Um padrão de pronúncia para mudar o status da língua falada no Brasil
Resumo
Este artigo analisa pela perspectiva da História das Ciências o Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada, que foi organizado por Mário de Andrade em 1937. A reconstrução historiográfica se baseia nos debates sobre a padronização da pronúncia realizados durante o evento. Naquele momento, estava em jogo o status ontológico da variedade brasileira em relação ao português europeu, e a iniciativa de padronização protagonizada por Mário de Andrade colocava o saber linguístico em circulação no país a serviço desse debate. O trabalho apresenta uma leitura crítica das fontes, situa o evento no contexto intelectual da década de 1930 e examina como nele se articularam as interpretações políticas, estéticas e científicas daquilo que se entendia como “língua nacional”. A conclusão é que, apesar de pouco conhecido, esse foi um dos eventos mais importantes da história dos estudos linguísticos no Brasil. Embora não seja simples distinguir um legado, sua relevância se traduz, sobretudo, na permanência, nas décadas seguintes, dos problemas discutidos durante o evento.
Introdução
O Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada foi realizado em São Paulo entre 07 e 14 de junho de 1937 com o objetivo de estabelecer uma pronúncia padrão brasileira no teatro e no canto erudito. Nele tiveram lugar dois programas de investigação que marcaram a pesquisa linguística produzida à época no Brasil: a padronização da variedade brasileira1 e a caracterização dos dialetos regionais. Embora pudessem ser conduzidos de maneira independente, esses programas se articulavam numa mesma agenda de pesquisa, que visava determinar a identidade linguística brasileira e demonstrar sua autonomia em relação ao português europeu.
Na época, a impressão geral era de que o Brasil não era ainda propriamente uma nação, que era apenas a reunião das províncias isoladas do Império, transformadas em estados pela Constituição de 1891 (LIMA; HOCHMAN, 1996)[1]. Por isso, boa parte da intelectualidade brasileira se engajava em projetos de construção nacional, com o objetivo de modernizar e “civilizar” o país, ou seja, de equipará-lo às nações mais desenvolvidas. Engenheiros, médicos, cientistas, educadores, artistas e literatos definiam como projeto de vida produzir e divulgar diagnósticos sobre a “realidade brasileira” (BOMENY, 2012)[2].
O caso de Mário de Andrade não foi diferente. Sua atuação como escritor, crítico, pesquisador e gestor público foi dedicada à criação de representações da brasilidade e à difusão de uma ideia modernista de identidade nacional. A estratégia era estimular, através da literatura e das artes, o desenvolvimento de uma “consciência nacional” que levasse cada brasileiro a se perceber não apenas como indivíduo, mas antes como membro de uma comunidade racial2 que o define. Neste contexto, cresciam também os questionamentos sobre a ideia de que a língua dos brasileiros é a mesma utilizada pelos portugueses.
O ponto de partida da iniciativa foi o anteprojeto de língua padrão elaborado por Mário de Andrade, que era o diretor do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo. Participaram do evento alguns dos principais estudiosos de língua e de música em atividade no Brasil, além de pesquisadores de outras áreas e intelectuais de diferentes regiões do país, que enviaram suas comunicações científicas. Alguns desses trabalhos apresentavam instrumentos de observação e recursos tecnológicos inovadores para a investigação da língua, tais como o registro gráfico de ondas sonoras e a gravação de pronúncias regionais em disco.
O evento pode ser analisado ao menos em duas dimensões, que correspondem aos temas de investigação referidos acima: o debate sobre a padronização da pronúncia nas performances artísticas e a produção científica apresentada, que teve como principal tema a descrição das variedades regionais brasileiras. Este artigo analisa pela perspectiva da História das Ciências a proposta de padronização linguística elaborada por Mário de Andrade e sua discussão durante o congresso.
A reconstrução historiográfica apresentada se contrapõe à percepção do evento como pré-científico, difundida na segunda metade do século XX devido às disputas por hegemonia científica após a introdução da linguística estrutural nas universidades brasileiras (MONTEIRO, 2020)[3]. A primeira parte mostra a relevância dos congressos enquanto objetos da história da Linguística e apresenta as fontes sobre o Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada, avaliando os limites e possibilidades de seu aproveitamento historiográfico. A segunda parte convida o leitor à experiência de imersão nas sessões plenárias do evento, nas quais os congressistas discutiram o anteprojeto de língua padrão elaborado por Mário de Andrade.
1. O congresso e suas fontes
O interesse pelos congressos, tanto na história da Linguística quanto na história das ciências em geral, não se deve apenas à produção apresentada ou ao reconhecimento de um legado pela posteridade. Sua existência, por si só, já é suficiente para validá-los como objeto da investigação historiográfica, na medida em que eventos dessa natureza resultam do esforço para formar uma comunidade científica. Isso independe do êxito relativo dessas iniciativas ou daquilo que passaram a representar aos olhos da ciência atual.
O processo de formação desses coletivos de pensamento (FLECK, 2010)[4] ocorreu de maneira mais evidente nas ciências naturais, mas impactou de algum modo todos os campos de produção intelectual com pretensões científicas. Uma busca no Google e no acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional por títulos de congressos3 realizados no Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX mostra que os pioneiros do gênero no país foram o Primeiro Congresso de Instrução Pública (1883) e o Primeiro Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia (1888), ambos realizados no Rio de Janeiro.
Embora eventos com esse título tenham surgido em diversas áreas, sobretudo nas primeiras décadas do século XX, poucos tiveram continuidade4. No recorte considerado aqui, designações similares são atribuídas a iniciativas de diferentes tipos. Há casos em que o título indica a forma ou o grau de institucionalização da atividade em questão. Eventos cujos participantes eram associados a uma profissão técnica parecem enfatizar sobretudo as questões práticas da atividade e os interesses da categoria. São exemplos disso o Primeiro Congresso Brasileiro de Jornalistas (1918) e o Primeiro Congresso Brasileiro de Bancários (1939).
Há ainda aqueles cujo título remetia a um tema de interesse para diferentes setores da sociedade, incluso o Estado, indicando a diversidade de perspectivas dos participantes. Esse parece ser o caso do Primeiro Congresso Nacional de Agricultura (1901), do Primeiro Congresso Nacional de Estradas de Rodagem (1916), do Primeiro Congresso Brasileiro de Carvão e outros Combustíveis Nacionais (1922), do Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância (1922) e de congressos relacionados a educação e instrução – que reuniam desde gestores públicos do setor até representantes da Igreja Católica.
Os resultados da busca mostram uma profusão de eventos de nível regional ou nacional relacionados ao ensino e à instrução pública durante as três primeiras décadas do século XX. A diversidade dos títulos atribuídos a essas iniciativas reflete tanto sua dispersão quanto a dificuldade encontrada para lhes dar continuidade. Esse cenário só se modificou com a criação da Associação Brasileira de Educação, em 1924, e a organização das Conferências Nacionais de Educação, que continuaram a ocorrer até a década de 1950.
Os dados levantados possibilitam mapear as formas de nomeação mais comuns em eventos desse gênero, como indica o esquema abaixo.
relação com outros eventos | tipo de evento | abrangência do evento | conectivo | princípio organizador |
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1° | Congresso | Brasileiro | de | categoria profissional |
II | Nacional | tema, objeto ou problema | ||
Terceiro | Paulista | atividade ou área do saber |
Alguns títulos não informam a relação com outros eventos e a abrangência da iniciativa, mas todos os casos incluem o tipo de evento e o princípio organizador. Embora haja flutuações de designação5, os títulos desses congressos podem indicar características específicas do processo de institucionalização em curso. O preenchimento da primeira variável (relação com outros eventos) fala sobre a continuidade das iniciativas. A terceira variável (abrangência do evento) indica a extensão do coletivo representado, que pode ter alcance regional ou nacional.
O preenchimento da quinta variável (princípio organizador) indica a natureza de cada congresso e o tipo de institucionalização ou especialização que o motivou. Eventos relacionados a uma categoria profissional – como bancários ou jornalistas – correspondem à formação de entidades como associações e sindicatos. Congressos associados a um tema, objeto ou problema – como regionalismo, câncer e a língua nacional cantada – delimitam um campo de estudos capaz de mobilizar diferentes especialidades. Eventos relacionados a uma atividade que corresponde a uma área do saber – como oftalmologia ou serviço social – indicam a constituição ou o esforço para constituir um coletivo de especialistas.
Na época, não era raro que os congressos tivessem um caráter ao mesmo tempo político e científico. Parte considerável das pesquisas desenvolvidas em áreas como medicina e educação investigavam problemas enfrentados pelas autoridades públicas desses setores. Nesses casos, o conhecimento produzido encontrava nas iniciativas governamentais um dos principais horizontes de aplicação. Esse foi, sem dúvidas, o caso do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada, uma inciativa de caráter político, artístico e científico.
A natureza híbrida do evento transparece já em sua divulgação, iniciada cinco meses antes. O convite oficial, com informações sobre seu escopo e sua programação, foi enviado a sociedades literárias e científicas, sobretudo as Academias de Letras e os Institutos Históricos e Geográficos, às secretarias de educação dos estados, às instituições de ensino e aos intelectuais e artistas escolhidos pela organização. O congresso iria ocorrer nas dependências do Conservatório Dramático e Musical, mas foi transferido para o Teatro Municipal de São Paulo devido ao número de inscrições, que superou a expectativa inicial (PEREIRA, 2006, p. 115)[5].
O Departamento de Cultura patrocinou inserções em jornais de todo o país e continuou a dar notícias sobre os preparativos do evento, reforçando a mensagem inicial e mantendo o assunto em evidência. Foram mais de 60 publicações em jornais e revistas de diferentes estados6 apenas nas cinco semanas que antecederam o evento. As notícias e entrevistas a respeito anunciavam as inscrições, as áreas do saber mobilizadas, as temáticas e as abordagens privilegiadas, as instituições representadas, as figuras ilustres que já tinham confirmado presença, os temas dos trabalhos recebidos, a qualidade da programação artística e cultural e o caráter nacionalista do evento.
O objetivo era “cuidar dos problemas technicos, estheticos e historicos da lingua falada no Brasil e, principalmente, do canto” (Diário Carioca, 02/04/1937, p. 2). Um mês antes, a organização adiantou que “diversos intellectuaes, homens de letras, professores, philologos e artistas de valor, de quasi todos os Estados, já deram sua adhesão, enviando suas theses e prometendo seu comparecimento aos debates” (Correio Paulistano, 12/06/1937, p. 7). No dia da abertura, o Departamento de Cultura destacou o “interesse despertado” pelo evento, que recebeu “farta contribuição de todos os meios culturais do país [...] pelos seus nomes mais destacados” (O Estado de São Paulo, 07/07/1937, p. 8). Foi uma verdadeira campanha publicitária planejada para criar expectativa nos leitores.
Nos dias em que ocorreu, o evento foi noticiado em pelo menos 14 veículos de imprensa e contou com matérias a respeito no Jornal do Commercio, no Correio da Manhã e com cobertura diária em O Estado de São Paulo. Em sua coluna mensal no Jornal do Commercio, o crítico musical Andrade Muricy reproduziu o discurso proferido por Mário de Andrade na cerimônia de abertura e a primeira parte do anteprojeto de língua padrão (Jornal do Commercio, 14/07/1937, p. 2). Pelo menos dois dos trabalhos apresentados foram reproduzidos pela imprensa antes do término do evento, ampliando o alcance dos debates realizados7.
Entre os congressistas, havia estudiosos de língua e de música, professores do ensino secundário, normal e superior, jornalistas, críticos literários e musicais, poetas, escritores, musicistas, cantores, compositores, dramaturgos, atores e diretores teatrais. Essa rede de colaboradores conectava ao projeto de padronização linguística não só os presentes à ocasião, mas também as entidades a que pertenciam. A mobilização de indivíduos e instituições de diferentes estados brasileiros visava tornar a pronúncia padrão um tema de interesse nacional, e não apenas um projeto do Departamento de Cultura, para motivar sua adoção em todo o país.
As atividades do evento foram organizadas em três segmentos: sessões plenárias, sessões científicas e apresentações artísticas. As sessões plenárias, que ocorriam às 14h00 e davam início às atividades do dia, foram dedicadas à discussão do anteprojeto de língua padrão elaborado pelo diretor do Departamento de Cultura. Nas sessões de filologia e de musicologia, também referidas como sessão linguística e sessão musicológica, foram apresentadas as comunicações enviadas à organização. A comissão científica de filologia era composta por Antenor Nascentes, Renato Mendonça, Candido Jucá Filho, Plínio Ayrosa e Manuel Bandeira.
Os trabalhos sobre língua publicados nos anais do evento são, em sua maioria, descrições de variedades regionais baseadas em fontes bibliográficas ou na observação direta. Nessas monografias, as variedades locais são referidas de maneira bastante heterogênea, como “subdialeto do nordeste”, “pronúncia cearense”, “linguagem sul-riograndense”, “subdialeto do Ribeira”, “vozes regionais” etc. A maioria dos autores descrevia a “linguagem regional” de um ponto de vista fonético e morfológico, influenciados por referenciais teóricos diversos, como a abordagem dos neogramáticos, a geografia linguística e a estética vossleriana.
A principal fonte sobre o evento são os Anais do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada. O volume de 786 páginas foi composto e impresso na gráfica da Prefeitura de São Paulo no formato in-folio (Jornal do Commercio, 24/07/1938, p. 8), tamanho 22 x 32, e inclui tabelas, mapas, gravuras e mais de 20 fotografias. Entre as gravuras, se destaca um desenho de Cândido Portinari (datado de 1937 e feito com nanquim preto e vermelho8), que foi encomendado para estampar a “capa do programa geral de trabalhos e festivais”.
A imagem ilustra o tema do evento com um coro feminino interpretando uma peça musical. As coristas estão viradas para a mesma direção e seus olhares convergem para o lado esquerdo, onde aparece a borda de uma partitura. Além de todas terem cabelos pretos e encaracolados, as cinco figuras com fisionomia mais bem definida apresentam traços que lembram pinturas como Les Demoiselles d'Avignon (1907), de Pablo Picasso, em que os rostos femininos são inspirados em máscaras africanas (GINSBURG, 2002)[6]. O resultado soa como alegoria daquilo que Mário de Andrade chamava de “entidade racial”, porque reúne, como elementos da composição, língua (voz), música (partitura) e etnia (características físicas).
Essa interpretação é corroborada pelo papel que Mário de Andrade atribuía ao coro em seu projeto de nacionalização da música. No Ensaio sobre a Música Brasileira, ele se refere à prática do canto coral como uma atividade humanizadora, que se contrapõe ao individualismo e às vaidades. E declara que “os nossos compositores deviam de insistir no coral por causa do valor social que êle pode ter”, pois “o coro unanimisa os indivíduos” e “generalisa os sentimentos” (ANDRADE, 1962 [1928], p. 64-65)[7].
Também é possível interpretar a imagem utilizada na capa do programa como um símbolo da padronização linguística e cultural, conforme argumenta Serpa (2001)[8].
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Este desenho de Portinari mostra mulheres cantoras com o mesmo corte de cabelo, penteado e adereço de cabeça, igualdade de traços fisionômicos, mulheres esbeltas e trajadas de forma igual. Esta pintura de Portinari pode ser interpretada como um logotipo nacionalista com a finalidade de divulgar a padronização, a normatização de uma prática cultural com a intenção de plasmar o imaginário ideal do “ser brasileiro”, através da arte (SERPA, 2001, p. 71)[8].
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Algo que chama a atenção desde o primeiro contato com a obra são suas características físicas. Antes de examinar em detalhe a brochura, verificando a quantidade de páginas e as dimensões do corte, o leitor tem a experiência de segurar um calhamaço com 4,5 cm de espessura e quase 5 quilos. Essa primeira impressão retorna durante a leitura, diante do esforço de detalhamento que caracteriza a parte textual do documento. Esse esforço é notório, por exemplo, na introdução geral da publicação, que descreve o evento em linhas gerais, e na introdução às “Normas para Bôa Pronúncia da Língua Nacional do Canto Erudito” (NBP), que esclarece como essas normas foram estabelecidas.
A primeira informa, entre outras coisas, que alguns dos trabalhos recebidos não foram publicados nos anais “por escaparem aos assuntos a que o Congresso se destinava ou por serem simples respostas aos questionários e coincidirem, por isso, com as Normas discutidas e aprovadas em plenário” (ANAIS, 1938, p. 3)[9]. A segunda lista as alterações feitas no anteprojeto, indicando os números de página, informa os nomes9 que compunham a comissão designada pelo Departamento de Cultura para estabelecer a versão final das NBP e observa que, nesse processo, foram necessárias algumas adaptações para “tornar a leitura isenta de repetições e coerente, após os cortes e mudanças feitos” (ANAIS, 1938, p. 52)[9].
Neste sentido, os anais constituem uma fonte voluntária (BARROS, 2019)[10], ou seja, um documento elaborado de forma deliberada como registro histórico. Essa constatação se apoia nas características físicas da publicação, na forma como ela foi composta e também na relação que mantém com o discurso da organização do evento. Apenas para citar um exemplo, na cerimônia de abertura, Mário de Andrade declarou aos congressistas que o resultado desse esforço coletivo os colocaria futuramente ao lado de nomes como Bartolomeu de Gusmão, Carlos Gomes, Euclides da Cunha e Oswaldo Cruz, “que dão a verdadeira significação histórica do Brasil” (ANAIS, 1938, p. 708)[9]. O esforço descritivo notório em diversas partes do documento sugere que sua publicação foi planejada para ser o registro mais completo e fidedigno a respeito do evento.
De fato, não há como negar que os anais são, por sua abrangência e pelo grau de detalhamento dos registros que apresentam, a principal fonte a respeito do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada. Mas é preciso reconhecer nessas características uma estratégia discursiva que visava divulgar as ações do Departamento de Cultura, credibilizar os artistas e intelectuais mais diretamente engajados na iniciativa e incentivar a adesão a um projeto de padronização linguística que, como veremos, não era consensual. Por isso, foi necessário recorrer a fontes alternativas que registrassem o evento a partir de outras perspectivas, oferecendo um panorama distinto daquele apresentado no discurso oficial.
Os relatos publicados na imprensa desempenharam essa função, indicando por contraste as escolhas que moldam o texto aos interesses da organização. O Estado de São Paulo foi a fonte jornalística mais produtiva, por ser a única a trazer em primeira mão10 registros de todas as sessões e resumos dos trabalhos apresentados. Esse veículo era uma referência no meio intelectual por publicar artigos de intelectuais e cientistas sobre temas bastante específicos e tinha uma seção11 dedicada a eventos, que cobria encontros científicos, artísticos ou culturais realizados em São Paulo.
Por isso, embora Júlio de Mesquita Filho, que era diretor e proprietário do jornal, fosse o “presidente dos trabalhos do Congresso”, os relatos publicados em O Estado de São Paulo não são apenas uma extensão do discurso da organização do evento. Um exemplo disso está nos registros da terceira sessão plenária, quando se reconheceu a insuficiência dos meios disponíveis para descrição da fala e a necessidade de laboratórios de fonética. Tanto o relato encontrado nos anais quanto aquele publicado em O Estado de São Paulo destacam essa manifestação por parte dos congressistas, mas há uma diferença significativa nos desdobramentos indicados em cada uma das fontes.
Os anais informam que “o Congresso da Lingua Nacional Cantada aprovou por unanimidade um ardente voto para que o Governo da República e os Estaduais criem nos seus institutos de cultura, gabinetes de fonética experimental” (ANAIS, 1938, p. 15). Já no relato publicado pelo jornal, Júlio de Mesquita Filho, que presidia a sessão, “declara que o Departamento de Cultura estava na obrigação moral de estabelecer esse laboratorio. O sr. Mario de Andrade justifica tal lacuna dizendo que não o installou ainda por não ter encontrado o competente technico para dirigil-o” (O Estado de São Paulo, 10/07/1937, p. 15).
Essa discrepância revela os aspectos privilegiados em cada registro, indicando os efeitos de sentido que se pretendia produzir. O jornal destaca a exigência feita por seu diretor e a justificativa apresentada por Mário de Andrade, projetando sobre si uma imagem de independência editorial, senso crítico e compromisso com os interesses da sociedade paulistana. Já a versão encontrada nos anais omite tanto o ultimato dirigido ao Departamento de Cultura quanto a resposta de seu diretor, que expôs uma tentativa fracassada de criar um laboratório de fonética na instituição. Além disso, fala em “unanimidade”, sugerindo que os congressistas atribuíam apenas a iniciativas federais e estaduais a responsabilidade pelo investimento em pesquisas do gênero.
Portanto, as fontes não foram abordadas como meros indícios dos fatos ocorridos, mas como espaço de disputa entre sentidos e de produção discursiva da realidade. A mesma premissa orienta a interpretação de documentos textuais e iconográficos, considerando que ambos foram elaborados como discurso e veiculados com base em estratégias retóricas, atendendo a interesses específicos. A maioria das fotografias do evento reproduzidas aqui foi publicada nos anais como parte das comunicações apresentadas ou registros das atividades realizadas.
A transcrição das fontes textuais manteve, sempre que possível, a grafia utilizada na época tanto no caso dos anais quanto em textos jornalísticos e outras fontes impressas. Nos casos em que isso não foi possível, a grafia segue a edição utilizada, mas a referência que acompanha a transcrição informa, entre colchetes, a data da primeira edição do texto transcrito. Essa escolha é aconselhável em pesquisas historiográficas por permitir “que se discuta o processo de construção gramatical do português” e os “graus de alfabetização e de circulação de modismos linguísticos” no contexto investigado (BACELLAR, 2008, p. 60)[11].
2. A construção da “língua nacional”
A solenidade de abertura do Congresso da Língua Nacional Cantada ocorreu no foyer do Teatro Municipal de São Paulo no dia 7 de julho de 1937. O evento teve início com um breve discurso do secretário de educação do estado de São Paulo, Cantídio de Moura Campos. Logo em seguida, a palavra foi passada a Mário de Andrade, que falou como diretor do Departamento de Cultura e relator do anteprojeto de língua padrão. A fotografia abaixo, encontrada nos anais, foi tirada durante a leitura de seu discurso, intitulado “Exposição de Motivos”, que justifica a realização do evento e destaca o caráter nacionalista da iniciativa.
A composição da mesa e a decoração do local foram utilizadas para construir a imagem pública do evento. Ao centro estão os representantes dos Governos Estadual e Municipal. Do lado direito, o diretor da Escola Nacional de Música, que era a instituição mais importante do gênero no país, e um membro da Academia Brasileira de Letras, que ainda era a principal autoridade nacional em matéria de língua. Do lado esquerdo, o presidente geral do congresso, que era o proprietário de um dos principais veículos de imprensa do país, o jornal O Estado de São Paulo, e a secretária-geral do congresso, que foi encarregada de redigir o relatório das sessões plenárias.
Uma bandeira do Brasil, com cerca de 10 metros, estendida ao fundo, acentuava o caráter nacionalista do evento, em um momento em que as iniciativas do Governo Estadual e da Prefeitura de São Paulo eram associadas à retomada da hegemonia paulista no âmbito nacional e até aos boatos sobre separatismo disseminados durante a guerra civil de 1932. O efeito visual produzido pelas dimensões da bandeira, que simbolizava a grandeza nacional, era completado pela ornamentação da mesa com uma grande quantidade de flores, agregando à cena sentidos como exuberância, nobreza e abundância. A imagem também indica que não havia microfones e que, por conseguinte, a comunicação entre os participantes exigia pronúncia clara e projeção da voz.
A “Exposição de Motivos” lida por Mário de Andrade é esclarecedora não só pelo que apresenta como justificativa do evento, mas também por revelar o modo como ele estimulava o engajamento na iniciativa. A língua aparece aqui como matéria da criação artística, como objeto da investigação científica e como fator determinante para os rumos da nação. O discurso foi organizado a partir da oposição entre civilização e barbárie, associando a primeira à fraternidade entre os povos e a segunda à dominação do outro pela força. Com base nessas premissas, ele se referiu à ciência e à arte como atividades humanizadoras e aos eventos científicos e culturais como espaços “arejados” em uma época de radicalização dos nacionalismos e crescente hostilidade entre nações.
Mário de Andrade se referiu às “histórias universais e nacionais” como “ensanguentados livros” que naturalizam a barbárie com “descrições de batalhas e guerras ferozes” e “análises complacentes” da conquista e da destruição de povos e raças. Para ele, “a paz desses livros” resulta do extermínio do outro e, nessa medida, desumaniza os homens, os aproximando “de abutres, de leões ou de formigas”. Dentre as “maneiras de se fazer a História”, esta seria, no dizer irônico do diretor do Departamento de Cultura, “a maneira sensata de Los Conquistadores” (ANAIS, 1938, p. 708)[9].
Mas artistas e cientistas também fazem a História através de suas realizações, na paz das bibliotecas ou dos laboratórios, e o fazem sem derramar sangue ou incitar ódios. Mário de Andrade argumenta que “tanto arte e ciência escandalizavam a moral dessas histórias da irracionalidade humana, que foi necessário escreverem-se histórias especiais”, como a história da medicina e a história da música (ANAIS, 1938, p. 707)[9]. Essa seria “a maneira insensata dos institutos culturais”, espaços de onde surgem as contribuições de cada nação para o conjunto da humanidade.
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Quando Bartolomeu de Gusmão voou pela primeira vez, quando Oswaldo Cruz saneou o Rio de Janeiro, quando Euclides da Cunha escreveu “Os Sertões” ou Carlos Gomes a “Fosca”, nenhum sangue correu nem os homens se odiaram mais. E si acaso, nos perfeitos momentos de humanidade vamos em Busca do Brasil e sua verdadeira significação histórica no mundo, jamais o encontraremos na Guerra do Paraguai ou 1889, mas em Gusmão, no Butantan, em Castro Alves (ANAIS, 1938, p. 708)[9].
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Aqui aparece, mais uma vez, a oposição entre a animalidade estimulada pelas guerras e o caráter humanizador da ciência e da arte. Para ele, a “verdadeira significação histórica” do Brasil não emerge da Proclamação da República ou da Guerra do Paraguai, mas sim das façanhas de Oswaldo Cruz, Euclides da Cunha, Carlos Gomes, Bartolomeu de Gusmão e Castro Alves. Mário de Andrade sugere que no futuro a escolha da pronúncia padrão teria uma importância comparável ao legado das figuras históricas mencionadas e que os participantes do Congresso da Língua Nacional Cantada seriam reconhecidos da mesma forma. Isso fica claro pela significação que ele atribui à iniciativa do Departamento de Cultura:
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si vemos hoje, com frequência as patrias militarizarem suas criancinhas, não estaremos nós também militarizando as vogais? A diferença é simplesmente cronológica. A militarização das crianças é uma ambição de agora já, a militarização das vogais constrói futuro. Quer isto dizer: a militarização das vogais estará futuramente no número daquelas citações, estará entre os Bartolomeu de Gusmão, os Manguinhos, os Alberto Nepomuceno que dão a verdadeira significação histórica do Brasil (ANAIS, 1938, p. 708)[9].
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A busca de uma disciplina coletiva que organize a sociedade, tornando os cidadãos mais conscientes de seu papel e mais comprometidos com o bem comum, é uma constante nas reflexões de Mário de Andrade. Em sua obra, esse tema se relaciona ao objetivo de modernizar a sociedade e civilizar o país sem perder sua singularidade – nas palavras do autor, “abrasileirar o Brasil”. Não surpreende que a questão receba tamanho destaque, considerando que o evento foi concebido por ele como parte de seu projeto de construção da identidade nacional nas artes. O que surpreende é a palavra escolhida para se referir à criação dessa disciplina coletiva.
A comparação entre a militarização das crianças e a militarização das vogais produz um efeito de sentido capaz de diluir o contraste entre o vigor associado ao universo bélico e a fragilidade associada à cultura e ao saber. A construção utilizada projeta na padronização da língua o sentido de eficácia atribuído à dominação pela força. Esse expediente aproxima o empenho dos congressistas de ideias como mobilização civil e defesa nacional, difundidas pela retórica nacionalista do período. Tamanha ambiguidade demonstra um esforço para compatibilizar valores herdados do século XIX e convicções difundidas pelos nacionalismos emergentes no início do século XX.
O discurso de Mário de Andrade era uma tentativa de responder às dúvidas que inquietavam a intelectualidade da época. Como explica Sériot (2016)[12], esse foi “um período de crise dos valores da civilização ocidental, em particular da democracia, e de busca por outras soluções, por outras formas de organização da sociedade (os diferentes regimes totalitários e a ideia de “regenerescência” e de “homem novo”)” (SÉRIOT, 2016, p. 22)[12]. Essas incertezas, surgidas como consequência da Primeira Guerra Mundial, motivaram a adesão de artistas e intelectuais a vanguardas estéticas, ideologias políticas, modelos de Estado e projetos de reforma social surgidos na década de 1930.
Essa tentativa de conciliar orientações incompatíveis aparece também no anteprojeto de língua padrão apresentado aos congressistas. Numa carta que enviou ao Diretor do SPHAN, Rodrigo Mello Franco de Andrade, dois meses antes do evento, Mário de Andrade se refere a esse documento como “uma espécie de monumentinho que me custou umas dez noites passadas em claro escrevendo, com seus dias na mesma luta” (ANDRADE, 1981 [1937], p. 66)[13]. Na carta, o diretor do Departamento de Cultura revela as etapas de revisão a que foi submetida a primeira versão do anteprojeto e a forma como foi distribuído aos congressistas.
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Agora tenho de convocar os cantores, compositores etc. do Departamento pra discutirmos ponto por ponto, vogal por vogal, ditongo por ditongo, consoante por consoante, etc. pra ver o que fica do que propus, pra ser obra coletiva como desejo. E ainda mandarei hoje mesmo pro Nascentes pra ele ajuizar da parte fonética. E depois é que farei a redação final que terá de ser impressa em opúsculo e enviada com antecedência de pelo menos sete dias aos congressistas pra ser estudado e depois convenientemente discutido e aprovado no plenário do Congresso (ANDRADE, 1981 [1937], p. 67)[13].
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A versão definitiva do anteprojeto foi discutida durante o evento e publicada, após a inclusão das alterações recomendadas, sob o título “Normas para Bôa Pronúncia da Língua Nacional do Canto Erudito”. O documento é dividido em duas partes, sendo a primeira dedicada à defesa da padronização linguística e da escolha da pronúncia carioca e a segunda, à descrição e regulamentação da língua padrão. A primeira parte, intitulada “A Língua Padrão” (pp. 55-60), reivindica uma tradição nacional no canto e no teatro, argumentando que a padronização da pronúncia é uma preocupação própria de países civilizados e que ainda não recebeu a devida atenção no Brasil.
Na época, os atores e cantores brasileiros não procuravam neutralizar as marcas de sua variedade regional e muitas vezes se esforçavam para pronunciar as palavras com sotaque estrangeiro. João Ribeiro conta, em 1927, que “nos meios teatrais do Rio de Janeiro era prestigiado o sotaque português, que os atores nacionais procuravam imitar” (apud PINTO, 1981, p. XXXII)[14]. O mesmo ocorria com os cantores que se destacavam em sua performance ao soar com acento italiano, francês ou espanhol. E havia também atores e cantores estrangeiros que viviam no Brasil e se beneficiavam do prestígio atribuído pelo público a essas marcas linguísticas. Essa heterogeneidade é descrita no documento como um defeito estético e uma ameaça política.
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Quem quer frequente o teatro nacional ficará desagradavelmente ferido ante a diversidade de pronúncias que se entrechocam no ar. Essa diversidade deriva em parte de atores estaduanos que, trazendo consigo suas pronúncias regionais e não fazendo nenhum esforço para unificar essas pronúncias em beneficio do equilibrio e da unidade fonética, tornam a obra-de-arte um mistifório malsoante, irregular de estilo e de sonoridade, muitas vezes, por isso, de penosa compreensão para o ouvinte. E que dizer-se então da quantidade de artistas, Portugueses, Espanhóis e Italianos, ou ainda mesmo Brasileiros filhos de estrangeiros, que surgem numerosamente no palco nacional, num desprêzo cego do bem dizer, e que carreiam para a nossa linguagem sons espúrios, sutaques estrambóticos, desnorteando a naturalidade e a pureza da lingua! Si o choque de pronúncias regionais constitúe já um grave defeito de ordem estética, essas pronúncias estrangeiradas são um gravíssimo perigo (ANAIS, 1938, p. 56)[9].
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O teatro e o canto lírico eram pouco difundidos no país e percebidos pelo público como manifestações culturais europeias, o que explica a valorização dos sotaques estrangeiros. A busca de uma tradição brasileira nessas artes sugere que o projeto nacional das elites do século XIX não foi inteiramente abandonado, mas que precisava se adaptar aos requisitos impostos pelo nacionalismo do século XX. Com a crise política e cultural do período entreguerras, surge a demanda de criar nesses espaços de prestígio representações da unidade nacional. Por isso, a ausência de padronização da pronúncia no canto e no teatro, antes percebida como algo natural, é descrita como um empecilho aos interesses nacionais, e a manifestação da diversidade linguística nas artes se torna motivo de preocupação.
O esforço para preservar “a naturalidade e a pureza da língua” nas manifestações artísticas se apoiava na ideia de que a fala brasileira se caracteriza por uma “sonoridade racial” própria. Como sustenta o documento, “a arte de dizer, a dicção, não consiste apenas na emissão clara dos fonemas. Carece não esquecer que não existe fonema sem timbre nem palavra sem sonoridade racial” (ANAIS, 1938, p. 57)[9]. Desta perspectiva, “a compreensão e a captação do conteúdo do texto da canção nacional não seria obtida somente pela inteligibilidade vocabular, mas principalmente pelo caráter da voz, ou pelo que [Mário de Andrade] viria a chamar de timbre racial brasileiro [grifo da autora]” (PEREIRA, 2006, p. 38)[5]. A unidade linguística presumida garante a adequação aos modelos europeus de língua e cultura nacionais.
Mas aceitar essa hipótese não significava negar a diversidade linguística do país. A diferenciação entre variedades regionais era percebida como produto da mudança espontânea da língua. Já a padronização da pronúncia nas artes seria um requisito civilizatório e uma maneira de projetar na língua a unidade nacional.
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Não pensa o PRIMEIRO CONGRESSO DA LÍNGUA NACIONAL CANTADA contrapôr-se de forma alguma ás diferenciações fonéticas de uma e outra região do país. Além das considerações estéticas que podem ver uma riqueza nessa diversidade, ela antes de mais nada é fatal – uma fôrça que nenhuma pessoa nem entidade coletiva conseguirá destruir. O que não se pode porém deixar á tonta e sem nenhum critério civilizador são as manifestações eruditas da arte de falar, que em todos os países civilizados são fixadas pelo consenso duma tradição feliz, ou pela determinação de quaisquer organismos competentes (ANAIS, 1938, p. 56)[9].
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A heterogeneidade das pronúncias regionais era aceitável do ponto de vista científico e poderia até adquirir valor artístico, quando permitia interpretar de forma mais autêntica os elementos regionais presentes numa obra musical ou teatral. Mas o paradigma estético que informa o documento pressupõe a noção de arte nacional e, por isso, interpreta como uma deficiência a manifestação da diversidade linguística nos palcos. Essa avaliação se baseia na oposição entre natureza e cultura, implícita na distinção entre “língua popular” e “língua culta”, em que a primeira seria o resultado de um processo evolutivo natural, e a segunda, um produto do engenho humano. Enquanto a língua falada pela população “inculta” e descrita pela ciência é associada ao estado de natureza, a língua elaborada pelos intelectuais e artistas eruditos corresponde à cultura.
Logo após a solenidade de abertura, teve início a primeira sessão plenária do Congresso da Língua Nacional Cantada e o diretor do Departamento de Cultura apresentou o anteprojeto proposto pela instituição. Depois de ler a introdução do documento, Mário de Andrade enfatizou a sugestão de que “a pronúncia carioca por muitas razões, seja usada como lingua-padrão no teatro, na declamação e no canto eruditos” (ANAIS, 1938, p. 7)[9]. A proposta foi discutida no dia seguinte, durante a segunda sessão plenária, e aceita pela maioria dos participantes. A imagem abaixo, que também foi publicada nos anais, mostra os congressistas reunidos no foyer do Teatro Municipal em meio a uma sessão plenária.
Essa imagem traz alguns detalhes que ajudam a entender a dinâmica das sessões plenárias. A disposição das mesas em forma de semicírculo permitia que cada congressista fosse visto e ouvido pelos demais ao se pronunciar. Sobre as mesas estão as cópias do anteprojeto, que foram distribuídas aos participantes para que cada um fizesse suas anotações e apresentasse sua avaliação a respeito. A legenda sugere, pela escolha da área fotografada, que a imagem foi feita no intuito de registrar a presença de participantes ilustres. Ao fundo diversas pessoas assistiam à sessão sem mesas nem papeis, o que indica que o evento atraiu um público considerável, mas nem todos os presentes podiam propor alterações ao anteprojeto.
No debate sobre a escolha da pronúncia carioca, que ocorreu no segundo dia, aqueles que se manifestaram a respeito fizeram três tipos de alegação: destacaram a isenção de seu parecer, defenderam a proposta com argumentos e apresentaram ressalvas ou questionamentos. Alguns mencionaram a região onde nasceram, sugerindo que sua adesão à proposta não teria motivações subjetivas. Foi o caso do poeta, musicista e teatrólogo paraense Carlos Marinho de Paula Barros e do pianista, professor e crítico paranaense José Cândido de Andrade Muricy. A mesma alegação foi feita por Antenor Nascentes, que se declarou “isento de paixões locais, embora fosse nascido no Rio de Janeiro” (ANAIS, 1938, p. 12)[9].
Na época, as identidades regionais eram reivindicadas como componentes da nacionalidade (MOTTA, 1992, p. 88)[15] e a competição entre elas repercutia dentro do país a lógica da rivalidade entre nações. Esse cuidado refletia tanto a demanda por impessoalidade associada à conduta do cientista quanto a sobreposição do interesse nacional às “paixões locais”. É o que sugere um relato da segunda sessão plenária publicado no jornal O Estado de São Paulo ao elogiar os congressistas pela “conducta [...] irreprehensível” e pela “isenção de preconceitos quer scientíficos, quer literarios ou mesmo regionaes”. A publicação fornece detalhes da fala de Antenor Nascentes que não aparecem nos anais12. De acordo com o jornal, depois de enfatizar a objetividade de sua avaliação, ele defendeu a escolha da fala carioca, fazendo
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um rapido historico da influencia cultural recebida pelo Brasil toda ella através da corte onde se installaram, por iniciativa dos soberanos, institutos de cultura e de sciencia. Todas essas condições de ordem histórica fizeram com que a lingua falada no Rio de Janeiro fosse a mais cuidada do paiz. Além disso a força centrípeta fez com que se reunissem ahi todos os modismos, do que resultou tomar-se a pronuncia carioca uma synthese das pronuncias do Brasil (O Estado de São Paulo, 09/07/1937, p. 11).
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Essa argumentação corresponde, em linhas gerais, àquela apresentada pelo autor no primeiro volume de O Idioma Nacional (1926) ao sustentar que “a pronúncia brasileira normal é a do Rio de Janeiro”. Nessa obra, Antenor Nascentes destaca que sua avaliação coincide com a posição de João Ribeiro em sua Gramática Portuguesa (1887) e no parecer que apresentou à Comissão de Instrução Pública da Câmara dos Deputados em 1916 (NASCENTES, 1960 [1926], p. 39-40)[16].
A avaliação de Nascentes parece corresponder à opinião da maioria dos estudiosos de língua presentes na ocasião. O único participante a elaborar uma justificativa diferente para a escolha da pronúncia carioca foi o musicólogo Luiz Heitor Correia de Azevedo, da Escola Nacional de Música, que propôs a seguinte modificação no anteprojeto:
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“Considerando ser a pronuncia carioca a mais elegante e a mais essencialmente urbana, dentre as nossas pronuncias regionaes” em vez do “considerando ser a pronuncia carioca a mais elegante, a mais caracteristicamente civilizada, a mais essencialmente urbana e por isso, culta, entre as nossas pronuncias regionaes. Posta em votação, esta emenda foi aprovada (O Estado de São Paulo, 09/07/1937, p. 11).
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A nova redação suprimia a descrição dessa variedade como “a mais caracteristicamente civilizada” e “a mais [...] culta”, mantendo apenas sua caracterização como “a mais elegante” e “a mais essencialmente urbana”. Nenhum dos relatos da segunda sessão plenária apontam o motivo dessa modificação. Considerando o ambiente político da época e a autoria da proposta, é possível supor que havia o receio de que os trechos suprimidos estimulassem a disputa entre identidades regionais, e que a caracterização estética da pronúncia carioca soasse menos polêmica. Afinal de contas, após ser debatido pelos congressistas, o documento seria amplamente divulgado em todo o país.
Embora a escolha da pronúncia carioca tenha recebido o apoio da maioria, muitos participantes fizeram ressalvas, recomendando a supressão de formas linguísticas específicas. O primeiro deles foi Antenor Nascentes, que era um estudioso do assunto e conduzia pesquisas dialetológicas a respeito desde 1922. Dentre as características dessa variedade, ele distinguiu aquelas que lhe pareciam adequadas e as que julgava incompatíveis com o status de língua padrão. Nascentes destacou nas normas do anteprojeto os “itens que se referiam aos grupos consonantais lh e nh, reputando o primeiro tolerável e o último condenável pelo seu caracter de plebeismo repulsivo aos ouvidos”, e ilustrou essa observação com dois exemplos:
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“Cecilia” que o povo pronuncia quase lh, sem clara percepção do i, mesmo quando a acuidade auditiva tenha subtilezas raras. Quanto ao nh (molhado) da palavra “Antonho” por Antonio que se ouve falar, considera inaceitável, por sua deselegância flagrante (ANAIS, 1938, p. 12).
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Ambos os casos eram característicos da fala carioca e, ao mesmo tempo, demonstravam a distância entre a realidade linguística e os modelos idealizados de pronúncia. A descrição do primeiro como “tolerável” e do segundo como deselegante, “condenável”, “repulsivo” e “inaceitável” demonstra que havia uma hierarquia entre diferentes tipos de “imperfeição”. O primeiro caso sugere que a supressão de uma vogal não era motivo suficiente para se rejeitar uma marca considerada representativa da identidade linguística local, ou seja, que a autenticidade era mais importante que a perfeição. O estigma associado ao segundo exemplo e, sobretudo, sua reiteração no discurso revelam que o prestígio social era ainda mais importante do que a autenticidade.
Embora esses exemplos não apareçam nas NBP, o texto parece se basear no mesmo princípio. As regras de pronúncia referentes à vogal [i] não mencionam sua omissão em formas como “Cecilha” e “Antonho”. Mas o documento destaca o repúdio na língua padrão das formas associadas ao uso popular – isto é, “inculto” – resultantes da substituição de [i] por [e] ou de sua nasalização.
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A vogal i tem sempre seus valores específicos no canto da lingua-padrão.
São absolutamente repudiadas do canto erudito as tendências para, em sílabas pretônicas, trocar o i pelo e (dêreito, menistro), e para nasalizar o i oral (inlustre). Excetua-se naturalmente a palavra “muito” em que o ditongo sôa nasal (ANAIS, 1938, p. 72)[9].
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A exceção mostra que as regras da língua padrão não se baseavam em critérios estritamente fonéticos. Se o mesmo fenômeno (nasalização) ocorria em “muito” e “inlustre”, a aceitação apenas do primeiro, considerado natural por seu uso generalizado no país entre falantes de qualquer classe social, indica que os demais casos foram interditados por representar setores específicos da sociedade e carregar os estereótipos e estigmas associados a indivíduos desses segmentos. A versão final do documento traz diversos exemplos que corroboram essa interpretação.
Na segunda sessão plenária, também estavam presentes Renato Mendonça e Cândido Jucá Filho, estudiosos de língua bastante respeitados na época. Mendonça, que também era professor do Colégio Pedro II e estudioso da dialetologia, declarou que “apoia inteiramente os pontos de vista do Sr. Antenor Nascentes”. Cândido Jucá Filho, que era professor do Instituto de Educação do Rio de Janeiro e tinha pelo menos dois trabalhos sobre a pronúncia carioca, considerou a utilidade de estabelecer uma língua padrão, mas observou que “a pronúncia carioca acha-se eivada de alguns defeitos deselegantes, assim o l é quasi pronunciado como u, o r pouco perceptível á distancia e o s chiado” (ANAIS, 1938, p. 12)[9].
O relatório das sessões plenárias registra a hesitação de Cândido Jucá Filho diante da escolha da pronúncia carioca como língua padrão. Embora não tenha contestado abertamente a proposta, ele declarou ser “a pronúncia paulista bastante clara em suas vogais dando ao ouvinte uma percepção de todos os seus sons” e concluiu sua fala “dizendo que apoiará sem embargo as ponderadas conclusões do Congresso” (ANAIS, 1938, p. 12)[9]. De acordo com os anais, no fim da sessão a proposta do Departamento de Cultura foi aprovada “por unanimidade de votos, com prolongada salva de palmas da assistência” (ANAIS, 1938, p. 15)[9].
Na terceira sessão plenária, teve início a discussão sobre a segunda parte do anteprojeto, que descreve os fonemas da língua padrão e estabelece as normas de pronúncia. O texto indica quantos são os sons vocálicos e os sons consonantais da língua padrão – referidos apenas como “vogais” e “consoantes” – e descreve cada um deles. Para entender o saber linguístico em que se baseava esse diagnóstico, é preciso considerar que em 1937 a linguística estrutural era ainda uma orientação recente13 e disputava espaço com a linguística histórica e comparativa. A abordagem desenvolvida pelos linguistas do Círculo de Praga, que delimita o fonema a partir de sua função no sistema da língua, era praticamente desconhecida no Brasil.
A fonética era um estudo naturalístico dos sons da língua e despertava interesse à medida que permitia descrever com maior precisão o processo histórico de mudança linguística. Entender esse mecanismo ajudaria a explicar como as línguas nascem umas a partir de outras, evoluem por diferenciação progressiva e desaparecem ao longo do tempo. Desta perspectiva, as pesquisas fonéticas seriam mais proveitosas à medida que pudessem detectar nuances na fala e distinguir os fonemas de forma detalhada. Os sons da língua eram investigados tanto do ponto de vista físico (fonética acústica) quanto do ponto de vista fisiológico (fonética articulatória). Embora distintas, essas duas abordagens podiam se complementar.
Na parte do documento que determina quantos e quais são os fonemas da língua padrão, a letra B representa duas consoantes – o que equivale, nos termos da fonética atual, a dois alofones do fonema /b/ – e as letras C e Q representam a mesma consoante. No texto, a descrição de cada som é seguida de exemplos, que destacam em itálico a correspondência entre o fonema especificado e a letra que o representa. Conforme o documento,
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São 25 as consoantes da lingua-padrão:
B oclusiva bilabial sonora (bom)
B fricativa bilabial sonora (aba, albor)
C ou Q oclusiva velar surda (caqui) [...] (ANAIS, 1938, p. 62).
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A forma como foram descritos e representados os fonemas da língua padrão revela algumas limitações do saber linguístico estabelecido à época. Ao que parece, a classificação articulatória não era suficiente para caracterizá-los, o que explica o uso de exemplos para indicar a sonoridade considerada. Com isso, leitores menos familiarizados com os estudos de fonética, como atores e cantores, teriam menos dificuldade para adotar a pronúncia padrão. Mas esse recurso tornava a descrição menos precisa, por se basear na associação de cada som a uma letra do alfabeto. Um leitor que não soubesse como cada exemplo deveria soar teria que partir da grafia e acabaria por associá-la à pronúncia equivalente em sua variedade local.
Essa questão veio à tona na quarta sessão plenária, quando alguns participantes pediram a supressão de um exemplo, alegando que a palavra em questão era pronunciada de forma diferente em algumas regiões. O problema foi percebido, mas não chegou a ser equacionado de maneira satisfatória.
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No capitulo “Regionalismo” travaram-se vivos debates sobre a pronúncia do exemplo “Tietê”, achando uns que devia ser retirado por ser pronunciado divergentemente em várias regiões. Em torno dessa argumentação objetaram vários congressistas entre os quais os Srs. Graco Silveira, Pio Lourenço Correia (pro êtê) e os Snrs. Luiz Heitor [Correia de Azevedo], [Carlos Marinho de] Paula Barros, Renato Mendonça e outros que reconhecem a coincidência do Tietê em várias regiões do país. O Prof. Mario de Andrade propõe então supressão completa da frase final do capítulo “Regionalismos” por não ter valor decisório para a pronúncia da lingua-padrão. Votada esta proposta, foi a mesma aprovada pela maioria (ANAIS, 1938, p. 20)[9].
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Entre os participantes mencionados, havia pelo menos dois estudiosos de língua – Graco Silveira, que era professor da Escola Normal de Itapetininga, e Renato Mendonça, que era professor do Colégio Pedro II. No entanto, como os relatos publicados na imprensa não registraram o caso, não há como saber quais argumentos foram apresentados. O resultado da votação mostra que a questão foi decidida sem que houvesse consenso a respeito. A solução apresentada – suprimir a passagem que motivou o debate – sugere que o grau de polarização entre os congressistas impediu o avanço do debate.
Essa não era uma limitação própria do congresso, mas uma característica do saber instituído no âmbito dos estudos linguísticos. Na comissão científica de filologia estavam dois dos principais foneticistas brasileiros, Antenor Nascentes e Cândido Jucá Filho, que se dedicavam à descrição da pronúncia carioca e tinham trabalhos a respeito. O texto do anteprojeto se baseava principalmente14 nas obras de Antenor Nascentes – O Linguajar Carioca em 1922 e o quarto volume de O Idioma Nacional – e no relatório “apresentado ao Diretor Geral da Instrução Pública do Distrito Federal, pela Comissão nomeada para estudar a pronúncia carioca” (ANAIS, 1938, p. 54)[9] e fixar o padrão de pronúncia a ser ensinado nas escolas primárias, profissionais e normais da capital.
Essa equipe, organizada em 1930 pelo próprio Antenor Nascentes, descreveu a fala carioca por meio da observação auditiva. Depois de fazer uma descrição preliminar dos fonemas e da maneira como são pronunciados, os membros da comissão visitaram instituições de ensino cariocas para confrontar essa versão com a pronúncia espontânea. O resultado foi estabelecido com base na pronúncia de aproximadamente “cem crianças cariocas e filhas de pais cariocas, de todas as classes” (apud PINTO, 1981, p. XXX)[14]. Na época, Antenor Nascentes reconheceu as limitações da pesquisa e lamentou a impossibilidade de registrar as amostras de fala em disco, mas sugeriu que essa descrição seria revisada após a instalação de um laboratório de fonética experimental no Colégio Pedro II – o que nunca chegou a ocorrer (NASCENTES, 2003 [1938], p. 385)[16].
Apesar do avanço tecnológico sinalizado por produções como a comunicação de Edgard Roquette-Pinto, sobre fonética experimental, e a gravação de pronúncias regionais em disco, realizada pelo Departamento de Cultura, a elaboração do anteprojeto contou basicamente com os mesmos recursos técnicos que a comissão organizada por Antenor Nascentes. O relato da terceira sessão plenária informa que
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O capítulo das “Normas Gerais” do Anteprojeto, que estabelece o número e o caracter das vogais e das consonâncias da lingua-padrão provocou vivas discussões de que participaram numerosos congressistas. Foi por todos reconhecida primordialmente, a natureza falível de semelhantes determinações enquanto não existam no país gabinetes de fonética experimental, que são o único elemento verdadeiramente científico e atual capaz de determinar de maneira insofismável o número e a natureza dos sons duma língua (ANAIS, 1938, p. 16).
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O consenso a esse respeito demonstra que, do ponto de vista epistemológico, o Congresso da Língua Nacional Cantada foi marcado não só pelo interesse na investigação empírica da variedade brasileira, mas também por uma mudança no modo de perceber o objeto da pesquisa linguística. Com o avanço da tecnologia utilizada nos estudos de fonética, a credibilidade atribuída à observação direta dos fenômenos já não seria suficiente para produzir resultados confiáveis. A percepção dos laboratórios de fonética experimental como uma necessidade básica mostra que a língua era abordada como fenômeno natural não só pelo uso de metáforas organicistas e pela adoção de modelos explicativos da História Natural ou da Biologia, mas também pela valorização de protocolos de observação utilizados nas ciências experimentais.
A exigência de rigor científico, inspirada no modelo das ciências naturais, se manifesta também nas mudanças propostas por estudiosos da língua ao texto do anteprojeto; mudanças que, em sua maioria, se referiam à terminologia científica. A denominação “oclusiva” foi rejeitada por Renato Mendonça, que propôs substituí-la por “explosiva”. Antenor Nascentes contestou a proposta e defendeu a manutenção da forma utilizada no documento. Em seguida, Cândido Jucá Filho recomendou a substituição de “oclusiva” por “plosiva”. O relato publicado em O Estado de São Paulo informa que a discussão se estendeu, “provocando apartes de congressistas como os srs. Graccho Silveira, Francisco Gorga e Antonio Sá Pereira” (O Estado de São Paulo, 09/07/1937, p. 11). As propostas foram colocadas em votação e, no fim das contas, permaneceu a denominação “oclusiva”.
Mesmo sem saber o motivo da divergência15, é possível interpretá-la como uma tentativa de padronizar a nomenclatura utilizada na descrição fonética. Esse anseio se revela também no interesse de alguns pesquisadores pelo sistema de transcrição da Associação Fonética Internacional. São exemplos disso durante o evento a comunicação apresentada por Cândido Jucá Filho na sessão de filologia, descrevendo aspectos da pronúncia carioca com base elementos do alfabeto fonético internacional, e uma declaração feita por Antenor Nascentes na última sessão plenária. De acordo com o jornal O Estado de São Paulo,
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O professor Antenor Nascentes fez a seguinte communicação oral: acha-se elaborando um vocabulario orthophonico brasileiro, possuindo achegas até a letra “j” e estando ainda á espera das matrizes do alphabeto phonetico internacional para a fixação da pronuncia brasileira (O Estado de São Paulo, 13/07/1937, p. 11).
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O esforço para transformar o projeto do Departamento de Cultura em pauta de interesse nacional ganhou contornos mais nítidos com a sugestão de que o “Segundo Congresso da Lingua Nacional Cantada” fosse realizado na capital do país em 1942 por iniciativa do Ministério da Educação e Saúde Pública e da Secretaria Geral de Educação e Cultura do Distrito Federal (ANAIS, 1938, p. 39). A cooperação entre as esferas municipal e federal seria justificada pela escolha da pronúncia carioca como a língua padrão nacional e pela expectativa de instituí-la enquanto política de Estado. A necessidade de uma segunda edição do evento seria justificada pelo caráter provisório das normas aprovadas e pela expectativa de aperfeiçoá-las com o auxílio dos laboratórios de fonética experimental – que eram escassos no país em 1937.
Além de propor a oficialização da nova variedade e a realização do próximo congresso, os participantes aprovaram, ao longo do evento, uma série de recomendações às diferentes esferas governamentais. A expectativa era de que as sugestões se traduzissem em políticas de língua e políticas de educação. Essas recomendações incluem a “criação duma Alta Escola de Arte Dramática que tenha incluso um Curso de Fonética da Lingua-Padrão”; a instalação de laboratórios de fonética experimental nas instituições públicas de ensino superior; o ensino do canto nas escolas públicas, por ser “útil á saúde”; a obrigatoriedade “desde os primeiros anos de estudo do canto” de exercícios baseados “nos fonemas e na pronuncia da lingua nacional” (ANAIS, 1938, p. 46-47)[9], entre outras.
Como se vê, as precauções que envolvem a fixação da pronúncia padrão em caráter provisório não impediram os congressistas de antecipar as etapas seguintes do processo. Tamanha convicção reflete a confiança no modelo das línguas nacionais europeias e a aposta na viabilidade de um desenvolvimento histórico similar no contexto brasileiro. Entre as premissas que sustentavam essa iniciativa, está o enquadramento da pronúncia padrão como objeto científico. Embora as leis que regem a evolução linguística local não fossem inteiramente conhecidas naquele momento, sua existência era considerada incontestável, assim como a independência da variedade brasileira em relação ao português europeu. Essa suposição aparece no item intitulado “Regionalismo”, no qual fica estabelecido que
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As palavras regionais não generalizadas no país, bem como termos técnicos de ofícios, costumes, flora, etc. regionais, ocorrentes em texto erudito, quando servirem para caracterização psicológica do assunto, obedecem á pronúncia regional em que vivem. [...]
Em casos porém em que a palavra regional fôr apenas uma fatalidade geográfica e não um valor psicológico do texto erudito, a pronúncia obedece ás tendências e leis fonéticas da lingua-padrão (ANAIS, 1938, p. 68)[9].
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Como indicava a primeira parte do documento, as pronúncias regionais seriam aproveitadas como recurso estético quando tornassem a performance artística mais autêntica. Isso se aplicava sobretudo ao vocabulário local, que contribui para a caracterização psicológica dos tipos humanos de cada região. O texto se refere à circunstância especificada como uma exceção e determina que em todos os outros casos “a pronúncia obedece ás tendências e leis fonéticas da lingua-padrão”. Essa formulação revela que os congressistas atribuíam à pronúncia padrão que acabaram de elaborar características das línguas nacionais investigadas pelos linguistas. Ou seja, a inexistência dessa variedade no uso corrente não impediu seu enquadramento enquanto objeto da ciência, como se sua vigência fosse já um fato consumado.
A percepção da pronúncia padrão como objeto de estudo e, ao mesmo tempo, como representação legítima da realidade linguística local modificava o status da variedade brasileira. Essa mudança foi expressa na última frase do documento, que sintetiza o modo como os congressistas interpretavam o resultado de seu trabalho: “O PRIMEIRO CONGRESSO DA LINGUA NACIONAL CANTADA exalta a pujança e riqueza da lingua nacional e lhe reconhece os direitos de vida e movimentos, que serão como a própria vida e os movimentos do Brasil” (ANAIS, 1938, p. 94)[9]. A existência de uma variedade “culta” independente do português europeu permitiria aos brasileiros alcançar a civilização com seus próprios meios. Essa possibilidade tornava a variedade brasileira uma língua nacional ao lhe conferir autonomia linguística e política em relação a Portugal.
Embora haja registros de sua preparação, entre 1945 e 1952, não há nenhum indício de que o Segundo Congresso da Língua Nacional Falada e Cantada tenha, de fato, ocorrido. Mas a iniciativa de Mário de Andrade motivou a realização eventos semelhantes nas décadas seguintes, como o Congresso Brasileiro de Língua Vernácula, promovido pela Academia Brasileira de Letras com apoio da Casa de Rui Barbosa em 1949; o Primeiro Congresso de Língua Falada no Teatro, organizado pelo Ministério da Educação em 1956; o Primeiro Congresso Brasileiro de Dialetologia e Etnografia, realizado pela Universidade do Rio Grande do Sul em 1958.
3. Considerações finais
Embora não tenha inspirado uma política linguística16 nacional, como esperavam seus participantes, o Congresso da Língua Nacional Cantada foi uma das iniciativas mais relevantes da história dos estudos linguísticos no Brasil e, possivelmente, o primeiro encontro científico de alcance nacional a colocar em pauta a investigação da variedade brasileira. As fontes a respeito apresentam um retrato bastante denso e complexo da produção científica sobre a língua na década de 1930 e permitem observar a dinâmica interna dessa área no momento em que surgiram os primeiros cursos superiores de Letras. Nas ciências e nas artes, esse período foi marcado pelo forte nacionalismo e pelo interesse em investigar a realidade linguística local e definir definição do status da variedade brasileira em relação ao português europeu.
A orientação neogramática era predominante entre os estudiosos de língua e, embora houvesse ciência, ainda não havia uma comunidade científica organizada. O congresso teve uma contribuição significativa neste sentido, justamente porque ajudou a definir uma nova agenda de pesquisas e colocou em discussão problemas técnicos e científicos considerados incontornáveis. As fontes mostram que os participantes do evento se orientavam pelos critérios de cientificidade vigentes à época no âmbito dos estudos linguísticos e reconheciam a limitação dos recursos disponíveis para a pesquisa linguística no Brasil.
Na época, embora houvesse uma compreensão da mudança fonética como fenômeno sistemático, a identidade linguística era entendida como equivalente da identidade nacional. A fonética era considerada a especialidade que permite observar na língua a manifestação dos traços étnicos ou raciais característicos da nacionalidade. Essa função ontológica atribuída ao fonema é o que justifica a percepção dos laboratórios de fonética experimental como “o único elemento verdadeiramente científico e atual capaz de determinar de maneira insofismável o número e a natureza dos sons duma língua” (ANAIS, 1938, p. 16)[9]. Nesta medida, a investigação da língua, seja para determinar o padrão nacional ou para descrever as variedades regionais, tinha ao mesmo tempo sentido científico e político.
As normas aprovadas pelos congressistas correspondem a uma versão modificada da fala carioca, considerada a mais evoluída do país e a única capaz de reunir traços de todas as outras regiões. No entanto, a variedade que serviu de base para a padronização da pronúncia brasileira corresponde às práticas linguísticas da elite e da parcela dita “culta” das classes médias urbanas da capital federal. Tanto que algumas formas características da fala popular do Rio de Janeiro foram excluídas da pronúncia padrão porque eram associadas à fala das classes populares, consideradas “incultas”. Este fato demonstra o caráter elitista das normas aprovadas e os limites do discurso de incorporação da realidade linguística brasileira à língua padrão nacional.
Não parece simples distinguir qual o legado deixado pelo Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada. Sua importância para a história dos estudos linguísticos no Brasil se traduz, sobretudo, na permanência dos problemas discutidos durante o evento. Como mostra Altman (1998)[17], nas décadas seguintes, o enfoque dialetológico na descrição das variedades regionais e a busca de um padrão de pronúncia brasileiro para as performances artísticas, temas que marcaram a identidade do evento, continuariam a ser os alvos preferenciais da pesquisa linguística desenvolvida no país.
Agradecimentos
A pesquisa em que se baseia este artigo foi financiada com uma bolsa de doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
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