Práticas de escrita na universidade: um olhar para os letramentos acadêmicos na produção do TCC

Laura Silveira Botelho,
Leonardo José de Almeida Silva

Resumo

O objetivo desta pesquisa é investigar sobre as práticas de escrita em Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) desenvolvidos por estudantes de licenciatura, de diferentes campos disciplinares, em uma Universidade pública. Para isso, analisamos os TCC a partir das orientações de documentos prescritivos da formação inicial de professores. Os pressupostos teóricos foram baseados nos princípios do Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART, 2010; DOLZ; SCHNEUWLY, 2004; MACHADO, 2007), assim como nos estudos dos letramentos acadêmicos (STREET, 2014; LEA; STREET, 2014; BOTELHO, 2016). A metodologia está vinculada a uma perspectiva qualitativa de pesquisa de cunho interpretativista, sob o viés da Linguística Aplicada. A análise do corpus foi realizada em duas etapas: (1) uma investigação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e dos Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPC) de Geografia, Música e Pedagogia (2) uma investigação de exemplares de TCC de estudantes dessas licenciaturas. Os resultados demonstram interpretações distintas acerca do gênero monografia orientado pelos documentos prescritivos, além de uma influência direta das práticas advindas de estágios e projetos de extensão na produção dos textos. Pudemos notar, também, que a elaboração do TCC como requisito para a obtenção do grau de licenciatura pode colaborar como uma oportunidade de iniciação científica dos futuros professores

Introdução

Nas últimas décadas, cientistas da linguagem e da educação vêm se dedicando de forma sistemática a respeito do ensino da escrita de gêneros acadêmicos e isso pode ser confirmado pela variedade de publicações acerca dessas temáticas. Considerando esses estudos de gênero a partir de sua relação com os comportamentos sociais possibilitados pelo uso da linguagem e a fim de legitimar a relação entre ensino e pesquisa nas instituições de ensino brasileiras, neste trabalho investigamos sobre documentos prescritivos voltados para a formação inicial e continuada de professores, além de analisarmos textos acadêmicos produzidos por alunos nesse contexto.

É, portanto, a partir dessa conjuntura que apresentamos esta pesquisa proveniente de um estudo1 mais amplo que tem por objetivo investigar sobre a produção de gêneros acadêmicos elaborados por estudantes de graduação em diferentes campos do conhecimento e, principalmente, no contexto de formação docente. A pergunta que nos guia poderia ser, então, assim colocada: de que forma os estudantes de graduação de licenciaturas desenvolvem suas práticas de escrita na produção de gêneros acadêmicos?

Buscando elucidar tal questão, decidimos fazer um levantamento das principais convenções de escrita presentes em Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) de graduandos das licenciaturas dos cursos de Geografia, Música e Pedagogia de uma universidade pública brasileira. Optamos por analisar os TCC2 pelo fato de serem, muitas vezes, uma das oportunidades de iniciação do discente no campo da pesquisa, seja ao escrever um artigo científico ou uma monografia. Além disso, essa limitação do corpus, referente aos cursos supracitados, nos permitiu guiar a pesquisa para resultados mais condizentes com o objetivo do projeto. Analisamos, também, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) de 2015 e os Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPC), documentos de caráter prescritivo que abordam a forma em que a pesquisa, assim como a produção dos gêneros acadêmicos, se fazem presentes nos currículos das graduações.

Quanto ao aporte teórico-metodológico, utilizamo-nos do Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART, 2010[1]; DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[2]; MACHADO, 2007[3]) como embasamento crítico para que nossa análise fosse devidamente fundamentada, assim como das teorias relacionadas aos estudos dos letramentos acadêmicos (STREET, 2014[4]; LEA, STREET, 2014[5]; BOTELHO, 2016[6]). Em um primeiro momento, fizemos uma análise documental das DCN de 2015 e dos PPC referentes às três licenciaturas estudadas. Posteriormente, partimos para uma análise textual dos TCC escritos por estudantes de graduação e disponibilizados pelas coordenadorias dos cursos em questão.

Visando a uma discussão crítica a respeito de todos esses aspectos relacionados à escrita acadêmico-científica na formação docente, este artigo apresenta, em um primeiro momento, os pressupostos teóricos relacionados ao Interacionismo Sociodiscursivo, em que são abordadas questões relacionadas aos estudos de gêneros e sua relação com o ensino e a aprendizagem da escrita no ensino superior. Em sequência, discutimos sobre os letramentos acadêmicos e sua relação com a leitura e a escrita como práticas sociais. Segue-se, então, uma breve exposição de nossa metodologia utilizada, a qual tem natureza qualitativa baseada nos pressupostos da Linguística Aplicada. Por fim, após a análise dos textos dos alunos, são apresentadas nossas considerações finais a respeito da pesquisa.

1. O Interacionismo Sociodiscursivo (ISD)

Fundada por J. P. Bronckart, professor da Universidade de Genebra, a teoria do ISD começou a ser projetada a partir da década de 1980, quando a postura teórica referente ao ensino de língua deixava de se limitar aos conceitos estruturalistas e gramaticais e passava a considerar como objeto de estudo uma unidade mais ampla, transfrástica, a saber, o texto (MACHADO, 2007)[3].

Baseado no Interacionismo social de Vygotsky, segundo o qual há uma relação mediada entre o ser humano e o mundo, assim como nos princípios de interação socioverbal de Bakhtin, o ISD se apresenta como um quadro teórico-metodológico de característica transdisciplinar e, nas palavras de Bronckart (1999)[7], é um desdobramento do interacionismo social, caracterizando-se como uma Ciência do Humano. Machado (2007)[3] explica que, desviando-se da tendência de fragmentar as ciências humanas em áreas específicas do saber, o ISD defende que “o desenvolvimento dos indivíduos ocorre em atividades sociais, em um meio constituído e organizado por diferentes pré-construídos e através de processos de mediação” (MACHADO, 2007, p. 24)[3]. Dessa forma, o ser humano se desenvolve e se torna sujeito a partir do uso da linguagem, ferramenta mediadora das práticas discursivas presentes no mundo em que vivemos.

É devido a essa função de mediação da linguagem a respeito do desenvolvimento humano que o ISD argumenta a favor de uma abordagem didática de caráter “descendente” em relação ao ensino de línguas e, mais especificamente, à produção de texto. Em oposição às metodologias tradicionais que tendem por partir de unidades gramaticais descontextualizadas e, por isso mesmo, abstratas, para só então chegar às questões de expressão e de redação, o ISD propõe um enfoque primário na compreensão e na análise dos gêneros, entidades de caráter funcional e empiricamente observáveis do quotidiano do aluno (BRONCKART, 2010)[1].

Considerando o enfoque do trabalho didático com o texto, Dolz e Schneuwly (2004)[2], pertencentes à escola de Genebra, caracterizam o gênero como um instrumento da comunicação utilizado pelo sujeito que fala e escreve em determinada situação definida por uma série de parâmetros. Ainda segundo os autores, na proposta do ISD, a atividade é constituída de três polos: “a ação é mediada por objetos específicos, socialmente elaborados, frutos das experiências das gerações precedentes, através dos quais se transmitem e se alargam as experiências possíveis” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 21)[2]. Nesse sentido, não cabe à pessoa criar um gênero de acordo com sua necessidade discursiva, mas, sim, inserir-se num paradigma discursivo preestabelecido para que possa produzir e compreender os textos.

O modelo analítico desenvolvido por Bronckart (1999)[7] e seus colaboradores pressupõe um corpus de diferentes textos do mesmo gênero considerando-se, ainda, o contexto de produção e o que o autor denomina de “folheado textual”. O folheado textual é constituído por três camadas superpostas: a infraestrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos e envolve um conjunto de aptidões requeridas na produção e compreensão de um gênero, chamado de capacidades de linguagem (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004)[2].

Assim, de acordo com os autores genebrinos, as capacidades de linguagem podem ser de ação, discursivas e linguístico-discursivas. A capacidade de ação é aquela em que se mobiliza o contexto de circulação social do gênero e de interação entre os interlocutores; já a capacidade discursiva é aquela em que se identificam os modelos discursivos decorrentes da produção e compreensão do gênero, considerando-se o plano global do texto e seu conteúdo temático; as capacidades linguístico-discursivas são as características que envolvem unidades linguísticas do gênero e as operações psicolinguísticas dele decorrentes (por exemplo, reconhecimento e uso de aspectos de coesão e coerência, modalizações, recursos sintáticos etc.).

Cristóvão e Stutz (2011)[8] propõem uma ampliação do conceito de capacidades de linguagem, apresentando as capacidades de significação que, segundo as autoras, levam em conta aspectos ideológicos, históricos e culturais. As capacidades de significação, portanto, possibilitam aos sujeitos uma compreensão mais ampliada em termos de atividade geral da linguagem. Em 2015, durante uma comunicação oral, Dolz propõe as capacidades multissemióticas, caracterizadas como aquelas que “envolvem conceitos epistemológicos que aparecem veiculados em imagens, sons, vídeos e nas tecnologias digitais de forma geral” (LENHARO, 2016, p. 30)[9]. Dessa maneira, os aspectos multimodais dos textos são ressaltados nessa capacidade. As cinco capacidades de linguagem, é relevante destacar, são articuladas entre si e complementares.

É neste quadro de apontamentos sobre gêneros e as capacidades de linguagem que foram propostos modelos didáticos que visam possibilitar, de forma mediada, o trabalho com a produção de texto no ensino de língua materna sob o viés do ISD. Formuladas a partir dos estudos de Bronckart em 1985 e desenvolvidas, principalmente por Dolz e Schneuwly (2004), as sequências didáticas (SD), de forma resumida, buscam ensinar a produção e a recepção de gêneros textuais. No contexto brasileiro, por exemplo, a aplicação de SD no ensino da língua portuguesa parte de uma tentativa de reforma dos programas e dos métodos de ensino de língua materna. Um dos exemplos inseridos nessa demanda política e social é a Olimpíada de Língua Portuguesa3 a qual, por meio da formação de professores, objetiva melhorar as capacidades de leitura e escrita dos alunos do Ensino Fundamental (BRONCKART, 2010)[1].

Baseado no mesmo projeto de ensino descendente já comentado, o método de trabalhar com as SD, de acordo com Bronckart (2010)[1] busca

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articular intimamente os processos de expressão e de estruturação, colocando-se os segundos a serviço dos primeiros. Todas as sequências começam e terminam com atividades de produção (e de reconhecimento) textual e as diversas aprendizagens linguísticas, a serem feitas no quadro de exercícios reunidos em módulos intermediários, são escolhidas e concebidas na medida em que puderem servir de apoio técnico às capacidades de expressão (BRONCKART, 2010[1], p. 173, grifos do autor).

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Faz-se importante, também, ressaltar o princípio de relação teórico-prática referente à proposta do ISD. Machado (2007)[3] cita Bronckart ao afirmar que toda pesquisa baseada nessa teoria tem índole ao mesmo tempo teórica e aplicada ao buscar intervir em situações concretas de análise baseando-se em reflexões epistemológicas por meio das quais sejam testados os dados obtidos. É o que buscamos fazer com esta pesquisa ao analisarmos textos a partir desses fundamentos teóricos e ao refletirmos sobre as práticas que envolvem os contextos de produção do gênero acadêmico investigado.

2. Os letramentos acadêmicos e as práticas de escrita no ensino superior

Os estudos sobre os letramentos acadêmicos tiveram início na década de 1990, no Reino Unido. Neste contexto, sob a perspectiva dos Novos Estudos de Letramento, os processos de escrita e leitura já eram considerados a partir de um viés social e ideológico presente no ensino básico das escolas. Começou-se, então, a discutir as questões referentes aos letramentos também no meio acadêmico (LILLIS; SCOTT, 2008)[10].

No Brasil, após serem ampliadas as possibilidades de acesso ao ensino superior graças aos programas como o Prouni4 e o Fies5, houve uma mudança no perfil dos alunos que ingressavam nas Universidades e, consequentemente, novas demandas pedagógicas relacionadas à inserção desses estudantes no meio acadêmico. Foi nesse momento que questões referentes ao ensino de leitura e escrita tiveram de ser desenvolvidas considerando não só modelos de déficit, mas, sim, métodos de cunho científico, com suas próprias epistemologias. Portanto, assim como o ISD, os estudos sobre os letramentos acadêmicos também se referem a um campo de pesquisa aplicada (STREET, 2010[11]; BOTELHO, 2016[6]).

Ao analisar os processos de leitura e escrita dos estudantes como práticas sociais, os letramentos acadêmicos deixam de se limitar aos métodos tradicionais de caráter psicológico e behaviorista, buscando, então, considerar também as relações de poder e as ideologias institucionais presentes na Academia. Dessa forma, deixam de ser relevantes juízos sobre leitura e escrita boa ou ruim e passam a ser enfatizadas as práticas discursivas que permeiam tais atividades (STREET, 2010)[11].

Tais perspectivas sobre os letramentos são possíveis graças a um conjunto de pesquisas etnográficas desenvolvidas na década de 1970, por Brian Street (1984)[12], onde foram elaborados dois conceitos básicos sobre os estudos dos letramentos: o modelo autônomo e o ideológico.

No primeiro modelo, a perspectiva sobre os letramentos considera as práticas de leitura e escrita como individuais e predomina-se uma visão de aprendizagem tecnicista, que visa à neutralidade do ensino. Segundo Street (2014)[4], o letramento autônomo ocorre quando há

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o distanciamento entre a língua e sujeitos – as maneiras como a língua é tratada como se fosse uma coisa, distanciada tanto do professor quanto do aluno e impondo sobre eles regras e exigências externas, como se não passassem de receptores passivos; usos metalinguísticos – as maneiras como os processos sociais de leitura e escrita são referenciados e lexicalizados dentro de uma voz pedagógica como se fossem competências independentes e neutras, e não carregadas de significação para as relações de poder e para a ideologia (STREET, 2014, p. 129-130)[4].

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Nessa perspectiva autônoma, o processo de escrita se resume a um “produto” independente dos contextos de produção que o permeiam.

Já o modelo ideológico, de acordo com Street (2014)[4], se opõe ao anterior por considerar os aspectos sociais presentes em todas as práticas de letramentos. Assim, qualquer prática de letramento deve ser compreendida a partir das estruturas culturais e políticas (de poder) que as representam.

Nesse panorama de mudança metodológica sobre ensino de leitura e escrita (de um viés técnico e superficial para um social e ideológico), Lea; Street (2014)[5] definem três modelos referentes à escrita no ensino superior: modelo de habilidades de estudo, de socialização acadêmica e de letramentos acadêmicos.

O modelo de habilidades de estudo, nas palavras dos autores, “concentra-se nos aspectos da superfície da forma da língua e pressupõe que estudantes podem transferir seu conhecimento de escrita (...) de um contexto para o outro, sem quaisquer problemas” (LEA; STREET, 2014, p. 479)[5]. Trata-se, portanto, de um modelo de letramento autônomo, o qual concebe a escrita pura e simplesmente como habilidade individual. Um exemplo de prática didática baseada neste modelo é o ensino de língua limitado ao seu aspecto formal apenas, como uma aula de gramática descontextualizada.

Já o modelo de socialização acadêmica refere-se, nas palavras dos autores,

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ao processo de aculturamento de estudantes em discursos e gêneros baseados nos temas e nas disciplinas. Supõe que os discursos disciplinares e os gêneros são relativamente estáveis e, uma vez que os estudantes tenham aprendido e entendido as regras básicas de discurso acadêmico particular, estão aptos a reproduzi-lo sem obstáculo (LEA; STREET, 2014, p. 479)[5].

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Nessa perspectiva, o ensino superior se apresenta como um novo ambiente cultural no qual o estudante, a partir da mediação do professor, deve se alocar.

O terceiro modelo, o de letramentos acadêmicos, se caracteriza pela sua índole social e discursiva, tendo relação direta com a produção de sentido, com a autoridade, o poder e a identidade presente no contexto do ensino superior. Segundo os autores, esse modelo

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assemelha-se, em muitos aspectos, ao modelo de socialização acadêmica, exceto pelo fato de considerar os processos envolvidos na aquisição de usos adequados e eficazes de letramento como mais complexos, dinâmicos, matizados, situados, o que abrange tanto questões epistemológicas quanto processos sociais, inclusive relações de poder entre pessoas, instituições e identidades sociais (LEA; STREET, 2014, p. 479)[5].

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Baseado nos Novos Estudos de Letramentos supracitados, o terceiro modelo enfatiza a relação da escrita do estudante com o meio acadêmico em que está inserido, levando em consideração as relações de poder que se fazem presentes. Street (2010, p. 347)[11] defende que se consolidem “tradições nos modos pelos quais professores dão apoio aos seus alunos no que diz respeito às exigências da escrita acadêmica”. Logo, uma abordagem de ensino baseada nos princípios dos letramentos acadêmicos considera as diferentes experiências e recursos que os alunos trazem ao entrar no ensino superior, por exemplo.

Como podemos notar, assim como ocorre no ISD, as perspectivas adotadas pelas teorias de letramentos acadêmicos negam a neutralidade dos textos presentes no sistema educacional. Portanto, ambas teorias consideram relevante analisar documentos de caráter prescritivo, os quais compõem parte do corpus de nossa pesquisa. Nas palavras de Machado (2007)[3]:

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a atitude do linguista não deve ser a de aceitação pura e simples do que é veiculado pelos textos de prescrição educacional. Faz-se necessária uma atitude analítica e crítica não só em relação aos conteúdos científicos selecionados, mas também quanto à forma como são transpostos, quanto às diretrizes, às finalidades, aos procedimentos e ao papel do professor, que são preconizados pelos documentos oficiais, desvelando a pretensa neutralidade desses documentos e as influências de outras atividades sociais e das ideologias subjacentes (MACHADO, 2007, p. 31)[3].

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Dessa forma, uma leitura crítica dos documentos orientadores inseridos no contexto da prática e da formação docente pode servir para a consideração de vários discursos que influenciam nas tomadas de decisões tanto na preparação de currículos quanto nas práticas de ensino presentes no meio acadêmico.

Na próxima seção, apresentamos a abordagem metodológica utilizada para que nossa análise documental fosse possível.

3. Abordagem metodológica

Os pressupostos metodológicos que foram adotados para o desenvolvimento dessa pesquisa são baseados na perspectiva qualitativa. Dizer que uma pesquisa é qualitativa significa dizer que foram consideradas, durante todo o processo de geração e interpretação do corpus analisados, as diversas partes inseridas no contexto em que os fenômenos investigados ocorrem (GODOY, 1995)[13].

Vale ressaltar que, pelo fato de tal método abarcar os diferentes aspectos sociais envolvidos, é comum ao pesquisador seguir uma trajetória de análise que parte do geral para o particular. Assim, de acordo com Godoy (1995, p. 21)[13], “partindo de questões amplas que vão se aclarando no decorrer da investigação, o estudo qualitativo pode (...) ser conduzido através de diferentes caminhos”.

Ainda segundo Godoy (1995)[13], a abordagem qualitativa oferece três diferentes possibilidades de se realizar pesquisa: a etnografia, o estudo de caso e a pesquisa documental, a qual se refere o nosso trabalho. Nas palavras da pesquisadora, a respeito da pesquisa documental, “três aspectos devem merecer atenção especial por parte do investigador: a escolha dos documentos, o acesso a eles e a sua análise” (GODOY, 1995, p. 23)[13].

Pensando neste contexto, a geração de dados para nossa pesquisa se deu a partir da leitura crítica de três conjuntos de documentos, que foram 1) as DCN; 2) os PPC de Geografia, Música e Pedagogia e 3) dois TCC. A escolha de cada um desses instrumentos obedeceu a determinada finalidade, a saber:

  1. As DCN (BRASIL, 2015), disponibilizadas pelo site do Ministério da Educação (MEC), foram analisadas com o intuito de melhor compreendermos sobre as orientações oficiais que norteiam a formação inicial dos professores;
  2. Os PPC6 de Geografia, Música e de Pedagogia, disponibilizados pelos sites de suas respectivas coordenadorias, foram reunidos com o intuito de compará-los com os dizeres contidos nas Diretrizes e, mais especificamente, de investigar o que de fato é orientado aos cursos a respeito da pesquisa e da produção científica no contexto acadêmico;
  3. Os TCC escritos por ex-estudantes de graduação foram analisados a fim de identificarmos determinadas nuances relacionadas ao processo de escrita acadêmica tais como a infraestrutura composicional do gênero, a manifestação do ponto de vista dos autores e o monitoramento de vozes.

Buscamos, a partir da análise do corpus, compreender de que forma os estudantes desenvolvem a escrita científica dentro desse contexto constituído por diferentes práticas de letramentos.

A seguir, passaremos a discutir sobre a análise dos documentos supracitados.

4. Das DCN aos PPC: o que dizem os documentos orientadores

Como já mencionado anteriormente, um dos princípios analíticos do ISD orienta a análise de textos inseridos no contexto do trabalho docente ou, mais especificamente, como passaremos a nos referir, na atividade educacional. Conforme salienta Machado (2007)[3], cabe ao professor pesquisador fazer o enfoque no “estudo permanente dos aportes das ciências da linguagem (...), assim como o desenvolvimento de pesquisas próprias sobre o funcionamento dos textos nessas situações” (MACHADO, 2007, p. 25)[3]. Tal argumento justifica nossa escolha por analisar documentos de caráter prescritivo e oficial, como as DCN e os PPC.

Segundo Machado (2007)[3], ancorada em Bronckart, a atividade educacional é constituída por três níveis que devem ser considerados ao procedermos às análises. Os três níveis são: o sistema educacional, os sistemas de ensino e os sistemas didáticos. No nível do sistema educacional estão situadas as diretrizes governamentais formuladas por órgãos oficiais como o MEC, por exemplo. Os sistemas de ensino compreendem os estabelecimentos de ensino e os instrumentos didáticos utilizados para que os objetivos do sistema educacional sejam atingidos. Por fim, no nível dos sistemas didáticos estão envolvidas as classes que constituem o trabalho docente, ou seja, o próprio professor, os alunos e os objetos de ensino, os quais, nesta pesquisa, consideramos os gêneros acadêmicos utilizados para a escrita dos TCC dos graduandos.

Com o intuito de melhor ilustrar esses conceitos associados ao nosso corpus de análise, formulamos o seguinte esquema:

Figure 1. FIGURA 1 – Níveis da atividade educacional Fonte: Baseada no esquema proposto por Machado (2007, p. 26)

De acordo com esse esquema, nota-se que os três níveis se inter-relacionam e que, por isso mesmo, são interdependentes. Dessa forma, se há determinada alteração em uma das partes que o constitui, as demais também são influenciadas.

Diante desse contexto, iniciamos nossa análise por um dos documentos referentes ao sistema educacional brasileiro, as Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2015)[14]. Voltadas para a formação inicial de professores em nível superior e também para a formação continuada, as Diretrizes prescrevem fundamentos, procedimentos e princípios direcionados à gestão dos cursos de licenciatura do país. Sob essa perspectiva, em um capítulo de livro sobre formação docente e ensino de Língua Portuguesa, Oliveira (2019)[15], em sua análise sobre as DCN, conclui que

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refletir sobre a formação docente significa também refletir sobre pontos essenciais na formação e no desenvolvimento do humano, seja por meio das linguagens, das práticas vividas nos espaços legítimos de ensino e na perspectiva que considera que todo professor é também fazedor de pesquisa e de ciência (OLIVEIRA, 2019, p. 210)[15].

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Desse modo, pesquisar textos que permeiam o sistema educacional no qual nos inserimos possibilita refletir sobre as diversas questões que envolvem a formação docente. Tal exercício de pesquisa e reflexão baseada na linguagem, por sua vez, justifica os ideais do ISD já apresentados.

Considerando tais princípios analíticos, as DCN propõem eixos que orientam a formação inicial e continuada de professores, destacando alguns pilares do magistério, tais como a relação necessária entre a teoria e a prática, além da formação interdisciplinar dos licenciandos.

As próprias Diretrizes ressaltam, também, sobre a importância de os documentos oficiais que instruem a atividade educacional se dialogarem de acordo com suas propostas:

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As instituições de ensino superior devem conceber a formação inicial e continuada dos profissionais do magistério da educação básica na perspectiva do atendimento às políticas públicas de educação, às Diretrizes Curriculares Nacionais (...) e seu Projeto Pedagógico de Curso (PPC) como expressão de uma política articulada à educação básica, suas políticas e diretrizes (BRASIL, 2015, p. 3)[14].

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Observamos também, nas Diretrizes, a relevância referente à proposta de articulação entre graduação e pós-graduação e entre pesquisa e extensão como princípios essenciais da prática educativa. Defendemos, então, que a produção do TCC é uma das práticas que promovem o desenvolvimento do conhecimento científico durante o processo de formação de profissionais da educação.

Já no que diz respeito à relação do ensino com o trabalho científico, segundo as DCN,

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as atividades do magistério também compreendem a atuação e participação na organização e gestão de sistemas de educação básica e suas instituições de ensino, englobando [a] produção e [a] difusão do conhecimento científico-tecnológico das áreas específicas e do campo educacional (BRASIL, 2015, p. 9)[14].

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Dessa forma, fica evidente o papel de pesquisador que o professor em formação também deve manter. Portanto, a possibilidade da produção científica a partir da escrita do TCC dialoga com as prescrições dos documentos oficiais inseridos no sistema educacional brasileiro.

Com base no estudo das DCN, comparamos os PPC dos cursos de licenciatura em Geografia, Música e Pedagogia, respectivamente. Buscamos, por meio de uma leitura crítica desses documentos, conferir de que forma suas orientações dialogam com as propostas encaminhadas pelas Diretrizes a respeito da pesquisa e da produção científica para os cursos de formação de professores.

Em primeiro lugar, destacamos que os PPC dos cursos de Música e Pedagogia definem o gênero monografia a ser produzido pelos alunos. A escolha de tal gênero condiz com os pressupostos defendidos pelas DCN a respeito do ensino e da difusão científica a qual deve estar presente nos cursos de licenciatura. Dizemos isso pois, segundo as Diretrizes, os egressos dos cursos de licenciatura devem estar aptos a “identificar questões e problemas socioculturais e educacionais, com postura investigativa, integrativa e propositiva em face de realidades complexas, a fim de contribuir para a superação de exclusões sociais” (BRASIL, 2015, p. 8)[14].

Acreditamos que, de fato, um trabalho da complexidade de uma monografia auxiliaria em um desenvolvimento profissional mais crítico e investigativo por parte do graduando. O que talvez não ocorra na produção de um relatório de estágio, como o proposto para o TCC do curso de licenciatura em Geografia da mesma Instituição, o qual, a princípio, pretendíamos incluir nesta análise. Não o fizemos porque, enquanto realizávamos a geração de nosso corpus descobrimos uma peculiaridade: diferente dos cursos de Música e de Pedagogia, o curso de Geografia propunha a escrita de um “texto científico” para o TCC voltado apenas à modalidade do bacharelado, cabendo aos graduandos da licenciatura a entrega de um relatório final de estágio. Essa nuance nos levou a refletir sobre a concepção de pesquisa no contexto acadêmico e sua relação com a formação de professores pois, embora as Diretrizes defendam a iniciação científica nos cursos de magistério, cabem às faculdades decidir a forma que isso será colocado em prática.

Vale salientar que, com esse levantamento, não insinuamos uma falta de comprometimento do currículo do curso para com as prescrições das DCN, uma vez que é possível a qualquer aluno da Universidade o envolvimento em atividades científicas durante sua graduação. Apenas chamamos a atenção para essa diferença das escolhas do gênero selecionado para a produção do TCC de cada faculdade, pois, embora um relatório possua suas características essenciais para a reflexão crítica do estagiário, seus propósitos comunicativos se diferem dos presentes em um trabalho de natureza científica. Por esse motivo, deixamos de incluir a análise dos textos do curso de Geografia, embora a ausência do gênero monografia na licenciatura indicie uma concepção de que apenas o bacharelado faz pesquisa e licenciatura não faz.

Voltando à interpretação dos documentos prescritivos, pudemos notar que o próprio PPC do curso de Música, por exemplo, parece ressaltar essa dependência entre formação inicial de professores e a necessidade de “fazer ciência”. Ao apresentar as condições referentes à produção do TCC, o documento defende que,

Figure 2. FIGURA 2 – Recorte do PPC do curso de Música

Ainda considerando o documento supracitado, notamos que também são reservadas para a abordagem da pesquisa duas disciplinas: Oficina de Projetos I (desenvolvida no quinto período do curso) e Oficina de Projetos II (desenvolvida no sexto período do curso). Essas oficinas, como colocado no texto, visam a atender, entre outras, às demandas específicas do estudo e elaboração da monografia. Esse PPC também prescreve sobre a função dessas oficinas de integrar teoria e prática ao campo de conhecimento da pesquisa, ideal também presente nos dizeres das DCN que defendem a importância da “articulação entre a teoria e a prática no processo de formação docente, fundada no domínio dos conhecimentos científicos e didáticos, contemplando a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (BRASIL, 2015, p. 4)[14].

Assim como no PPC do curso de Música, o do curso de Pedagogia também cita a necessidade da prática de pesquisa durante a graduação dos futuros professores, além de também contemplar a integração entre teoria e prática voltada para a produção científica do estudante:

Figure 3. FIGURA 3 – Recorte do PPC do curso de Pedagogia

Essa atividade citada pelo documento se refere a três unidades curriculares voltadas para a pesquisa e a prática pedagógica que o currículo da Pedagogia, assim como o da Música, propõe. Elas visam, mais uma vez, possibilitar aos alunos a incorporação de conhecimentos teóricos e as ações da própria prática docente.

Foi possível observar, feita a comparação das DCN com os PPC, como o princípio de inter-relação entre o sistema educacional e os sistemas de ensino é evidente. Logo, as orientações prescritas pelas Diretrizes são refletidas em diversas passagens dos currículos, os quais reafirmam os ideais referentes à relação teoria/prática, assim como a necessidade da iniciação científica nos cursos de licenciatura.

No próximo item, damos sequência com a análise dos TCC.

5. Análise dos trabalhos de conclusão de curso

Levando em consideração o princípio de inter-relação entre os três níveis constituintes da atividade educacional na perspectiva do ISD, investigamos dois TCC de cursos distintos (Música e Pedagogia) com o intuito de verificar se a perspectiva dos letramentos acadêmicos prescrita pelos documentos orientadores estava presente também no nível dos sistemas didáticos. Visando à proteção da imagem dos autores dos trabalhos, optamos por não os identificar nesta pesquisa.

O primeiro TCC analisado (TCC 1) se refere ao curso de licenciatura em Pedagogia e foi produzido por duas alunas. A pesquisa tem como tema a discussão sobre a evasão escolar no município de Tiradentes (MG). Já o segundo TCC analisado (TCC 2), referente ao curso de licenciatura em Música, foi escrito por um único aluno, o qual pesquisou sobre o desenvolvimento musical de um adolescente em condição de abrigado no município de São João del-Rei (MG).

Após investigarmos esses textos, foi possível estabelecer três categorias de análise: a infraestrutura composicional do gênero, as motivações das pesquisas e o gerenciamento de vozes.

(a) Infraestrutura composicional do gênero:

No que se refere à estruturação dos textos analisados, observamos que o TCC 1 tem um total de 20 páginas e que possui, além de um resumo, um sumário, uma introdução, os objetivos, a fundamentação teórica, a metodologia, a análise, as considerações finais e as referências bibliográficas:

Figure 4. FIGURA 4 – Recorte do TCC 1

O TCC 2, por sua vez, tem um total de 38 páginas e possui os mesmos elementos supracitados, além de um apêndice e um conjunto de figuras e gráficos:

Figure 5. FIGURA 5 – Recorte do TCC 2

Comum em produções científico-acadêmicas, todas essas seções presentes em ambos os textos tornam possível a transformação dos estudos levantados e das informações obtidas pelos autores em conhecimento científico passível de circulação na sociedade. Percebemos, a partir da observação do sumário e do texto como um todo, que algumas características das capacidades discursivas podem ser vislumbradas, como a capacidade de “entender a função da organização do conteúdo nos textos” e “reconhecer a organização do texto como layout” (CRISTÓVÃO; STUTZ, 2011, p. 20)[8].

Embora essa infraestrutura comum aos textos correspondesse ao gênero monografia, notamos, no resumo do TCC 1, que as autoras se referem ao próprio texto como um artigo e não como uma monografia, que é o gênero proposto pelo próprio PPC de Pedagogia:

Figure 6. FIGURA 6 – Recorte do TCC 1

É importante ressaltar que, embora tanto a monografia quanto o artigo sejam de caráter científico, eles se diferem no que diz respeito à sua estrutura e à sua circulação social. Segundo Botelho (2016)[6], a monografia “é maior que um artigo [e] (...) pode, ainda, desdobrar-se [nesse], reduzindo-se o seu tamanho e fazendo adaptações necessárias para a publicação em periódicos” (BOTELHO, 2016, p. 111)[6]. A pesquisadora também explica que o texto monográfico é geralmente menos acessível se comparado ao artigo, uma vez que tende a ficar restrito “às bibliotecas da própria instituição, sendo consultadas por alunos e professores com interesse no tema ou servindo como modelos para futuros trabalhos” (BOTELHO, 2016, p. 110)[6].

Consideramos, então, que o modo de circulação de um gênero é uma característica importante e influencia seu modo de produção. Entretanto, no caso específico dos cursos analisados, enquanto buscávamos pelos TCC, não foi possível encontrá-los nem mesmo dentro das bibliotecas da universidade. Os textos foram compartilhados por e-mail, após nossa solicitação às coordenadorias, o que indica que sua circulação é ainda mais restrita.

(b) Motivações das pesquisas:

Uma característica que se mostrou interessante é o fato de que em ambos trabalhos a motivação da pesquisa emerge de atividades de extensão. Consideramos relevante tal informação porque, de certa forma, ela indica, ao menos nos textos analisados, um alinhamento das atividades dos TCC com os PPC e com as DCN. Dessa forma, as atividades de ensino, pesquisa e extensão evidenciam-se articuladas nos textos desenvolvidos pelos estudantes.

Logo na introdução do TCC 1, notamos que as experiências advindas das práticas de estágio das alunas serviram de incentivo para a escrita do texto. De acordo com as autoras, os questionamentos que as levaram a optar pela temática da pesquisa provieram de comentários de professores e gestores sobre os casos de infrequência dos alunos:

Figure 7. FIGURA 7 – Recorte do TCC 1

Diante desse contexto, ao menos no que diz respeito à articulação entre teoria e prática na formação docente, constatamos que o TCC supracitado aponta certa harmonia entre as prescrições das DCN e as orientações do PPC de Pedagogia.

Também observamos essa relação no TCC 2, em que o autor, no resumo do texto, comenta seu envolvimento com um projeto de extensão realizado em sua universidade:

Figure 8. FIGURA 8 – Recorte do TCC 2

Foi possível constatar, conforme analisávamos o texto, que a aplicação do modelo de análise utilizada pelo pesquisador se relacionava e dependia intimamente da experiência a longo prazo possibilitada pelo projeto de extensão que envolvia sua pesquisa. Segundo o autor, a metodologia foi aplicada durante um período de três semestres, em que eram formuladas oficinas seguidas de gravações das criações musicais feitas pelo adolescente.

Cabe notar, ainda, que os autores de ambos os TCC ao definirem as temáticas de suas pesquisas de experiências extensionistas, evidenciam as capacidades de significação, pois é possível identificar “as imbricações entre atividades praxiológicas e de linguagem” além das “relações estabelecidas entre textos-contextos” (CRISTÓVÃO; STUTZ, 2011, p. 21)[8].

A relação entre ensino, pesquisa e extensão abordada nesse TCC dialoga tanto com os dizeres das DCN, já comentados, quanto com os do PPC de Música, o qual defende que

Figure 9. FIGURA 9 – Recorte do PPC do curso de Música

De fato, como já mencionamos na análise desse PPC, existem disciplinas voltadas especificamente para os TCC dos futuros professores de música. Acreditamos que tal preocupação com o ensino e a aprendizagem do gênero contribui para o processo de elaboração da monografia e, consequentemente, para a inserção do licenciando nas práticas de pesquisa.

(c) Gerenciamento de vozes:

O processo de inserção de vozes e do ponto de vista dos autores também nos chamou a atenção durante a análise. No TCC 1, por exemplo, há o predomínio da primeira pessoa do plural quanto à referência do ponto de vista das autoras:

Figure 10. FIGURA 10 – Recorte do TCC 1

Já no TCC 2, são intercalados os usos da primeira pessoa do singular e do plural:

Figure 11. FIGURA 11 – Recorte do TCC 2

Figure 12. FIGURA 12 – Recorte do TCC 2

Embora o uso da terceira pessoa seja tradicionalmente mais esperado na escrita científica, concordamos com Botelho (2016)[6], a qual defende a ideia de que todas essas escolhas possuem credibilidade, uma vez que “o usuário dispõe de inúmeras alternativas formais para configurar a redação do texto acadêmico sendo possível combinar um ou outro modo de expressar o ponto de vista” (SCHLEE, 2010, p. 81-82)[16].

Outro fenômeno, ocorrido no TCC 1, também nos chamou a atenção. Observamos que a pesquisa termina com uma interrogação das autoras, as quais finalizam o texto declarando a inviabilidade de discussão a respeito de a evasão escolar constituir ou não um problema social:

Figure 13. FIGURA 13 – Recorte do TCC 1

É possível identificar aí uma estratégia discursiva muito comum em textos acadêmicos. No momento em que as autoras afirmam que não foi viável encontrar uma resposta para determinada questão levantada em sua pesquisa, elas evitam demonstrar conclusões equivocadas a respeito de seus objetivos e, para isso, optam por expressões que garantem uma certa “proteção de face” diante de suas hipóteses referentes ao próprio contexto da pesquisa.

Já a respeito do TCC 2, observamos que o autor domina estratégias de gerenciamento de vozes, os quais são mecanismos enunciativos (BRONCKART, 1999)[7] muito presentes em textos acadêmicos. Segue o recorte ilustrativo:

Figure 14. Figura 14 – Recorte do TCC 2

É possível observar que o aluno, além de conseguir selecionar autores diferentes para embasar suas ideias, também é capaz de refletir criticamente sobre os pontos em que suas teorias dialogam e os pontos em que se divergem a partir de determinado aspecto. Tal habilidade condiz com as orientações do PPC de Música sobre a necessidade de o licenciando, com sua monografia, conseguir obedecer a certo rigor científico e ultrapassar o nível da simples compilação de textos estudados. No trecho supracitado, podemos identificar que as capacidades linguístico-discursivas estão presentes a partir das capacidades: i) de textualização e retextualização (MATENCIO, 2002)[17], ii) de uso dos operadores argumentativos e de referenciação (mecanismos de textualização), iii) além do já mencionado gerenciamento de vozes (BRONCKART, 1999)[7].

A partir da análise dos dois TCC, chegamos ao entendimento de que, embora ambos possuam aspectos referentes à natureza de um texto científico (infraestrutura composicional) a produção do aluno do curso de Música, influenciada pelo projeto de extensão, parece demonstrar mais características estruturais condizentes ao gênero monografia (extensão do texto e embasamento metodológico). Além disso, descobrimos, ao consultarmos o currículo Lattes7 do autor da monografia do curso de Música, que seu TCC acabou por servir como projeto para a escrita de sua dissertação de mestrado, o que, segundo Botelho (2016)[6], pode ser um desdobramento do desenvolvimento do texto monográfico: “muitas vezes, as monografias servem de uma ‘iniciação’ à escrita acadêmica mais densa e podem transformar-se em um projeto para futuros trabalhos, como (...) uma dissertação de mestrado” (BOTELHO, 2016, p. 111)[6].

Quanto à produção das alunas do curso de Pedagogia, texto em que notamos mais semelhanças relacionadas ao gênero artigo científico, podemos concluir que, embora o PPC (sistema de ensino) oriente a produção do texto monográfico, isso pode não ter ocorrido na escrita do TCC em questão (sistema didático). Tal divergência entre os níveis da atividade educacional pode acarretar em consequências pedagógicas as quais, dentro das limitações deste artigo, optamos por deixar abertas para discussões futuras.

6. Considerações finais

O objetivo central da análise dos Trabalhos de Conclusão de Curso foi o de investigar como as práticas de elaboração desse gênero refletem as orientações de documentos prescritivos da formação inicial de professores. Para tanto, o apoio de um paradigma teórico relacionado aos princípios do Interacionismo Sociodiscursivo e às questões provenientes dos letramentos acadêmicos serviram de base para nossas discussões sobre a escrita no contexto dos cursos de licenciatura. Dessa forma, durante a análise, levamos em conta o ideal de que qualquer prática de letramento deve ser compreendida a partir das estruturas culturais e políticas que as representam.

Quanto à abordagem metodológica, a pesquisa qualitativa empregada na investigação de nosso corpus permitiu uma interpretação crítica voltada para a leitura dos documentos e dos textos dos alunos. Diante disso, pudemos compreender que existem considerações distintas acerca do gênero monografia orientado pelos documentos prescritivos, além de uma influência direta das práticas advindas de estágios e projetos de extensão na produção dos textos. Notamos, também, que a elaboração do TCC como requisito para a obtenção do grau de licenciatura colabora como uma oportunidade de iniciação científica dos futuros professores.

Por fim, é válido ressaltar que o fato de determinado projeto pedagógico de um dos cursos analisados (Geografia) não contemplar, no TCC, a necessidade de um envolvimento em práticas científicas na formação dos futuros professores, além de divergir das Diretrizes para as licenciaturas, acaba demonstrando uma visão de formação docente lacunar, já que a relação entre a pesquisa e a docência se fazem concomitantes.

Referências

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