Tradição Discursiva, Filologia e Corpus Histórico-Diacrônico: análise de Requerimentos do século XVIII

Eliana Correia Brandão Gonçalves

Resumo

Este texto propõe uma análise teórica e das práticas históricas e socioculturais da escrita, com base no modelo de Tradição Discursiva e na prática filológico-linguística. Serão analisados Requerimentos sobre a Bahia, produzidos no século XVIII, no âmbito da Administração Pública do antigo Conselho Ultramarino. A Filologia promove o resgate e a reconfiguração de dados linguísticos em edições de textos institucionais setecentistas, considerando os modos de produção dos agentes da escrita. Ao se produzir um texto jurídico-administrativo na América Portuguesa, era preciso que o escrevente conhecesse bem o sistema do que nós chamamos hoje de Tradição Discursiva. Em outras palavras, era necessário conhecer os modos de dizer que regem a organização desse tipo de construção textual, marcado por fórmulas obrigatórias e unidades lexicais que se articulam no texto. Portanto, partindo do modelo de Tradições Discursivas, podem ser notadas certas regularidades e variações linguísticas nesse gênero textual. Nesse caminho, a ancoragem teórica deste trabalho fundamenta-se nos estudos do modelo de Tradição Discursiva (COSERIU, 1979; SCHLIBEN-LANGE, 1993; SCHMIDT-RIESE, 2010; KABATEK, 2004; 2006; 2012) e da Filologia (CAMBRAIA, 2005; MARQUILHAS, 2000; GONÇALVES, 2017; 2018; 2019). Por fim, os Requerimentos registram informações e pedidos, com base em atos legais ou de jurisprudência, apresentando-se como instrumentos relevantes na solicitação de petições da população às autoridades públicas.

Introdução

O texto apresenta uma discussão sobre como as práticas históricas socioculturais da escrita e como os modos de dizer e escrever afetam historicamente a tradição textual no século XVIII. A pesquisa de corpora histórico-diacrônicos concentra-se na análise de textos administrativos e literários e se constitui como estudo da tradição escrita. Para tanto, é necessário analisar criteriosamente a disposição de certas características que particularizam determinados tipos textuais. Dessa forma, para se estudar textos históricos, faz-se necessária a organização de edições conservadoras que adotam modelos de transcrição rigorosa e definam os objetivos e os métodos da edição, visto que os escreventes operavam com estruturas linguísticas pré-determinadas no discurso jurídico-administrativo.

O corpus desse estudo abrange a escrita burocrática-administrativa registrada em Requerimentos do Arquivo Histórico Ultramarino produzidos no século XVIII. Notem-se que esses textos apresentam caráter histórico-jurídico, pois foram produzidos pelo antigo e extinto Conselho Ultramarino (1642-1833), órgão da Administração Pública Portuguesa.

O Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) reúne os textos recebidos, produzidos, registrados e acumulados pelos órgãos mais diretamente relacionados à administração do vasto império colonial português. Nos seus acervos, constam também os documentos do Arquivo da Marinha (Secretaria de Negócios da Marinha e Ultramar – 1834-1910) e outros advindos das colônias, além de documentos cartográficos portugueses. Atualmente, os documentos do AHU foram catalogados pelo Projeto Resgate, em 2009, e estão disponibilizados na base de dados da Biblioteca Nacional Digital.

Principalmente no contexto da administração pública, os gêneros textuais são marcados por formas específicas de interlocuções, de acordo com os propósitos reais do assunto, o solicitante, o escrevente e o leitor, ou melhor, a autoridade à qual está direcionada a petição. A estruturação do gênero Requerimento redigido pelos diferentes escreventes revela que, apesar das relações existentes entre texto e língua, há uma história das tradições textuais não necessariamente vinculada à história das línguas.

Nesse caminho das tradições discursivas, enfatizam-se diversas trilhas que consideram os elementos linguísticos constantes nos textos, a composição micro e macro estrutural que se repete na escrita, a função comunicacional e o contexto situacional do texto, pois “os textos, independentemente da sua dimensão e meio de realização, bem como as relações de semelhança que os unem, constituem o modo de ser das tradições discursivas [tradução nossa]1” (SCHMIDT-RIESE, 2010, p. 3[1]).

1. Filologia, Tradição Discursiva e a constituição de corpora histórico-diacrônico

A escrita apresenta, ao longo do tempo, mudanças vinculadas aos seus suportes, aos seus produtores, aos seus leitores e aos seus aspectos estruturais e discursivos. Nesse viés, o texto histórico que registra essa escrita precisa ser estudado como instrumento de poder, a fim de recompor as mudanças nos papéis sociais na história da escrita. Particularmente, “só é possível conhecer a língua antiga na sua forma escrita e em registos pouco variados, normalmente o literário e o administrativo” (MARQUILHAS, 2000, p. 26[2]). Mas o estudo desses textos produzidos em épocas pretéritas depende de uma análise criteriosa que evidencie a materialidade dos textos e a interpretação dos perfis escriturais e estruturantes dos tipos textuais, com suas variações socioculturais, temporais e espaciais.

Ampliando a discussão, os textos históricos podem ser objeto de investigação por parte de diversos pesquisadores. No entanto, o mapeamento e o inventário de textos serão realizados de acordo com os corpora histórico-diacrônicos e os objetivos do pesquisador. Nesse viés, entende-se que a edição e a análise interpretativa dos dados históricos e linguísticos do texto podem ser mediadas pela ação crítica e metodológica da Filologia. O filólogo entende que a construção linguística e discursiva do texto é resultante da ação do tempo, do espaço e da cultura escrita e, portanto, a história de um texto é complexa, pois sua produção está fundada no sujeito, na linguagem e no discurso.

A significativa produção de documentação histórica na Bahia Colonial se justifica pela necessidade de se fazer circular informações sobre as demandas sociais, políticas, eclesiásticas e militares da colônia, com o fim de possibilitar aos seus leitores – às autoridades e às instituições – o conhecimento das realidades e as demandas desses espaços colonizados, cumprindo também esses textos um importante papel na preservação e no controle de parte da memória linguística e histórica.

Em particular, no contexto burocrático-jurídico da Administração Pública, o Requerimento está ligado normalmente a assuntos de natureza particular, com base na jurisprudência. Esse tipo documental utiliza-se de repetições, a fim de cumprir seu propósito expressivo e de vincular o texto com outros textos produzidos na mesma tradição textual. Na perspectiva do estudo filológico de Requerimentos do Conselho Ultramarino, foram observadas estruturas formais que estão associadas às práticas de cultura escrita do século XVIII.

A análise filológica, aliada ao aporte teórico das Tradições Discursivas, possibilita a identificação de componentes linguísticos recorrentes nos Requerimentos que se traduzem em expressões formulaicas que são registradas com bastante frequência nos documentos editados.

A Filologia – considerada a ciência do texto – articula métodos de análise para o mapeamento e a organização de corpora histórico-diacrônicos, por meio da Crítica Textual (CAMBRAIA, 2005[3]; GONÇALVES, 2017[4]; 2018[5]). A descrição e a comparação desses dados quantitativos comprovam a existência e a ocorrência de tradições histórico-discursivas e evidenciam as relações entre texto, língua e discurso, possibilitando “saber em quais TD uma inovação é criada, como se difunde ao longo das TD, e também onde há TD resistentes às inovações, TD que preservam elementos que em outras TD não se usam mais” (KABATEK, 2006, p. 516[6]; SILVA; GONÇALVES, 2019[7]).

A partir do estudo de corpora histórico-diacrônicos, observamos que os modos de dizer têm repercussões diretas na historicidade textual e na historicidade linguístico-discursiva, no tempo e no espaço. Nesse viés, o conceito de Tradição Discursiva se compõe a partir da ideia de que certos usos na escrita são transmitidos historicamente no plano textual-discursivo. Há uma conscientização histórica do leitor de que há a utilização de certas estruturas por parte de certos grupos sociais, no contexto real da produção escrita.

Diante disso, as tradições são adotadas na construção do modelo textual por parte do escrevente e, portanto, é

[...] fundamental a distinção coseriana entre três níveis do falar, três aspectos da atividade lingüística cuja diferenciação é considerada requisito prévio imprescindível para qualquer questão do estudo da linguagem. [...] O segundo nível é o histórico, das línguas como sistemas de significação historicamente dados, atualizados, no terceiro nível, em textos ou discursos concretos. Corresponde ao primeiro nível a designação como atividade lingüística universal, atribuição de signos a um mundo de objetos, realizada desde o segundo nível com signos de uma língua particular que, na realidade, criam uma visão particular desse mundo, a partir de significados de uma língua e concretamente na atualização em atos individuais com a sua finalidade e o seu sentido particular. [...]. (KABATEK, 2006, p. 512[6])

A linguagem é uma atividade humana norteada historicamente por técnicas (COSERIU, 1979[8]). Oesterreicher (1996[9]; 2007[10]), Kabatek (2006[6]), Koch (1997[11]; 2008[12]) e Castilho; Andrade; Gomes (2018[13]) entendem que a trajetória de um texto apresenta mudança e permanência, do mesmo modo que acontece com a língua. Assim nessa trilha, a leitura histórico-social de Requerimentos oficiais do século XVIII manifesta diversificados graus de habilidade dos escreventes, com a escrita de textos administrativos, e revela elementos sócio-históricos que marcam a estruturação da escrita, visto que é a sociedade que atribui função à escrita (GONÇALVES, 2019[14]; PETRUCCI, 2003[15]; SAÉZ SÁNCHEZ; CASTILLO GÓMEZ, 1999[16]).

Para tanto, as narrativas historiográficas convertem os eventos em discurso. Em outras palavras, precisamos ficar atentos criticamente ao fato da historiografia ser uma arena de disputas, pois através dessas narrativas o nosso leitor contemporâneo tem acesso a aspectos de sua identidade e de seu passado – histórico-cultural, institucional, político e militar. É também por meio das narrativas que temos a oportunidade de destronar as leituras consensuais e/ou equivocadas, manifestando discursos aprisionados e promovendo outras leituras inclusivas que desmascarem, desconstruam, enfim libertem outras narrativas da nossa história.

Para Kabatek (2006[6]), o conceito de Tradição Discursiva surge na Alemanha, no âmbito da Filologia Românica. Diante disso, a tradição discursiva é

[...] a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto, significável). Pode-se formar em relação a qualquer finalidade de expressão ou qualquer elemento de conteúdo, cuja repetição estabelece uma relação de união entre atualização e tradição; qualquer relação que se pode estabelecer semioticamente entre dois elementos de tradição (atos de enunciação ou elementos referenciais) que evocam uma determinada forma textual ou determinados elementos linguísticos empregados. (KABATEK, 2006, p. 505-506[6])

Seguindo essa linha, as Tradições Discursivas são resultantes do processo de mudança diacrônica de certas modalidades textuais que apresentam determinados elementos linguísticos identificados cronologicamente e contextualmente. E, nesse caminho, apesar de ser incontestável a diferença entre história da língua e a história das tradições textuais (SCHLIBEN-LANGE, 1993[17]; KABATEK, 2004[18]; OESTERREICHER, 1996; 2007[9,10]), destaca-se que as noções de historicidade do texto e historicidade da língua se articulam no conceito de tradições discursivas próprias de um gênero textual (KABATEK, 2012[19]).

No Brasil, as análises no âmbito das tradições discursivas tem sido bastante profícuas nos estudos de Linguística Histórica do Português, com aplicações em variados gêneros textuais. Em particular, há diversas tradições do discurso registradas historicamente nos gêneros textuais produzidos no âmbito da Administração colonial2, que ressaltam o caráter inter e transdisciplinar no estudo de dados linguísticos, como expressões e fórmulas obrigatórias. No entanto, é preciso destacar que – apesar das relações existentes entre gêneros textuais e Tradições Discursivas – esses termos não compartilham de uma relação sinonímica.

Essa noção é reiterada por Barbosa (2012[20]) que problematiza as diferenças entre as variadas tradições discursivas e o gênero textual-fonte:

Em termos práticos, tratando dos estudos histórico-linguísticos com textos escritos pretéritos, a distinção entre TDs e gêneros é clara, quando analisamos o dinamismo entre a história social e as práticas sociais de escritas. Mas devemos dizer que, no referido âmbito de tratamento de fontes em corpora históricos, quando analisamos fenômenos linguísticos em TDs materializadas em gêneros textuais escritos, é inevitável que usemos uma coisa pela outra, pois estamos operando com a materialização de um dos elementos do conjunto de TDs e obedecendo à máxima: se nem toda TD é gênero textual, todo gênero textual, pelas regularidades que se transformam em habitualizações, é TD. (BARBOSA, 2012, p. 591[20])

A análise de Requerimentos do século XVIII elucida bem essa questão. As Tradições Discursivas são mais abrangentes, pois envolvem o gênero textual, a utilização de pronome de tratamento e o nome – por vezes, também, a localização espacial do requerente, relativa a sua vila, cidade ou Estado – além de fórmulas linguísticas de saudações finais que registram a espera de recebimento de uma graça ou benefício e singularizam os sujeitos-escreventes, dentro do âmbito institucional.

Em vista disso, as Tradições discursivas são práticas habituais nos modos de dizer. Há singularmente a repetição de usos linguístico-discursivos recorrentes e constantes na prática socioculturais dos escreventes do século XVIII e que estão registrados na materialidade textual. Desse modo, podem ser elencados alguns critérios que fundamentam nossa análise na reconfiguração das tradições discursivas em documentos da América Portuguesa: tipologia textual – Requerimento; cronologia desses documentos históricos – século XVII; e recorte espacial e arquivístico – Requerimentos da Coleção Bahia do Arquivo Histórico Ultramarino.

2. Tradições discursivas em Requerimentos do século XVIII

A materialização da linguagem se efetua em textos escritos ou orais em diversos âmbitos socioculturais. Na América Portuguesa, o controle administrativo, político e jurídico era realizado por Portugal e, portanto, esses tipos textuais eram amplamente divulgados e conhecidos no âmbito da escrita burocrática. Para a composição dos textos, era necessário que o escrevente recorresse a estruturas e elocuções básicas, a fim de informar às autoridades locais e coloniais tanto as conquistas, quanto os problemas que atingiam o cenário colonial brasileiro e baiano. Desse modo, era de competência tanto dos escreventes mais habilidosos quanto dos menos habilidosos o conhecimento dessas estruturas próprias da escrita jurídico-administrativa do século XVIII.

Contemporaneamente, é preciso pensar que se os Requerimentos do século XVIII eram compartilhados pelos sujeitos da colônia, como estudar a Tradição Discursiva presente na história sociocultural das práticas de escrita da América Portuguesa? Dessa forma, articulamos outros interrogantes:

(1) Como eram produzidos os Requerimentos?

(2) Quais os sujeitos envolvidos na construção discursiva do texto?

(3) Como a história das maneiras de escrever é lida, por meio dos textos?

(4) Quais tradições discursivas são adotadas na construção do modelo textual por parte dos escreventes nos usos práticos da cultura escrita?

O estudo de Requerimentos busca descrever justamente essa regularidade de dados linguísticos-textuais que fundamenta a noção de gênero e as mudanças linguísticas apresentadas na utilização dos componentes lexicais registrados nos textos. Para tanto, os Requerimentos são interpretados como instrumentos de comunicação interinstitucional, constituindo-se como corpus de análise linguística, que viabiliza o estudo de um tipo de tradição discursiva, uma vez que articular a tradição discursiva é recorrer a expressões formulaicas que são próprias daquele gênero textual (CARVALHO; ZAVAM, 2018[21]; ATAÍDE; GOMES, 2018[22]).

As tradições discursivas constantes em Requerimentos do século XVIII eram compostas de recursos relativamente estáveis. Na produção do texto, era crucial para o escrevente redigir o pedido do requerente ao destinatário da solicitação, por isso essa construção precisava estar apropriada ao referido objetivo. É essa recorrência de normas e fórmulas habituais de usos linguísticos no discurso que diferenciam o Requerimento de outros textos escritos da Administração Pública na mesma época e que se traduzem no uso de certas unidades lexicais e de determinados tempos verbais.

Para Bellotto (2002[23]), o Requerimento é um

[...] documento diplomático informativo, peticionário, ascendente. Instrumento que serve para solicitar algo a uma autoridade pública e que, ao contrário da petição, está baseado em atos legais ou em jurisprudência. Muitas vezes, o requerimento faz menção a esses atos, que toma como base jurídica. Embora a definição possa ser a mesma para os requerimentos antigos e os atuais, o seu discurso é um pouco diferente num e noutro caso. (BELLOTTO, 2002, p. 86[23])

Desse modo, os Requerimentos do século XVIII do Arquivo Histórico Ultramarino apresentam:

(1) Protocolo inicial – pronome de tratamento – no geral ‘senhor’; ‘senhora’ – relacionado ao nome e à qualificação do requerente, acompanhado da unidade lexical "Diz", que antecede o nome do solicitante;

(2) Texto – com a narração, o pedido e a fundamentação da solicitação, embasada normalmente nos direitos dos signatários;

(3) Protocolo Final – normalmente “ERM” (Espera Receber Mercê/ E Receberá Mercê);

(4) Assinatura do escrevente – opcional – e normalmente não apresenta a indicação da datação cronológica.

Historicamente, observamos que a mudança de uma tradição discursiva pode alterar a composição de um gênero textual. É o que acontece com os Requerimentos na atualidade. Segundo Bellotto (2002, p. 86[23]), os Requerimentos contemporâneos apresentam expressões formulaicas bem diferentes compostas por:

(1) Protocolo inicial – título e nome da autoridade a quem se destina o Requerimento;

(2) Texto – com indicação do nome, qualificação profissional e função do interessado, seguido de “Requer...” e da exposição da solicitação, que é a indicação do embasamento legal da solicitação;

(3) Protocolo final – expresso por fórmulas como “Nestes termos. Pede deferimento”;

(4) Indicação da datação tópica e da datação cronológica.

O quadro a seguir mostra as diferenças entre Requerimentos do século XVIII e os Requerimentos atuais:

ESTRUTURA DO REQUERIMENTO REQUERIMENTO SÉCULO XVIII REQUERIMENTO SÉCULO XXI
PROTOCOLO INICIAL – Pronome de tratamento “Senhor”; – Unidade lexical: "Diz", normalmente antes do nome do interessado; – Nome; – Qualificação e/ou origem do requerente; – Datação tópica: opcional. Titulação e nome da instituição requerida ̸ da autoridade a quem se destina o Requerimento.
TEXTO Narração com a fundamentação da solicitação – o pedido é embasado normalmente nos direitos dos requerentes. – Nome e dados do requerente (número dos documentos, qualificação profissional, função do interessado etc.); – Unidade Lexical: “Requer; – Exposição da solicitação, com indicação da base jurídica da solicitação.
PROTOCOLO FINAL “ERM” (Espera Receber Mercê/ E Receberá Mercê). “Nestes termos. Pede deferimento”.
ASSINATURA Opcional. Obrigatória.
DATAÇÃO TÓPICA E CRONOLÓGICA No geral, ausência da datação cronológica e presença da datação tópica (no início ou no final). Obrigatória.
Table 1. QUADRO 1 – Comparação Estrutural – Requerimentos do século XVIII e Requerimentos do século XXI Fonte: elaborado e adaptado pela autora com base em Bellotto (2012[23])

A história dos modos e das práticas de escrita oscilam entre a continuidade histórica e a mudança por parte do tempo, da tradição e das funções socioculturais e comunicativas de escreventes e de leitores. No campo dos textos históricos da Bahia colonial, temos tradições discursivas vinculadas a instituições sócio-históricas conhecidas, no contexto do Brasil colonial, e adotadas na prática de um grupo coletivo. Essas tradições são marcadas por aspectos como regularidade do modelo da tipologia textual e identificação do gênero pela recorrência de componentes textuais da cultura escrita. Esse esquema permite que o leitor interprete formas já consolidadas no tempo em Tradições Discursivas, a exemplo de expressões com verbos constantes em Requerimentos.

Figure 1. FIGURA 1 – Requerimento – Ant. 1753, Outubro, 13 - AHU_ACL_CU_005, Cx. 116, D. 9060 Fonte: Biblioteca Nacional Digital

O Requerimento, produzido no século XVIII e apresentado anteriormente na Figura 1, traz expressões que são recorrentes em outros Requerimentos da mesma época. O texto é resultante da solicitação feita por Manuel da Silva Pimentel, ao rei [D. José] para pedir provisão de licença, para que sua filha pudesse viajar e assumir a possível vocação religiosa. Os padrões recorrentes localizados neste e em outros Requerimentos revelam alto grau de formalidade e polidez de tratamento por parte de autoridades de menor prestígio com autoridades de maior prestígio. Essas fórmulas foram bastante utilizadas nas relações entre os representantes legais nas terras ultramarinas e o Rei de Portugal e entre estes representantes e seus pares. Nesse contexto, a tradição discursiva é “[...] um ato linguístico que relaciona um texto com uma realidade, uma situação etc., mas também relaciona esse texto com outros textos da mesma tradição” (KABATEK, 2006, p. 513[6]).

O escrevente do Requerimento do Arquivo Histórico Ultramarino tinha a função administrativa de solicitar formalmente ao Rei D. José providências sobre determinada questão – provisão de licença, a fim de enviar sua filha ao reino e tomar o estado de religiosa – com base na jurisprudência. Dessa maneira, o escrevente representa essa categoria social que operacionaliza estruturas linguístico-discursivas que servem como mediação na criação de uma imagem de um pedido com bases legais – “Diz Manuel da Silva Pimentel morador em ̸ Sam Pedro da Muritiba do Estado da Bahi 3 [...] (Requerimento – ant. 13 de outubro de 1753, f. 1r, L. 2-3)”. Essa Tradição Discursiva é adotada como modelo pelo escrevente e por outros sujeitos ligados à administração pública, que recorrem ao discurso jurídico-administrativo próprio da produção burocrática manuscrita da sociedade colonial.

Essa ideia de recorrência de dados linguísticos, com base em corpora históricos, é reiterada no estudo de outro Requerimento do século XVIII, apresentado a seguir, na Figura 2. O referido texto é resultante da solicitação feita por Matias Fernandez Correia ao rei [D. José]. O escrevente do Requerimento do Arquivo Histórico Ultramarino, embasado em direitos legais e utilizando-se de estruturas que se repetem, assume a função de redigir um pedido ao Rei D. José sobre certo assunto – provisão de licença de viagem com destino ao Reino, para que suas filhas possam servir como religiosas. Esse assessoramento cria uma solicitação com bases legais – “Diz Mathias Fernandez 4 Correa mo- ̸ rador na Cidade da Bahia 5 [...] (Requerimento – ant. 3 de janeiro de 1761, f. 1r, L. 2-3)”.

Figure 2. FIGURA 2 – Requerimento – Ant. 1761, Janeiro, 3 –  AHU_ACL_CU_005, Cx. 146, D. 11170 Fonte: Biblioteca Nacional Digital

EXPRESSÕES FORMULAICAS REQUERIMENTO (ant. 13 de outubro de 1753) EXPRESSÕES FORMULAICAS REQUERIMENTO (ant. 3 de janeiro de 1761)
Pronome de tratamento Pronome de tratamento
Senhor (f. 1r, L. 1) Senhor (f. 1r, L. 1)
Protocolo Inicial Protocolo Inicial
Diz Manuel da Silva Pimentel morador em ̸ Sam Pedro da Muritiba do Estado da Bahia [...]. (f. 1r, L. 2-3). Diz Mathias Fernandez Correa mo- ̸ rador na Cidade da Bahia [...]. (1r, L. 2-3).
Protocolo Final Protocolo Final
E Receberá Mercê* (f. 1r, L. 10) E Receberá Mercê (f. 1r, L. 14) [1]
Pronome de tratamento Pronome de tratamento
*. QUADRO 2 – Expressões recorrentes utilizadas nos dois Requerimentos do século XVIII Fonte: elaborado pela autora

A partir da análise comparativa, observamos que, no protocolo inicial dos Requerimentos, foi utilizado quantitativamente um pronome de tratamento bastante recorrente, Senhor, reiterando-se seu aspecto quali-quantitativo, por meio da repetição e da evocação. Essa é uma das tradições sociodiscursivas que são registradas até hoje no português brasileiro, ainda que atualmente seu uso tenha mais relevância estílistica, com ênfase na tradição social, do que relevância gramatical. A necessidade dessa recorrência se dá para cumprir um protocolo de formalidade próprio de documentos burocráticos e administrativos, que distinguia pelo modo de tratar o status social do destinatário da petição e sua posição institucional de destaque na América Portuguesa.

É preciso lembrar também que, nas instituições jurídico-administrativas, foram utilizados além do pronome Senhor outros pronomes de tratamento, que marcavam formalidade e antecediam a unidade lexical Senhor, como Ilustrissimo e Excellentissimo Senhor. Em Tradições Discursivas de Requerimentos do século XVIII também observamos uma estrutura inicial formada pela unidade lexical Diz, mais nome do solicitante – por vezes registra-se sua localização espacial, referente a sua cidade, vila etc. – e, por fim, saudações finais por meio da fórmula linguística Espera Receber Merce ou E Receberá Merce, vinculando o atendimento da solicitação a espera de uma graça alcançada.

No quadro a seguir, é apresentado um levantamento de algumas dessas variações nas estruturas das tradições discursivas registradas em Requerimentos do século XVIII do AHU:

Atualmente, no Brasil, as estruturas formulaicas das tradições discursivas registradas nos textos de cunho jurídico-administrativo apresentam várias inovações nos modos de dizer, principalmente no que diz respeito ao uso de pronomes de tratamento, com o surgimento de outros modos de tratamento menos formais, e mudanças nas formas de expressões de saudação final.

3. Considerações finais

O gênero textual Requerimento foi uma espécie documental e histórica bastante utilizada durante os séculos XVIII e XIX, na Administração Pública da América Portuguesa. Em vista disso, o estudo desse tipo documental nos apresenta componentes linguísticos que atestam fórmulas discursivas indicativas de contextos socioculturais e políticos, além de permanências ou inovações de uma tradição discursiva.

As práticas socioculturais da escrita jurídico-administrativa, no século XVIII, como em qualquer outro século, estavam condicionadas à cultura de um grupo social composto pelos escreventes. Diante disso, consideramos de extrema relevância que sejam desenvolvidos estudos analíticos e quali-quantitativos que remetam aos modos de escrever que regem a estruturação dos documentos históricos. Assim, partindo do estudo das tradições discursivas registradas em Requerimentos do século XVIII, “nasce a sensibilidade para o facto de os textos terem uma materialidade e uma sobrevivência (a tradição) ao longo da qual muitas coisas podem acontecer” (MARQUILHAS, 2000, p. 35[2]).

Em linhas gerais, sem dúvida o modelo de Tradição Discursiva (TD) e a Filologia contribuem significativamente para a leitura de corpora histórico-diacrônicos, no que diz respeito à recorrência de fórmulas de tratamento e saudações estabelecidas para diferir autoridades da administração colonial de maior ou de menor prestígio, com base em edições criteriosas e na análise das tradições jurídico-administrativas de Requerimentos, que apresentam expressões obrigatórias na construção da sua modalidade textual.

Agradecimentos

Agradeço ao apoio do CNPq, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), do Programa Permanecer UFBA e do ILUFBA.

Referências

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