Discurso, migração e cinema
Resumo
Considerando o crescente número de pessoas forçadas a migrar devido a fatores como guerras e miséria, este estudo se volta para o exame da representação de migrantes no universo discursivo a partir de duas obras cinematográficas: o aclamado Que horas ela volta? (2015), escrito e dirigido por Anna Muylaert, e Fatima (2015), longa francês dirigido por Philippe Faucon. Os filmes tomados como objeto de estudo possuem como protagonistas mulheres que deixaram sua terra natal para trabalhar como empregadas domésticas em países ou cidades mais desenvolvidas. Este trabalho objetiva analisar a representação de mulheres pertencentes a grupos marginalizados com a finalidade de comparar a realidade das minorias representadas no Brasil e na França pelos discursos mobilizados nos filmes. As reflexões acerca do corpus se deram à luz da semiótica discursiva, especialmente a partir de seu nível discursivo, uma vez que as ideologias veiculadas pelas obras fílmicas podem ser apreendidas em seus percursos temáticos e figurativos. Dentre os principais temas discutidos, os filmes possuem em comum a subalternidade da empregada doméstica, o patriarcalismo e a inferioridade da imigrante (nordestina, no caso do filme brasileiro, e muçulmana, no caso do filme francês). Como resposta a tais ideologias, os enunciadores dos dois filmes apresentam o tema do questionamento da ordem social, que se faz representar, na tela, pelas filhas dessas duas mulheres. Embora esse tema seja trabalhado de maneiras diferentes, por se tratar de países e culturas distintas, as duas obras provocam nos enunciatários uma reflexão sobre as desigualdades existentes na sociedade ocidental
Introdução
O século XXI tem sido marcado pela construção de um novo paradigma relativo à mobilidade dos seres humanos. As migrações, inerentes à trajetória do homem, ganham novos contornos na medida em que a sociedade se vê diante de uma crescente globalização e, paralelamente, confronta as novas crises humanitárias responsáveis pelo aumento do êxodo populacional. De acordo com dados do World Migration Report 20201 divulgados pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), atualmente, o mundo possui cerca de 272 milhões de migrantes internacionais. Até o final de 2020, conforme dados publicados no relatório Global Trends: Forced displacement in 20202 82,4 milhões de pessoas haviam sido deslocadas à força em todo o mundo, sendo que 26,4 milhões delas são refugiadas3 O número de pessoas que se deslocam em seus próprios países – migração interna – é ainda maior. Apenas em 2020, 48 milhões de migrantes se mudaram devido a conflitos e violência e 7 milhões devido a desastres, segundo o Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (IDMC)4.
Esses sujeitos, que se veem forçados a migrar por diferentes razões, são comumente representados como uma ameaça pela sociedade, que os silencia e, por vezes, lhes impede o acesso a direitos humanos básicos. Dentre os diferentes grupos de migrantes, encontram-se as mulheres que sofrem violências “justificadas” por seu gênero. Tendo em vista o caráter patriarcal em que se ancora, ainda hoje, nossa sociedade, o papel social das mulheres tem sido, via de regra, determinado por homens, que se beneficiam com a manutenção da desigualdade de gêneros. O machismo é responsável pela violência contra mulheres em diversas instâncias, o que faz com que elas constituam um grupo minoritário constantemente agredido (física e moralmente) e silenciado.
Pessoas pertencentes a esse e a outros grupos minoritários são segregadas pela classe socioeconomicamente dominante, que determina a posição e o acesso de cada um a posições hierárquicas na sociedade, marginalizando aqueles que não se enquadram no padrão estabelecido como superior. Uma das formas predominantes de se consolidar essa estrutura social se dá pelo discurso, o que pode ser evidenciado por meio das falas e demais formas textuais que circulam nas vozes e também nos silêncios que nos cercam. Sendo assim, faz-se necessário analisar a maneira pela qual as pessoas que estão à margem da sociedade – no âmbito dos ditos grupos minoritários – são representadas e se representam do ponto de vista discursivo, o que nos leva a buscar o apoio da semiótica discursiva (ou francesa) para chegar a essas representações.
Considerando que há um crescente número de pessoas que, em função de fatores como guerras e miséria, migram de uma região para outra dentro de um mesmo país ou migram para outros países, é preciso que haja uma mobilização em torno dos discursos dos e sobre migrantes e refugiados. Nesse sentido, dois filmes foram selecionados, com o intuito de se fazer um estudo comparativo, à luz da teoria semiótica (sobretudo do nível discursivo do percurso gerativo de sentido), sobre as representações de mulheres migrantes em dois diferentes contextos: brasileiro e francês.
O primeiro filme escolhido, de nacionalidade brasileira, é o aclamado Que horas ela volta? (2015), escrito e dirigido por Anna Muylaert. O longa-metragem possui como protagonista a personagem Val, uma nordestina que se muda para São Paulo para trabalhar como empregada doméstica, deixando sua filha Jéssica em Pernambuco. Anos depois, quando Jéssica decide ir para São Paulo para prestar vestibular e é “acolhida” na casa em que sua mãe vive e trabalha, diversas questões relacionadas à desigualdade social são evidenciadas e questionadas no desenrolar da trama.
O segundo filme selecionado é Fatima, de nacionalidade francesa, que foi dirigido por Philippe Faucon e que também estreou no ano de 2015. Ganhador de três César, prêmio mais prestigioso do cinema francês, o longa-metragem conta a história de Fatima, uma mulher que deixa a região do Magrebe (noroeste da África) para morar na França. No país, a personagem tem longas jornadas de trabalho como faxineira para que, sozinha, consiga criar suas duas filhas. Fatima enfrenta inúmeras dificuldades não só por ser empregada doméstica, mas principalmente por ser uma imigrante árabe em um país europeu, sem ter um bom conhecimento da língua. O enredo aborda ainda as diferenças inerentes ao papel das mulheres nas sociedades muçulmana e ocidental.
A escolha desses filmes justifica-se não apenas porque, tendo como protagonistas mulheres, eles permitem refletir sobre as determinações patriarcais no que tange ao comportamento feminino, mas também por seu teor crítico em relação aos papeis sociais ocupados pelas diferentes classes econômicas (no caso, empregador vs. empregado), além do fato de que eles abrem espaço para a discussão sobre os preconceitos e estereótipos que cercam as mulheres migrantes.
Nosso objetivo maior é, pois, o de apreender, descrever e analisar, à luz da semiótica discursiva, a(s) representação(ões) de mulheres pertencentes a grupos marginalizados das/nas sociedades brasileira e francesa, a partir de duas obras cinematográficas, a fim de comparar a realidade das minorias representadas no Brasil e na França pelos discursos mobilizados nos filmes.
1 Questões teórico-metodológicas
O estudo que propomos é de natureza descritiva e interpretativa, fundamentando-se, do ponto de vista teórico, na semiótica discursiva, como já foi anunciado na Introdução. De acordo com Greimas e Courtés (2008[1]), a semiótica busca explicitar as condições da apreensão e da produção de sentido do texto, isto é, “o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz”, como explica Barros (2001, p. 11[2], grifo do original). O objeto da semiótica, para Bertrand (2003, p. 11[3]), é o sentido:
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Domínio infinitamente vasto, do qual se ocupa o conjunto das disciplinas que constituem as ciências humanas, da filosofia à linguística, da antropologia à história, da psicologia à sociologia. Uma restrição, portanto, impõe-se logo de início: a semiótica se interessa pelo “parecer do sentido”, que se apreende por meio das formas da linguagem e, mais concretamente, dos discursos que o manifestam, tornando-o comunicável e partilhável, ainda que parcialmente.
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A semiótica greimasiana é, portanto, uma teoria que se estende para outros domínios além da linguística. Conforme afirmam Lara e Matte (2009, p. 343-344[4]), trata-se “de uma teoria linguística com grande poder interdisciplinar, que permite análises textuais nos mais diversos campos do conhecimento que dela podem valer-se para resolver problemas relativos à construção do sentido em diferentes objetos”.
Distinguindo um plano de conteúdo e um plano de expressão (que não será aqui abordado), a semiótica estabelece como dispositivo teórico-metodológico para o estudo do primeiro plano o percurso gerativo de sentido, que busca analisar o texto a partir de três níveis: fundamental, narrativo e discursivo – indo do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Conforme explica Fiorin (2018, p. 30[5]), trata-se de um “simulacro metodológico do ato real de produção significante”. Cada etapa desse percurso possui uma gramática própria, composta por uma sintaxe, que compreende o conjunto de mecanismos que ordena os conteúdos, e uma semântica, que diz respeito aos conteúdos investidos nos arranjos sintáticos.
Como instrumental teórico-metodológico, o nível discursivo é o que mais interessa a este trabalho. O componente sintático desse nível examina, além das relações que se instauram entre enunciador e enunciatário, as projeções de pessoa, tempo e espaço da enunciação no enunciado. Essas projeções geram efeitos de sentido como o de subjetividade, resultante da instauração de um eu-aqui-agora no texto (debreagem enunciativa), ou de objetividade, quando ocorre a projeção de um ele-lá-então (debreagem enunciva). A semântica discursiva, por sua vez, compreende os percursos temáticos e figurativos, que, como postula Fiorin (1988[6]), constituem o lugar privilegiado para a manifestação da ideologia que subjaz ao discurso, questão que nos interessa de perto neste trabalho.
Para a teoria semiótica, figuras são categorias que remetem a algo existente no mundo natural (ou construído como tal, como é o caso dos textos de ficção científica). Temas, por sua vez, são categorias mais abstratas que organizam e categorizam os elementos do mundo. Assim, tematização e figurativização correspondem a dois níveis de concretização do sentido. Um texto que apresente como tema a riqueza (termo abstrato) poderá revesti-lo de figuras como dinheiro, joias, casas, automóveis etc. Esses dois procedimentos distinguem, então, duas classes de textos: os predominantemente temáticos (por exemplo, textos científicos) e os predominantemente figurativos (textos literários, históricos, entre outros). Enquanto os primeiros procuram explicar a realidade, os segundos constroem um simulacro do real, o que cria um “efeito de realidade”, isto é, os temas explicam o mundo, e as figuras o simulam (FIORIN, 2018, p. 91[5]).
Para a análise discursiva, porém, não interessa identificar temas e figuras isoladamente, mas, sim, os percursos em que eles se articulam para construir o sentido do texto. No caso dos textos figurativos (como as obras fílmicas que analisamos), é preciso apreender os temas que subjazem às figuras (aos percursos figurativos), conferindo-lhes sentido. Quando os temas e as figuras são reiterados no discurso, criando um plano de leitura, dizemos que se trata de uma isotopia. Segundo Barros (2001, p. 71[2]), “a isotopia assegura, graças à ideia de recorrência, a linha sintagmática do discurso e sua coerência semântica”.
Resta dizer que, na ótica de Barros (2004, p. 12[7]), “os temas e figuras são determinados sócio-historicamente e trazem para os discursos o modo de ver e de pensar o mundo de classes, grupos e camadas sociais, garantindo assim o caráter ideológico desses discursos”. Para a autora (2001, p. 148[2]), a ideologia deve ser tomada como uma visão de mundo, sendo que, dessa forma, ela permite “relativizar a ‘verdade’, ao mostrar que há vários saberes ligados às diferentes classes, e reconhecer contradições em cada forma de ver o mundo, especialmente na visão dominante, criticando-a e a ela resistindo”. Torna-se, pois, relevante apreender e examinar os percursos temáticos e figurativos para, a partir deles, chegar às questões ideológicas, o que, como vimos, também é um aspecto destacado por Fiorin (1988). Assim, considerando as dimensões de um artigo científico e o objetivo que nos move, privilegiaremos o nível discursivo do percurso gerativo de sentido e, dentro dele, a apreensão dos temas (e subtemas) depreensíveis dos percursos figurativos (PFs) nos dois filmes selecionados, com incursões pela sintaxe discursiva (e por outras categorias), quando forem demandas pela própria análise.
Lembramos ainda que, como a teoria semiótica se aplica a qualquer tipo de texto, não se restringindo apenas ao texto verbal, ela é adequada para a análise do objeto de pesquisa deste artigo: obras cinematográficas de ficção. De acordo com Aumont e Marie (2006, p. 37[8]), “ver um filme é, antes de tudo, compreendê-lo, independentemente de seu grau de narratividade”. Portanto, de certa forma, o filme “diz” alguma coisa. Essa constatação, referente ao papel comunicativo e social das obras cinematográficas, remete à ideia de que, se um filme veicula um sentido, o cinema é um meio de comunicação, uma linguagem, que, como tal, merece ser estudada.
2 Analisando e comparando os filmes
As duas obras fílmicas tomadas como objeto de estudo possuem como protagonistas mulheres que deixaram sua terra natal para trabalhar como empregadas domésticas em países ou cidades mais desenvolvidas. Além disso, ambas têm filhas que questionam a ordem social vigente. Val e Fatima representam, em última análise, inúmeras mulheres marginalizadas e silenciadas pela sociedade. Passemos, pois, à análise das obras.
2.1 Que horas ela volta?
Ao examinarmos o longa em questão, identificamos quatro temas principais (atravessados por outros temas) que circulam pelo filme como um desdobramento do preconceito representado por meio das imagens, das falas e dos silêncios. São eles: a subalternidade da empregada doméstica, o questionamento da ordem social, o patriarcalismo e a inferioridade do nordestino. Para a análise, selecionamos alguns trechos que representam esses temas.
2.1.1 A subalternidade da empregada doméstica
Na primeira cena do filme, Val aparece cuidando de Fabinho, o filho de seus patrões, que está brincando na piscina. Nesse momento, se passa o seguinte diálogo:
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Fabinho: Fica me olhando?
Val: Tô olhando. Fabinho: Nada comigo?
Val: Eu nadar? E eu tenho maiô pra nadar?
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Ao ser convidada para entrar na água, Val recorre à figura do maiô para justificar que não poderia entrar na piscina. O maiô, nesse contexto, representa o (re)conhecimento de seu lugar de empregada. Esse tema é retomado mais adiante, pela mesma figura do maiô, quando Jéssica chega à casa onde sua mãe trabalha. No trecho reproduzido abaixo, Val, mais uma vez, reconhece e aceita seu lugar de subalternidade (lugar em que Jéssica, por ser sua filha, também deve ser colocada, na perspectiva de Val):
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Jéssica: Tu nunca nadou aqui não?
Val: Eu vou nadar na piscina da casa dos outros?
Jéssica: Nunquinha?
Val: Nunquinha, e se um dia eles lhe chamarem pra cair nessa piscina tu vai dizer “não tenho maiô, não posso”, aprendeu?
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Nesse segundo trecho, observa-se que, do ponto de vista das projeções de pessoa, tempo e espaço, trata-se, inicialmente, de um eu (debreagem actancial enunciativa) que fala de um aqui (na piscina) e de um agora (no presente). O eu que fala, dialogando com o tu, usa, predominantemente, os tempos do sistema enunciativo (presente do indicativo, pretérito perfeito 1, futuro do presente). Entretanto, quando se faz referência aos patrões, é criado um distanciamento característico do sistema enuncivo, sendo que o aqui passa a ser chamado de casa dos outros, a marcação de tempo passa a se referir a um dia, e os donos da casa são chamados de eles.
Apesar das recomendações de Val, em dado momento, Fabinho e seu amigo jogam Jéssica na piscina como parte de uma brincadeira, o que deixa Bárbara, a patroa de Val, enfurecida, e a empregada, extremamente desconfortável com a situação, pois sua filha estava indo contra a hierarquia estabelecida na casa (e na sociedade de maneira geral). Mais tarde, Bárbara liga para um funcionário solicitando que ele esvazie a piscina. A patroa explica para Val que viu um “rato” grande na água, criando uma metáfora implícita entre a filha da empregada e o animal.
Em outro momento, Val apresenta novamente um de seus “ensinamentos” sobre seu lugar à filha, agora por meio da figura de um sorvete:
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Jéssica: Me dá um pouquinho aí Val.
Val: Esse sorvete é de Fabinho.
Jéssica: Mas ele falou que eu podia pegar.
Val: Quando eles falam, quando eles oferecem alguma coisa que é deles, é por educação, é porque eles têm certeza que a gente vai dizer não.
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Nesse trecho, é importante notar que, a princípio, Val fala diretamente de Fabinho e, então, para justificar por que sua filha não poderia tomar o sorvete, passa a usar o pronome “eles”, criando um distanciamento maior entre os donos da casa (em que se inclui Fabinho), de um lado, e ela (a emprega) e sua filha, de outro. Como é fácil perceber, não se trata apenas de Fabinho e/ou dos patrões, mas, sim, de uma classe social, de um lugar que não pode ser ocupado por elas. Nesse caso, a insistência na debreagem actancial enunciva de pessoa recrudesce o efeito de sentido de distanciamento entre “nós” (a gente), ou seja, Val e sua filha e “eles” (os patrões).
Vemos, assim, delinear-se um percurso, que, por meio de figuras como maiô, sorvete e rato, tematiza, no contexto do filme, a subalternidade da empregada doméstica. Esse tema maior é também assegurada pelos momentos em que Val é silenciada por seus patrões. O processo de silenciamento é marcado em diversas cenas do filme. Por exemplo, quando Val recebe uma ligação de Jéssica, dizendo que virá para São Paulo prestar vestibular, a empregada tenta conversar com Bárbara, sua patroa:
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[Bárbara correndo na esteira em frente à piscina com fone de ouvido. Val saindo da casa.]
Val: Dona Bárbara?
Bárbara: Oi [tirando o fone de ouvido].
Val: Eu tava precisando conversar com a senhora.
Bárbara interrompendo: Eita, tá cheirosa hein!? Nossa senhora!
Val: Haha, é o perfume.
Bárbara [cortando sua fala]: Aqui, Val, deixou a lasanha lá?
Val: Deixei, botei dentro do forno que ainda não dava pra botar no freezer não que tá quente.
Bárbara: Tá, tá bom, brigada, amor. Aqui, chega cedo segunda tá? Lembra que tem jantar do meu aniversário.
Val: Ué gente, como é que eu ia esquecer?
Bárbara cortando sua fala: Tá bom? Brigada viu, beijo! [colocando o fone de ouvido de novo]
Val: E o...
Bárbara [cortando sua fala]: Beijo, amor.
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Essa cena evidencia o fato de que a personagem não tem voz diante de sua patroa. Mesmo assim, ela não demonstra qualquer tipo de indignação diante da tentativa frustrada de se fazer ouvir, pois se coloca no lugar que lhe é destinado: o de empregada. Há, nessa cena, o tema da domesticidade (subtema da subalternidade), tendo em vista que a fala de Val é cortada para que a patroa possa tratar de assuntos referentes à casa, o que é mostrado por meio do seguinte percurso figurativo (PF): lasanha, botei dentro do forno, botar no freezer, jantar. Essas figuras concretizam o (sub)tema apontado, dando a ele uma “corporalidade” (BARROS, 2004). Desse modo, o discurso, enriquecido semanticamente pela figurativização, leva o destinatário ao reconhecimento e à naturalização do tema em questão.
Em outro momento do filme, Val volta a procurar Bárbara para conversar sobre a chegada de sua filha e se vê, novamente, diante da dificuldade de conseguir conversar com a patroa:
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Val: Dona Bárbara, eu tava precisando mesmo conversar com a senhora.
Bárbara: Fala.
Val: É que Jéssica me ligou quinta-feira
Bárbara: Quem é Jéssica?
Val: Minha filha
Bárbara: Ah, sua filha [celular toca e ela abre a bolsa para pegá-lo].
Val: E Jéssica tá querendo...
Bárbara [cortando sua fala]: Peraí só um minutinho, só um minutinho Val, peraí.
Alô. Oi, Leo, tudo bem? Não sei, amor. Não, cê liga pra Janaina, vê com ela. [sai andando, e Val vai ao seu encontro]
Pronto.
Val: Jéssica, é... tá querendo vir pra São Paulo pra ficar comigo
Bárbara: Mentira! Que bom, Val! Que ótimo, né? Que que ela vem fazer aqui?
Val: Vem pra prestar vestibular.
Bárbara: Olha! Que que ela vai fazer?
Val: Eu não sei não senhora.
Bárbara: Não?
Val: Sei não senhora... Mas é que eu queria ver com a senhora, se assim no comecinho, só no comecinho, ela não podia ficar aqui com a gente até eu arrumar um lugar
Bárbara: Oh mulher, claro que pode! Imagina meu amor, poxa, você é praticamente da família. Você me ajudou a cuidar do Fabinho.
[Muda a cena para a cozinha. Conversam sobre a relação de Val e Jéssica: havia dez anos que não se viam, três anos que não se falavam.]
Bárbara: Mas você tá vendo um lugar pra vocês ficarem?
Val: Tô, tô assuntando quem tem um cantinho aí pra alugar, não é?
Bárbara: Não, não, eu não tô falando por nada não, tá? Pode ficar aí o tempo que você precisar, tá? Não tem problema nenhum.
Val: Muito agradecida. Eu vou ver um colchãozinho direitinho pra botar lá no quarto, né.
Bárbara: Tá, compra um bem legal, tá? Compra um bom que eu faço questão de pagar, tá? Vê quanto é que eu te dou o dinheiro. Deixa eu ir lá...
Val: A senhora é demais Dona Bárbara, a senhora é uma mãe pra mim.
Bárbara: Que mãe... Aqui, não esquece do bolo-mousse, tá? Receita dupla. Beijo amor, tchau.
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Embora Bárbara pareça, à primeira vista, receptiva à ideia da vinda de Jéssica, muitas de suas falas demonstram seu desprazer com a situação. Ao perguntar até mesmo quem é Jéssica, a patroa demonstra que, embora tenha convivido com Val por anos, não se preocupou em saber o nome de sua filha. Ainda assim, Val, agradecida, diz que Bárbara é uma mãe para ela (figura representativa de proteção e amor que soa irônica nesse contexto), e a patroa logo reinstaura o PF da domesticidade com as figuras bolo-mousse e receita dupla, concluindo a conversa entre as duas. No diálogo, o tema da subalternidade é também demarcado pelas figuras que remetem ao lugar que ocupa ou deve ser ocupado pela empregada: praticamente da família [o que pressupõe que ela não pertence à família de fato], cantinho pra alugar e colchãozinho. Nesse caso, o uso do diminuitivo corrobora ainda mais a noção de inferioridade atribuída a Val.
Em dado momento, Dona Bárbara avisa à Val que, se sua filha vai ficar na casa até o vestibular, é “da porta da cozinha para dentro”, o que mostra, com ainda mais clareza, o lugar dos subalternos. Há, portanto, uma clara distinção entre o “aqui” dos patrões e o “lá” da empregada e sua filha, ainda que todos vivam na mesma casa. Com efeito, essa visão é estabelecida desde a primeira conversa que os donos da casa têm com Jéssica:
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Bárbara: Sua mãe disse que você vai fazer vestibular, é isso?
Jéssica: É.
Bárbara: Pra que que você vai fazer?
Jéssica: Arquitetura.
Bárbara: Arquitetura? (espantada)
Fabinho: Na FAU?
Jéssica [com segurança]: É, na FAU.
[Bárbara apresenta uma expressão de incredulidade.]
Val: Que é, Dona Bárbara? Qual o problema?
Fabinho: Não, é que a FAU é uma das faculdades mais difíceis de entrar.
Val: É difícil, é Dona Bárbara?
Bárbara: É, é bem concorrida.
Jéssica: Tô sabendo.
Carlos: Mas a escola lá era boa?
Jéssica: O ensino de lá?
Carlos: Isso.
Jéssica: Não, não era muito bom não.
Bárbara [passando a mão em Jéssica consolando]: Ai, tadinha.
Jéssica: Mas eu sempre tive ajuda, né, aí eu conheci um professor de história, João Emanuel, que me ajudou bastante.
Bárbara: Ajudou como, como que ele ajudou?
Jéssica: Ah, ele tinha uma visão muito crítica das coisas, então ele passou pra gente, assim, umas coisas bem importantes pra gente pensar né, botou nossa cabeça pra funcionar, fez grupo de teatro...
Carlos: E por que arquitetura?
Jéssica: [diz que sempre gostou de desenhar, teve um tio empreiteiro etc.] ... e eu acho que é importante eu ter um diploma, e acredito que a arquitetura é um instrumento de mudança social.
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Aparece, nesse trecho, associado ao tema da subalternidade, o (sub)tema da incredulidade, tendo em vista que os donos da casa ficam espantados com o fato de a filha da empregada prestar vestibular para uma faculdade disputada (espaço que, na visão dos patrões, não deveria ser ocupado por ela), representada pela figura da prestigiosa FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Figuras como [uma das] faculdades mais difíceis de entrar, [faculdade] concorrida são mobilizadas nesse diálogo para concretizar a subalternidade/incredulidade. Além disso, o preparo de Jéssica é questionado pela figura de sua escola anterior. A moça, no entanto, mostra-se segura de sua escolha e apresenta o PF da transformação social (a educação representada pela figura da universidade é posta como o caminho para tal possibilidade), em que se articulam figuras como: professor de história, [botou nossa] cabeça [para funcionar], grupo de teatro, diploma. Com isso, a personagem começa a desvelar seus questionamentos acerca da ordem social imposta, tema que discutiremos a seguir.
2.1.2 O questionamento da ordem social
O silêncio de Val, diante de seus “superiores”, é uma das principais marcas do filme. Sua filha Jéssica, em contrapartida, aparece na história como uma quebra da ordem social vigente na casa. Ela causa um enorme desconforto aos moradores dali e, provavelmente, a muitas pessoas que assistem ao filme. Vejamos o seguinte trecho:
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Val: Ô Jéssica, quem é que botou a mesa do café?
Jéssica: Foi Bárbara.
Val: Ô gente, não é Bárbara não, é Dona Bárbara. Parece que oh [aponta pra cabeça] Bárbara... Tu não pode sentar na mesa deles não.
Jéssica: Oxi, qual que é a mesa deles Val?
Val: É essa aí.
Jéssica: E cadê a outra que eu não tô vendo? Vou comer em pé? Ela que mandou eu sentar aqui.
Val: Saia daí!
Jéssica: Tô comendo, peraí.
Val: Saia Jéssica!
Jéssica: Tô comendo Val, deixa eu terminar
Val: Ô Maria... vem cá onde já se viu filha de empregada sentar na mesa dos patrões?
Jéssica: Eles não são meus pratões não, Val.
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A figura da mesa aparece como a delimitação de um espaço que não deve ser ocupado pela empregada ou por sua filha. Percebe-se que embora a mesa represente o “aqui” de Jéssica (debreagem enunciativa de lugar), Val se refere ao móvel como “a mesa deles”, fazendo com que a debreagem enunciva de pessoa crie também um efeito de sentido de distanciamento de lugar. Além disso, Val se refere à própria filha como “filha de empregada”, criando um efeito de sentido de impessoalidade, de modo a destacar não a relação entre mãe e filha, mas seu papel de subalternidade. Ao longo do filme, Jéssica apresenta repetidamente esse comportamento “incômodo”. A filha da empregada não só se senta na mesa dos donos da casa, como é servida por Dona Bárbara nesse momento; almoça com Carlos (marido de Bárbara); em outro, nada na piscina com Fabinho; pede para ficar no quarto de hóspedes da casa para que possa estudar; e, contra todas as expectativas, é aprovada na primeira etapa do concorrido vestibular da USP. Diante das atitudes de Jéssica, contrárias ao que é estabelecido para as pessoas de sua classe, ela constrói, aos olhos dos outros, uma imagem um pouco peculiar. Essa imagem constitui, na contramão do que se deveria esperar na perspectiva da ordem vigente (daí o estranhamento), o PF da superioridade (entendida, no contexto do filme, como a igualdade com o outro/dominador), como veremos nos trechos a seguir:
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Val: Fabinho, e Jéssica? Que que tu achaste de Jéssica?
Fabinho: Meio estranha né.
Val: Estranha como?
Fabinho: Sei lá, segura demais de si.
Val: É isso mesmo, é segura. Aquele olho dela, ela olha tudo parecendo o presidente da república.
Jéssica: Não sei onde é que tu aprendeu essas coisas que fica falando “ah não pode isso, não pode aquilo”. Tava escrito em livro, como é que é? Quem é que te ensinou? Tu chegou aqui e ficaram te explicando essas coisas?
Val: Isso aí ninguém precisa explicar não, a pessoa já nasce sabendo que que pode, que que não pode. Tu parece que é de outro planeta.
Jéssica: Tô sabendo. Nasce sabendo...
Jéssica: Sinceramente Val, não sei como é que tu aguenta, visse.
Val: Como é que eu aguento o que?
Jéssica: Ser tratada desse jeito que nem uma cidadã de segunda classe. Isso aqui é pior que a Índia.
Val: Não vem com essas conversa difícil, negócio de Índia não, que tu é, é metida, isso que tu é. [...]
Val: Tu se acha melhor que todo mundo, tu é superior a todo mundo.
Jéssica: Eu não me acho melhor não Val, só não me acho pior, entendesse? É diferente.
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No escopo do tema em foco (questionamento da ordem social vigente/superioridade), o PF que encadeia figuras como: meio estranha, segura demais de si, presidente da república, de outro planeta, conversa difícil, metida, melhor que todo mundo, superior a todo mundo é construído pelo fato de Jéssica questionar o papel pré-estabelecido para ela e sua mãe, o que contrasta nitidamente com o PF da inferioridade, manifestado, nesse trecho, por figuras como ser tratada desse jeito, cidadã de segunda classe, [pior que a] Índia (que tem um sistema rígido de castas).
A justificativa de Jéssica em relação a suas atitudes é sintetizada em sua última fala: “Eu não me acho melhor não, Val, só não me acho pior”. Na parte final do filme, Val absorve o êxito de sua filha e demonstra ter passado por uma transformação: ela quebra as regras, que ela mesma seguia e impunha, ao entrar na piscina após descobrir que Jéssica passou no vestibular. Não era dia e a piscina não estava cheia como quando Jéssica nadou, mas havia o suficiente para cobrir os pés de Val que, a partir daí, decide modificar toda sua vida, pedindo demissão de seu emprego e alugando um lugar para ir viver com a filha. Nesse caso, é patente o papel (a figura) da universidade como passaporte para a ascensão social.
2.1.3 Patriacarlismo
Que horas ela volta? não é um longa-metragem qualquer, mas um filme dirigido por uma mulher e que gira em torno de mulheres. E essas mulheres – a patroa, a empregada e sua filha – sofrem os abusos de uma sociedade ancorada no patriarcalismo. O homem da casa, Carlos, é uma personificação desse sistema. Ele quase nunca se dirige à cozinha e está sempre sendo servido por Val. É inclusive acordado por ela todos os dias às 11h, já que ele não trabalha. Vejamos o seguinte diálogo entre Jéssica e Carlos:
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Jéssica: Tu parasse de pintar por quê?
Carlos: [...] Eu parei porque todo mundo me falava que eu era o cara, e eu acreditei. Sei lá, muita coisa aconteceu, acabei parando.
Jéssica: Parou de trabalhar? Como é que faz de dinheiro? Bárbara sustenta?
Carlos: Han, Bárbara que sustenta? Sei que não parece, mas a grana é minha. Meu pai trabalhou muito, juntou uma grana, e eu herdei isso. Todo mundo dança, mas sou eu que ponho a música.
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Carlos ironiza a possibilidade de ser Bárbara quem sustenta a casa, embora ela seja retratada no filme como a pessoa que está constantemente trabalhando, enquanto ele não faz nada. Sua metafórica frase final (“todo mundo dança, mas sou eu que ponho a música”), representa uma imagem clássica do patriarcalismo instaurado naquela casa que representa tantas outras da sociedade. Nesse trecho, aparece claramente o (sub)tema da dominação, em um PF que articula as figuras: eu era o cara, a grana é minha, eu herdei isso, sou eu que ponho a música.
Uma das características do sistema patriarcal é a manutenção da desigualdade. Por ser herdeiro de seu pai, Carlos não precisa se preocupar em trabalhar, mesmo se colocando como provedor da casa. Seu filho, Fabinho, será também seu herdeiro, e, provavelmente por isso, não tem a mesma preocupação que Jéssica em estudar. Quando ele não passa no vestibular, decide fazer um intercâmbio para estudar inglês, uma alternativa possível para quem pertence a uma família de classe alta.
A posição patriarcal de Carlos é refletida em sua tentativa constante de dominar e assediar Jéssica. Como dono da casa, ele se vê no direito de estar frequentemente “cercando” a filha da empregada. E, ao mesmo tempo em que a chama para almoçar na mesa com ele, Carlos pede para que Val retire os pratos, não permitindo que Jéssica a ajude. Assegura, assim, o papel de Val como doméstica e distancia Jéssica dessa posição, na tentativa de seduzi-la. Jéssica, entretanto, aceita almoçar com Carlos não na tentativa de ocupar esse lugar – pois ela deixa claro que não quer estar ali – mas por se ver como uma igual.
No que concerne à representação de Bárbara, embora ela seja uma mulher que trabalha fora, o que normalmente é visto como algo libertador, observa-se que quando a emancipação se dá pela transferência do trabalho doméstico para outra mulher, ela não pode ser considerada uma emancipação real, pois ao invés de garantir igualdade, reproduz a desigualdade entre as mulheres. Até poucos anos atrás, a profissão de empregada doméstica (destinada apenas às mulheres) não tinha sequer uma regulamentação, um apoio jurídico. O fato de a empregada ser tomada como “praticamente da família”, permite que haja a exploração velada de seu trabalho.
Por trabalhar fora, Bárbara foi, em parte, uma mãe ausente para Fabinho. Era Val quem cuidava de seu filho e, na ausência da mãe, ele perguntava: “que horas ela volta?”, assim como fazia Jéssica, após Val ter se mudado de Pernambuco para São Paulo para trabalhar. Além disso, por um desentendimento com o pai de Jéssica, que não é especificado, Val passa dez anos sem conseguir visitar sua filha, continuando apenas a enviar dinheiro para sua amiga que criou Jéssica em seu lugar.
2.1.4 A inferioridade do(a) nordestino(a)
O filme traz às telas uma situação recorrente: as mulheres nordestinas que deixam suas famílias para trabalhar em São Paulo – ou em outras grandes cidades – como empregadas domésticas. É comum, como se retrata no filme, que essas mulheres vivam nas casas de seus patrões, criando filhos que não são delas.
O nordestino é visto como “o outro”, aquele que não se enquadra, principalmente, nos padrões das regiões sul e sudeste do Brasil. Quando Jéssica chega à São Paulo e é apresentada à família, o primeiro comentário de Fabinho é que “ela fala que nem a Val”, mostrando que o preconceito/a inferiorização já começa pela língua.
Em uma dada cena, enquanto transitam pela cidade de ônibus, Val e Jéssica discutem sobre o local de São Paulo onde viviam nordestinos que deixaram sua terra natal à procura de melhores condições de vida:
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Val: Aqui oh, é o Largo da Batata.
Jéssica: Ah, já ouvi falar daqui já, que tem mais nordestino do que no Nordeste, não tem uma história dessa?
Val: Isso tinha. Mas agora pra botar o metrô, olha aí, eles cimentaram tudo. Isso tá parecendo... eu não sei o que é isso, não é uma praça, que não tem um pé de mato aí. Eles cimentaram tudo e tiraram... Tinha tanto forró aqui, isso aqui ficava assim (faz sinal de cheio com a mão). Barzinho, tinha cada uma loja boa...
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Nessa cena, vemos que há um sujeito (nordestinos) que entra em disjunção com o objeto de valor Nordeste5, e passa à conjunção com um novo objeto de valor, o Largo da Batata. É possível entender que as pessoas representadas tenham subjetivado esse local, tornando-o mais próximo ao ambiente em que viviam. Entretanto, esse espaço foi destruído pelas políticas locais, impedindo a ocupação dos nordestinos que foram, então, dali afastados, entrando em disjunção com mais um objeto de valor. A transformação do Largo da Batata causa no sujeito que fala “estados de alma”6, que podem ser descritos como saudade, nostalgia, e até mesmo frustração por comparar o que foi tirado dali com o que foi colocado. No que diz respeito ao espaço, há uma oposição clara entre um “aqui” (em São Paulo) e um “lá” (no Nordeste). No tempo, temos um agora (o Largo da Batata transformado, urbanizado) e um antes (o Largo da Batata representando metonimicamente o Nordeste).
Em relação aos temas e figuras, há um percurso figurativo referente ao que era o Largo da Batata antes de sua transformação, e outro PF relacionado ao que ele se tornou. O primeiro PF, o do entretenimento (que resgata metonimicamente o Nordeste, sobretudo pela figura do forró), encadeia figuras como forró, barzinho e loja boa. Enquanto o segundo PF, que pode ser denominado percurso figurativo da urbanização, encadeia figuras como botar o metrô, cimentaram tudo, não tem um pé de mato.
O fato de Val ter deixado Pernambuco para trabalhar em São Paulo e conseguir sustentar a filha foi algo conflituoso na relação entre as duas, como se poderia prever:
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Jéssica: Te achava tão linda, toda rica, cheia de coisa quando aparecia lá. Não sabe o tanto que eu sofri por tua conta, Val.
Val: Pois tu não sabe o tanto que eu sofri por tua causa.
Jéssica: É, sofreu porque quis, não é não? Aparecia lá cheia de presente na mão, me dizendo isso me dizendo aquilo, depois me deixava feito idiota lá perguntando “ai, que horas que mainha volta, que horas que ela volta?”
Val: Tu não sabe da missa a metade, um dia pergunta a teu pai.
Jéssica: Puta que pariu Val, dez anos, pelo amor de Deus. Não voltaste por quê?
Val: Tu não sabe minha agonia, quanto mais eu não voltava mais eu queria voltar, mas aí passava o tempo e eu não voltei e aí mesmo que eu não voltava. Vou lhe dizer uma coisa: um dia, Deus me livre, Deus me livre, mas um dia tu vai entender direitinho tua mãe.
[Val sai para pegar uma foto que havia encontrado nas coisas de Jéssica]
Val: Quem é esse menino aqui? [Jéssica cala e sai] Jéssica, tô lhe perguntando quem é esse menino.
[Val vai atrás] Jéssica, por que é que teu pai não fala contigo? Eu não tô entendendo porque que teu pai não fala contigo. Jéssica, eu tô perguntando quem é esse menino, Jéssica.
Jéssica [chorando]: É Jorge.
Val: E eu sei quem é Jorge?
Jéssica: É meu filho.
Val: Ah não Jéssica! Jéssica, não tô acreditando nisso Jéssica! E por que que tu não me falou, Jéssica?
Jéssica: Porque a gente não tava nem se falando Val, como é que eu ia te contar um negócio desse?
Val: E deixasse o menino lá? Deixasse o menino lá?
Jéssica: Deixei Val, como é que eu ia fazer pra estudar, fazer vestibular, vou trazer o menino comigo?
Val: Ah meu Deus... E não vai trazer o menino?
Jéssica: Vou trazer. Quando der eu trago.
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A partir desse trecho podemos perceber que mãe e filha apresentam diferentes reações diante de uma mesma situação vivenciada por ambas. Há, no enunciado, o percurso (estereotipado) de vida do nordestino (mais especificamente, da mulher nordestina, representada por Val): pobre, torna-se mãe muito cedo, deixa a filha “para trás”, vai para São Paulo trabalhar como empregada doméstica. Porém, o lugar em que esse PF desemboca muda com a (contra) posição e o (contra) discurso de Jéssica. Enquanto a mãe aceita naturalmente sua inferioridade/subalternidade, Jéssica questiona essa posição e busca, por meio do estudo, ascender socialmente. Situação semelhante é vista no segundo filme que compõe o corpus deste artigo, como discutiremos a seguir.
2.2 Fátima
O longa-metragem Fatima é inspirado nos livros Prière à la lune (2006[9]) e Enfin, je peux marcher seule (2011[10]), da escritora marroquina Fatima Elayoubi. O filme, assim como os livros, trata da invisibilidade de imigrantes da região do Magrebe que vivem na França, dando voz às mulheres que são excluídas pelo preconceito que sofrem dentro de uma sociedade ocidental.
O diretor do filme, Philippe Faucon, que veio também de uma família de migrantes, tendo passado parte de sua infância entre o Marrocos e a Argélia, descreve a personagem Fatima da seguinte forma:
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É uma mulher que não domina bem o francês, e sobre quem se colocam olhares um pouco redutores. Ela não tem acesso senão a trabalhos de segunda classe, mas ela tem algo a exprimir. Ela faz, aliás, uma reflexão sobre sua condição, a partir de um diário no qual escreve sua vida em árabe. Mas ela não pode compartilhá-lo com suas duas filhas, que falam apenas francês. Fatima é uma mulher humilhada – sua filha a acusa de se deixar explorar – mas que recusa que a renegação social da qual é vítima se reproduza com suas filhas. Ela quer livrá-las. E resiste com seus meios, que não são grandes.7
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A partir da fala de Faucon e da análise do filme, encontramos quatro temas principais que o “atravessam” como um desdobramento do preconceito, sendo que alguns deles se assemelham aos existentes no filme Que horas ela volta?, como veremos no cotejo final entre os dois filmes. A partir da fala de Faucon, vemos articularem-se figuras referentes a esses diferentes temas, que são: a subalternidade da empregada doméstica/faxineira (boulots de second ordre, laisser exploiter), a inferioridade do imigrante muçulmano (regards um peu reducteurs, ne maîtrise pas bien le français), o questionamento da ordem social (réflexion sur sa condition, refuse la relégation sociale, veut les en sortir, résiste avec ses moyens) e o patriarcalismo (femme humiliée).
Para esta análise foram selecionados diferentes trechos do filme que representam os temas em questão e os subtemas que a eles se articulam. É importante salientar, entretanto, que em Fatima há uma particularidade: o filme se passa em dois idiomas (francês e árabe) e, nesse caso, muito se perde nas traduções. Os diálogos em francês foram extraídos diretamente do áudio do filme, porém, as falas em árabe foram extraídas das legendas em português adicionadas à gravação original. Nessas condições, optamos por escrever e analisar os diálogos em português, para que houvesse maior equilíbrio entre eles.
2.2.1 A subalternidade da empregada doméstica/faxineira
A algeriana Fatima é uma mãe divorciada que possui diversos trabalhos como faxineira e empregada doméstica para sustentar suas filhas: Nesrine, a mais velha, e Souad, a típica adolescente rebelde, que se mostra constantemente revoltada com o lugar ocupado por sua mãe e, por consequência, por ela e pela irmã. Vejamos o trecho a seguir:
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Fatima: Quando você vai fazer seu dever de casa?
Souad: Daqui a pouco.
Fatima: Daqui a pouco quando?
Souad: Daqui a pouco.
Fatima: O que há com você?
Souad: Estou cheia dessa vida de nada.
Fatima: Você está sempre cheia de tudo! Você está muito bem aqui! Casa, comida, roupa e limpeza! Agradeça a Deus! Vocês estão ótimas aqui.
Souad: Chega, mamãe. Pare de dizer que estamos bem. A gente vive em uma jaula, como estamos bem? Você faz faxina, onde a gente está bem? Pare de delirar um pouco.
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Nessa passagem, em que há um confronto entre mãe e filha, há o (sub)tema da pobreza/escassez, em um PF que articula as figuras vida de nada, jaula e faxina (aqui com caráter negativo), o que reforça a imagem de subalternidade que Souad reproduz em sua fala ao repreender sua mãe pela condição em que vivem. Em contraposição, há o PF da suficiência, que encadeia as figuras casa, comida, roupa e limpeza, o que demonstra que, apesar das reclamações de Souad, Fatima não permite que lhes falte nada de essencial, apesar da sua condição subalterna de femme de ménage.
Em dado momento, Fatima recebe uma ligação da escola de Souad informando que sua filha não comparecia às aulas havia dois dias. Fatima desconhecia essa situação, visto que ela trabalha das seis da manhã até a noite. Ao comparecer à escola para esclarecer o ocorrido, a diretora informa à Fatima que sua filha não estava fazendo as atividades da escola em função do Ramadã (nono mês do calendário islâmico, no qual se pratica jejum). Porém, Souad usa a figura do ritual apenas como pretexto para não cumprir com suas obrigações escolares, uma vez que ela nunca o praticou. Fatima, então, questiona a atitude da filha:
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Fatima: Pense um pouco, você quer ser faxineira como sua mãe?
Souad: Você está sonhando, eu prefiro roubar a limpar merda dos outros como você.
Fatima: Você não respondeu porque ainda não entendeu?
Souad: Vai logo, vai! Vai bancar a escrava. Vai ser explorada por todo mundo. Não vê que você é um buraco, uma mula, uma incapaz?
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Nesse excerto, reencontramos o (sub)tema da inferioridade, que encadeia as figuras: faxineira, limpar merda dos outros, escrava, explorada, buraco, mula, incapaz. É patente a forma como a profissão de faxineira aparece como um emprego sem dignidade, sendo motivo de profunda vergonha para a filha mais nova.
Enquanto Souad é a figura da adolescente rebelde, que está constantemente confrontando a mãe, Nesrine é a filha estudiosa, que cursa a faculdade de medicina e, para isso, depende de um grande esforço de Fatima. Para ajudá-la, Fatima vende suas joias e aumenta sua carga horária de trabalho. No contexto francês, a maior dificuldade não está em passar no vestibular (como acontece em Que horas ela volta?), mas sim em passar nos exames do primeiro ano de faculdade para continuar o curso:
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Fatima: Tenho certeza que você vai conseguir. Olhando suas mãos dá pra ver que você é uma dama, não são mãos de doméstica nem de operária.
Nesrine: Você perdeu suas joias.
Fatima: Não se incomode com as joias. Você tem uma parte de mim. Se eu tivesse continuado na escola, no povoado, hoje eu seria ministra, mesmo com eles roubando nas eleições.
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Nesse contexto, o papel (a figura) da universidade aparece novamente como passaporte para a ascensão social, e a educação como algo inatingível para as mulheres que possuem trabalhos de “segunda classe”. Há, nesse trecho, o (sub)tema da superioridade, que associa a educação com o sucesso, encadeando figuras como: dama, escola e ministra, enquanto o (sub)tema da inferioridade continua associado à profissão de Fatima por meio das figuras: mãos de doméstica e [mãos de] operária.
Além de prestar serviços como faxineira, Fatima trabalha em uma casa de família como empregada doméstica, e o filho de sua patroa também cursa a faculdade de medicina, embora não seja dedicado como Nesrine:
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Patroa: Isso me enerva, me deixa maluca. Nós pagamos tudo, o melhor curso privado.
Fatima: Minha filha também faz o curso de medicina.
Patroa [com expressão de surpresa]: Sua filha está na medicina?
Fatima. Sim, está no primeiro ano.
Patroa: Ela devia ter pensado antes, é muito difícil. É preciso muita dedicação.
Fatima: Sim, ela também diz que é muito difícil. Ela estuda a noite inteira, não dorme mais, não come direito, estou preocupada com ela.
Patroa: Sua filha é corajosa, isso é bom. Há muitos jovens que desistem, começam e... não conseguem continuar. Alguns tem pais que são médicos e que os ajudam.
Fatima: Eu também ajudo a minha filha. Eu não sou médica, mas eu cuido dela, preparo a comida, faço muitas coisas por ela.
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Ambas as mães consideram que medicina é um curso muito difícil, que exige dedicação. Entretanto, o discurso da patroa de Fatima é desmotivador, pessimista, pois para ela há um estranhamento no fato de a filha da empregada, isto é, alguém de nível “inferior”, ocupar o mesmo espaço que seu filho, que pertence a uma classe superior, mais abastada. Aliás, o simples fato de Fatima atuar como empregada doméstica naquela casa mostra que se trata de gente de posses, considerando que, na França, esse tipo de trabalho, apesar de discriminado, custa caro (em comparação, por exemplo, com o Brasil). Temos, então, o (sub)tema da incredulidade da parte da patroa, gerando o encadeamento de figuras (PF): muito difícil, [é preciso] muita dedicação, jovens que desistem, corajosa (com tom duvidoso). Do outro lado, contrapondo-se, de certa forma, a isso, está o (sub)tema do empenho, que Fatima associa à sua filha, por meio das figuras: estuda a noite inteira, não dorme mais, não come direito (e que parece opor-se à falta de empenho do filho da patroa, o que pode ser visto nas figuras: enervar e (deixar) maluca).
Há ainda, no discurso da patroa, um PF de abundância, que representa a forma pela qual os jovens da classe social alta entram na faculdade, articulando as figuras: pagamos tudo, melhor curso privado, pais que são médicos. Em contrapartida, há o PF da escassez (entendida como a falta de recursos financeiros), mas que é compensada, em certa medida, por outros tipos de apoio. Nesse caso, figuras como cuido dela e preparo a comida dizem respeito ao tipo de apoio que Fatima pode oferecer à sua filha, que é diferente do apoio financeiro que a patroa dá ao filho.
O preconceito sofrido por Fatima em relação à sua função social está intimamente associado ao fato de ser ela, além de tudo, uma imigrante muçulmana em um país ocidental, tema que abordaremos a seguir.
2.2.2 A inferioridade da(o) imigrante muçulmana(o)
O filme começa com Fatima, Nesrine e sua colega na porta de um apartamento esperando pela proprietária, que iria mostrá-lo, pois as moças gostariam de alugar esse espaço para estudar na universidade. Entretanto, Fatima não tem uma boa impressão do local:
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Nesrine: O que foi?
Fatima: A rua é estranha, tem um bar bem aqui embaixo. Quando se entra no prédio, é tudo escuro.
Nesrine: É, mas você também está um pouco angustiada com a vida.
Fatima: Esse bairro não é seguro. Tem tanto barulho que dá medo.
Nesrine: Pare com isso.
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Constam, nesse trecho, as impressões e sentimentos de Fatima sobre o lugar em que sua filha viveria. Podemos observar que, ao entrar em conjunção com esse objeto de valor (o local), que desperta sentimentos de estranhamento e angústia, há a construção do PF da insegurança, manifestado nas figuras: rua estranha, tudo escuro, angustiada, barulho, medo.
Ao chegar ao local, a dona do apartamento afirma que não poderia mostrá-lo a elas, pois a chave estaria com seu filho. A colega de Nesrine se mostra indignada com a situação, pois elas partiram de longe para ir até lá, mas a proprietária não busca solucionar o problema. Nessas circunstâncias, Fatima assume que elas receberam esse tratamento por sua causa:
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Fatima: Sou eu! É o véu! Ela ficou me olhando torto.
Nesrine: Avisei que complicaria se você viesse.
Fatima: Na próxima vez você virá com seu pai.
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Ao deixar seu país, Fatima entrou em disjunção com o objeto de valor Argélia (seu lar), e entrou em conjunção com o objeto de valor França, que se configura como o lar de suas filhas, mas como um local em que ela não é bem-vinda. A discriminação sofrida por Fatima, que representa as mulheres muçulmanas imigrantes nesse país, é marcada pela figura do véu, uma espécie de metonímia de sua identidade, que, como tal, a distingue de outros imigrantes/estrangeiros na sociedade francesa. E, diante dessa marca, Fatima sofre com os “olhares tortos” e com as complicações que sua presença possa causar. Nesse contexto, ela acredita que deveria ter deixado que o pai de Nesrine ajudasse a filha a alugar apartamento, embora seja Fatima a verdadeira responsável por sua educação. Isso sugere que ela é duplamente discriminada: por ser muçulmana e por ser mulher. Mas a discriminação não para por aí: há também em jogo a questão da língua, como veremos no fragmento que segue.
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Nesrine: Você vai participar disso? Medicina são pelo menos sete anos. Isso corresponde a muitas e muitas horas de faxina.
Fatima: O trabalho de faxineira não me assusta. Vamos começar e ver no que dá. Faça o primeiro ano, se der certo, sossegue. Para mim, se minha filha conseguir, minha felicidade será “comblé”.
Nesrine: “Complet”.
Fatima: Quem é esse?
Nesrine: Sua felicidade será “complet”, não “comblé”. É você que ficará “comblée”8.
Fatima: Foi isso que eu disse, você está me confundindo. Eu falo do jeito que posso. No povoado as pessoas iriam rir ouvindo vocês falarem árabe.
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Fatima está constantemente se sacrificando para que suas filhas possam ser bem-sucedidas e não vivam nas mesmas condições que ela. Entretanto, a figura da língua como barreira entre mãe e filhas está sempre presente, mostrando que os imigrantes são também discriminados por não dominarem a língua oficial (dominante) da sociedade de acolhida. Assim, o não domínio da língua9 do outro, somada à precariedade laboral, reafirma a subalternidade do imigrante (no caso, muçulmano) no país de chegada.
Nesrine possui uma relação mais madura com a mãe do que a irmã mais nova, porém, ela também expressa em dado momento seu constrangimento em relação ao local subalterno ocupado pela mãe:
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Colega de Nesrine: Você precisa sair, você está se isolando demais.
Nesrine: É, mas não estou interessada. Para mim há uma grande distância. Não sei por que, é um outro meio, um outro mundo, e não estou nele, é isso. O que eu teria a dizer? Não quero me abrir. Não quero contar que minha mãe é faxineira, que ela não sabe nem ler em francês.
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As condições de sua mãe (empregada doméstica não falante de francês) e as dificuldades sofridas por elas fazem com que Nesrine se sinta fora do grupo social com o qual convive como estudante de medicina. Há, nesse trecho, o (sub)tema da exclusão, que encadeia figuras como: isolando, distância, outro meio, outro mundo, que, por sua vez, remete ao (sub)tema do silenciamento, pois, diante dessas condições, Nesrine não se sente à vontade para falar sobre sua vida ou sobre sua família, por não se enquadrar nos padrões de seus colegas. Esse PF encadeira figuras que se definem pela negativa como (não) dizer, (não) contar, retomando, como uma espécie de causa do silenciamento, o (sub)tema da inferioridade nas figuras: faxineira, não sabe nem ler em francês, o que aponta para o preconceito e faz com que a moça se distancie, já que não se sente incluída no grupo dos “legítimos” habitantes do país.
O fato de Fatima não falar bem o francês é ainda usado como pretexto para Souad não fazer seus deveres de casa, pois ela alega que sua mãe não pode ajudá-la. Sua falta de interesse pelos estudos e seus problemas na escola são recorrentes no filme. Em dado momento, Fatima decide participar de uma reunião de pais com a diretora para entender a situação de sua filha. Depois, ela fala sobre sua experiência com uma colega de trabalho:
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Fatima: Sentei com eles e entendi o que é uma reunião com pais de alunos. Mas não falei como as outras mulheres, só fiz escutar e olhar. Não falei do que está me angustiando. Os problemas de minha filha não são os deles. Fiquei de braços cruzados, esperando, quieta. Não entendi nada. Se eu soubesse ler, poderia entender e responder como as outras mulheres. Aí está o resultado de não ter estudado. Preciso aprender isso. Que eu aprenda a escrever, falar e ler em francês!
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Aqui, é retomado o (sub)tema do silenciamento como efeito da exclusão. O silêncio de Fatima é algo marcante na história. No trecho em questão, a falta de conhecimento da língua francesa, bem como as diferenças de Fatima em relação às mulheres ocidentais, acarreta o encadeamento de figuras (PF) como: não falei [como as outras mulheres], [só fiz] escutar e olhar, braços cruzados, quieta, [resultado de] não ter estudado.
Mais adiante na história, Fatima cai das escadas em seu trabalho e machuca o braço. Após passar cinco meses com uma dor persistente, ela é encaminhada para uma médica falante de árabe, para que possa haver maior entendimento entre médica/paciente. Durante a consulta, Fatima explica por que sua dor continua e fala sobre suas angústias:
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Fatima: Depois da queda, tive pesadelos por dois meses. Quando chega a noite, o medo volta. No sonho me vejo cair de novo e sinto medo. Acordo angustiada. Depois, o medo passa, mas no lugar dele vem a dor no braço. Fui aos médicos, mas todos dizem que não tenho nada.
Médica: Sim... Mas as causas da dor que você me fala os médicos nem sempre conseguem entender.
Fatima: Isso mesmo.
Médica: Não conseguem, eles só acreditam no que veem.
Fatima: É verdade, a culpa é minha. Eu não quis nem entender, nem ver. Não quis escutar meu coração. Tudo o que eu queria era ter forças para trabalhar. Esqueci da minha família e da vida. Esqueci de mim, esqueci das minhas filhas. Até aquele dia... um dia que lembrarei por toda a minha vida. Foi o dia em que minha filha me disse: “Mamãe, você é uma incapaz”.
Médica: Por que ela disse isso?
Fatima: Porque minha filha e as amigas vivem numa sociedade francesa. E eu não falo francês. Por causa disso somos desvalorizadas, não somos consideradas. É o que acaba com essas crianças. Elas buscam ter orgulho, e onde está esse orgulho? Através da língua... Elas não possuem país. Como falar com seu próprio pai ou mãe se não conhece a língua deles?
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A dor física de Fatima aparece como um reflexo da “dor emocional” que ela sente e que se expressa pelas paixões do medo e da angústia. Em sua fala, seu sofrimento é ilustrado por figuras que “chamam umas às outras”, como queda, pesadelos, cair de novo, dor no braço, incapaz, desvalorizadas, não consideradas. Embora não se sinta capaz de trabalhar nesse momento, ela corre o risco de perder sua licença médica, já que não aparece mais nada anormal em seus exames. Suas condições de trabalho são penosas e exigem que ela possua uma carga horária extensa de serviço. Apesar disso, na casa em que é empregada, a patroa declara que Fatima trabalha apenas duas horas por dia, para que ela (a patroa) não precise pagar seus benefícios e não seja punida pela fiscalização. E, como imigrante muçulmana, Fatima não conseguiria confrontar essa situação, sem que perdesse seu emprego. Ou seja, reafirma-se aqui o (sub)tema da precariedade laboral a que o imigrante, em geral – principalmente, a mulher – se submete (longas jornadas de trabalho, ausência de direitos, etc.), o que reforça sua inferioridade/subalternidade e, ao mesmo tempo, favorece o silenciamento.
É nessas condições que Fatima trabalha e sustenta suas filhas, embora suas ocupações gerem constrangimento a elas, assim como sua identidade muçulmana e sua falta de conhecimento da língua francesa. A diferença entre as respectivas línguas maternas acarreta um distanciamento entre mãe e filhas. Embora elas consigam, de maneira geral, se entender, há sentimentos e ideias que são deixados de lado por não poderem ser expressos. Trata-se de um novo viés para a exclusão, agora em relação à própria família.
2.2.2 O questionamento da ordem social
A contestação do sistema social, retratado no filme, se dá pelas vozes das filhas de Fatima. São elas que discutem, questionam, se revoltam. Nesrine ocupa um lugar que, a priori, não lhe pertence e, diante dos comentários da patroa de sua mãe, reconhece que: “para ela não temos direito ao sucesso”. Ela questiona ainda a imposição cultural das vizinhas de sua mãe, também imigrantes e muçulmanas, que a censuram por estudar em vez de permanecer em casa e ajudar a mãe, o que aparentemente é esperado pelo fato de ela ser a filha mais velha. Essas vizinhas estão constantemente criticando Nesrine, afirmando que, ao ir para faculdade, ela passou a renegar sua raiz (e, portanto, sua identidade). É como se ela estivesse fadada a cumprir sua sina (de excluída), sendo-lhe negada a ascensão social.
As vizinhas criticam também o comportamento de Souad. A filha mais nova, embora assuma a faceta de adolescente rebelde, é aquela que manifesta uma indignação maior ao longo do filme em relação às condições e jornadas de trabalho de sua mãe, o que faz com que Fatima também passe a questionar sua vida após uma discussão com a filha. Depois de sofrer o acidente, Fatima começa a escrever suas reflexões em um diário, na tentativa de expressar tudo o que não consegue dizer para as filhas por causa da barreira da língua.
Fatima é, assim, retratada como uma mulher silenciada, tanto por sua posição social, quanto por não dominar a língua do país em que vive, embora ela busque mudar essa situação fazendo aulas de francês. Na consulta à médica anteriormente mencionada, Fatima lê suas anotações. Ela se refere, a princípio, à sua discussão com Souad e faz também uma alusão a um episódio em que ela encontra a mãe de uma colega de Souad no supermercado. Ao cumprimentá-la, a mulher se esquiva e finge que está indo embora para não ter que conversar com Fatima, remetendo a temas já citados como a discriminação/o preconceito e a exclusão social. Vejamos o trecho:
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Naquele dia eu tive medo porque vi o respeito que ensinei a vocês cair por terra. Olha, sua mãe tem 44 anos, usa roupas de supermercado a 5 euros por peça, não ganha o suficiente pra gastar mais. Seu perfume também vem de lá. Ela usa véu. Mas... ela não se incomoda se alguém vem falar com ela. Essa mulher e outras como ela, precisavam da Fatima quando a Fatima estava bem. Essa mulher não pode sair pra trabalhar sem uma Fatima, comprar perfumes e belas roupas pra si mesma sem uma Fatima. Ganhar seu salário e seu futuro, sua bela aposentadoria, sem uma Fatima. A cada dia essa mulher confia as chaves, a casa e seus filhos a uma Fatima. Ela visita suas amigas, faz compras, graças a uma Fatima. À noite ela volta para sua casa de 5 cômodos, 2 banheiros, que Fatima limpou das 8h às 18h. A casa está limpa, arrumada, preparada. À noite, Fatima volta para sua casa e tudo espera por ela. A limpeza, a cozinha, suas filhas. E outro turno começa. Por isso, um dia, Fatima não consegue parar em pé. Não fique brava, pois, nesse caso, ou um parente está doente, ou um filho está descontrolado. E desta vez, tenha orgulho das Fatimas que cuidam das casas das mulheres que trabalham.
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Há, nesse trecho, a retomada do PF da inferioridade, que articula figuras como: roupas de supermercado, perfume [que também vem de lá] e o véu (que representa, metonimicamente, a identidade de Fatima, como já comentamos, mas, por outro lado, lembrando sua origem – ela vem de um país muçulmano, de colonização francesa –, faz com que seja discriminada e subjugada no novo país). Do outro lado, está o PF da superioridade (considerando a forma como as posições sociais são vistas), que encadeia figuras como: perfumes e belas roupas, salário, [bela] aposentadoria, [fazer] compras, casa de 5 cômodos etc.
Note-se que, em sua fala, a migrante argelina substitui o termo empregada(s) pelo nome próprio: Fatima(s), a fim de representar todas as empregadas domésticas e reconhecer a importância de seu trabalho para sustentar o sucesso alheio (ou seja, daqueles que são “superiores” a elas), bem como o fato de que esse trabalho continua em sua própria casa (“E outro turno começa”), o que relembra a dupla jornada de trabalho da mulher na contemporaneidade. Nesse caso, reencontramos o PF da domesticidade (referente às funções de Fatima), que encadeira figuras como: casa, arrumada, limpeza, cozinha, chaves, filhos etc.
Após sua consulta, Fatima decide ler parte de suas anotações para Nesrine, na tentativa de expressar seus sentimentos para a filha:
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O medo começa a recuar e retomo a confiança em mim. Sou a única responsável por mim e minhas filhas. Sozinha com as almas que fiz nascer, para que elas vivam sua infância e juventude. Sozinha com uma geração efervescendo em energia e inteligência, de vida e desafios. Sozinha com minhas filhas, face a essa riqueza, a essa grande responsabilidade. É esta a minha intifada
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Vivendo em função da felicidade e das conquistas das filhas e praticamente se anulando em função delas, Fatima utiliza a figura da intifada (termo árabe que representa as insurreições dos palestinos contra os abusos dos israelenses) como metáfora/figura para sua responsabilidade de criar suas filhas sozinha em uma sociedade que a despreza e a discrimina.
2.2.4 Patriarcalismo
O protagonismo do filme é dividido entre três mulheres: uma mãe divorciada e suas duas filhas. Além do preconceito existente em relação à sua origem, essas mulheres sofrem as repressões de uma sociedade ancorada no sistema patriarcal.
Embora o pai de Nesrine e Souad faça algumas aparições durante o filme, fica claro que Fatima é a responsável por cuidar das filhas, e é ela quem passa por todo tipo de dificuldade para cumprir essa função, enquanto o pai fica com os momentos de leveza por vezes impregnados por suas opiniões machistas. Em uma visita à casa de Nesrine, eles têm a seguinte discussão:
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Pai de Nesrine: O isqueiro é seu?
Nesrine: Não, é da Leila.
Pai: Sua amiga fuma?
Nesrine: Não me interessa se ela fuma ou não.
Pai: É, mas se ela fuma você vai acabar fumando também.
Nesrine: Como você pode saber?
Pai: Porque foi assim que comecei quando entrei em uma república. Nós éramos dois no mesmo quarto, meu colega fumava e acabei fumando também.
Nesrine: É, mas cada uma de nós tem seu quarto, e ela fuma na sacada.
Pai: Isso é bom. Mas se você começar a fazer como ela, vai acabar fumando lá também. Imagine o que vão dizer de você.
Nesrine: O que vão dizer?
Pai: Você sabe bem.
Nesrine: Que mulheres que fumam são... E você agora liga para o que as pessoas dizem? Estou me lixando, mas só de estar perto do cigarro já é grave?
Pai: Sendo cigarro, sim.
Nesrine: É, mas pra você uma mulher não deve fumar?
Pai: Não, as outras mulheres, azar, mas você não.
Nesrine: É, mas você não quer que eu fume porque sou mulher?
Pai: Não, se você fosse um garoto eu diria a mesma coisa.
Nesrine: E você diria pra eu ter cuidado pra não fumar em público?
Pai: Não.
Nesrine: E aí está.
Pai: Se um rapaz fuma ninguém diz nada.
Nesrine: Mas é justamente o que eu disse. Para um homem a gente não diz nada e para uma mulher é vergonhoso.
Pai: Uma mulher que fuma é vulgar.
Nesrine: E um homem que fuma não é vulgar?
Pai: Menos. (Pausa)
Você sabe que se você encontrar um rapaz, você deve me dizer.
Nesrine: Não é por isso que estou aqui, mas tudo bem.
Pai: Sim, mas se você encontrar um rapaz você deve me dizer. Na vida é preciso saber com quem andar. Então, você deve me contar.
Nesrine: Bom, se for algo sério, eu te direi.
Pai: Como assim?
Nesrine: Por que você quer saber? Você tem medo de que?
Pai: E você, você tem medo de que?
Nesrine: Eu não tenho medo de nada. É você que tem medo, de que? De que ele seja judeu? Negro? Isso me assusta. Você tem medo que ele não seja muçulmano? Você tem medo de que?
Pai: Você tem medo que eu diga que ele não é bonito?
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A figura do cigarro é mobilizada aqui como uma representação da desigualdade entre homens e mulheres. Nas palavras do pai de Nesrine, “se um rapaz fuma ninguém diz nada”, mas “uma mulher que fuma é vulgar”. Seguindo essa ideia, podemos inferir que, para o pai de Nesrine, o problema não é, de fato, o ato de fumar, mas sim que ela seja uma mulher que fume, sujeita à opinião preconceituosa da sociedade e dele próprio. O pai de Nesrine determina ainda que, caso ela “encontre um rapaz”, deve contar-lhe, pois “na vida é preciso saber com quem andar”, ou seja, o rapaz deverá passar pelo crivo do (suposto) chefe de família. Nesrine questiona quais são as preocupações do pai, e em sua fala podemos encontrar o PF da diferença, que encadeia as figuras judeu, negro, e [não] muçulmano. É possível depreender daí que o pai não gostaria que Nesrine se relacionasse com um homem diferente dele, de seus padrões, de sua cultura. E, assim, ele apresenta mais uma faceta do preconceito.
Como afirma Charaudeau (2015[11]), nossa identidade se constrói sobre um paradoxo: precisamos do outro para tomar consciência de nossa própria existência, mas, ao mesmo tempo, desconfiamos dele; sentimos a necessidade de eliminá-lo ou de torná-lo semelhante a nós. Já Van Dijk (2015[12]) vê nesse confronto aceito vs. rejeitado, uma espécie de polarização nós/eles, caracterizada, do ponto de vista discursivo, por estratégias de autoapresentação positiva e de apresentação negativa do outro, o que se dá por meio dos temas escolhidos (ou, ao contrário, silenciados), da seleção lexical, das metáforas, das imagens, entre muitas outras propriedades do discurso.
Nessa perspectiva, a cultura muçulmana, aos nossos olhos ocidentais, pode ser entendida também como uma forma de repressão para as mulheres. A figura do véu, que desencadeia o preconceito de diversas pessoas retratadas no filme, é censurada, do ponto de vista da sociedade francesa, pelo fato de ser algo destinado apenas às mulheres, enquanto os homens são livres para se vestirem como quiserem10.
O filme, ao retratar a oposição entre mulheres ocidentais e mulheres árabes, apresenta a seguinte discussão entre Fatima e Souad em relação ao código de vestimenta:
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Fatima: Esconda esse peito, assim dá para ver.
Souad: Não dá pra ver nada.
Fatima: É muito decotado.
Souad: E daí? Tá calor. Não vou pôr uma camiseta até o pescoço, me sufoca.
Fatima: Mesmo que faça calor, não vista isso. Aqui as pessoas ficam falando.
Souad: E que que eles têm pra falar? Não roubei, não é nenhum crime se veem meus ombros.
Fatima: Aqui tem gente que conhece seu pai, você deve se cobrir pra não chocar ninguém.
Souad: Posso mudar em cima, mas não a saia.
Fatima: Não, mude os dois.
Souad: Não, tá calor. Eu tô bem assim.
Fatima: Não saia na rua assim! Lá fora você tem que cuidar de cada passo que der, cada gesto, cada palavra.
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A fala de Souad constrói o PF da exposição, que articula figuras como: decotado, peito, ombros, saia, e que se opõe ao PF do encobrimento, que encadeia figuras como: camisa até o pescoço, sufoca. Embora Souad afirme que esteja fazendo calor, suas roupas frescas aborrecem sua mãe, pois, para ela, isso é desrespeitoso e pode “chocar” as pessoas que conhecem o pai das moças. A opinião alheia parece ser muito relevante, pois Fatima reforça que naquele lugar “as pessoas ficam falando”, e que “lá fora você tem que cuidar de cada passo que der, cada gesto, cada palavra”, especialmente pelo fato de Soaud ser também mulher. Assim, o fato de a roupa da moça ser “muito decotada”, “mostrar o peito” e “deixar ver os ombros” pode surpreender negativamente aqueles que esperam que uma mulher de origem muçulmana se vista com recato, e, por outro lado, pode despertar o desejo e a cobiça masculina. A exemplo do cigarro e da aprovação paterna para um possível pretendente, a vestimenta também está ancorada em um sistema patriarcal, tendo em vista que essas figuras não se aplicam da mesma forma a homens e mulheres.
3 Considerações finais
Os dois filmes analisados, Que horas ela volta? e Fatima, aproximam-se pelo fato de possuírem como protagonistas mulheres que deixaram seu país/sua cidade natal para trabalhar como empregadas domésticas em locais mais desenvolvidos. Além disso, ambas são imigrantes (seja no mesmo país ou em um outro) que sofrem com a discriminação oriunda de ideologias sustentadas pelos discursos dominantes. Nesse sentido, lembramos que há uma relação estreita entre linguagem/discurso e ideologia (FIORIN, 1988[6]; BARROS, 2004[7]).
Nessa perspectiva, as ideologias veiculadas pelas obras fílmicas podem ser percebidas, com nitidez, nos percursos figurativos apreendidos ao longo das análises que concretizam, em ambos os casos, os seguintes temas comuns: a subalternidade da empregada doméstica/faxineira, o patriarcalismo e a inferioridade da imigrante (nordestina, no caso do filme brasileiro, e muçulmana, no caso do filme francês), mostrando ideologias muito próximas tanto na sociedade brasileira quanto na francesa. Como resposta a tais ideologias, os enunciadores/autores das duas obras apresentam o tema do questionamento da ordem social, que se faz representar, na tela, pela(s) filha(s) dessas duas mulheres.
Mesmo que esses temas sejam “recobertos” por figuras diferentes, por se tratar de países e culturas distintas, a figurativização dos filmes desvela as determinações sociais, históricas e ideológicas presentes nos discursos apresentados, dando a elas uma certa materialidade e criando um efeito de sentido de realidade. Aproxima-se, portanto, a ficção da realidade, provocando nos enunciatários/espectadores uma reflexão sobre as desigualdades existentes na sociedade ocidental.
Tanto no filme brasileiro quanto no francês, é patente como a figura da universidade aparece como um passaporte para a ascensão social, sendo que as personagens desfavorecidas que a alcançam parecem fazê-lo com muito esforço e apoiadas no sacrifício de suas mães, embora nem sempre isso seja uma garantia de sucesso, tendo em vista que as classes sociais dominantes contam com certos privilégios para alcançar seus objetivos. Em ambos os filmes, a possibilidade de ascensão de pessoas mais pobres por meio do estudo desperta nos integrantes das classes mais favorecidas incredulidade e mesmo uma certa dose de indignação.
Além disso, é clara a renegação social sofrida por Val e por Fatima, que possuem longas jornadas de trabalho para sustentar suas famílias. Considerando que um filme é uma forma de expressão figurativa da realidade (VIANA, 2012[13]), podemos observar que as produções fílmicas em questão trazem para a tela denúncias em relação à exploração de mão de obra, no caso, do trabalho da mulher como empregada doméstica ou faxineira. No filme francês, a patroa de Fatima declara à fiscalização que a empregada trabalha por um período bem menor do que ela realmente trabalha. Mesmo agindo assim, ela não é punida por sonegar benefícios e/ou impostos que seriam acarretados pela declaração do tempo real de trabalho. Esse cenário corresponde a algo semelhante no Brasil: muitas empregadas domésticas trabalham sem ter carteira assinada, o que faz com elas não tenham qualquer direito à proteção legal. Que horas ela volta? ilustra muito bem a forma mais velada como se dá a exploração da empregada, no contexto brasileiro: a expressão “praticamente da família”, resume o fato de que, além de ter criado o filho dos patrões, Val vive no quartinho dos fundos da casa, isto é, ela mora em seu trabalho, o que faz com que este nunca termine.
Podemos observar, também, que os filmes possuem em comum a categoria semântica de base identidade vs alteridade. No filme francês há a representação do preconceito com os imigrantes árabes, uma questão amplamente discutida na atualidade e que concerne a diferentes nações. Nesse caso, a discriminação se dá não só pela desigualdade econômica, mas também pela distinção da língua e da cultura do outro. Já no filme brasileiro, o preconceito se dá em relação a parte da população da própria nação – os nordestinos –, pois o Brasil é um país com uma grande extensão territorial e ainda em desenvolvimento, ou seja, há nele diversas culturas e uma grande desigualdade social interna.
É importante, ainda, darmos relevo ao fato de que os filmes são sobre mulheres, sendo que, em diferentes países e culturas, a ideologia machista faz com elas constituam um grupo minoritário constantemente agredido física e moralmente. Os temas selecionados pelos enunciadores/autores das obras fílmicas trazem à cena questões políticas e sociais que merecem ser discutidas, a fim de que as vozes daqueles que são postos à margem da sociedade – como determinam as ideologias da classe dominante – possam, enfim, ser ouvidas, como uma forma de resistência e luta pelo fim da discriminação, do preconceito e da exclusão social.
Referências
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BARROS, D. L. P. de. Teoria do discurso – fundamentos semióticos. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2001.
BERTRAND, D. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003.
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ELAYOUBI, F. Enfin, je peux marcher seule. Paris: Bachari, 2011.
FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2018.
FIORIN, J. L. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 1988.
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LARA, G. M. P.; MATTE, A. C. F. Um panorama da semiótica greimasiana. Alfa - Revista de Linguística, v. 53, n. 2, p. 339-350, 2009. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/2119. Acesso em: 18/06/2021.
VAN DIJK, T. Discurso das elites e racismo institucional. In: LARA, G. P.; LIMBERTI, R. P. (orgs.). Discurso e (des)igualdade social. São Paulo: Contexto, 2015.p. 31-48.
VIANA, N. Cinema e mensagem - Análise e assimilação. Porto Alegre: Asterisco, 2012.