa, na medida em que se vincula a outros esforços para a transformação na sociedade”, tornando-se, assim, emancipatório.
Por tudo isso, consideramos que o curso realizado ao longo do projeto ofereceu as bases e parâmetros para fundamentar, teórica e metodologicamente, a prática docente a inserção dos professores no universo da cultura letrada e digital, preparando-os para enfrentar os desafios do ensino remoto. Revelou-se, também, como uma experiência de caráter
Como o próprio P3 afirma, eles precisaram se
Acerca das políticas de formação docente vigentes no país, é importante destacar que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores (BRASIL, 2015), previstas na Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE/CP2/2015), orientam que a formação deve ser tratada como processo permanente e que os currículos dos cursos promovam “processos de formação do docente em consonância com as mudanças educacionais e sociais, acompanhando as transformações gnosiológicas e epistemológicas do conhecimento” (BRASIL, 2015, p. 6). Entretanto, isso ainda não ocorre a contento e, especificamente, no que tange ao uso das tecnologias digitais, conforme apontam os resultados da nossa pesquisa frente a essa realidade.
Não basta, contudo, oferecer formação aos professores para aprenderem a operar mecanicamente ferramentas da tecnologia e inovação sem refletir sobre os impactos do avanço tecnológico na vida das pessoas. Diante da realidade complexa dessa sociedade contemporânea, a formação crítica desenvolvida na reflexão sobre a ação e sobre a sua própria realidade, oferece subsídios aos formandos para o uso adequado das tecnologias, para que possam percebê-las, criticamente, sem ingenuidade. Afinal nada em educação pode ser visto sob o prisma da neutralidade. É preciso ensinar os professores em formação a observá-las atentamente, a fim de compreenderem que o progresso científico e tecnológico deve atender, antes de tudo, aos interesses humanos, para não perder sua significação, pois “esta é uma questão ética e política e não tecnológica” (FREIRE, 1996, p. 147).
A análise dos dados aponta ser preciso (re)pensar a formação continuada de professores, considerando os seguintes aspectos: 1) aproximação entre teoria e prática; 2) necessidade de domínio de recursos midiáticos e tecnológicos pelos professores; e 3) utilização de recursos de inovação e mudança, a fim de que estes possam ampliar seus letramentos digitais e dar melhores respostas às inúmeras demandas de usos sociais da linguagem que lhes são impostas no atual contexto de ensino remoto.
A esses pontos, referentes, de modo mais específico, ao letramento digital dos professores, soma-se às possibilidades de inovação, recursos que fortaleceriam os professores no sentido de que eles possam dar melhores respostas às inúmeras demandas de usos sociais da linguagem que lhes são impostas por uma sociedade cada vez mais semiotizada.
Evidenciam, também, que o trabalho com as oficinas de letramento (SANTOS-MARQUES; KLEIMAN, 2019), assumidas como organizações didáticas no contexto de formação docente potencializa a construção de saberes necessários ao
Esta experiência de formação continuada nos revelou que o processo de transformação da prática do professor ocorre na interface entre sua ação, formação e reflexão sobre a prática, a partir do domínio de conhecimentos necessários ao
Diante das lacunas observadas na formação dos professores para lidar com tecnologias na sala de aula, este estudo aponta a necessidade de se discutir uma agenda de políticas de letramento do professor nas quais que estes sejam vistos como sujeitos de conhecimento, tenham o seu direito à voz garantido e tenham seus próprios interesses e necessidades contemplados, a fim de que possam atuar, situadamente, com tecnologias digitais na condição de agentes de letramento criticamente e digitalmente letrados.
De acordo com os depoimentos e comentários analisados, os professores consideram importante articular teoria e prática e “aprender a fazer fazendo”, isto é, fazer na própria prática formativa. Em processos formativos críticos, a estratégia de articulação entre teoria e prática contribui para ampliar os letramentos dos professores. Quanto a nós, formadoras, reconhecemos como legítimo o que Nóvoa (2002) já nos diz há tempo: formar professor é processo permanente, é disposição para proporcionar novas aprendizagens. Enfim, é assumir o desafio de propor práticas inovadoras, é identificar as necessidades e interesses dos professores, potencializando sua agência de letramento.
Para isso, nos cursos de formação (inicial ou continuada), algumas perguntas deveriam nortear a prática de formadores e formandos: com que propósito pedagógico usar tecnologias na sala de aula? Em que medida isso pode ampliar os letramentos dos professores? Os objetos de ensino trabalhados no contexto formativo contribuem para empoderar os professores, capacitando-os para melhor desenvolverem suas atividades em sala de aula? No projeto de extensão realizado, observamos atentamente essas questões e percebemos, por exemplo, o quanto os professores em formação ampliaram seus letramentos digitais, conforme apontam P1, P2 e P3 nos dados aqui analisados.
Tendo em vista essas questões e os objetivos que delas decorrem, o sentido da formação docente reside, justamente, no fato de que a aprendizagem dos professores possa servir à reflexão sobre sua prática e não apenas para o domínio de habilidades e competências para lidar com tecnologias digitais. Formar professores em uma perspectiva crítica e emancipatória implica compreender a imbricada relação entre letramento e poder, compreendendo que o empoderamento “é a capacidade de pensar e agir criticamente” (GIROUX, 1999, p. 21).
Inovação é um termo de definição pouco clara e difusa. Associa-se, geralmente, a palavras como: tecnologia, economia mundial, desenvolvimento e criatividade. No plano educacional, o termo é entendido como algo que induz a mudanças funcionais e novas maneiras de perceber e abordar problemas. Trata-se, pois, de uma orientação para fazer algo diferente que envolve flexibilidade, experimentação e mudança orientada, com vistas a transformar modos de viver, pensar, agir e construir conhecimentos no cotidiano das pessoas (UNESCO, 1996). É neste sentido que assumimos o termo ‘inovação’ neste estudo.
Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-05/brasil-tem-134-milhoes-de-usuarios-de-internet-aponta-pesquisa> Acesso em 19 Fev 2021.
A compreensão de que o letramento é um fenômeno plural, sugere a noção de letramentos múltiplos correspondente à ideia de que as práticas letradas estão indexadas em diferentes ambiente e domínios, além de serem constituídos por diferentes sistemas semióticos (OLIVEIRA; KLEIMAN, 2008, p. 8).
De acordo com
Letramento crítico aqui se associa “a uma política de auto empoderamento e a uma ética do cuidado” (JANKS, 2013, p. 227).
A noção de
Considerando-se o favorecimento da prática pedagógica nesse novo contexto, o foco nas tecnologias digitais deu-se, porque, de acordo com dados de questionário aplicado no âmbito do projeto de extensão, somente 30,2% dos respondentes (equivalente ao número de 182 cursistas) afirmaram já utilizá-las em sala de aula antes do ensino remoto.
Os três gêneros discursivos se constituem por meio do uso de ferramentas de áudio e imagem e pela comunicação
Este gênero foi explorado na oficina 2 realizada em encontro síncrono no dia 08 de dezembro de 2020. Tinha como objetivo de aprendizagem discutir materiais didáticos para o ensino remoto, apresentar possibilidades de uso do
A oficina de letramento 1 foi realizada, de modo síncrono, no dia 25 de agosto de 2020.