A Linguística Popular e a Historiografia Linguística

Marcelo Rocha Barros Gonçalves

Resumo

Este ensaio está inserido na área de investigação dos chamados “estudos ecolinguísticos” (SWIGGERS, 2013, p.47), ou seja, estudos “que dizem respeito ao entrelace entre concepções de usuários e concepções de linguistas”. Destarte, pretendemos avaliar os enunciados (e por que não tipos de discursos?) que foram proferidos sobre a Linguística Popular no ambiente acadêmico – como se constituíram textualmente ao longo do tempo e em diferentes geografias - ao mesmo tempo em que refletimos sobre a sua constituição enquanto um fato linguístico, sobretudo se nos debruçarmos sobre as manifestações de não especialistas em matéria de língua e linguagem. Nossos objetos primários (os textos sobre a Linguística Popular) são analisados mediante sua inserção num circuito mais amplo da Linguística, considerando sua posição nos estudos atuais em face do próprio horizonte de retrospecção (AUROUX, 1992) que nos remete, por exemplo, ao texto de Leonard Bloomfield, de 1944, quando se referiu aos dados secundários e terciários de linguagem. Por último, especialmente pensando em publicações mais recentes neste campo de estudos, pretendemos verificar ou indicar tendências e horizontes de pesquisa neste campo de estudos no Brasil

Introdução

Para responder se a Linguística Popular é um objeto possível para a Historiografia da Linguística, Breckle (1984, p.56)[1] tomou-a num sentido duplo: como uma disciplina da Linguística “que se preocuparia com as opiniões e práticas que qualquer "falante natural" faz funcionar no uso da língua” e como o próprio “conjunto de dados de uma história da linguística”. Tomando a Linguística Popular também nesta perspectiva dupla, ora como teoria, ora como o próprio conjunto de dados, pretendemos discuti-la neste ensaio a partir da perspectiva da historiografia da linguística, mais especificamente a partir das tarefas de uma meta-historiografia para proposição de uma abordagem integrativa das manifestações de falantes comuns que, ao mesmo tempo em que produzem comentários sobre a língua(gem), produzem saberes que podem contribuir para a própria constituição de teorias linguísticas espontâneas em acordo, ou não, com o conhecimento linguístico acadêmico.

Numa das organizações realizada por Swiggers (2013, p.40)[2] para o campo de estudos em historiografia (da) linguística, foram estabelecidas as tarefas da meta-historiografia: as tarefas construtiva, crítica e metateórica. Na primeira tarefa seria realizada a “elaboração de um modelo historiográfico e construção de uma linguagem historiográfica”, na segunda a “avaliação de tipos de discurso historiográfico aliada à proposta de análise e apreciação das abordagens metodológicas e epistemológicas adotadas nos textos analisados”, e na terceira a “reflexão sobre o objeto, o status da historiografia, sobre a justificação das formas de apresentação e sobre o que é um “fato” linguístico [linguistic fact] para o historiador”.

Este ensaio, assim, estaria inserido na área de investigação dos chamados “estudos ecolinguísticos” (SWIGGERS, 2013, p.47)[2], ou seja, estudos “que dizem respeito ao entrelace entre concepções de usuários e concepções de linguistas”.

Destarte, pretendemos avaliar os enunciados (e por que não tipos de discursos?) que foram proferidos sobre a Linguística Popular no ambiente acadêmico – como se constituíram textualmente ao longo do tempo e em diferentes geografias - ao mesmo tempo em que refletimos sobre a sua constituição enquanto um fato linguístico, sobretudo se nos debruçarmos sobre as manifestações de não especialistas em matéria de língua e linguagem. Nossos objetos primários (os textos sobre a Linguística Popular) seriam portanto analisados mediante sua inserção num circuito mais amplo da Linguística, considerando sua posição nos estudos atuais em face do próprio horizonte de retrospecção (AUROUX, 1992)[3] que nos remete, por exemplo, ao texto de Bloomfield, de 1944, quando se referiu aos dados secundários e terciários de linguagem. Por último, especialmente pensando em publicações mais recentes neste campo de estudos, pretendemos verificar ou indicar tendências e horizontes de pesquisa neste campo de estudos no Brasil.

1. As propostas de definição

Há uma parábola linguística baseada no Antigo Testamento quase sempre glosada nos textos introdutórios ou manuais de Sociolinguística para dar conta do conceito de variação (e variante): a famosa senha Shibboleth. Em Juízes 121, na peleja de Jefté contra os efraimitas:

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“5. [...]os gileaditas tomaram os vaus do Jordão que conduzem a Efraim: de sorte que, quando qualquer fugitivo de Efraim dizia: Quero passar; então os homens de Gileade lhe perguntavam: és tu efraimita? Se respondia: Não;

6. então lhe tornavam: Dize, pois Chibolete; quando dizia Sibolete, não podendo exprimir bem a palavra, então pegavam dele, e o matavam nos vaus do Jordão. E caíram de Efraim naquele tempo quarenta e dois mil.”

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O que vamos destacar desta parábola é que, para além da questão tradicionalmente compreendida como uma variação fonética diatópica, o caso clássico de diferença de “sotaque” numa mesma comunidade de fala diz respeito a um tipo de avaliação que o falante comum faz sobre a língua - ou seja, um não linguista produz um saber popular sobre a sua própria língua. Nesse contexto bíblico, era um não especialista quem decidia pela vida e a morte de alguém conforme a sua avaliação do que o outro dizia, uma escolha difícil entre as fricativas alveolar [ s ] e pós-alveolar [ ʃ ].

No Dicionário Crítico de Sociolinguística (BAGNO, 2017, p.29)[4], o verbete Avaliação (evaluation) refere-se “à propensão das pessoas a emitir juízos acerca de diferentes formas linguísticas”. Para o autor, “esses juízos refletem certas atitudes a respeito de línguas e variedades linguísticas”. Na circularidade inerente a estes tipos de instrumentos linguísticos, o verbete remete à definição de atitude: “Atitudes linguísticas são opiniões, concepções ou mesmo manifestações concretas que as pessoas têm acerca de sua própria língua, da língua de outros grupos sociais e, sobretudo da variação linguística” (BAGNO, 2017, p.21)[4].

Em ambos os casos, ainda que o falante comum esteja em foco nestas duas entradas dicionarizadas, nada é dito a respeito da Linguística Popular: o termo Linguística Folk será apresentado somente à página 254, mas já sem nenhuma relação com as atitudes do falante, atrelado tão somente à questão do senso comum e das “crenças que incluem geralmente juízos de valor sobre qualidades estéticas de uma língua [...]” (BAGNO, 2017, p.254)[4]. Nesta concepção de Bagno (2017), de certa maneira a standard pronunciada desde muito pela Linguística Moderna, “esse senso comum se manifesta, com frequência, na forma do preconceito linguístico e nas práticas de higiene verbal” e “as crenças do senso comum acerca da(s) língua(s), estão quase sempre em desacordo com as teses elaboradas pelos linguistas profissionais”.

Na linguística pós-saussuriana os primeiros investimentos nos dados populares estão comumente atribuídos aos trabalhos de Henry Max Hoengniswald (1915-2003), nas célebres comunicações da UCLA2 sobre os dados populares em Linguística (BRIGHT, 1966)[5]. Em Paveau (2021, p.16), por exemplo, vemos a seguinte afirmação: “O domínio anglo-saxônico da folk linguistics foi aberto nos anos 1960 do século passado pelos trabalhos inaugurais de Hoenigswald (1960, 1996), que reivindicou firmemente que se leve em conta os saberes espontâneos na constituição de toda a ciência”. Em Niedzielski; Preston (2003, p.2)[6]: “The tradition is much older, but we shall date interest in folk linguistics from the 1964 UCLA Sociolinguistics Conference and Hoenigswald's presentation there entitled "A proposal for the study of folk-linguistics.”

Nas próximas seções, com o intuito de apreciar a constituição daquilo que poderíamos chamar de um ideário linguístico popular, faremos a apresentação da linguística popular através dos mais diversos autores e textos no tempo.

2. De Hoengniswald (1915-2003) aos não linguistas de Bloomfield (1887-1949)

Hoengniswald participara em 1964 da conferência sobre Sociolinguística da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) de uma “sabatina linguística” (GONÇALVES, 2021)[9] na qual apresentou a possibilidade de uma agenda de pesquisa em estudos de linguística popular. Terminava sua exposição com uma espécie de prospecção para a pesquisa e uma crítica direta à posição de Bloomfield (1944)[7] sobre os dados secundários e terciários, apontando para os interesses do campo que deveriam residir “não apenas em (a) o que acontece (idioma), mas também em (b) como as pessoas reagem ao que acontece (são persuadidas, são afastadas etc.) e em (c) o que as pessoas dizem sobre a linguagem” (ver GONÇALVES; BARONAS; CONTI, 2021)[8].

Nesta sabatina, da qual participaram outros linguistas como Dell Hymes (1927-2009), William J. Samarin (1926-2020), Charles Ferguson (1921-1998) e William Labov, dentre outros, Hoengniswald expos o que seriam as linhas mestras dos estudos em linguística popular, desde suas relações com áreas externas à ciência da linguagem (mas correlatas como a Antropologia) até os mais diferentes níveis de análise em linguística e suas diferentes áreas de interesse, como o estudo dos atos de fala, do vocabulário (sinônimos e homônimos), do bilinguismo, etc.

Na perspectiva de Hoengniswald (Ver GONÇALVES; BARONAS; CONTI, 2021, p.15)[8]:

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Existe o hábito, em si mesmo honroso, indispensável e profundamente arraigado, de desconsiderar os pronunciamentos dos informantes em sua língua. Em questões extralinguísticas, é suficiente compreender que deve haver uma distinção entre a cultura ideal e a real, então o pesquisador é livre para estudar cada uma separadamente ou mesmo em conjunto. No caso da linguagem, uma história infeliz do passado impediu isso; a necessidade de advertir contra a confusão dos fatos da fala com os comentários sobre a fala tem sido real demais para permitir um interesse muito sério nessa última. Assim, aconteceu que (me disseram) existe um corpo considerável de informações sobre crenças populares relacionadas à vida das plantas, clima, saúde, até instituições sociais e história; há etnozoologia e etnomedicina, e todas essas coisas foram sujeitas a estudo por direito próprio; mas a crença sobre a linguagem é diferente, embora os dados mostrem o contrário.

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É, contudo, Einar Haugen (1906-1994) que fará o destaque da oposição de Hoengniswald aos trabalhos de Leonard Bloomfield (1887-1949), em especial ao seu trabalho de 1944 intitulado Secondary and Tertiary Responses to Language, trabalho no qual se desenvolve uma “discussão das declarações populares convencionais sobre a linguagem” (BLOOMFIELD, 1944, p.45)[7]. Para Haugen (Ver GONÇALVES; BARONAS; CONTI, 2021, p.20)[8]: “os termos que o professor Hoenigswald utiliza no final de seu artigo, reações "secundárias" e "terciárias", decorrem de um famoso artigo de Leonard Bloomfield (1944). A atitude de Bloomfield em relação a essas reações foi definitivamente negativa”.

Haugen observou convergências entre as proposições de Hoengniswald e seus próprios trabalhos desenvolvidos sobre os dialetos noruegueses na América, especialmente em relação à atitude dos falantes sobre os seus próprios dialetos. Por fim, destacou no trabalho de Hoengniswald o potencial de inclusão dos estudos de etimologia popular na Linguística Popular, algo que fora textualmente rechaçado pela navalha Sausseriana3 do início do século XX.

Mas em que consiste a recusa bloomfieldiana às declarações populares sobre a linguagem?

Na base da repulsa de Bloomfield aos enunciados produzidos por falantes comuns sobre linguagem reside um argumento perenal que se sustenta na oposição eliminativa entre os saberes linguísticos populares e o conhecimento científico acadêmico. Dito de outra forma, são pareados diametralmente em oposição os trabalhos dos leigos e o ofício dos especialistas, os linguistas. Não se trata assim de anacronicamente atribuir à Bloomfield um deslize, mas especificamente reconhecer que a detratação da Linguística Popular passa pelo não reconhecimento das práticas linguísticas dos falantes ordinários sobre língua e linguagem, ou, no limite, o não reconhecimento dos próprios falantes comuns, dos não linguistas, como capazes de produzir um saber sobre a língua.

Vejamos como se pronuncia Bloomfield (1944, p.45)[7]:

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Em outro nível que não o científico, nossa cultura mantém um sistema de pronunciamentos vagamente organizado, mas bastante uniforme sobre a linguagem. Formas de fala desviantes em dialetos diferentes do dialeto padrão são descritas como corrupções das formas padrão ('erros', 'gramática ruim') ou marcadas como totalmente fora dos limites, no mesmo nível dos solecismos de um falante estrangeiro ('não é o inglês '). As formas do dialeto padrão são justificadas com base na "lógica". Seja com base na força da consistência lógica ou na busca de regras autoritárias amplamente convencionais, que constituem uma tradição menor dentro da principal (pois, por exemplo, as regras sobre o shall e o will), certas formas são teoricamente prescritas para o dialeto padrão. Quando se percebe que falantes do dialeto padrão não usam essas formas ou usam outras ao lado delas, esses desvios são novamente marcados como 'erros' ou, menos frequentemente, atribuídos a 'uso', que aparece aqui apenas como um especial e limitado fator, mencionado duvidosamente como interferindo em controles mais legítimos. (BLOOMFIELD, 1944, p. 45)[7].

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Para Bloomfield, estes não linguistas são considerados muitas vezes como ignorantes ou selvagens em oposição aos especialistas4, e teriam pouco a contribuir para os estudos linguísticos strictu sensu. Niedzielski; Preston (2003, p.1-2)[6] resumem assim a visão que Bloomfield estabelece para os não linguistas: eles sempre acreditam que algumas línguas são primitivas, menos evoluídas, pobres de muitas maneiras, inclusive pelo tamanho do vocabulário; não linguistas sempre acreditam que não existe algo como uma ciência da linguagem, e, por conseguinte, falantes nativos e leigos inteligentes poderiam ser considerados autoridades no assunto.

3. Sobre o paradigma popular de Hymes

Hymes fora um entusiasta das colocações de Hoengniswald sobre a pesquisa em Linguística Popular. Participante ativo naquilo que denominamos acima de “sabatina linguística”, o etnógrafo publicaria em 1974 o Studies in the History of Linguistics: Traditions and Paradigms (HYMES, 1974)[10], no qual uma de suas partes fora dedicada à Linguística popular (no original folk linguistics). Anos mais tarde, o texto, que havia sido publicado como a introdução do livro de 1974, foi republicado como um capítulo dentro da coletânea Essays in the History of Linguistic Anthropology (ver HYMES, 1983)[11].

Trata-se de um trabalho importante para os estudos folk, uma vez que reivindica seu lugar dentro de uma história da linguística:

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Such a perspective gives reason to consider the nature and sources of reflection on language in all conditions of community. Scholarly studies have begun with the point at which reflection on language, and analysis of it, has left written trace. There is something to be gained, however, from inquiry into the conceptions of language held by societies without institutionalized linguistics. Comparative study of such information can shed light on the range of interests and motives for reflection on language. Given due caution, such study can suggest something of the earliest matrices of interest in language, out of which what we know as linguistics has grown. It can suggest something of the matrices of interest in language in which linguistics takes root (or fails to take root) in the world today. (HYMES, 1983, p.346/347)[11].

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Ao asseverar que há mesmo um descompasso entre o conhecimento científico e popular nos estudos linguísticos, Hymes aponta de novo para o mesmo problema que Bloomfield, em outras palavras, havia levantado negativamente. A perspectiva de Hymes era a de que estes dados da reflexão sobre a linguagem produzida pelos falantes comuns deveriam ser integrados à pesquisa, e não simplesmente desconsiderados, ou mesmo negados, para a análise da própria realidade linguística da língua/comunidade estudada.

4. A Linguística Folk norte-americana

A base teórica da Linguística Popular se assenta sobre a concepção de que saberes linguísticos podem ser produzidos por não especialistas no ato de linguagem, em oposição ou não ao conhecimento científico produzido pelos profissionais treinados. Isto implica reconhecer que falantes comuns não só têm a dizer alguma coisa sobre língua e linguagem, mas que realmente o fazem inclusive em termos teóricos. Na perspectiva de Niedzielski; Preston (2021, p. 13)[6]: “A Linguística Popular (LP) tem como objetivo descobrir e analisar crenças e atitudes em relação à linguagem em todos os níveis de produção linguística, percepção e incorporação cognitiva, coletando e examinando comentários abertos sobre ela por não linguistas”.

Os mesmos autores (NIEDZIELSKI; PRESTON, 2003)[6], na primeira parte do Folk Linguistics, se utilizam de uma representação gráfica para apresentar o lugar da Linguística Popular numa teoria geral de estudos da linguagem. O ponto de partida para a elaboração da versão triangular do diagrama (FIGURA 1) foi exatamente o conjunto de três afirmações lá trás formuladas por Hoenigswald5:

Figure 1. FIGURA 1 – O lugar da Linguística Popular nos estudos da linguagem Fonte: Niedzielsky e Preston (2000, p.26).

Os autores (NIEDZIELSKI; PRESTON, 2000, p. 32)[6] desenvolvem uma abordagem própria para a Linguística Popular, além de apontar para as relações com outros tipos de estudos de/em/sobre a língua(gem), como a dialetologia popular, a sociolinguística e os estudos sobre folclore e etnografia. Por último, destacamos o desenvolvimento de pesquisas no campo da Linguística Popular afeitas ao que se convencionou denominar de Pragmática Popular (do original Folk Pragmatics):

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Se apreciarmos o valor da LP em geral, deve ser direto sugerir que vale a pena fazê-lo em todos os níveis linguísticos e de todos os pontos de vista de pesquisa. Isto é, assim como existe a fonologia, a sintaxe e a semântica popular, existe a pragmática popular. [...] Se alguém tiver uma visão ampla da pragmática, que inclui conversação e organização de texto, bem como as várias práticas comunicativas, como polidez e estratégias de deferência, como fazemos, então há pouca dúvida de que os domínios dessas áreas em um “são vários e complexos”, ainda mais pelo reconhecimento de que a competência pragmática inclui habilidades receptivas e produtivas. (NIEDZIELSKI; PRESTON, 2021, p. 17)[6].

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Ainda que alguns trabalhos tenham sido desenvolvidos anteriormente, podemos considerar que a Linguística Folk norte-americana teve suas bases estabelecidas com a publicação do Folk Linguistics em 1999, data da sua primeira edição.

5. A Linguística Popular em França

No contexto francês, a organização do campo, em tempos mais recentes, tem início com as publicações na Revista Pratiques6 em 2008. Diferentemente do contexto anglo-saxofônico, especialmente o norte-americano, no ambiente francófono há uma incorporação dos estudos discursivos para análise das reflexões de falantes comuns sobre a língua/linguagem. Além do estabelecimento das formas e dos domínios da Linguística Popular no país e da apresentação de trabalhos que articulam as reflexões de falantes comuns às questões de ensino de línguas, podemos destacar, sobretudo pelo trabalho de Paveau (2008), uma proposta antieliminativa entre a Linguística Popular e a Linguística strictu sensu e uma proposta de tipologia (não categorizante) dos não linguistas.

As práticas linguísticas propostas por Paveau (2020, p. 19-20)[12] são apresentadas num modelo quatripartite7, com práticas do tipo Descritiva, Normativa, Intervencionista e Militantes. Nas práticas descritivas, como o próprio nome sugere, ocorrem as descrições ou (pré) teorizações linguísticas, por exemplo, que estabelecem uma hierarquia entre o oral e o escrito ou que explicitam as regras de uso de uma determinada língua.

As práticas normativas são as prescrições linguísticas, muitas das vezes comportamentais, e incluem desde o normativismo linguístico e as “boas” práticas de linguagem até mesmo a repulsa aos neologismos, empréstimos, etc. As práticas intervencionistas são aquelas nas quais os falantes realizam intervenções espontâneas sobre a língua, como por exemplo na proposição de etimologias populares. Por fim, as práticas militantes são aquelas nas quais não especialistas questionam determinados usos linguísticos, em especial os de caráter racista, machista, homofóbico, etc.

Quanto à categorização dos não linguistas, inicialmente proposta por Paveau (2008), as posições/categorias

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“são classificadas por “coeficiente” decrescente de detenção de um saber linguístico e acompanhadas de uma categorização aproximada do tipo de práticas executadas. [...] Tais posições não são, evidentemente, discretas, mas porosas e até mesmo transversais, podendo um falante passar de uma posição a outra” (PAVEAU, 2020, p.30-31)[12].

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Por ocasião da publicação da palestra de abertura do Seminário Internacional de Estudos em Linguística Popular – SIELIPOP, Paveau (ver BARONAS; COX, 2020, p. 45)[13] abandonou a antiga designação binária da tipologia de não linguistas. Na nova tipologia de linguistas populares incluiu os militantes, entre os linguistas amadores e os logófilos, e as crianças, entre os escritores (as)/ensaístas e os ludo-linguistas.

6. A linguística popular hoje no Brasil

A recepção da Linguística Popular no Brasil se deu via francesa, especialmente pela incorporação dos estudos discursivos sobre as manifestações dos falantes comuns. Numa longa série de publicações que ainda se desenvolve, a primeira publicação de Paveau (2018)[14] consta na Revista Policromias8, tratando da problematização dos não linguistas e de como suas práticas discursivas podem ser integradas à produção de conhecimento linguístico especializado. Conforme Paveau (2018, p.23)[14]: “os enunciados folk não são necessariamente crenças falsas a serem eliminadas da ciência. Constituem, ao contrário, saberes perceptivos, subjetivos e incompletos, a serem integrados aos dados científicos da linguística”.

A publicação em 2019 do Dossiê Linguística Popular/Folk Linguistics, organizado pelos pesquisadores Roberto Leiser Baronas e Maria Inês Pagliarini Cox, publicado com seis textos na Revista Fórum Linguístico9, a realização do I Seminário Internacional de Estudos em Linguística Popular – SIELiPop e I Instituto de Análise Caipira do Discurso – homenagem a Amadeu Amaral (1920) pelo centenário de publicação do livro O Dialeto Caipira10 com apoio financeiro da CAPES e FAPESP, bem como a recente publicação do livro de Paveau (2021) Linguística folk: uma introdução demonstra, por um lado, que se trata de um campo que já nasce com muito viço e, por outro, oferecendo inúmeras possiblidades de pesquisa.

Por fim, destacamos a proposição do dossiê temático na Revista Porto11, e as recentes publicações pela editora Letraria do Linguística popular: contribuições às ciências da linguagem (BARONAS; GONÇALVES; SANTOS, 2021[15]) e do Estudos em Linguística Popular/Folk Linguistics no Mato Grosso: primeiras aproximações (BARONAS; COELHO; ALMEIDA, 2021[16]), nos quais são oportunizados trabalhos de pesquisadores estrangeiros vertidos para a língua portuguesa, bem como textos de autoria de pesquisadores nacionais no campo dos estudos em Linguística Popular. Em vias de criação encontra-se o Grupo de Trabalho (GT) em Linguística Popular na Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL12), um gesto em direção à institucionalização dos estudos em Linguística Popular no Brasil.

7. Considerações Finais

Percorremos aqui quase um século de produções acadêmicas sobre a Linguística Popular, ou melhor, sobre as reflexões sobre a língua e linguagem, tomadas como um objeto possível do campo de estudos da Historiografia da Linguística. Nossa proposta, portanto, pretendeu incluir os estudos em Linguística Popular como objetos possíveis do campo da Historiografia, especialmente se pensados a partir do entrelaçamento entre as concepções espontâneas de falantes comuns sobre linguagem e os saberes científicos produzidos por especialistas, neste caso, os linguistas. Do ponto de vista de uma Historiografia da Linguística, especialmente circunscrita à formulação de manifestações espontâneas sobre língua e linguagem, os estudos sobre a Linguística Popular podem melhor contribuir para uma investigação sobre o conhecimento ecolinguístico elaborado no passado em oposição (ou não) à produção acadêmica e científica em Linguística no Brasil, nos termos propostos por Swiggers (ver DE OLIVEIRA BATISTA, 2019, p.49 e 52)[17].

Por último, ainda que não autoproclamados como trabalhos realizados em Linguística Popular, destacamos aqui algumas pesquisas linguísticas em que a percepção, as atitudes e as crenças dos falantes, ou mesmo a institucionalização dos saberes cotidianos, estejam em suas próprias coberturas de investigação. Trabalhos como o de Oushiro (2015)[18] e Freitag; Oushiro (2019)[19] sobre avaliação, produção e percepção linguística na Sociolinguística, de Freitag; Cardoso; Pinheiro (2020)[20] sobre atitudes e julgamentos de falantes e de Ferreira (2020)[21] sobre os saberes linguísticos cotidianos no campo da História das Ideias Linguísticas, por exemplo, demonstram a pertinência do tema popular/folk e sua multiplicidade de abordagens para as pesquisas em linguística no Brasil atualmente.

Referências

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