E daí? O sujeito fora e dentro da cena de sua fala

Pedro de Souza

Resumo

Este artigo tem como objeto de análise uma precisa declaração do presidente Jair Bolsonaro sobre o avanço da pandemia da COVID-19, em todo o território brasileiro, proferida nos dois primeiros meses daquele período. Metodologicamente, procedemos à análise deste evento pontual de fala no intuito de descrever o ato de enunciação realizado em primeira pessoa. Vamos considerar como fonte da declaração em foco no artigo tanto o que foi veiculado em telejornais, como o que foi noticiado em sites de jornais diários. Os conceitos operatórios que regem o procedimento analítico são os da parresía, dramática do discurso e ato de fala performativo. O fio condutor teórico é o de Michel Foucault. O objetivo é produzir um ensaio teórico e analítico a respeito do ato de enunciar como função de certo processo de subjetivação, atravessado pela ordem política, que sustenta práticas de governabilidade vigentes no país. O resultado esperado é um estudo que possa contribuir com novos procedimentos analíticos alinhados à perspectiva foucaultiana de discurso.

Introdução

Começo por esquadrinhar o objeto da minha análise. Ele se encontra na cena política de um Brasil hoje em frangalhos. No momento em que havia quase 90 dias em isolamento, entretinha-me na escuta de seguidas autodeclarações do presidente Jair Bolsonaro. Eram falas simples e, ao mesmo tempo, intensa na violência com que atingiam seus destinatários. Seja para o regozijo de apoiadores, seja para o horror dos que dele tomavam distância.

Bolsonaro dizia em público o que, até então, um político de sua estirpe só diria em espaço privado de câmeras, microfones e holofotes. Suas repentinas declarações revelavam um homem sem conteúdo, subjetivamente, atribuível à posição que fora levado a ocupar na ordem do discurso político democrático, pelo menos no que se espera de um governante. Eram frases que, nas grandes mídias e redes sociais, colocavam a nu não somente o sujeito pontualmente já constituído e investido, mas um certo processo de subjetivação contemporâneo ao ato de enunciação. De presidente eleito, sob um regime democrático, seus atos de fala o conduziam a fazer-se sujeito governando em exercício ditatorial. Isso porque, dessa tóxica fonte de linguagem e consequente subjetividade, além do líder maior da nação, muitos outros indivíduos se servem para tornarem-se os sujeitos vitoriosos no triunfo da vontade de poder.

Essa forma disruptiva de tornar-se sujeito, enquanto governa uma nação, brota na e pela fala espontaneamente proferida, como que sem querer. Mas, claro, isso não se dava só nos estritos contextos em que espantosos dizeres, em primeira pessoa, eram pronunciados. Antes era parte de uma longeva série de enunciações arquivadas, desde os porões dos anos de chumbo da ditadura militar no Brasil.

No entanto, ao analisar as enunciações aqui em foco, tomadas no percurso de uma historicidade política, não nos deixemos enganar. Seja qual for o procedimento analítico, não interessa o conteúdo insólito do que é dito. O que importa é considerar o dizer que aponta para o sujeito, flagrantemente, produzindo-se na e pela enunciação. Estou me referindo a processos de subjetivaçao produzidos pelo simples fato de o indivíduo tomar a palavra e nela colocar em cena o sujeito que vem no acontecimento de sua fala. Nessa linha, trata-se de levar em conta a fala e as palavras, não por elas mesmas, mas enquanto acontecimento ou ato de linguagem que indica o modo enunciativo de o falante subjetivar-se na posição discursiva em que se situa como governante na ordem política contemporânea.

Há que se levar em conta atos que se originam e percorrem todo o corpo, desde a voz até diminutos gestos. Na imprensa, conforme as condições de produção em que coloco os dizeres de um governante em análise - o combate à pandemia da COVID19 -, era notório que locutores e redatores nunca perdiam a chance de ironizar toda vez que Bolsonaro levava os braços e os dedos à boca ou ao nariz. Até mesmo quando estendia as mãos para cumprimentar seus apoiadores e admiradores.

Em todos esses atos, sejam verbais ou não verbais, há enunciação corpórea. Justamente porque imagem e som se deixam incluir em arquivos que, depois, servem para balizar analiticamente a memória de um governo em falta.

Enfim, temos aí a matéria bruta de um certo processo discursivo de subjetivação. O fato é que, ao agir dessa maneira, Jair Bolsonaro não fazia só gestos casuais e quase instintivos. No contexto dos cuidados necessários para que cada indivíduo não se contaminasse e nem transmitisse o coronavírus para outros, tais gestualidades eram imediatamente interpretadas como atos contraprotocolares. Ao agir desta maneira, o presidente se expressava de modo a tornar-se, no interior de sua enunciação verbal ou não verbal, sujeito na posição do descompromisso em relação aos princípios oficialmente adotados para o combate coletivo da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro, em exposições públicas, se exprimia em atos enunciativos com e sem palavras. Mas, para o que devo desenvolver a seguir, vou me ater apenas aos atos enunciativos verbais.

Passo agora a precisar que ferramentas conceituais emprego e que método construo para minha análise. Em uma das primeiras aulas do curso O governo de si e dos outros, Michel Foucault (2010[1]) propõe um modo específico de definir e analisar discurso. Seu propósito é o de realizar, desde a Grécia Antiga, uma história outra do discurso da governamentalidade. Para isso, ele tomou como fio condutor o conceito operatório que chamou de “dramática do discurso verdadeiro na ordem da política”. Ele quer identificar as formas do que os gregos definiam como discurso verdadeiro.

Há, nesta forma, propõe Foucault, uma dramaturgia notadamente no que diz respeito ao estatuto de poder envolvendo destinador e destinatário. Destaca-se aí, analiticamente, a cenografia em que se assenta uma certa relação interlocutiva. Assim, faz-se a cena da política abordada nos termos daqueles que exercem a arte de governar. É a essa dimensão dramática do dizer verdadeiro que quero me ater. Sigo, aqui, as indicações de Danielle Lorenzini (2020[2]), a que vou retornar mais adiante.

A ideia de cena enunciativa é, portanto, o meu foco. Este deve ser o elemento da análise. Em outros termos, na estrutura dramática do discurso tomado na ordem do político, o que se analisa é uma cena de interlocução que se estrutura por um encadeamento de enunciações em cuja trama se escuta e se vê um destinador dirigindo-se a um ou mais destinatários. Assim, compõe-se o teatro próprio da linguagem, como diria Roland Barthes. Isso se passa na esfera da governabilidade, ordem de discurso que constitui sujeitos em relações mútuas de poder.

Importante atentar para a especificidade do conceito: dramaturgia do discurso verdadeiro. O que significa essa expressão, muitas vezes, repetida por Foucault em seu curso? Embora cunhada no contexto em que Foucault inventaria, historicamente, cenas de parresía, esse conceito está, intrinsecamente, ligado ao que Michel Foucault designa, num evento pontual e individual de enunciação encetada no domínio político, como a expressão do discurso verdadeiro. Em outros termos, na estrutura dramática do discurso tomado na ordem do político, o que se analisa é uma cena de interlocução que se estrutura por um encadeamento de enunciações em que há um destinador endereçando-se a um destinatário, na esfera da política, como ordem de discurso.

Por certo, tal processo de subjetivação pressupõe o discurso como ordem, como sistema de formação determinante desta ou daquela posição de sujeito. O que está em questão para Michel Foucault, na primeira etapa de sua pesquisa histórica sobre a noção de parresía, é a ordem do discurso político. Esta é a ordem que baliza as posições de poder no âmbito da arte de governar ao longo da história, desde a antiguidade grega até a passagem do século XIX ao XX.

Portanto, a expressão discurso verdadeiro, no contexto de sua investigação sobre a história da parresía, é empregada na específica acepção que é a de ato enunciativo. Analisar o discurso verdadeiro em sua componente dramatúrgica consiste, então, em atentar para o modo como se profere determinado enunciado. Deve-se observar como o que é falado afeta aquele que diz, determinando um imediato processo de subjetivação não atestável fora do dizer.

Da parte de Michel Foucault, trata-se de delimitar o processo de subjetivação implicado no ato de dizer, isto é, o sujeito derivado pela maneira de dizer, de proferir determinado enunciado. Por certo, tal processo de subjetivação pressupõe o discurso como ordem, como sistema de formação determinante desta ou daquela subjetividade. O que está em questão, para Michel Foucault, quando se trata da parresía, situa-se na ordem do discurso político que baliza as posições de poder no âmbito da governabilidade ao longo da historia, desde a antiguidade grega até a passagem do século XIX ao XX.

Nessa perspectiva, Foucault entrevê, na história das governamentalidades, isto é, da arte de governar e seus respectivos modos de constituição do Estado, duas modalidades enunciativas estruturando certa dramaturgia do discurso verdadeiro. Essa dramaturgia corresponde ao ato de fala, marcando a verdade do dizer do político, a saber, a verdade do sujeito falante em posição precisa de governo. Foucault descreve, em meados do século XVI, certa forma discursiva que chama de “dramática discursiva”. Esse é o momento em que “a arte de governar começa a adquirir sua estatura e sua autonomia, a de definir sua técnica própria em função do que é o Estado” (FOUCAULT, 2010, p. 67[1]).

Vê-se bem do que se ocupa essa analítica voltada para o discurso pensado cenicamente como estrutura dramática. É preciso atentar, portanto, para a especificidade do conceito de discurso verdadeiro, tomado como alvo da análise por Michel Foucault (2010[1]).

Trata-se de um modo de enunciação atuado no âmbito que envolve o governante dirigindo-se a seus governados. Contudo, não se busca descrever qualquer ato de enunciação. Interessa marcar os elementos enunciativos em que o falante, ao falar com seu governado, subjetiva-se como efeito de seu próprio dizer. A isso Foucault chama enunciado parresiástico, ou seja, aquele em que o ato de proferir coloca o enunciador como sujeito produzido em sua verdade, simultaneamente, ao instante em que enuncia.

Eis aí um traço em comum que liga o enunciado parresiástico ao performativo: a verdade do sujeito do mesmo modo que resulta de seu ato de fala acontece no tempo e na duração do dizer. Não vou entrar, a fundo, no problema dos critérios para que um dizer seja dado como parresiástico ou não. Já que trabalho aqui com um caso de enunciação de um sujeito governante no quadro da política contemporânea, minha questão não inclui investigar o quanto um enunciado comporta risco ou coragem para quem o diz.

Entretanto, é importante ressaltar as regras discursivas para tomada de fala no exercício da democracia na Grécia Antiga. Vou, para o momento, registrar uma definição de parresía. Para tanto, me baseio no que Foucault chamou de uso corrente do termo. Assim, fica mais preciso determinar, mais adiante, o procedimento da análise e fazer compreender o que significa falar de modo livre.

Detenho-me um instante na seguinte explicação de Foucault:

Em primeiro lugar, está entendido que o termo parresía tem um sentido corrente que significa liberdade de palavra. Unida a essa noção de liberdade de palavra, em que se diz tudo o que se quer, encontra-se a noção de franqueza. Quer dizer: não apenas se fala livremente e se diz tudo o que se quer, mas na parresía há também essa ideia de que se diz o que efetivamente se pensa, aquilo em que efetivamente se acredita. A parresía, nesse sentido, é franqueza. Poderíamos dizer: ela é profissão de verdade. Então, vou corrigir essa definição corrente da palavra parresía dizendo: não é simplesmente essa liberdade de palavra, é a franqueza, é a profissão de verdade. Dito isso, é evidente que essa noção, esse termo parresía é às vezes, muitas vezes mesmo, empregado num sentido de todo corrente e de qualquer contexto, de qualquer armadura técnica ou política. (FOUCAULT, 2010, p. 172[1])

Essa clara explanação do pensador francês já se encarrega de anunciar a que vem a análise e o ato de enunciação que é objeto dela neste artigo. Reportando um, dentre os mais inoportunos dizeres do presidente Jair Bolsonaro, trata-se de compreender o estatuto da franqueza com que qualquer cidadão pode tomar a palavra e dizer tudo o que pensa em um estado democrático.

Portanto, conforme Foucault destaca nos textos clássicos gregos, “falar com liberdade” corresponde a uma fórmula destituída de sentido em relação à fala franca do político ou do governante. Nesse contexto, o emprego da palavra parresía tem um sentido estrito ligado a duas formas de conceber o livre ato de falar na cidade grega. E todo modo “a liberdade de palavra é um problema político, a liberdade de expressão é um problema político, um problema técnico, um problema histórico também”, diz Foucault (2010, p. 172[1]). Daí o sentido técnico e preciso atinente ao termo parresía:

[…] no que concerne justamente a esse sentido preciso e técnico, não creio que se possa simplesmente resumir os sentidos e os problemas postos sobretudo pela noção de parresía dizendo que a parresía é a liberdade de palavra dada a todo cidadão numa democracia, seja ele rico ou pobre. Não creio que isso baste, por quê? Primeiro porque, mais uma vez […] na definição da democracia encontramos […] essas duas noções: isegoria e parresía. A isegoria é o direito constitucional, institucional, o direito jurídico concedido a todo cidadão de falar, de tomar a palavra, sob todas as formas que essa palavra possa assumir numa democracia: palavra política, palavra judicial, interpelação, etc. (FOUCAULT, 2010, p. 172[1]).

Encontra-se aí a diferença entre o que significa isegoria e parresía. A primeira designa o fato de um cidadão ser livre para dizer tudo o que pensa. Na prática política efetiva é outro o sentido de parresía. A parresía é parte do jogo da democracia, constitui a lei interna da democracia. Não é dado a qualquer um tomar a palavra, detendo o poder de agir, influenciando a decisão de outros, sendo capaz de persuadir, dizendo o que acredita ser a verdade.

É nessa medida que não creio que os problemas postos pela parresía são simplesmente, da ordem da distribuição igual do direito de palavra a todos os cidadãos da cidade, sejam eles ricos ou pobres. É nisso que essa definição da parresía não me parece suficiente. Em segundo lugar (…) , não se deve acreditar de modo algum que essa questão da parresía no sentido político: quem vai falar, dizer a verdade, adquirir ascendência sobre os outros, persuadir e, por conseguinte, em nome da verdade e a partir da verdade, governar? - se coloca simplesmente no campo da democracia. (FOUCAULT, 2010, p. 172-173[1])

Para meus objetivos, limito-me a considerar o segundo sentido do dizer parresiástico, levando em conta o batimento do ato de enunciação sobre aquele que diz o que pensa no quadro do exercício do governo. Portanto, não sob o estatuto do cidadão comum na época atual. Na perspectiva da “dramática do discurso”, quero abordar a relação entre o ato de enunciar e a subjetividade observada naquele que enuncia. Vale, aqui, considerar aquilo que Michel Foucault afirma, vinculando confissão e dizer verdadeiro.

Dizer eu é então o elemento em comum, presente na forma do enunciado parresiático e do enunciado confessional. Remeto ao momento em que analisando as cenas finais da peça de Sófocles, Édipo, rei, na aula de 30 de janeiro, do curso Do governo dos vivos (2014[3]), o pensador francês alerta que uma fala não pode compor um discurso verdadeiro se não for realizada em primeira pessoa, isto é, se não compuser um enunciado que implique, explícita ou implicitamente, o eu. Em outros termos, é imprescindível considerar o emprego da primeira pessoa do singular como marca do sujeito, ligando o falante à sua própria fala. Contudo, não interessa tanto o emprego do pronome pessoal em sua especificidade linguística. O que importa é considerar o sujeito que se produz dizendo eu nas condições históricas e discursivas em que se enquadra um enunciado contendo o pronome eu.

Nesse ponto, Foucault (2014[3]) conclui que, sem o ponto do que se poderia chamar de subjetivação, isto é, o emprego da primeira pessoa, a dramaturgia própria ao discurso verdadeiro fica inacabada. Daí que a expressão discurso verdadeiro, no contexto da investigação foucaultiana sobre a história da parresía, é empregada na específica acepção que é a de ato de enunciação. Da parte de Michel Foucault, trata-se de delimitar o processo de subjetivação contemporâneo no ato de dizer, isto é, o sujeito derivado na e pela maneira de proferir determinado enunciado.

Em função da análise que quero desenvolver, tomo a dramática do discurso como a colocação da língua em cena. Adoto, aqui, a perspectiva de Benoist, para quem, sobre o sentido tradicional da palavra linguagem, trata-se, segundo a ótica foucautiana desenvolvida em A arqueologia do saber, de levar a sério o fato de que não há “discurso” sem língua – isto sem desconsiderar a dimensão “não linguística” do discurso (BENOIST, 2016, p.56[4]).

Se não há discurso sem língua, esta, no contexto dos estudos de Foucault sobre a parresía e a confissão, vale como signo encenado por uma dramaturgia discursiva estruturada a partir de certo regime institucionalizado de dizer histórica e discursivamente estabelecido. Isso se pode deduzir, ainda que de modo implícito, nas elaborações do pensador francês em torno do que ele descreve como ato parresiástico atestado em diferentes momentos da história política da Grécia Antiga. Desse modo, a ideia é tratar a língua como sistema em movimento acontecendo em atos de risco ou de custo de enunciação, como o que se afigura na confissão e na parresía.

Certo de que haveria muito ainda a dizer, conceitualmente, sobre a materialidade discursiva que esbocei até aqui, vou tomar os elementos que introduzi e propor fazer com eles uma análise. Ocupo-me do momento da grande catástrofe da Covid-19 no Brasil, ligada à atuação do governo. Nesse quadro, delimito a maneira com que o presidente Jair Bolsonaro manifesta uma subjetividade política, mediante enunciações lapidares, toda vez que é inquirido sobre medidas a tomar para conter, naquele devido momento, o avanço da pandemia no país. É preciso considerar o regime que atravessa o acontecimento de sua fala para aí descrever o processo de subjetivação implicado nas palavras que diz.

É o caso de dizer que uma análise como a que proponho a seguir visa interrogar não quem é o sujeito em questão empossado como presidente da república, mas sim expor o modo de se fazer sujeito na enunciação atravessada por certa disputa política e ideológica. Ora, preocupar-se em julgar a honestidade de quem fala seria uma forma banal de ocultar a maneira com que se faz produzir a subjetividade no âmbito em foco. Mais do que insistir sobre as intenções escusas detectáveis no conteúdo da enunciação de um governante, a análise busca ressaltar um elemento comum na cena de embate político, isto é, a contínua e variável produção de subjetividades, no contexto em que a governabilidade diz respeito à gestão e à proteção da saúde da população.

Em termos analiticamente mais precisos, temos, em primeiro lugar, no quadro das condições imediatas de produção, a eclosão de uma peste, tomando a população de um país e as urgentes providências a serem adotadas pelo governante a fim de proteger a saúde pública. Em meio à crise política brasileira, aliada à pandemia do coronavírus, em abril de 2020, os espectadores observam o que se passa entre o protagonista do governo e seus governados.

Mediante formas heterogêneas de circulação de discurso, espectadores assistem ao modo com que o presidente se mostra, pela maneira como fala, ou seja, o que é e como é em dada posição política de sujeito. É dizer, em termos foucaultianos, que a verdade do falante só vale enquanto faz corresponder seu ato de fala a uma relação verdadeira entre o eu que enuncia e seu enunciado. A verdade, aqui, não diz respeito à correspondência entre o conteúdo do enunciado e a realidade a que se refere, mas à relação entre o enunciado e o sujeito falante. Refiro-me às circunstâncias em que dizeres quase inesperados do presidente produziam o efeito de colocar à prova seus destinatários diretos ou indiretos.

Pretendo, desta forma, focar os indicadores estruturantes do que Michel Foucault chamaria, no caso, a dramaturgia do discurso verdadeiro no âmbito político. Reitero que a palavra discurso, aqui, é precisamente o acontecimento da fala. O estatuto performativo do ato de fala a ser tomado como objeto de análise permite descrever processos de subjetivação pelo seu caráter imediato e concomitante à enunciação proferida.

Essa retroação, que faz que o acontecimento do enunciado afete o modo de ser do sujeito ou que, ao produzir o acontecimento do enunciado, o sujeito modifique ou afirme, ou em todo caso determine e precise, qual é seu modo de ser na medida em que fala, pois bem, é isso, a meu ver, que caracteriza um outro tipo de fatos de discurso totalmente diferentes dos da pragmática. E o que poderíamos chamar, vamos dizer eliminando tudo o que pode haver de patético na palavra -, de “dramática” do discurso é a análise desses fatos de discurso que mostra como o próprio acontecimento da enunciação pode afetar o ser do enunciador. (FOUCAULT, 2010, p. 66[1])

Vale lembrar a perspectiva mais ampla com que Danielle Lorenzini (2020) desenvolve o estatuto da parresía e da confissão em Michel Foucault. Lorenzini ressalta o ponto em que Foucault, no curso O Governo de si e dos Outros, focaliza a dramática do discurso como seu objeto de análise. Há, nesta proposição foucaultiana, diz Lorenzini, uma inflexão na perspectiva analítica que o afasta do viés performativo, conforme propõe a teoria dos atos de fala. Trata-se do “deslocamento da pragmática à dramática do discurso”. Importante salientar o que Danielle Lorenzini anota com precisão

[…] “pragmática do discurso” é “a análise do que, na situação real daquele que fala, afeta e modifica o sentido e o valor do enunciado”; em outras palavras, é “a análise dos elementos e dos mecanismos pelos quais a situação em que o enunciador se encontra vai modificar o que pode ser o valor ou o sentido do discurso”. (LORENZINI, 2020, p.5[2])

Mais precisamente isso diz respeito, segundo adverte Lorenzini, ao fato de o enunciado e o ato de enunciação afetarem o modo de ser do locutor, pelo simples fato de dizer. O autor justifica, repetindo as palavras de Michel Foucault: “ao produzir o acontecimento do enunciado, o sujeito modifica, ou afirma, ou, em todo caso, determina e especifica qual é o seu modo de ser enquanto fala” (LORENZINI, 2020, p.5[2]).

Isso é o que atestam os estudos de Foucault sobre a confissão e a parresía. Mas o que me interessa é deter ponto de contato entre parresía e confissão, a fim de encontrar o procedimento analítico à situação enunciativa a que me concentro neste trabalho.

Neste quadro, quero inserir atos de tomadas de fala que situam posições de sujeito em jogo no exercício da governança. Tal se verifica tanto na relação do presidente com seus ministros, quanto na interação com o povo que governa. Dessa forma, a memória de curto prazo a ser trazida para análise só pode vir através das falas que apontam para a cena e o modo com que nela se produz o protagonista de sucessivas interlocuções.

1. O sujeito fazendo de si o descaso

No quadro da narratividade jornalística que produz o arquivo discursivo desta história, proponho então me deter unicamente na frase – E daí.-. Ela foi dita de roldão pelo presidente Jair Bolsonaro, em 28 de abril de 2020, em frente ao Palácio Alvorada, respondendo a uma pergunta de um jornalista sobre o aumento das mortes por coronavirus:

E daí? Sou Messias, mas não posso fazer milagre

O que chama atenção, portanto, é o inusitado de um dizer que acontece onde, quando e vindo da boca de quem não se espera. Ao responder dessa maneira, o que se coloca em suspenso não é o referente da frase, sintaticamente, bem articulada em sujeito e predicado. O que surpreende é o escancarar da subjetividade que se marca acumulando, na sintaxe frasal, sujeito do enunciado e sujeito da enunciação. O pronome eu funciona como sujeito dos predicados verbais - “sou Messias…não posso fazer milagres” – e como sujeito da enunciação.

Mais surpreendente, ainda, é que se verifica na introdução da resposta dada à pergunta que lhe foi dirigida por um jornalista acerca do que teria o presidente a declarar sobre o aumento exponencial do número de mortes pelo coronavírus, no dia em que o Brasil ultrapassava cifra de dez mil mortes pelo coranavírus: E daí?

Diferente de uma outra afirmação igualmente espantosa, dita em outra ocasião - Eu não sou coveiro, essa frase interrogativa traz, em uma indicação puramente temporal e espacial, o flagrante da verdade que produz sobre si o sujeito que diz. Não apenas porque a fala do inquirido pode se converter em prova contra si, mas porque a frase coincide, na duração em que é emitida, com a verdade de seu acontecimento, a do ato de dizer.

Daniele Lorenzini (2014, p. 415[5]) tem razão quando, ao recuperar o valor performativo do enunciado parresiático, demonstra que não se trata da verdade que antecede ou está fora do dizer, mas da que acontece pelo fato mesmo de dizer. Aí é que se tem o que Lorenzini categoriza como verdade-acontecimento, ou a verdade que não pode ser apontada a não ser no ato mesmo de enunciação. E daí?, evento de fala cuja realização remete ao próprio falante; voz que sonoriza um ato de subjetivação cometido na posição que desempenha na cena de certa ordem política de discurso. E, aqui, digo cena como traço inerente à dimensão performativa da linguagem e do discurso.

Duas séries de arquivos atestáveis de enunciação, aqui, aparecem a propósito desse caso representativo de um modo de exercer a democracia na contemporaneidade política brasileira. Primeiro, o da história interna da língua, atestando o modo como se coloca em cena e se estabelece um sistema gramatical. A palavra daí, lembremos, corresponde à locução adverbial formada da contração da preposição de + o advérbio . Tanto indica espaço como indica tempo. Ou seja, o momento da fala é o ponto de referência a partir do qual o falante se subjetiva espacial e temporalmente.

Considerando a frase interrogativa introduzida pela conjunção aditiva /e/, o uso da contração adverbial informa sobre a qualidade moral ou ética do enunciador. Perguntar E daí?, logo após a emissão de uma afirmação, significa desinteresse da parte de quem pergunta.

Na hora presente, tomado na relaçao entre o governante e o povo que governa, o mesmo fraseado vem da mesma linha e rede de enunciação, a saber, no mesmo plano do arquivo que, historicamente, confere-lhe força performativa, produz efeito de subjetivação imediatamente associado ao enunciado E daí?. Isso significa que essa maneira de dizer marca, mediante a apropriação dessa forma arquivada na língua e na história, o ato do sujeito se produzindo no instante em que fala.

O que interessa ressaltar, além disso, é o ato vocal que tem o corpo como lugar de realização. Trata-se da contraparte corporal da enunciação linguística, remetida, no caso, a uma posição de sujeito na ordem discursiva da arte de governar. Por mais que se meta-enuncie ou, digamos, por mais que o presdiente tente se reformular, dizendo que a imprensa distorceu seu dizer, o enunciador não pode escapar à coincidencia entre seu dizer e ele mesmo, ao se produzir como sujeito inscrito de modo incongruente em certa ordem de discurso politicamente estabelecido.

Quando formula, de roldão, E daí?, manifesta-se como aquele que, ao mesmo tempo, deve e não se ocupa em responder pela saúde pública. Isso fica reiterado ao se dizer o Messias que não pode fazer milagres. Palavras que, juntas, resultam numa figura de linguagem: oxímoro. O efeito desse ato de dizer não é o mesmo descrito por Michel Foucault (1978) quando fala do poder pastoral. Neste contexto, o poder governamental cuidaria dos indivíduos, ao mesmo tempo governando suas condutas.

Em vez disso, no quadro politico atual, ao emitir palavras incongruentes, em uma só cadeia enunciativa, Bolsonaro faz recair sobre si, com e em suas palavras, a sua verdade de sujeito, indiferente à conduta dos governados. Isto porque põe no dizer uma aguda atitude de descaso. O sentido aqui não vem da intenção de quem fala. Aparece sim nas reações discursivas que sua maneira de dizer dá origem. Na genealogia do estado democrático vigente no Brasil, a análise de uma pontual enunciação pode fazer vir à tona diferentes posições políticas em disputa.

Vê-se como o enunciador indica, pelo seu modo de dizer em primeira pessoa, o lugar em que está rubricando prática de subjetivação, isto é, no limiar de uma ordem política. Como parte inerente ao estilo político de quem fala atento para o fato de que a enunciação, pontualmente realizada nas instâncias cênicas em que se reportam mutuamente, fica indissociável da maneira de mostrar o sujeito que está em vias de aparecer no momento em que abre a boca para falar.

2. Conclusão

O que mais resta a dizer sobre este pontual ato de enunciação? “E daí?” não pode ser a expressão frasal plena de referência; é somente ato que escancara o sujeito capturado fora da ordem do discurso em que se exibe. Esse sujeito surge flagrado no vazio do significante, porque o acontecimento de sua realização, na boca do sujeito que o “E daí?” produz, nada leva a recuperar no mundo, a não ser o próprio sujeito rarefeito enquanto fala.

Talvez valha aceitar os limites da interpretação, porque de tanto interpretar, o acontecimento do dizer, contingente e espantoso, é conduzido ao abismo incontornável do que pode e não pode ser dito. Urgente nos entregar à escuta da fala, não no signo pleno, mas no vazio do sentido e do sujeito a que o dizer se abre. Difícil compreender se o analista de discurso já traz no gesto de interpretação o efeito de sentido, desde antes pretendido, como resultado da análise. Porque, enfim, não é possivel identificar nenhuma das três figuras subjetivantes na dramática do discurso verdadeiro na ordem da política.

Os atos irruptivos de fala de Jair Bolsonaro, que surpreendem tanto a opoiadores quanto a adversários, não cabem nem no lugar de fala do governante, nem na do crítico e, muito menos, na do revolucionário. Seu dizer nada revela acerca de em nome de que efeito de subjetivação sua fala o faz ser sujeito na cena política. O que se observa no instante em que acontece é um ato de enunciação em que a verdade que diz o sujeito sobre si não conclama a qualquer revolução. Alguma coisa, no modo chocante de dizer e fazer aparecer o sujeito, jaz fora da ordem, fora da nova e imprevisível ordem da política contemporânea. Se algo pode ser concluído, em meio ao precário do dizer, é que este é o índice de uma democracia em coma. Quem há de falar por ela e com ela?