Análise comparativa das organizações retóricas de resumos de artigos acadêmicos em português e francês

Maria Iara Zilda Návea da Silva Mourão,
Francisco Alves Filho

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo principal comparar a organização retórica do gênero resumo de artigo acadêmico em português e em francês em dois periódicos de qualis B1, um da França e outro do Brasil, da área de Arqueologia. Tal investigação tem como marco teórico-metodológico a análise de gêneros a partir dos estudos retóricos de gêneros (MILLER, 2012) e da abordagem do Inglês para Fins Específicos (SWALES, 1990). Desse modo, utilizaram-se, como categorias de análise, os conceitos de movimentos e passos retóricos, que representam funções retórico-comunicativas encontradas de modo recorrente em exemplares de diversos gêneros. Como resultado, pôde-se constatar semelhanças no que diz respeito à tendência de redução de movimentos e passos usados nesse gênero e ao modo generalista de citar pesquisas prévias. Foram observadas também diferenças em relação à quantidade, à variedade e à ordem dos passos e movimentos retóricos usados nas duas línguas. Em língua francesa, os resumos tendem a ser mais extensos e usar mais passos e movimentos. Enquanto isso, em português, os textos do gênero são mais sintéticos, empregando menos movimentos mais marcadamente argumentativos e apresentando mais índices de flexibilidade no que diz respeito à posição dos movimentos retóricos

Introdução

No Brasil, cada vez mais se incentiva a internacionalização da pesquisa científica, sendo este um dos parâmetros que a CAPES costuma levar em conta para a avaliação da qualidade das universidades. Nesse contexto, os conhecimentos em línguas adicionais, e não apenas no inglês, são instrumentos de trabalho essenciais para progredir na carreira acadêmica e estabelecer contatos com pesquisadores de outras partes do mundo, até mesmo sem precisar sair da sua universidade, se levarmos em consideração o uso das novas tecnologias na interação entre pesquisadores e instituições. Atualmente, a partir da internet, pesquisadores têm acesso a repositórios de trabalhos científicos produzidos em universidades estrangeiras e ainda podem entrar em contato com seus autores por meio de redes sociais e e-mail, muitas vezes disponibilizados em sites institucionais ou no próprio artigo.

Conhecer e saber produzir textos acadêmicos nas línguas que são mais usadas em seu campo de pesquisa pode ajudar pesquisadores brasileiros a travar diálogos internacionais e aproveitar melhor o acesso mais facilitado pela internet a materiais em outros idiomas. O gênero resumo se enquadra nesse caso, visto que é um dos mais escritos e lidos no mundo acadêmico e é exigido em diferentes situações, como nas submissões de trabalhos em eventos ou de artigos em revistas científicas. O resumo acompanha, também, artigos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações, teses, entre outros, servindo, ao mesmo tempo, para antecipar o conteúdo de escritos ou apresentações e para atrair leitores ou espectadores para eles.

Tendo em vista esse contexto, objetivamos, com esse trabalho, comparar a organização retórica do gênero resumo de artigo acadêmico em português e em francês em dois periódicos de qualis B1, um da França e outro do Brasil, da área de Arqueologia. Para tanto, realizamos a coleta e a análise de 10 resumos de cada revista, publicados entre 2010 e 2020 por pesquisadores doutores nativos dessas línguas e vinculados a Instituições de Pesquisa e/ou Ensino de Arqueologia desses países.

O periódico brasileiro do qual retiramos o corpus em português é o Clio Arqueológica, associado à Universidade Federal de Pernambuco, enquanto o periódico francês é a revista acadêmica Paleo - Revue d'archéologie préhistorique. Ambas podem ser acessadas livremente por meio de seus sites eletrônicos e têm em comum o fato de seus escopos se centrarem, principalmente, em pesquisas sobre a pré-história, temática bastante estudada no Brasil e que contou, em partes, com a influência francesa para seu desenvolvimento (FUNARI, 2013)[1].

Esses resumos foram lidos integralmente e comparados com os modelos de organizações retóricas de resumos propostos por Biasi-Rodrigues (2009)[2] e Motta-Roth e Hendges (2010)[3]. A partir disso, pôde-se reconhecer os passos retóricos mais recorrentes nos textos em cada língua e descrever semelhanças e diferenças entre a organização retórica do gênero em cada grupo. Além disso, foram analisadas as orientações dadas pelas revistas acadêmicas aos autores, a fim de estabelecer relações entre esses dados contextuais e a arquitetura dos resumos.

Muitos estudos já ofereceram análises da organização retórica de resumos, tanto de artigos científicos, como Gil e Aranha (2017)[4] e Florek (2015)[5], quanto de outras modalidades, como Carvalho (2010)[6], Oliveira e Melo (2020)[7], abrangendo exemplares desse gênero de diversas áreas, como Antropologia, Biologia, Química, Letras, Matemática etc. Por outro lado, não conseguimos encontrar estudos, ao menos em português, que tratassem de resumos de artigos acadêmicos de Arqueologia e que analisassem a organização retórica desse gênero em outras línguas que não fossem o português ou o inglês. Em razão disso, este trabalho pode vir a contribuir para incentivar a aplicação dos modelos de descrição de organização retórica para mais idiomas e o aproveitamento de seus resultados no ensino de francês em contextos acadêmicos.

1. A análise de gêneros na perspectiva da sociorretórica

É notável o crescimento dos estudos de gêneros nas últimas décadas. Segundo Marcuschi (2008)[9], esse estudo encontrou seu momento ideal e torna-se cada vez mais multidisciplinar, colocando em evidência as relações entre língua e sociedade. Uma das abordagens dos estudos de gêneros atuais é a sociorretórica, que parte do conceito de gênero como forma de “ação social” (MILLER, 2012)[8].

Entender gêneros por esse viés significa pensá-los como modos de realizar socialmente ações por meio da linguagem, pautando-se na compreensão, não só das formas e do conteúdo que se pretende veicular, mas do contexto. Assim, Miller (2012)[8] se desvincula de classificações de gênero anteriores que se pautavam apenas na forma ou que se restringiam a determinados contextos e propõe uma visão mais ampla dos gêneros a qual abrange, também, os textos da comunicação cotidiana e não só textos de um determinado domínio da atividade humana, como o literário ou o jurídico. ]

Nessa esteira, John M. Swales idealiza um conceito e uma abordagem para a análise de gêneros que vai além do exame de elementos linguísticos. Esse teórico encontra-se ligado ao Ensino de Inglês para Fins Específicos (ESP), o que favorece sua compreensão de que o conhecimento, apenas, da estrutura de um gênero de texto em si é insuficiente para quem precisa escrever em contexto acadêmico e, assim, vê o conhecimento do gênero como uma ferramenta primordial para o ensino de língua em situações profissionais (HEMAIS; BIASI-RODRIGUES, 2005, p. 110)[10]. Para Swales (1990)[11]:

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Um gênero compreende uma classe de eventos comunicativos, cujos membros compartilham os mesmos propósitos comunicativos. Esses propósitos são reconhecidos pelos membros mais experientes da comunidade discursiva original e constituem a razão do gênero. A razão subjacente dá o contorno da estrutura esquemática do discurso e influencia e restringe as escolhas de conteúdo e estilo (SWALES, 1990[11] apud HEMAIS; BIASI-RODRIGUES, 2005[10])1

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Nessa definição de gêneros, o aspecto que mais se sobressai é o propósito comunicativo, ou seja, os objetivos compartilhados no seio de um grupo social usados recorrentemente em dados gêneros. Essa interação entre propósitos comunicativos e grupo social (comunidade discursiva) determina a lógica do gênero que vai repercutir nas escolhas estruturais, formais e conteudistas dos textos produzidos. Assim, o conceito de gêneros apontado por Swales permite entendê-los como “[...] ações linguísticas e retóricas que envolvem o uso da linguagem para comunicar algo, a alguém, em algum momento, em algum contexto e para algum propósito” (BAWARSHI; REIFF, 2013, p.65)[12].

Segundo Navarro (2019, p. 10)[13], essa definição e a atenção dada aos propósitos comunicativos favorecem muito seus usos pedagógicos na universidade por conta do foco que dá à estabilidade, ao acordo e à convenção, sem negligenciar a complexidade e a heterogeneidade dos gêneros. Para Bhatia (1997, p. 103)[14], a centralidade dessa noção se dá porque ela remete a contextos retóricos específicos e, ao mesmo tempo, determina escolhas estruturais e vocabulares. Por ser uma ponte entre a linguagem em uso e o conhecimento do meio que o desencadeia, esse conceito foi visto como uma base sólida para muitos analistas de gêneros que construíam suas análises sem levar em conta a complexidade desse conceito.

Discutindo sobre as implicações dessa posição diante do propósito comunicativo, Askehave e Swales (2009)[15] reveem alguns pontos. Um deles se refere ao fato de que, mesmo para os usuários especialistas de determinado gênero, o propósito comunicativo pode não ser um ponto pacífico. Além disso, apesar de o propósito comunicativo ter uma força coercitiva para as escolhas formais, como Bhatia (1997)[14] enfatiza, nem sempre é possível identificá-lo somente a partir de pistas linguísticas, mesmo porque textos idênticos ou quase idênticos podem apontar para propósitos comunicativos diferentes. Por outro lado, um mesmo gênero pode apresentar vários propósitos comunicativos que o analista pode desconhecer por não ter experiência com a comunidade discursiva na qual ele circula. Desse modo, os textos podem fornecer apenas uma visão parcial da situação a partir dos elementos recorrentes ou até mesmo enunciar propósitos comunicativos enganosos.

Outra contribuição de John M. Swales para a análise de gêneros foi o Modelo CARS (SWALES, 1990)[11], usado inicialmente para a análise da organização retórica da seção de introdução de artigos científicos. A partir de então, diversos trabalhos utilizaram esse modelo, adaptando-o para outras seções do artigo científico e outros gêneros acadêmicos na tentativa de compreender como os propósitos comunicativos estão implicados na construção dos textos de determinado gênero utilizado por uma certa comunidade discursiva. Segundo Alves Filho (2018)[16], muitos pesquisadores empregam o termo “organização retórica” para a análise dessa relação entre textos, gêneros, propósitos comunicativos e comunidades discursivas sem apresentar um conceito explícito. Desse modo, ele redefine-o como:

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[...] um desenho de como, preferencialmente ou recorrentemente, os escritores numa dada comunidade discursiva organizam seus textos em termos funcionais e pragmáticos visando atingir certos propósitos comunicativos e retóricos. Neste desenho tem sido fundamental descrever os passos e movimentos retóricos mais recorrentes (ALVES FILHO, 2018, p. 136).[16]

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“Passos” e “movimentos retóricos”2 são categorias propostas por Swales (1990)[11] para as quais Alves Filho (2018)[16] propõe uma delimitação teórica, considerando a partir de quais fatores elas podem ser reconhecidas e o grau de interferência do analista em sua determinação. Assim, os movimentos retóricos são definidos como funções retórico-comunicativas encontradas em uma parte ou seção do gênero, geralmente determinadas pelos estudiosos a partir da consideração, em primeiro lugar, de aspectos extralinguísticos, já que se apresentam linguisticamente de modo difuso. Por outro lado, os passos retóricos são caracterizados por funções retórica-comunicativas menores que compõem os movimentos, mas realizadas por sequências textuais menores, como orações ou parágrafos. Sua definição torna-se mais operacional porque podem ser precisamente localizados nos textos e dependem em menor grau de fatores contextuais (ALVES FILHO, 2018)[16].

Portanto, Alves Filho (2018)[16] abandona a noção de movimentos para direcionar seu olhar para os passos retóricos em sua pesquisa a fim de reduzir a interferência do analista na interpretação dos dados. O autor também deixa de considerar o fator “obrigatoriedade” dos passos retóricos, representado pelo emprego da fórmula “e/ou”, tendo por base a impossibilidade de validá-lo a partir da análise total dos exemplares de um gênero e da contradição que tal fator, se for levado em conta, constitui à relativa estabilidade dos gêneros. Este trabalho, por sua vez, não abandonou a noção de movimentos, levando em consideração a validade do que já foi dito sobre essa categoria no resumo acadêmico para o corpus aqui analisado, porém, a noção de passos foi a mais privilegiada por ser de identificação mais precisa e o fator obrigatoriedade não foi considerado tendo em vista os argumentos de Alves Filho (2018[16]).

1.1 Gênero resumo acadêmico

Uma parte essencial do trabalho acadêmico é a publicação e divulgação dos resultados por meio de escritos e de apresentações orais aos quais, muitas vezes, não é possível determinar com precisão seu alcance, se for considerado o crescente uso da internet em várias esferas de atuação social e pessoal, inclusive na ciência. Para Araújo (2014)[17], mesmo sem querer, os cientistas e pesquisadores têm suas pesquisas veiculadas na internet por meio de revistas eletrônicas e de bases de dados.

Considerando esse contexto, Biasi-Rodrigues (2009)[2] enfatiza a importância do resumo de artigos científicos para o estabelecimento de diálogos científicos a nível nacional e internacional, “já que esse gênero é veiculado em diferentes mídias e pode compor bancos de dados no país e no exterior” (BIASI-RODRIGUES, 2009, p. 49)[2]. Além disso, a autora alerta para a necessidade de se ter mais atenção na escrita desse gênero a fim de obter eficácia comunicativa em um contexto que se amplia cada vez mais.

Nessa esteira, Motta-Roth e Hendges (2010[3]) ressaltam que o resumo, ao apresentar-se como uma forma diminuta dos textos aos quais acompanha, permite aos leitores acessar mais rapidamente o que tratam e, assim, economizar tempo diante de tantas leituras que devem ser feitas no contexto acadêmico para se manterem atualizados. Segundo as autoras, artigos científicos e resumos de artigos científicos se organizam, retoricamente, de forma bastante semelhante, podendo apresentar variações de acordo com a natureza do artigo científico que o resumo acompanha. Desse modo, se o artigo for de natureza experimental/empírica, o resumo terá uma estrutura semelhante. Se o artigo for de revisão de literatura, seu resumo terá uma organização retórica que reflete esse tipo de artigo.

A partir do modelo CARS, tanto Motta-Roth e Hendges (2010)[3] quanto Biasi-Rodrigues (2009)[2] apresentaram organizações retóricas bem parecidas que foram utilizadas como parâmetros para outros trabalhos sobre esse gênero no Brasil, como fizeram Oliveira e Melo (2020)[7]. Os modelos de Motta-Roth e Hendges (2010)[3] e Biasi-Rodrigues (2009)[2] assemelham-se por apresentarem cinco movimentos e muitos passos em comum. Por isso, esses trabalhos aproximam a organização retórica do resumo àquela do artigo acadêmico, normalmente sintetizada pela sigla IMRD - Introdução, Metodologia, Resultados e Discussão. Elas se diferenciam, principalmente, no que diz respeito à especificação ou à presença de alguns passos em cada movimento e pelo fato de Biasi-Rodrigues (2009)[2] inverter a ordem do primeiro e do segundo movimento de Motta-Roth e Hendges (2010)[3] por conta da posição em que foram encontrados em seu corpus. Além disso, o modelo de Biasi-Rodrigues foi feito inicialmente para resumos de dissertações em Linguística e só depois foi estendido para resumos de teses, artigos e comunicações em eventos em outras subáreas das ciências humanas, exatas e da saúde. Abaixo, reproduzimos os quadros-síntese das organizações retóricas dos dois estudos:

Figure 1. QUADRO 1 - Organização retórica para o gênero resumo acadêmico de Motta-Roth e Hendges (2010) Fonte: Motta-Roth e Hendges (2010)

Figure 2. QUADRO 2 - Organização retórica para o gênero resumo acadêmico  de Biasi-Rodrigues (2009) Fonte: Biasi-Rodrigues (2009)

A partir da análise de trabalhos internacionais sobre o resumo de artigo acadêmico, Florek (2015)[5] aponta para mudanças nessa organização retórica no sentido de uma redução da quantidade de movimentos em algumas áreas do conhecimento, como a Biologia (SAMRAJ, 2006??? apud FLOREK, 2015)[5] ou a Linguística aplicada e a Educação (GOLEBIOWSKI, 2009 apud FLOREK, 2015)[5]. Desse modo, percebe-se que essas áreas tendem a privilegiar movimentos que enfatizam os resultados e a conclusão, enquanto movimentos mais ligados à introdução, ou seja, que contextualizam ou apresentam a pesquisa, podem não ser usados. Ramos (2011) [18]também encontra essa tendência de algumas áreas não utilizarem determinados movimentos. Em seu corpus, composto por resumos publicados em revistas internacionais em inglês das áreas de Biologia Celular, Medicina, Direito, Física Educação e Matemática, essas duas últimas áreas apresentaram uma frequência muito baixa dos movimentos e passos ligados à apresentação dos resultados e da conclusão.

O estudo desse autor relacionou ainda a organização retórica do seu corpus com o domínio da argumentação tendo como base teórica o modelo de Toulmin (1958)[19] sobre a estrutura do argumento, Bickenbach e Davies (1997)[20] para a caracterização formal e funcional dos argumentos e as técnicas de argumentação propostas por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005)[21]. Para Ramos (2011, p. 241)[18], “a estrutura retórica do abstract pode ser organizada de modo a tornar sua argumentação mais eficiente, dando maior visibilidade aos argumentos e, consequentemente, ao artigo de pesquisa”. Nesse sentido, uma boa articulação entre organização retórica e argumentação pode ajudar determinado exemplar desse gênero a realizar melhor seus propósitos comunicativos, quais sejam, a apresentar uma síntese do artigo que acompanha, a levar uma equipe editorial a publicá-lo e a atrair leitores em meio a uma diversidade de outros trabalhos.

Tendo como pressuposto que um argumento necessita da articulação entre premissas e conclusões, a análise de Ramos (2011)[18] traçou relações entre determinados movimentos e passos e o desenvolvimento argumentativo dos resumos. De uma perspectiva quantitativa, constatou-se que os textos das áreas que realizavam simultaneamente os movimentos ligados aos resultados e às conclusões foram os que mais apresentaram argumentos. Isso porque os resultados apresentados constituíram premissas ou provas que fundamentaram as conclusões do(s) autor(res) do abstract, compondo um argumento. Qualitativamente, destaca-se o movimento de Contextualização da pesquisa que, quando está acompanhado dos movimentos citados anteriormente, pode fazer parte da argumentação, definindo o contexto da pesquisa e preparando os leitores para aceitar os dados e as conclusões apresentadas em seguida. Os movimentos relacionados aos objetivos e à metodologia, também, podem contribuir para a construção de argumentos à medida que representam, respectivamente, as noções de fins e meios:

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Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p.312)[21], “existe uma interação entre os objetivos perseguidos e os meios empregados para realizá-los”, o que sugere a adequação dos métodos para alcançar os objetivos. Dessa forma, a apresentação dos objetivos e a descrição dos procedimentos metodológicos, dos indivíduos analisados e dos locais de realização das pesquisas podem constituir elementos coadjuvantes na argumentação do abstract, dando suporte ao argumento e indicando a habilidade do(s) autor(es) de selecionar métodos apropriados para o propósito da pesquisa (RAMOS, 2011, p. 236)[18].

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Além da posição de coadjuvante ao lado do movimento de Apresentação de metodologia, o movimento Apresentar a pesquisa, quando realizado pelo passo Apresentar a hipótese, algumas vezes, comportou um argumento. Assim, a hipótese a ser defendida trazia premissas e uma conclusão a qual o estudo viria a comprovar ou refutar.

Para este trabalho, partiu-se das organizações retóricas propostas por Motta-Roth e Hendges (2010)[3] e Biasi-Rodrigues (2009)[2], mas tendo em vista a possibilidade de encontrar diferenças em relação a quais e quantos movimentos e passos realizados se realizam nos resumos. Considerou-se também o que foi dito por Ramos (2011)[18] sobre a relação entre argumentação e organização retórica, observando-se a presença de passos dos movimentos Contextualizar a pesquisa, Sumarizar os resultados e Discutir a pesquisa, visto que podem dar mais espaço à argumentação, sobretudo quando aparecem simultaneamente.

2. A organização retórica dos resumos de artigos acadêmicos em português e francês na área de arqueologia

2.1 Panorama geral da organização retórica do corpus 

A partir dos modelos de Motta-Roth e Hendges (2010)[3] e de Biasi-Rodrigues (2009)[2], foi verificada a presença de 14 passos em português e 15 passos em francês, pertencentes aos 5 movimentos. No quadro abaixo, sistematizamos os movimentos e passos presentes nos corpora aqui analisados, bem como a quantidade de projetos e o número de vezes (ocorrência) que aparecem. Os movimentos são acompanhados pela redução “mov.” e pelo número de identificação. Desse modo, o primeiro movimento apresentado na tabela é nomeado Mov. 1 Contextualizar a pesquisa. Os passos são identificados por P, o número do passo a que correspondem e uma letra do alfabeto em maiúsculo para diferenciação de outros passos do mesmo movimento. Assim, P1A - Fazer generalizações no tópico é a designação para o primeiro passo associado ao Mov. 1 Contextualizar a pesquisa.

Figure 3. QUADRO 3 - Movimentos e passos dos resumos nas duas línguas Fonte: elaborado pelos autores

Os resumos acadêmicos em português e em francês apresentam diferenças e semelhanças quanto à organização retórica. A partir do quadro 3, observa-se que a ocorrência dos movimentos e passos é maior em francês. Assim, apenas o Mov. 2 Apresentar a pesquisa ocorre mais em português, sendo o único identificado em todos os exemplares analisados nesse idioma. É interessante notar que esse movimento tem a menor ocorrência em francês e é constituído apenas por P2A - Apresentar o(s) objetivo(s). O único movimento que aparece na mesma quantidade de projetos nos dois corpora é Mov. 1 Contextualizar a pesquisa. No entanto, em francês, foram encontrados os seguintes passos não utilizados em português: P1E - Contra-argumentar pesquisas prévias e P1F - Indicar lacunas em pesquisas prévias.

Considerando que Mov. 1 Contextualizar a pesquisa e Mov. 2 Apresentar a pesquisa são ligados à seção de introdução do artigo científico, pode-se dizer que, nas duas línguas, os resumos apontam brevemente aspectos iniciais da pesquisa, mas o fazem de forma diferente. Nesse sentido, em francês, os passos introdutórios apresentam mais marcadamente um caráter argumentativo e um diálogo com pesquisas prévias. Já em português, há mais passos em que se apresenta um aspecto da pesquisa de modo mais sintético, como P2A - Apresentar o(s) objetivo(s). Mov. 3 Descrever a metodologia, Mov. 4 Sumarizar os resultados e Mov. 5 Discutir a pesquisa também seguem a tendência de apresentar os passos de formas diferentes em uma língua e outra. Exemplo disso é P4B - Comentar evidência(s), bastante recorrente em francês posto que aparece em metade dos resumos analisados, mas não muito utilizado em português. Nesses movimentos, também é possível notar diferenças no caráter dos passos usados. Por exemplo, no Mov. 5 Discutir a pesquisa, que traz as conclusões do trabalho, é possível encontrar o P5B - Fazer recomendação(ões) / sugestão (ões) apenas no corpus em francês. Aliás, esse movimento tem uma recorrência muito baixa em português, aparecendo apenas em dois projetos, enquanto em francês ele aparece em seis dos dez textos analisados. Nesse sentido, pode-se dizer que os resumos em português são mais descritivos e menos conclusivos ou argumentativos que em francês, como podemos observar nos dois resumos apresentados em seguida:

Este artigo apresenta o estudo dos marcadores de identidades coletivas na materialidade das estruturas funerárias do sítio pré-histórico Furna do Estrago, localizado no Município do Brejo da Madre de Deus, Pernambuco, Brasil. [P2A] Como resultado, registrou-se: presença de colares e uso de envoltório em fibra vegetal, indicadores de representação material de identidades coletivas - elementos recorrentes na maioria dos indivíduos sepultados - e a existência de elementos indicadores de identidades vinculados à idade dos indivíduos. No sítio Furna do Estrago o contexto funerário apresentou marcadores de identidades coletivas, associados à idade, forma de deposição do corpo e representados na cultura material. [P4A]

Parmi les Félidés pléistocènes, les formes de petite taille, attribuées au genre Felis Linnaeus, 1758, [P1C] font rarement l’objet d’analyses paléontologiques en vue de préciser leur caractérisation spécifique (morphologie et biométrie) et leur statut phylogénique. [P1F] Si la rareté du matériel est une limite inhérente à ce type d’approche, il n’en reste pas moins vrai que plusieurs espèces pléistocènes ont été caractérisées à partir d’échantillons restreints. Ce faisant, les espèces décrites sont régulièrement considérées comme des chronoformes. La question de la variabilité morphométrique a rarement été abordée. [P1E] Pourtant, cet aspect reste fondamental pour discuter de la validité d’une espèce ainsi que ses potentialités biochronologiques. [P1B] Le Réseau Ursus (réseau secondaire du Trou du Renard), à Soyons (Ardèche), est un gisement paléontologique pléistocène composé quasi exclusivement de carnivores. Au sein de cet assemblage, une mandibule et un radius ont été attribués à un chat de petite taille. À partir de la description morphologique de ces pièces et de comparaisons morphométriques avec les chats sauvages du Pléistocène européen [P3A], nous discutons de la validité de certaines formes pléistocènes. [P2A] À l’issue de cette étude il résulte, comme cela a pu être évoqué auparavant, que les diagnoses de « chronoformes » ne semblent en rien justifier une distinction spécifique. [P4A]

As orientações para autores nos periódicos consultados parecem contribuir para essa diferença na quantidade de passos que aparecem nos resumos de cada língua. Se tanto a Revista Clio Arqueológica quanto a Paleo - revue d'archéologie préhistorique restringem-se a determinar, somente, o tamanho máximo dos resumos, essa condição parece ser determinante para a diferença entre os dois grupos do corpus. O periódico brasileiro estipula um máximo de 100 palavras, ao passo que o francês possibilita a escrita de resumos maiores com até 2,500 caracteres, ou seja, por volta de 300 palavras. Logo, pode ser mais difícil para autores em português usar mais passos e argumentar mais em seus resumos, já que a revista brasileira delimita um tamanho menor que a francesa.

A seguir, os quadros 4 e 5 visam apresentar, de modo sucinto, a diferença na quantidade e no tipo de passos utilizados nas duas línguas. No quadro 4, os resumos em português são identificados pelas letras RP e um número para a identificação no corpus. Por exemplo, o resumo em português apresentado anteriormente é o RP7. A numeração disposta verticalmente acima do quadro representa a posição e a sequência dos passos nos textos. Assim, em RP7, só se pode encontrar dois passos, sendo que o primeiro passo é P2A - Apresentar o(s) objetivo(s) e o segundo, P4A - Apresentar fato(s)/achado(s). Os passos seguem a mesma identificação apresentada no quadro 3, com a diferença de que, por motivos de economia de espaço, são representados apenas pelo código, por exemplo, P2A, sem a descrição, Apresentar o(s) objetivo(s). O quadro 5 segue o mesmo padrão, diferenciando-se, apenas, pelo fato de designar os resumos com as letras RF e um número, já que se refere aos textos em língua francesa.

Figure 4. QUADRO 4 - Passos por resumo em Português Fonte: elaborado pelos autores

Figure 5. QUADRO 5 - Passos por resumo em Francês Fonte: elaborado pelos autores

Considerando a variedade de movimentos e passos em cada resumo, sintetizados nas representações gráficas anteriores, podemos observar que, em francês, os resumos são mais heterogêneos. Dos 10 exemplares franceses analisados, 7 possuíam ao menos 5 passos diferentes pertencentes a 4 movimentos distintos. Em português, o número se reduz: metade dos textos possuem a partir de 5 passos diferentes e seis deles possuem menos de 4 movimentos. Apesar dessa diferença, os dois corpora apontam para o delineamento, mesmo que sutil, da tendência anunciada por Florek (2015)[5] de alteração na organização retórica desse gênero no sentido de uma redução dos movimentos nele identificados. Nos dois idiomas, há textos com apenas dois ou três movimentos. Nesse sentido, o movimento que parece estar deixando de ocorrer nos resumos é o Mov. 5 Discutir a pesquisa.

Quanto à ordem de aparecimento desses movimentos e passos nos textos, percebeu-se que em francês os passos iniciais pertencem ao Mov. 1 Contextualizar a pesquisa, aparecendo em 9 exemplares, como na organização retórica proposta por Motta-Roth e Hendges (2010)[3], em que os autores procuram se posicionar retomando ou dialogando com pesquisas prévias sobre o tópico. Em português, metade começou por esse movimento e a outra parte, como proposto em Biasi-Rodrigues (2009)[2], iniciou por uma apresentação da pesquisa. Nesse grupo, esses dois movimentos vieram juntos na posição inicial em 5 textos. Em francês, após os passos iniciais, em 8 resumos, havia passos ligados ao movimento de apresentação da metodologia (Mov. 3). Esses passos não se restringiam apenas a essa posição, apresentando-se como unidade complexa (BIASI-RODRIGUES, 2009)[2], ou seja, ocorrendo de modo intercalado a passos de outros movimentos. Essa característica também aconteceu nos resumos em português, mas de modo menos recorrente. Quanto à finalização dos resumos, os passos mais recorrentes em francês dizem respeito ao Mov. 5 Discutir a pesquisa, uma vez que em português movimentos diversos apareceram.

Observando-se o tamanho dos textos, a variedade e a ordem de aparecimento dos passos e movimentos retóricos no corpus analisados, foi possível notar diferenças marcantes nas organizações retóricas das duas línguas. Na seção a seguir, essas diferenças se acentuam dado que, nela, são analisados os passos mais recorrentes e as pistas lexicais utilizadas nos resumos.

2.2 Passos mais recorrentes e pistas lexicais

O quadro 6, apresentado a seguir, reúne os oito passos mais recorrentes por ordem decrescente em cada grupo de resumos:

Figure 6. QUADRO 6 - Passos mais recorrentes nas duas línguas Fonte: elaborado pelos autores

Como é possível ver a partir do quadro, os passos em cada idioma são diferentes, tanto em relação aos movimentos a que pertencem, quanto a sua ocorrência. O mais recorrente em francês é o P3A - Citar / descrever o(s) método(s), ligado à seção de metodologia. Entre as pistas linguísticas que nos permitiram identificar esse passo, é interessante destacar o uso de terminologias que identificam determinado método empregado na área, como: “les analyses archéozoologiques”; “une étude taphonomique”, “l’analyse sédimentologique”; “une étude techno-économique". Os resumos que empregaram esse passo em português utilizaram, também, esse recurso, trazendo termos como: “técnicas estatístico-comparativas” e “análises por espectroscopia de fluorescência de raios X”. No entanto, diferentemente do português, alguns resumos em francês que apresentaram P3A vão além da citação desses métodos e procuram justificar seu uso. Para ilustrar essa situação, temos o exemplar RF5 em que o adjetivo “meilleur”, que significa “melhor”, distingue o tipo de análise escolhida:

Pour résoudre cette problématique, nous abordons tout d'abord la question du choix méthodologique d’étude des matières premières : l’analyse sédimentologique demeure encore le meilleur mode de caractérisation pour intégrer directement les données des matières premières dans une étude techno-économique. [RF5 - P3A - grifo nosso]

Em português, o passo mais recorrente é o P2A - Apresentar o(s) objetivo(s). Esse passo aparece em todos os exemplares do corpus em português, enquanto que, em francês, apesar do grau de recorrência mais alto, isso não acontece com nenhum dos passos. Nos dois idiomas, os objetivos podem ser apresentados por meio de fórmulas que usam os pronomes demonstrativos3, como: “ce travail met en évidence”; “Cet article fait le bilan”; “Este artigo traz um diagnóstico”; “Este artigo apresenta o estudo”. No entanto, em português, é mais recorrente o uso dessas fórmulas mais impessoais e da palavra “objetivo” na escrita desse passo, enquanto que, em francês, encontrou-se o uso do pronome “nous”, que significa “nós”, introduzindo os propósitos dos trabalhos em quatro dos seis resumos que contém P2A.

A partir disso, o objetivo deste artigo é explanar sobre a conservação sob a ótica da Arqueologia, seu potencial para a análise e guarda do material arqueológico enquanto formadores de uma reserva técnica, propondo uma abordagem sistemática e prática para a compreensão, segurança e o cuidado na gestão dos artefatos escavados. [RP3 - P2A - grifos nossos]

Nous nous proposons ici de livrer quelques clés morphologiques de détermination propres à identifier les rochers de trois Bovidae – le bouquetin de Alpes (Capra ibex), le chamois (Rupicapra rupicapra) et le tahr (Hemitragus sp.) et à les distinguer d’autres taxons de taille semblable. [RF8 - P2A - grifos nossos] ]

Em português, é comum a crença de que o uso da 3ª pessoa em trabalhos acadêmicos sugere objetividade, por isso, pode-se entender a razão de poucos resumos nessa língua utilizarem a 1ª pessoa do plural. Por outro lado, em francês, a 1ª pessoa do plural aparece em seis dos dez resumos analisados, sugerindo que, nessa língua, a objetividade científica parece não estar ancorada no uso das pessoas do discurso.

Além disso, é possível observar que os passos mais recorrentes em português são de caráter menos argumentativo. Nesse idioma, a grande maioria dos passos listados no quadro 6 preveem a citação, a apresentação ou a descrição de algum aspecto da pesquisa, como P4A - Apresentar fato(s) ou achado(s), em que são sumarizados os fatos e achados da pesquisa. Em contrapartida, em francês, é possível encontrar, com maior recorrência, passos que exigem do escritor mais estratégias de argumentação para convencer o leitor da validade de sua pesquisa, como P4B - Comentar evidência(s), com a mesma quantidade de ocorrências nas duas línguas. Esse passo também se refere aos resultados da pesquisa, mas permite a apresentação de evidências que apontem para a importância dos achados.

Como resultados obtidos, elenca-se: as novas cronologias definidas, as relações tecno-tipológicas com os outros sítios registrados e o surgimento da tecnologia ceramista, no assentamento. Além da proposição de um modelo de variação temporal para as práticas mortuárias e a definição de um horizonte cultural, com longa duração histórica, na área arqueológica do Seridó (RN, Brasil). [RP9 - P4A - grifos nossos]

Ensuite, nous présentons les résultats de l’étude pétroarchéologique du Grain de mil : ce matériau est typique de Charente-Maritime puisque sa formation est liée à l’anticlinal de Jonzac. Il s’agit d’une famille de silex au sein de laquelle deux types peuvent être distingués (« Jonzac » et « Saintes ») qui présentent des différences en termes de gitologie, et de morphologie et dimensions des blocs. [RF5 - P4B]

Nota-se que os dois trechos de resumos acima introduzem os resultados de forma explícita, usando os substantivos “resultados” e “résultats” e dois pontos, contudo, trazem seus achados de modo diferente. Em português, eles são realmente elencados, um após o outro, caracterizando o passo P4A. Em francês, o resultado principal é apresentado e acompanhado de evidências, por meio de orações coordenadas, que podem ajudar a convencer o leitor especializado acerca da assertividade do resultado encontrado.

Sobre as semelhanças entre os dois corpora, destacam-se, ao modo de relacionar, pesquisas prévias em passos do Mov 1. Contextualizar a pesquisa. Nas duas línguas, não é comum fazer referências diretamente a estudos específicos, como é possível observar nas amostras abaixo. Dos 20 exemplares analisados ao todo, apenas RP6 faz isso ao utilizar P1C - Citar pesquisas prévias.

Au sein d’une loupe de glissement constituant la seule partie conservée du site magdalénien et solutréen des Petits Guinards (Allier, France), plusieurs milliers de restes de rongeurs ont été identifiés. [RF3 - P1C - grifos nossos]

O sítio arqueológico Furna do Estrago vem inspirando Teses, Dissertações, artigos sem que o tema tenha sido esgotado. A produção científica sobre o sítio está concentrada em abordagens do material biológico, principalmente esqueletos humanos provenientes do cemitério. [RP5 - P1C - grifos nossos]

A Pedra Lavrada do Ingá, com suas características singulares e grande concentração de gravuras, pode ser interpretada como local destinado a práticas ritualísticas pelos grupos que dela se apropriaram, atribuindo-lhe significados que parecem relacioná-la ao domínio do sagrado (NASCIMENTO, 2015). [RP6 - P1C - grifos nossos]

Nossa hipótese para essa escolha leva em conta que o resumo, na maioria das vezes, vem acompanhado do texto fonte, em que os leitores vão poder verificar as referências. Além disso, as pesquisas arqueológicas, normalmente, exploram um mesmo sítio ou região por muito tempo. Desse modo, pode ser difícil determinar exatamente uma única pesquisa que tratou daquele espaço.

3. Considerações finais

Com base em nossos aportes teóricos e metodológicos e na análise aqui empreendida, foi possível comparar a organização retórica de resumos de artigos científicos publicados em francês e em português na área de Arqueologia e detectar pontos em comum e divergências nessas produções. Percebemos que, no corpus analisado, parece haver mais diferenças que semelhanças. Aquelas começam a partir das orientações aos autores nos dois periódicos analisados e se estendem à sequência dos passos no texto e sua recorrência. Desse modo, os textos em francês se mostraram mais extensos e com mais passos retóricos diferentes, enquanto os resumos em português apontaram indícios de mais flexibilidade no que diz respeito à posição dos movimentos retóricos no texto.

Há, ainda, diferenças no que diz respeito aos passos mais recorrentes nas duas línguas. Em francês, é possível encontrar mais passos de caráter argumentativo que em português, sugerindo que, em cada idioma, o gênero resumo pode apresentar diferenças no tom dos textos. Sobre as pistas linguísticas associadas a cada passo, é possível ver que, em português, a questão da objetividade científica parece estar ligada ao uso de frases impessoais. Como ponto em comum, foi possível constatar que, nos dois idiomas, refere-se às pesquisas prévias de modo generalista.

De modo geral, todos os passos e movimentos encontrados já haviam sido descritos nos modelos de Motta-Roth e Hendges (2010)[3] e de Biasi-Rodrigues (2009)[2]. No entanto, a ordem dos movimentos apresentados nos dois modelos não corresponde à grande parte do corpus analisado, seja em português, seja em francês, em que é comum encontrar passos de dois movimentos diferentes intercalados, formando unidades complexas (BIASI-RODRIGUES, 2009)[2]. Diante disso, pode-se destacar a dificuldade de sustentar a noção de movimento retórico mesmo em resumos de artigos científicos. Segundo Alves Filho (2018)[16], que resolve abandonar essa noção e considerar apenas os passos retóricos, os movimentos retóricos são categorias formuladas a partir da percepção do pesquisador que realiza generalizações tendo por base afinidades entre determinados passos retóricos. No entanto, se os passos que fazem parte de determinado movimento variam de posição nos exemplares dos gêneros, torna-se difícil fazer generalizações que correspondam à prática de modo mais preciso.

Como pontos frágeis desta pesquisa, destacamos a quantidade reduzida de textos no corpus e a falta de mais dados contextuais, como entrevistas com produtores e/ou leitores desses resumos. Devido ao pouco tempo para as análises, não pudemos também explorar, mais profundamente, a relação entre resumo e texto-fonte e as diferenças argumentativas entre as duas línguas, apesar de alguns dados iniciais terem sido apresentados. Portanto, outros estudos podem ser feitos para analisar a relação entre resumos e texto-fonte, ampliar a amostra observada e contatar os produtores e a audiência desse gênero. Outro aspecto que poderia ser mais aprofundado em pesquisas futuras é a argumentação nas duas línguas, observando se a tendência mais argumentativa em francês se confirma em um corpus maior.

Ao mostrar os pontos de convergência e de divergência na organização retórica em português e francês, acreditamos que a pesquisa ajude a ampliar a compreensão e a produção de gêneros acadêmicos não só em língua materna, mas também em língua estrangeira. A pesquisa, ainda, mostrou-se importante por apontar a possibilidade de uso da sociorretórica como teoria geradora de dados para o ensino de outras línguas para fins específicos, não apenas do inglês. Desse modo, esperamos contribuir para o ensino de língua francesa para fins acadêmicos no Brasil, oferecendo subsídios teóricos para que professores possam explorar em sala de aula as diferenças e semelhanças de um mesmo gênero nas duas línguas e, assim, preparar estudantes universitários para a produção acadêmica a nível internacional.

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