"Isso é uma gripezinha" – o Brasil em diminutivo

Eduardo Alves Rodrigues,
Cármen Agustini,
Luiza Castello Branco,
Renata Barros

Resumo

As reflexões e as análises produzidas neste artigo derivam de um gesto de leitura filiado à Análise de Discurso sobre um arquivo constituído a partir de recortes midiáticos de circulação nacional e internacional. Analisamos nesse arquivo o funcionamento ideológico das formas discursivas – tais como "isso é uma gripezinha", "Eu sou, realmente, a constituição" e "E daí?" – que materializam a produção do "Brasil em diminutivo". Esse funcionamento estabiliza o universo semântico no qual se articulam sentidos de (des)compromisso com sujeitos, com espaços, com instituições, enfim, com trajetórias históricas, se ritmando por um trabalho partitivo em detrimento do coletivo, ou seja, esse funcionamento (re)produz uma política governamental que vai contra aquilo que seria próprio a um estado de direito: a responsabilidade com a(s) coletividade(s). Esse funcionamento ideológico que produz como uma de suas evidências "o Brasil em diminutivo" acirra a polaridade política, expondo a contradição de um governo que se retroalimenta pela prática da mistura entre evidência e absurdo, (re)produzindo formas totalitárias de poder e de dizer. A compreensão desse funcionamento torna visível, ainda, que, ao ser impactada discursivamente pela diminuição das questões sociais brasileiras, a cena política de hoje, no Brasil, é determinada pelo jogo político que (de)nega, silencia e censura as condições reais nas quais e por meio das quais a(s) coletividade(s) se (de)bate(m), demandando o reconhecimento de sua existência.

Introdução

Neste artigo, partimos da metáfora "no meio do caminho tinha uma pedra" (DRUMMOND, 1928[1]) para analisarmos o processo discursivo que produz, na mistura da evidência e do absurdo, a narrativa do "Brasil em diminutivo". Como veremos, essa narrativa domina os sentidos que (des)estabilizam a cena (política) brasileira hoje. Veremos, também, como esse processo discursivo determina diferentes movimentos – disputas, deslizamentos, (des)alinhamentos – de sentidos, torcendo, no tempo-espaço histórico do jogo político-simbólico-ideológico, a conformação do prisma social brasileiro.

1. No meio do caminho tinha... uma "gripezinha1, talkei2"

O poema de Drummond, na condição de discurso, torna efeito uma atualidade. Para a cena (política) brasileira de hoje, sua leitura faz ressoar os obstáculos que sequestram um horizonte polissêmico para o percurso histórico de formação da nação brasileira – disso resulta que tal percurso nos é apresentado pela monossemia de uma discursividade hegemônica que descreve o país como uma "democracia que se encontra em desenvolvimento". Ao afirmarmos isso, uma advertência ressoa como necessária: a formulação aspeada – o Brasil é uma democracia que se encontra em desenvolvimento – (re)atualiza um discurso transverso3 que fornece/replica um saber historicizado dominante que direciona o modo como o percurso histórico de formação da nação brasileira é (re)inscrito tanto na memória da evidência da democracia quanto na memória da evidência do (em) desenvolvimento. É esse funcionamento que sustenta formulações como "a democracia retorna ao Brasil na década de 1980 com o fim do período da ditadura" ou "não podemos deixar o Brasil se tornar uma Cuba", "nossa frágil democracia está em risco", "o desenvolvimento econômico brasileiro garante o bem estar da população", "por que o Brasil é um país rico e não é desenvolvido?", "afinal, o Brasil está pronto para se tornar um país desenvolvido?". Dessa maneira, podemos compreender como os pré-construídos4 "democracia" e "desenvolvimento" simulam-se como referentes para "Brasil", "o país/a nação Brasil". E, se a leitura destaca a locução adjetiva "em desenvolvimento", "democracia" e "desenvolvimento" contraem relação com um sentido de futuridade e simulam-se como referentes para "Brasil, o país do futuro". Assim advertidos, apoiamo-nos novamente no poema de Drummond.

Na condição de discurso, o poema faz funcionar uma prática de linguagem que materializa uma prática ideológica que é simbólica e histórica. Como prática ideológica, o poema (re)produz, entre outras, a evidência elementar de que o caminho, qualquer que seja ele, "encontra" suas "pedras". Trata-se de assumir, no modo como (re)lemos o poema, o "caminho" como o tempo-espaço político-simbólico em que o social – a realidade brasileira – se desdobra como sentido(s) possível(eis). O processo histórico que escreve esse caminho é marcado por sequestros que, no poema, lemos como "pedra(s)". É partindo dessa metáfora – no meio do caminho tinha uma pedra – que procuramos analisar/compreender o processo discursivo que produz a narrativa "o Brasil em diminutivo" na dispersão das redes de sentido que significam a cena (política) brasileira de hoje.

O poema se configura, assim, como um espaço possível a (re)leituras do social. Com Benveniste (2011[2]), consideramos que a leitura do poema, como leitura de uma forma discursiva, oportuniza a seu leitor olhar o mundo por outras perspectivas, ou seja, oferece condições de leitura a outras formas discursivas que procuram (des)estabilizar seu(s) sentido(s). Nessa medida, o poema de Drummond não funciona como chave de leitura da realidade social brasileira atual. Aqui evocado, ao contrário, faz funcionar uma fissura no campo prismático que se (con)forma no e pelo movimento das articulações discursivas que determinam como a realidade brasileira atual pode/deve significar.

É desse modo que o poema, como ponto de metáfora, permite o jogo discursivo no qual "o Brasil em diminutivo" pode ser lido como uma torção metafórica de "o Brasil do Bolsonaro", ou seja, nesse ponto de metáfora, as narrativas "o Brasil em diminutivo" e "o Brasil do Bolsonaro" se torcem uma na outra, contraindo relações de sentido(s): a sintagmatização se torce no modo como ela evoca equivocadamente o interdiscurso5. Essa torção metafórica se torna visível na e pela sintagmatização do jogo parafrástico que (re)inscreve uma repetição que dissimula a produção do diferente no mesmo. Essa repetição torna visível também uma discrepância entre o enunciado e sua paráfrase, entre uma narrativa e outra (sua paráfrase), por meio da qual outras articulações discursivas ganham corpo e significância.

"o Brasil em diminutivo" "o Brasil do Bolsonaro"

"o Brasil do Bolsonaro" "o Brasil em diminutivo"

"no meio do caminho tinha uma pedra" "tinha uma pedra no meio do caminho"

"tinha uma pedra no meio do caminho" "no meio do caminho tinha uma pedra"

Entre uma paráfrase e outra, podemos ler a produção das seguintes relações de sentido: "O Brasil do Bolsonaro é o Brasil em diminutivo" e "Bolsonaro diminui o Brasil"; "O Brasil se diminui/é diminuído, se reduz/é reduzido no e pelo governo do Bolsonaro". Essas relações são assim evocadas introduzindo "sub-repticiamente [sic] um novo 'pensamento'" (PÊCHEUX, 1995, p. 111[3]), e, nas palavras de Leibniz (apud PÊCHEUX, 1995, p. 111[3]), "muitas vezes elas não dizem nada de novo, mas nos fazem pensar corretamente naquilo que sabemos". Logo, pensamos na seguinte articulação possível: o Brasil do Bolsonaro não constitui um novo Brasil.

Assim, ambas as narrativas – "O Brasil em diminutivo" e "o Brasil do Bolsonaro" – fazem retornar nessa discrepância parafrástica a repetição como funcionamento discursivo que (des)estabiliza sentido(s) na e para a cena (política) brasileira atual. Nesse funcionamento, o interdiscurso se dobra fazendo movimentar a significação de ambas as narrativas, de modo que, se uma se reporta/é reportada à outra, o sentido desdobra sua contraface, o nonsense, expondo o olhar leitor à evidência do não-um do sentido como efeito. Portanto, por essa dobra interdiscursiva, em que a interpelação ideológica se torce à sua contraface incontornável (o inconsciente), o um do sentido, desdobrado da leitura parafrástica entre as referidas narrativas, indicia a "mistura surpreendente de absurdo e de evidência, e esse retorno do estranho no familiar" (PÊCHEUX, 1995, p. 155[3]).

Por dobra interdiscursiva compreendemos6 um mecanismo de retorno do interdiscurso no discurso, que se diferencia dos efeitos de pré-construído (que produz o efeito de anterioridade de um saber no dizer) e de discurso transverso (que produz o efeito de sustentação de um saber no dizer), porque, no e pelo movimento histórico de dobra do interdiscurso (o interdiscurso dobra-se sobre o dizer e sobre o processo que o constitui), há a (re)produção do efeito de quebra do um do sentido, por onde irrompe um sentido outro, de tal modo que se flagra ali, ao mesmo tempo, o não-um do sentido e a abertura do dizer a outras articulações discursivas.

Desse modo, o um do sentido se esgarça abrindo-se ao não-um do sentido (em sua condição de nonsense), oferecendo lugar de acolhimento ao estranho familiar, ou seja, acolhimento a sentidos que irrompem no fio do discurso provocando efeito de estranhamento àquilo que parecia significar como familiar. Nessa direção, no batimento entre as narrativas "O Brasil em diminutivo" e "o Brasil do Bolsonaro", o estranho familiar se desdobra no fio discursivo indiciado, entre outras, nas seguintes formulações recortadas: (1) do slogan de campanha à Presidência7; (2) do discurso de Bolsonaro nos Estados Unidos durante cerimônia em que ele recebeu o prêmio de Personalidade do Ano, oferecido pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos8; (3) da interpelação a um repórter na portaria do Palácio do Planalto quando perguntado sobre as mortes de brasileiros pela covid-199; e (4) do discurso a apoiadores após ato pró-golpe militar em Brasília10.

(1) "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos."

(2) "Brasil-Estados Unidos acima de tudo. Brasil acima de todos."

(3) "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre."

(4) "Eu sou, realmente, a Constituição."

A formulação (2) parafraseia a formulação (1). Nessa perspectiva, "Brasil" está para "Deus" em uma relação metafórica. Se considerarmos as formulações (3) e (4), é possível dizermos que, por relação metonímica, "Messias" parafraseia simultaneamente "Brasil" e "Deus", de tal modo que se torna possível formular: (5) Messias acima de tudo, Messias acima de todos. Esta formulação (5) cauciona a formulação (4), funcionando como um discurso transverso que sustenta a mistura entre o absurdo e a evidência de (6) "Bolsonaro acima de tudo, Bolsonaro acima de todos", já que "Bolsonaro" parafraseia "Messias", assim como é parafraseado por "a Constituição" na formulação (4). Com base na exposição desse jogo de relações metafóricas e metonímicas, podemos desdobrar das paráfrases (1) a (6) a compreensão de que, no batimento entre as narrativas "O Brasil em diminutivo" e "O Brasil do Bolsonaro", o Brasil em diminutivo é o Brasil do Bolsonaro, ou seja, esse jogo coloca em cena a interpretação segundo a qual o país encontra-se "diminuído" a Bolsonaro. Assim, sustenta-se a articulação histórica que retroalimenta, pela prática sub-reptícia da mistura surpreendente entre evidência e absurdo, a (re)produção de formas totalitárias de poder e de dizer que procura dominar a atual cena (política) brasileira.

Com base no que acabamos de expor, entre as formulações (1) e (2), o jogo de inscrição do estranho familiar no fio discursivo que significa o totalitarismo se marca, materialmente, quando, sub-repticiamente, "Brasil" na formulação (2) toma o lugar de "Deus" na formulação (1). E, por conseguinte, "Messias" na formulação (3) toma o lugar de "constituição" na formulação (4) e o lugar de "Brasil" na formulação (5). Na formulação (6) "Bolsonaro acima de tudo, Bolsonaro acima de todos", podemos ler a forma do estranho familiar autorizando a dobra interdiscursiva a materializar-se em fios discursivos que se enovelam nas e pelas formulações (1), (2), (3), (4) e (5), configurando, assim, o novelo que produz a tessitura histórica entre "O Brasil em diminutivo" e "o Brasil do Bolsonaro". É esse mesmo funcionamento que permite a compreensão de como se estabiliza também nessa tessitura a significação de Bolsonaro como "mito", tomado como "salvador do Brasil"11, efeito de evidência que ancora a identificação à narrativa "o Brasil do Bolsonaro". Também é assim que aqueles que estão contraidentificados a esta narrativa a significam como "O Brasil em diminutivo".

No processo de identificação ideológica, compreendemos que se instaura um jogo de (contra)identificação. Sobre os três modos de inscrição dos sujeitos em formações discursivas e formações ideológicas, segundo Pêcheux (1995[3]), identificação, contraidentificação, desidentificação, ou seja, sobre as três modalidades de funcionamento subjetivo, de formas de (des)dobramento entre o sujeito da enunciação e o sujeito universal, compreendemos que esses três modos também constituem formas de resistência e de deslocamento possíveis. Isso porque o espaço-tempo dos processos históricos de produção de sentidos e de sujeitos é múltiplo e contraditório, havendo aí, por isso, espaços de manobras entre essas formas e os movimentos histórico-políticos que as determinam. Em nossa análise, constatamos formas de identificação e contraidentificação à formação discursiva capitalista, e compreendemos, em análise, que o movimento de desidentificação demandaria uma mudança radical da forma histórica sujeito universal da formação capitalista, o que em nossa formação social atual não se coloca. Ressaltamos, ainda, que esses modos de inscrição não se dão sem considerar o inconsciente (e suas formações) – "a causa que determina o sujeito exatamente onde o efeito de interpelação o captura" (PÊCHEUX, 1995, p. 300[3]) – uma vez que esse insabido trabalha pelo esquecimento no batimento sentido/nonsense, no batimento o um do sentido/o não-um do sentido no sujeito cindido em seu modo de resistir, de se mover, de se constituir, de (sobre)viver.

Nessa direção, a identificação à narrativa "o Brasil do Bolsonaro" se dá na e pela (re)produção dessa evidência como familiar e, por isso, o Brasil discursivamente referido na narrativa "o Brasil em diminutivo" ganha sentido, naturalizando-se como efeito: o Brasil reduzido a Bolsonaro é significado como possível/desejável para aqueles aí identificados. O que se naturaliza nessa leitura como uma implicação lógica é: se (com) Bolsonaro, então redução drástica do Estado, o que, por sua vez, se sustenta sobre a primazia do capital (do econômico) sobre o social. Essa implicação lógica funciona discursivamente sustentando a posição que o atual presidente assume ao afirmar, por exemplo, em mensagem enviada ao Congresso Nacional em 03 de fevereiro de 2020 que: "necessitamos reduzir o Estado gigantesco, lento e oneroso" (negrito nosso)12. Logo, é possível considerarmos que o ponto de identificação aí em jogo e em questão é a identificação com um projeto de governo que promove a redução do Brasil, uma identificação, em última instância, ao capital como evidência inequívoca13.

De outro modo, a contraidentificação à narrativa "o Brasil do Bolsonaro" se dá na e pela (re)produção do estranho como evidência e, por isso, o Brasil discursivamente referido na narrativa "o Brasil em diminutivo" pode ser interpretado como absurdo, naturalizando-se também como efeito: o Brasil reduzido a Bolsonaro é significado, para aqueles aí contraidentificados, como algo que expõe a indissociabilidade entre a compreensão e a não-compreensão, sendo o objeto do estranhamento a produção/irrupção daquilo que seria indizível, impensável, infactível, porque absurdo. O que se naturaliza nessa leitura como uma implicação lógica é: se (com) Bolsonaro, então "Tá na merda, porra!...",14 o que, por sua vez, se sustenta sobre a primazia do coletivo/público sobre o particular/privado. Essa implicação lógica funciona discursivamente sustentando uma posição de oposição àquela do atual presidente quando este declara, por exemplo, em reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020 que:

Mas é a putaria o tempo todo pra me atingir, mexendo com a minha família. Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui! E isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira. (negrito nosso)15

Logo, é possível considerarmos que o ponto de contraidentificação aí em jogo e em questão é a contraidentificação ao projeto de governo que promove a redução do Brasil, o desprezo da coletividade (como se o outro – o diferente, o "eles" – não precisasse existir), a usurpação do público, uma contraidentificação, em última instância, ao capital como evidência inequívoca.

Mais uma vez, recorrendo ao jogo discursivo que (re)inscreve a tensão entre o estranho e o familiar no fio discursivo que significa o totalitarismo, a formulação (4) "Eu sou, realmente, a Constituição" faz ressoar os efeitos da torção metafórica que subjugam a governabilidade – as condições de existência do Brasil – ao paradigma de uma empresa familiar, um governo que se volta para os interesses particulares de uma única família, que, ao reduzir drasticamente o Estado, silencia os modos pelos quais a coletividade se (de)bate demandando o reconhecimento de sua existência. Dessa maneira, podemos compreender que, em quaisquer das narrativas – "o Brasil em diminutivo" e "o Brasil do Bolsonaro" –, o sentido de coletividade não pega.

Como ensinado por Benveniste (2011[2]), a leitura do poema oportuniza ao leitor olhar a cena (política) brasileira atual com lentes diferentes. É assim que o poema oferece condições de leitura tanto à narrativa "o Brasil do Bolsonaro", quanto à narrativa "o Brasil em diminutivo". A narrativa "o Brasil do Bolsonaro" leva a significar "Bolsonaro" como "mito". Nesta direção dos sentidos, Bolsonaro é metaforizado por "salvador", de tal modo que "gripezinha" se torna interpretável como "pedra no meio do caminho" do "salvador", daquele que precisa "reduzir o Estado" para garantir a economia e, assim, garantir-se nesse lugar. A narrativa "o Brasil em diminutivo", por sua vez, leva a significar "Bolsonaro" como "pedra". Nesta direção dos sentidos, Bolsonaro é metaforizado por "gripezinha", de tal modo que Bolsonaro se torna interpretável como uma "pedra no meio do caminho" da coletividade brasileira e de sua (condição de) existência, como real absurdo, aerólito impensável e indizível.

É nesse funcionamento discursivo que a cena (política) brasileira atual desdobra-se instaurando certo efeito de polarização: ou se está com Bolsonaro ou se está contra Bolsonaro. Esse funcionamento discursivo, que parece estabilizar os sentidos da cena (política) brasileira atual, parece também apagar a possibilidade dos entremeios, uma vez que no pensamento fascista, "o líder da nação é análogo ao pai da família patriarcal tradicional [...] que conecta a uma estrutura autoritária hierárquica" (STANLEY, 2019, p. 22[4]) a narrativa de um "passado fictício, patriarcal, duramente conservador, étnica e religiosamente puro" (STANLEY, 2019, p. 29[4]). Essa posição fascista é repetidamente reivindicada no discurso do presidente, haja vista o seu slogan de campanha/governo ("Brasil acima de tudo, Deus acima de todos"), o seu discurso em plenário da Câmara em 11 de dezembro de 2008 ("Eu louvo o AI-5"16), e, mais recentemente, o seu pronunciamento na abertura da 75ª Assembleia Geral da ONU – Organização das Nações Unidas – ocorrida em 22 de setembro de 2020: "O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base17".

2. "Nunca me esquecerei desse acontecimento": encontro e pega e...

Uma vez mais, tomamos o verso de Drummond como uma lente discursiva que faz movimentar nossa leitura da cena (política) brasileira atual. Com essa lente, expomos nosso olhar leitor ao desconforto incontornável derivado da impossibilidade de tomarmos nossa questão – o Brasil em diminutivo – sob a redução teórica e política do real da história ao real da língua (ZOPPI-FONTANA, 2009[5]). Essa exposição nos leva a questionar a ordem irredutível da história e faz nossa questão desdobrar-se:

Em que medida poderíamos ler "o Brasil em diminutivo", "o Brasil do Bolsonaro" constituindo um acontecimento? Em que medida essas narrativas decorrem de uma (im)previsibilidade do discurso, de uma (im)previsibilidade da história? Em que medida a evidência – o Brasil reduzido a Bolsonaro – toma corpo na materialidade da memória, na materialidade do esquecimento? Em que medida, uma vez tomada em seu percurso de retorno sobre o histórico, logo sobre o dizível, o interpretável, o pensável, essa narrativa, que faz ressoar sentidos de fascismo e de totalitarismo, impõe ao olhar leitor a impossibilidade de não esquecer o encontro – a pega – com o absurdo? Em que medida essa narrativa faz (não) esquecer as evidências que ela (re)produz? Em que medida esse movimento projeta um acontecimento, uma (re)inscrição na tensão entre memória e duração, na contingência determinada pela tensão entre "a falácia de encontrar um Sentido à história" (ZOPPI-FONTANA, 2009, p. 142[5]) e a injunção a "não renunciar a fazer sentido(s) na história" (ZOPPI-FONTANA, 2009, p. 142[5])?

Essas questões nos levam a encarar a mistura de absurdo e de evidência, o retorno do estranho no familiar (PÊCHEUX, 1995[3]), que lemos no batimento entre as narrativas "o Brasil em diminutivo" e "o Brasil do Bolsonaro", pela óptica do materialismo da chuva – do desvio, do encontro, da pega (ALTHUSSER, 2005[6]). Nessa perspectiva, tanto a evidência do absurdo ("um presidente fascista eleito democraticamente") quanto o absurdo da evidência ("um presidente fascista eleito democraticamente") decorrem de um processo de produção de sentidos (de uma realidade, das realidades, de um mundo, dos mundos, conforme nos mostra Althusser (2005[6])) que se (re)inscreve historicamente na tensão entre contingência e necessidade cuja expressão teórica explicita como inexplicável a produção do sentido como efeito relacional. Inexplicável porque o sentido é produto de um encontro, que se dá, em tese, no movimento da (im)previsibilidade histórica, e que, por isso, acontece na tensão entre desvio e pega. Na perspectiva de Althusser, um átomo desvia e encontra outro átomo. Desse encontro, uma aglomeração de átomos constrói uma realidade, um mundo, um sentido, se suas relações pegam (duram). Logo, "o sentido", "qualquer sentido", é, teoricamente, inexplicável porque o encontro é da ordem do aleatório e da contingência. Portanto, a explicação do sentido é, em última instância, uma explicação tão-somente da produção de seu efeito, ou seja, das relações que um sentido pega com outro(s). Nas palavras do próprio Althusser (2005, p. 10-11[6]),

que a origem de qualquer mundo, e portanto de qualquer realidade e de qualquer sentido, deva-se a um desvio, que o Desvio, e não a Razão ou a Causa, seja a origem do mundo, tudo isso dá uma ideia da audácia da tese de Epicuro. Que filosofia retomou, pois, na história da filosofia, a tese de que o Desvio era originário e não derivado? É preciso avançar ainda mais. Para que o desvio dê lugar a um encontro do qual nasça um mundo, é necessário que ele dure, que não seja um "breve encontro", mas um encontro durável, que se torna, então, a base de qualquer realidade, de qualquer necessidade, de qualquer Sentido e de qualquer razão. Porém, o encontro pode também não durar e, então, não há mundo. Além do mais, observa-se que o encontro não cria nada da realidade do mundo, a não ser átomos aglomerados; pelo contrário, ele outorga sua realidade aos átomos mesmos, que, sem o desvio e o encontro, não seriam mais do que elementos abstratos, sem consistência nem existência; de maneira tal que se pode afirmar que a existência mesma dos átomos só lhes advém do desvio e do encontro, antes dos quais eles só levavam uma existência fantasmática. (ALTHUSSER, 2005, p. 10-11; grifos do autor[6])

No nosso modo de compreender, essa metáfora expõe o mecanismo próprio de construção do efeito de sentido – da evidência e do absurdo – como relação a. Em seu movimento próprio – desviante18 – um sentido encontra – e pega – outro. O efeito desse encontro significa, ressoa – dá pega – na história, ao dobrar-se sobre os sujeitos em seus discursos, isto é, no modo como encontram-se sujeitos às formações discursivas e ideológicas. Nessa direção, tanto a evidência do absurdo quanto o absurdo da evidência constituem-se como efeitos do jogo aleatório entre contingência – a ausência de causa/origem – e necessidade – o efeito da pega no processo histórico sem origem e sem fim. É na conjuntura histórica que significa esse jogo que a "pedra" de Drummond retorna nos expondo a um real suposto como (im)previsível: a eleição democrática de um fascista. (Como é que é?)

Nessa conjuntura, ainda, os sentidos de ditadura, fascismo, redução drástica do Estado, jamais esquecidos, retornam à ordem do dia: passam a ser (re)formulados (re)produzindo a "pega" histórica (im)previsível. Sentidos que já significavam. Sentidos que significam. Sentidos que retornam diferentemente porque (re)produzidos no movimento infinitesimal do desvio. Relações de sentido que se mostram (re)produzidas a partir de um encontro com pega – um encontro que tem duração, pois tem ressonância na e pela história: "como pudemos acreditar que nossa sociedade mudou? Está tudo aí." A história não dá saltos.

É assim que a chuva do materialismo da chuva faz molhar sentidos já aí, sentidos que (per)duram, (re)inscrevendo um "fato consumado", um acontecimento discursivo – o Brasil reduzido a Bolsonaro, sob a forma de um perverso novelo de fios discursivos: sexismo, homofobia, cristianismo às avessas, (apologia ao) fascismo, (apologia à) ditadura, entreguismo, desmonte do Estado, sucateamento da educação e da saúde, o fantasma do retorno do AI-5, a cultura como "pum do palhaço" etc. "Fato consumado" que nos é apresentado como "outro mundo"/"outro sentido", mas que faz retornar diferentemente algo que teve pega nas coordenadas que fazem cruzar contingência e necessidade, o que, segundo advertência do próprio Althusser, está subordinado ao primado da contingência sobre a necessidade:

neste sentido, considerar o acontecimento do discurso em relação ao real da história, nos leva a afirmar o primado da contingência sobre a necessidade, tal como o postula Althusser (2005[1982][6]); do encontro sobre a forma, de acordo com a interpretação do texto althusseriano desenvolvida por Morfino (2006[?]); da matéria sobre a materialidade (entendida por nós enquanto forma material), como proposto por Labandeira (2008) na sua leitura de Althusser e Pêcheux; do ser sobre o pensamento, conforme a primeira tese materialista defendida por Pêcheux (1975/1990); e das possibilidades contingentes sobre a impossibilidade ou causalidade estrutural, no sentido que propomos [...]. (ZOPPI-FONTANA, 2009, p. 140; grifo da autora[5])

Assim, compreendemos que, pela contingência do real histórico, há sempre a existente possibilidade do vir a ser. É pela metáfora do movimento que a história pode ser interpretada como o lugar da possibilidade e da contingência, o lugar da (im)previsibilidade. Do contrário, nem o real da língua estaria sujeito à falha e nem o real da história passível de ruptura. Há um movimento contínuo do simbólico diante do real irrepresentável se inscrevendo na história, fazendo com que os acontecimentos peguem (ou não) sentidos por/para o sujeito, isto é, que os acontecimentos se historicizem.

O novelo discursivo que cerze as narrativas "o Brasil em diminutivo" e "o Brasil do Bolsonaro" instaura, nessa perspectiva, um reino que é o da razão e da necessidade, um mundo semântico aparentemente estabilizado no qual a mistura da evidência e do absurdo "pegou". No novelo discursivo em que essas narrativas se (de)batem, fio algum de absurdidade/perversidade foi capaz de barrar a irrupção do real da história: houve um encontro, houve uma pega – um fascista, que toma forma/corpo em Bolsonaro, tornou-se presidente eleito pela maioria. A perspectiva discursiva nos permite ainda acrescentar que esse acontecimento discursivo – "fato consumado" – não é dependente de um sobrenome atribuído a um sujeito (no caso, Bolsonaro/Messias), mas efeito da necessidade histórica que é preenchida e projetada como uma posição significativa que encarna a formação discursiva em que tal absurdo é forjado como evidência.

Nessa perspectiva, podemos compreender que o enunciado "Isso é uma gripezinha" (20 de março de 2020) pode ser lido como uma fórmula sintética – vulgata parafrástica (cf. PÊCHEUX, 1999[7]) –, que indicia a repetição de um funcionamento regular que caracteriza a prática narrativa deste governo, ou seja, configura-se como uma das pontas possíveis do novelo das narrativas que fornecem paráfrases que (re)formulam constantemente o absurdo como evidência. E, por isso, como normalidade.

Essa prática narrativa – novelo parafrástico – é flagrada cotidianamente, desde quando o atual presidente nem aventava ainda sua candidatura ao cargo. E estampa profusa e difusamente notícias, matérias, postagens, comentários nas mais diversas mídias: "[dirigindo-se à ex-deputada Maria do Rosário:] jamais ia estuprar você porque você não merece." (novembro de 2003)19; "O Brasil não pode ser um País do mundo gay, de turismo gay. Temos famílias. [...] Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade." (25 de abril de 2019)20; "Os direitos humanos no Brasil só defendem bandidos, estupradores, marginais, sequestradores e até corruptos" (09 de dezembro de 2014)21; "[a questão ambiental importa] só aos veganos que comem só vegetais." (20 de julho de 2019)22; "[sobre os livros didáticos:] têm muita coisa escrita, tem que suavizar." (03 de janeiro de 2020)23; "Obviamente, temos no momento uma crise. Uma pequena crise. Ou, no meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus." (10 de março de 2020)24; "É a vida, todos nós vamos morrer um dia." (30 de março de 2020)25; "O vírus é igual a uma chuva. Ela vem e você vai se molhar, mas não vai morrer afogado." (01 de abril de 2020)26; "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre." (28 de abril de 2020)27; "Tem muita coisa que eu assino que eu leio a ementa apenas. Tem decreto que tem 20 páginas, e às vezes tem um palmo de papel para assinar ali. E não é só ler, tem que interpretar também. Eu não tenho como interpretar." (28 de abril de 2020)28; "[sobre as mortes decorrentes da covid-19:] A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo." (02 de junho de 2020)29; "[sobre poluição ambiental:] é só você fazer cocô dia sim, dia não que melhora bastante a nossa vida" (09 de agosto de 2020)30 etc. etc. etc.

Essa prática narrativa tecida em e por paráfrases como essas (re)atualiza uma rede de formações discursivas que fornece uma base interpretativa sobre a qual é erigido um "projeto de desmonte", que, por sua vez, nos remete ao imaginário de "projeto de desenvolvimento" que direciona a significação de projeto de país/nação. Essa posição analítica reconhece esse "projeto de desenvolvimento" como um efeito de sentido, portanto, um significante vazio de conteúdo semântico, que vem sendo (re)atualizado como evidência ideológica – prenhe de sentido – em que se articularam e se sustentaram os projetos de governo que se instalaram no Brasil até hoje. Uma evidência ideológica que projeta o "desenvolvimento" como um "bem" apresentado como algo que só se poderia alcançar num futuro, ao mesmo tempo adiado e incerto. Por isso, ao tomarmos o Brasil como efeito de um projeto de nação/país, fica a imposição de considerarmos o processo histórico de determinação do sentido de "desenvolvimento" pelos sentidos que impõem a materialidade do capital como hegemônica em todas as sociedades e suas diferentes instâncias. Essa hegemonia, por sua vez, dita, em todos os projetos de governo supracitados, a usurpação do público pelo privado. Usurpação essa que é dissimulada sob a forma da dita "parceria" – diríamos "indistinção" (ORLANDI, 2011[8]) – entre o público e o privado.

É nessa medida que podemos dizer que o governo atual procura materializar um projeto de desmonte, que (re)interpreta o projeto de desenvolvimento ao (re)apresentá-lo – (re)formulá-lo – sob uma espécie de lógica/retórica do absurdo, como dissemos e mostramos. Como efeito desse funcionamento, o sentido de "desenvolvimento" é sustentado por essa discursividade do absurdo, que permite o deslizamento segundo o qual "desenvolvimento" pode ser (re)lido como "desmonte". E esse sentido de "desmonte" passa a ser (re)lido, identificado e materializado na e pela prática política encarnada discursivamente em todos os setores do atual governo: meio ambiente, educação, saúde, economia, relações exteriores, mulher, família e direitos humanos, segurança etc.

E é nessa medida que tomamos o enunciado "isso é uma gripezinha[, talkei]" como enunciado emblemático que (re)atualiza o sentido histórico de desmonte para o projeto de governo em vigência. E lemos a marca do diminutivo "inha" como a marca discursiva que significa, no e pelo funcionamento da linguagem, a redução do Estado, o desmonte, a destruição, o aniquilamento das instituições e dos discursos que elas produzem e fazem circular de modo a administrar a vida social.

Nessa direção, a forma material "talkei" funciona como o arremate dos fios do novelo parafrástico produzindo como efeito a cola histórica – a pega – entre as narrativas "o Brasil do Bolsonaro" e "o Brasil em diminutivo", de tal modo que podemos (re)lê-la nas paráfrases como "e tenho dito" ou "cumpra-se". "Talkei", dessa maneira, arremeta o gesto totalitário que transforma em sentido único o que é da ordem do nonsense, a evidência em absurdo, o absurdo em evidência. (E tenho dito!)

Os projetos de governo que se instalaram no Brasil, a exemplo do atual, que define a cena política que produz o Brasil em desmonte, o Brasil em diminutivo, tomam o novelo parafrástico supramencionado pela evidência ideológica do "desenvolvimento". Na perspectiva discursiva, a evidência do "desenvolvimento" deve ser remetida à sua historicidade, o que nos permite situar o "desenvolvimento" como uma das "pedras" de toque do capitalismo. Nessa condição, a questão do desenvolvimento é inscrita na formação discursiva econômica cujo pré-construído pode ser assim representado: "o econômico [é] o nível que determina, em última instância, o funcionamento do 'todo' social complexo" (LAZAGNA, 2007[9]). Se seguirmos esse raciocínio, um projeto de desenvolvimento é um projeto econômico, ou seja, um projeto que submete o todo complexo social ao regime da produção econômica (leia-se, da produção de lucro), subvertendo, no e pelo funcionamento dos modos de produção de lucro (acumulação de capital), o social em produtos consumíveis, nos seus diversos aspectos, como já citados, meio ambiente, educação, saúde, economia, cultura, segurança etc.

A discursividade lógica/retórica, na qual o econômico é determinante e o social transformado em mercadoria e que sustenta essa aparente contradição entre desenvolvimento e desmonte, é a mesma que produz a evidência do absurdo sobre a qual o projeto de desmonte – tal como proposto na narrativa "o Brasil em diminutivo" – faz sentido. Neste caso, a "pedra" de toque do desenvolvimento funciona como a pedra de toque do desmonte – uma pedra no meio do caminho – porque faz parecer natural, evidente e necessária a lógica/retórica do capital. Naturaliza-se, em decorrência, o desmonte do todo social complexo: assim, na perspectiva do governo atual, saúde, educação, cultura, meio ambiente etc. só importam enquanto fonte de acumulação de capital.

3. "… desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas"

Na canção O Real Resiste, de Arnaldo Antunes (2020[10]), (d)enuncia-se um todo complexo de evidências do absurdo que fatigam à exaustão a vida de nossas retinas já tão fatigadas: "autoritarismo não existe [...] Deve ser ilusão, não, não / É só ilusão, não, não / Só pode ser ilusão / Miliciano não existe / Torturador não existe / Fundamentalista não existe / Terraplanista não existe [...] O real resiste [...] Não, não, não, não / Trabalho escravo não existe / Desmatamento não existe / Homofobia não existe / Extermínio não existe [...] O real resiste [...] Esquadrão da morte não existe / Ku Klux Klan não existe / Neo-Nazismo não existe [...] Tirania eleita pela multidão / O real resiste / É só pesadelo depois passa [...] Opressão, não, não, não...".

Uma regularidade discursiva é também evocada na ótica da canção, entoada musicalmente por meio de um bloco fonético insistentemente repetido: /nãw/. De nossa perspectiva, tal excesso indicia fatiga. A repetição de /nãw/ parece parafrasear "basta!", assim como "chega!". E nos ajuda a (re)ler nossa questão – o Brasil em diminutivo – mais uma vez no e pelo verso de Drummond. Um acontecimento que nos impõe evidências que fatigam porque já objeto contra o qual revolta-se, resiste-se, numa formação social em que o capital ressoa hegemonicamente, escravizando sujeitos e discursos.

Essa sonoridade musicalizada – /nãw/ – também restitui aos versos da canção outra condição de leitura para as formas de negação ali formuladas – não, autoritarismo não existe, não. Podemos ler nesse jogo de negações a instauração de um regime afinado de denegações que suspendem a evidência negada, que passa a poder ser lida também como uma afirmação: (não) existe autoritarismo (não) – (não) existe miliciano (não) – (não) existe torturador (não) – (não) existe fundamentalista (não) – (não) existe neo-nazismo (não) – (não) existe tirania (não) – (não) existe opressão (não)… (não) eleita pela multidão (não). Esse jogo de denegações expõe, ainda, o modo como escapa a esse regime o estatuto fundamental e incontornável do real, que resiste à ilusão imaginária que o envelopa, (re)interpretando-o a partir do um do sentido, apresentando-o como uma realidade única possível, ou, como mostramos acima, forjando o absurdo como necessidade. O real escapa pelas beiradas das retinas, pelos cantos e desvãos do esquecimento como força propulsora, pelo modo como esse real que resiste se (re)inscreve, na forma mesma da impossibilidade do assujeitamento perfeito desse sujeito imposta pelo modo de produção capitalista, sujeito esse que se contraidentifica à existência disso que existe e não deveria existir, porque não faz sentido existir se se questiona a lógica capitalista – resistência a (resistência àquilo que faz o corpo/a forma do sujeito fatigar, alquebrar, arrastar-se, prostrar-se, moer-se, morrer), como nos mostra Pêcheux ao dar visibilidade à fala de um empregado da Citroën:

o organismo resiste. Algo, no corpo e na cabeça, se fortalece contra a repetição e o nada. A vida: um gesto mais rápido, um braço que pende inoportunamente, um passo mais lento, um sopro de irregularidade, um falso movimento, a 'reconstrução', o 'escoamento', a tática do posto; tudo o que faz com que, nesse irrisório quadrado de resistência contra a eternidade vazia que é o posto de trabalho, haja ainda acontecimentos, mesmo minúsculos, que haja ainda um tempo, mesmo monstruosamente estirado. Esse desajeito, esse deslocamento supérfluo, essa aceleração súbita, essa solda fracassada, essa mão que retoma a vida que se liga. (PÊCHEUX, 1995, p. 307[3])

Se remetemos esse testemunho à canção de Arnaldo Antunes, é com uma arma (a repetição e o nada) aparentemente análoga – com a qual, ensina o empregado da Citröen, procura-se impedir a revolta e a resistência – que, sob a forma do bloco fonético /nãw/ /nãw/ /nãw/ /nãw/, o revoltar-se e o resistir-se (re)inscrevem-se e (re)escrevem-se – enquanto dobra no histórico – no único lugar que lhes pode oferecer materialidade e ressonância: na e pela linguagem, no e pelo movimento do sentido. Não, não, não, não, verso na canção, permite-nos a (re)leitura da recursividade da pedra no poema. É por esse mecanismo que o verso não, não, não, não produz uma ressonância discursiva (SERRANI, 1997[11]) que fura a aparência de transparência e de obviedade do estado de absurdo, fura sub-repticiamente a surpreendente mistura entre a evidência e o absurdo. Efeito de um desvio infinitezimal, deslocamento em direção à re-ex-sistência.

Nessa direção, o discurso que a fala citada atualiza torce metaforicamente e faz dobra sobre os efeitos do batimento entre as narrativas "o Brasil em diminutivo" e "o Brasil do Bolsonaro", impondo à leitura desse batimento a restituição do alvo sobre o qual esses efeitos funcionam como sobredeterminação: o próprio sujeito, ou seja, os discursos que o constituem. E mostra que o real resiste também no modo como o sujeito responde à injunção a resistir, a revoltar-se… Diante do acontecimento o Brasil reduzido a Bolsonaro, a resistência se instala… ainda que minúscula, ainda que estirada num átimo. Essa resistência se apresenta na tensão entre contingência e necessidade, e tem como condição de produção os efeitos decorrentes do funcionamento discursivo que estabiliza o universo semântico no qual se articulam sentidos de (des)compromisso com sujeitos, com espaços, com instituições, com a(s) coletividade(s), enfim, com trajetórias históricas que se ritmam por um trabalho partitivo em detrimento do coletivo, ou seja, diminuindo – fatigando – discursivamente as questões sociais brasileiras. Resistência que move esperanças.

O estado de absurdo fatiga. Como repetição, fatiga. Retorna e fatiga. Fatiga o olhar. Fatiga o corpo. Fatiga a palavra. Fatiga a resistência. Fatiga a revolta. Fatiga a existência, e a esperança. Uma pedra no meio do caminho. Fatiga como condição que produz indistinção entre evidência e absurdo, abalando a possibilidade de compreensão desse Brasil (reduzido a Bolsonaro), desse (sobre)viver em diminutivo. Que Brasil é esse? – já questionava a canção do Legião Urbana (1987[12]).

Compreendemos, dessa maneira, que o Brasil reduzido a Bolsonaro não é, contraditoriamente, uma narrativa tampouco uma prática política que se inaugura com o/no governo Bolsonaro. O que essa narrativa e essa prática atualizam é uma agenda política estabelecida para o país desde os últimos governos militares, alinhada ao regime de acumulação do capital internacional, que objetiva, por um lado, bloquear qualquer possibilidade de rearranjo, deslocamento dos lugares, e, por outro lado, promover protagonismos já definidos. Segundo essa agenda, a função desse projeto é servir aos ditames do capitalismo neoliberal, o que significa o desmonte como mecanismo de sobredeterminação do Brasil às potências estabelecidas, que, nesse jogo, buscam preservar suas posições hegemônicas, ao custo do que for preciso para manterem suas posições, privilégios, riquezas e poderes.

(E daí?)

Diante deste escárnio, insistimos na lição que Pêcheux nos ensina: resistir é preciso – marca do sujeito na língua em movimento na história –, possibilidade de desencaixe de sentidos: (in)esperados gestos de insurgência à submissão diária que surpreendem e fazem a história pegar outro sentido, outro caminho, outra duração, outro novelo, outra narrativa... quem sabe até des-conhecendo esse governo eleito e fazendo acontecer a intervenção da vontade da(s) coletividade(s).

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