As genitálias da gramática

Danniel da Silva Carvalho

Resumo

Gênero como categoria gramatical, segundo uma tradição europeia, pode dizer muito sobre o que fomos levados a entender sobre gramática. Ela ilustra de forma transparente a parcialidade na suas construções histórica e institucional. Este artigo tem o intuito de promover uma reflexão acerca do papel antropomorfizante de certas categorias gramaticais, como gênero, e suas consequências na instituição de um vernáculo. Mais especificamente, discuto como a definição de gênero como categoria gramatical de base grega cria amarras na classificação de nomes em relação aos seus distintos referentes. Por fim, discuto alguns papeis pragmáticos e políticos de gênero, a partir de dados que envolvem ora formas de tratamento (seja pronominal ou nominal), ora expressões referenciais, de línguas como o japonês, o igbo e o português brasileiro, que ultrapassam as fronteiras gramaticais na associação entre pessoa e gênero, mas fazem uso de sua estrutura, respeitando-a, sendo, dessa forma, também atitudes gramaticais. Assumo nessa provocação uma postura crítica e cuir acerca da categoria gênero, dando destaque a uma diferença que não quer ser assimilada ou tolerada na discussão gramatical.


 

Introdução

Somos lo que hacemos, y sobre todo lo que hacemos para cambiar lo que somos.

Eduardo Galeano (1981, p. 17[1])

A conscientização sobre a língua, ou, nas palavras de Peter Burke (2004[2]), a descoberta da língua como instrumento político, surge concomitantemente à modernidade, por volta do século XV, como movimento de demarcação sócio-política dos estados modernos europeus à época. No século XIV, Dante Alighieri escreve De vulgari eloquentia (cerca de 1302-1305), e funda a crença do vernáculo latino.

Está fundada a ideia de língua nacional, da eloquência vulgar, e, assim, cada nação procura estabelecer a sua. Entretanto, o surgimento do vernáculo traz consigo a disciplinarização da língua através da canonização da gramática escolástica. Podemos entender essa disciplina gramatical nos termos foucaulteanos, na imposição de regras e hierarquias. Esse poder disciplinar exercido pela gramática é espelhado na formação da ordem escolar do início da Idade Moderna. Penso que a gramática é ao mesmo tempo disciplinar e domesticadora, pois, além do “alinhamento obrigatório” que a disciplina exige, estabelece “uma relação de dominação constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular” (FOUCAULT, 1999 [1975], p. 164-173[3]).

No século XIX, a gramática torna-se instrumento de um movimento nas ciências humanas que ficou conhecido por linguística comparativista. Com a euforia da teoria evolutiva darwiniana e a redescoberta do sânscrito como língua ancestral oriental, surge na Europa, com mais vigor na Alemanha, a prática da comparação entre as gramáticas das línguas europeias e sul-asiáticas (indo-europeias) no intuito de se descobrir a língua original, a mãe de todas as línguas.

Esse movimento levou alguns estudiosos, como Franz Boas, a repensarem gramática como um elemento de unificação das línguas ocidentais e passarem a entendê-la como elemento estrutural das línguas particulares. Esse pensamento ganhou força com o pensamento atribuído a Ferdinand de Saussure, cuja morte precoce nos primeiros anos da década de 1910 do século XX não interrompeu a disseminação de suas ideias sobre a estrutura da língua, dando vida, assim, a uma nova forma de se pensar gramática.

Mais recentemente, na segunda metade do século XX, a gramática busca o estatuto de ciência natural, ainda no rastro deixado pelos estudos comparatistas do século XIX, como a síntese de um mecanismo biológico da espécie humana, mas que, concomitantemente, com a ascensão da fala como parte vigorosa de sua funcionalidade, recebe críticas e, ainda, para uma parte dos estudiosos da linguagem preocupados com as possíveis amarras geradas por seus princípios e regras, principalmente no ensino de língua, vai sendo posta em segundo plano (cf. ANTUNES, 2007[4]; 2017a[5]; 2017b[6]).

Entretanto, em toda a sua história, a constituição do que se convencionou chamar gramática foi sempre demudada. Pôde ganhar novos contornos, novas formas de manipular antigas categorias.

A história dos estudos da linguagem humana confunde-se com o debate sobre gramática. Mas, desde suas discussões embrionárias no ocidente, pouco, ou quase nada, se questionou sobre o que ela significa enquanto elemento constitutivo do ser. Ou, melhor pondo, quem é esse ser, cujas ações, essência e feitos foram fundadores do que entendemos por gramática?

O falante de uma língua não tem consciência da existência de uma sua gramática, que a estrutura e permite que seu pensamento seja expresso, se assumirmos que língua é a expressão do pensamento. Ou que a gramática permite que suas intenções no uso da língua se concretizem, quando, por exemplo, uma ordem é dada a partir de uma forma verbal imperativa. A gramática é invisível para o falante e seu único contato é com o que lhe é apesentado pela escola, um recorte de língua que oprime, pois não representa sua identidade linguística. Só conseguimos vê-la com os olhos do linguista. E é para este que a gramática inquieta.

A especificação da terminologia gramatical foi sempre uma escolha. Partindo de um raciocínio estruturalista (SAPIR, 1921[7]), não há uma relação universal entre como os seres humanos experimentam eventos e os expressam em sua língua. Esse é um processo de gramaticalização que envolveu diversos fatores que não foram idênticos, sequer semelhantes, entre os diferentes povos no surgimento de suas línguas. A cognição humana é constituída a partir das experiências desses seres humanos, que são variadas localmente, isto é, a diversidade de experiências humanas varia na proporção que são variáveis os mundos em que esses seres humanos estão inseridos e participam. Isso também quer dizer que esses mundos sofrem a interferência dos seres humanos, que não são passíveis ao ambiente, como uma interpretação naïf, ingênua da hipótese darwiniana permite concluir.

Dan Slobin (1997[8]) relembra exemplo de Sapir sobre a diversidade de valores atribuídos à pedra sapiriana, que incluem gênero:

[e]m alemão e em francês, somos obrigados a atribuir ‘pedra’ a uma categoria de gênero – talvez os freudianos possam nos dizer por que esse objeto é masculino em uma língua e feminino em outra; em chippewa, não podemos nos expressar sem apresentar o fato aparentemente irrelevante de que uma pedra é um objeto inanimado. Se acharmos que o gênero não vem ao caso, os russos podem se perguntar por que consideramos necessário especificar em todos os casos se uma pedra, ou qualquer outro objeto, é concebida de maneira definida ou indefinida, por que a diferença entre ‘a pedra’ e ‘uma pedra’ é importantes (SAPIR, 1924, p. 154[9]).

A ilustração de Sapir evocada por Slobin é útil em minha discussão, pois demonstra como o debate sobre o que vem a ser gênero gramatical depende de fatores que vêm do próprio problema da categorização feita na descrição linguística, resultado de conceptualizações por um ser específico, ao espraiamento que foi feito historicamente da relação estabelecida entre essa categoria e um dispositivo sexuado.

Assim, a partir desse passeio epistemológico, proponho o seguinte artigo, no intuito de provocar a reflexão sobre um tema bastante em voga na atualidade: até que ponto a linguística pode lançar mão da carta da objetividade científica no exercício de apagamento de certas identidades (não) representadas na gramática. Especificamente, tratarei de como a categoria gênero é ostentada como elemento classificador na descrição linguística a partir de sua origem antropomorfizante, ou seja, baseada em uma realidade humana para a representação dos demais seres, sejam eles animados ou não. Ainda, esse humano referência na construção da categoria gênero é demarcado eurocentricamente, pois descarta outras possibilidades de ser.

O presente artigo é fruto da observação das discussões de gêneros nos diversos horizontes que as humanidades proporcionam e, principalmente, de meu lugar de vivência e experiência. É um texto em primeira pessoa para deixar claro que seu conteúdo são as imagens do meu ser no espelho sociocultural, que reflete minha formação como indivíduo e sujeito acadêmico e social, de uma cultura nordestina e cuir1. Nas palavras de Guacira Lopes Louro:

[Cuir] pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres homossexuais. Um insulto que tem, para usar o argumento de Judith Butler, a força de uma invocação sempre repetida, um insulto que ecoa e reitera os gritos de muitos grupos homófobos, ao longo do tempo, e que, por isso, adquire força, conferindo um lugar discriminado e abjeto àqueles a quem é dirigido. Este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de contestação. Para esse grupo, [cuir] significa colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade; mas não escaparia de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de identidade do movimento homossexual dominante. [Cuir] representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora. (LOURO, 2001, p. 546, grifo meu[10])

Portanto, assumirei uma postura crítica que se confunde com minha identidade cuir, dando destaque à “diferença que não quer ser assimilada ou tolerada” na discussão gramatical.

1. Das origens à mortalha de gênero

O filósofo alemão Johann Gottfrie Herder[11], em seu ensaio intitulado “Sobre a origem da linguagem” (On the origin of language), publicado em 17722, associa gênero gramatical a uma visão animista: na origem dos tempos, os primeiros humanos tentaram dar sentido ao mundo associando o que o constituía (animais, plantas, seres inanimados, forças da natureza e sobrenaturais) a homens e mulheres, como sendo deuses e deusas. Essa antropomorfização é ratificada também pelo filósofo britânico Joseph Priestley, na mesma década, em “Um curso de palestras sobre oratória e crítica” (A course of lectures on oratory and criticism), de 1777[12],3 que adicionou a essa tese a ideia de que gênero gramatical surge nos recantos mais quentes e, portanto, mais sexualmente ativos: os territórios ao sul da Europa. Essa visão sexualista de gênero gramatical vai ao extremo quando identificamos no texto de Herder sua vocação reprodutiva: “[a] atribuição de sexo através da língua [é] [...] um interesse da humanidade e as genitálias da fala são, por assim dizer, os meios de sua reprodução” (HERDER, 1966 [1772], p. 134[11]).

Essa perspectiva sobre gênero nas línguas teve continuidade no tratamento dado pelo filósofo alemão Friedrich Christian Karl Ferdinand Wilhelm von Humbold, no século XIX. Em um ensaio intitulado “Sobre a forma dual” (Über den Dualis), de 1928, Humboldt alerta para a essencialidade da dualidade linguística. A forma dual forneceria a precisão das relações linguísticas e avivaria seus poderes: “[a] classificação das palavras, segundo categorias gramaticais, provém de uma dupla fonte: da natureza da expressão afetada ao pensamento da linguagem e da analogia que prevalece entre esta e o mundo real” (HUMBOLDT, 1827, p. 4[13]).

Segundo Marcin Kilarski (2013[14]), essas categorias gramaticais funcionariam em todos os níveis da língua (lexical, morfológico e sintático) como relações universais. Kilarski afirma que o desenvolvimento de gênero seguiria o modelo da experiência e generalização, na combinação da energia (o potencial criativo da língua) com a imaginação, “transferindo para essa língua qualquer coisa que lhe cause uma provável impressão” (HUMBOLDT, 1997 [1828], p. 134[15]).

A hipótese mentalista de Humboldt, tendo uma sua versão adotada no modelo gerativista (CHOMSKY, 1998 [1968][16]) e em outros modelos cognitivistas de língua, assume que o sentido linguístico de gênero só é concretizado em sua criação como categoria gramatical, que contribui para sua função simbólica:

[c]ada língua que adota tal conceito já está, em minha opinião, um passo mais perto da forma pura da língua do que aquela que se contenta com o conceito de vida e ausência de vida, embora o último seja a base do conceito de gênero. Mas o sentido da língua só se mostra dominante quando o sexo das criaturas é transformado no gênero das palavras, quando não há palavra que não tenha sido atribuída a um dos três gêneros de acordo com as várias atitudes da imaginação que formam a língua. [...] Todas as línguas que indicam apenas gêneros naturais e não reconhecem a indicação metafórica de gênero provam que não compreenderam o significado sutil e delicado que a linguagem empresta aos objetos da realidade. (HUMBOLDT, 1997 [1828], p. 134, ênfase nossa[15]).

Essa visão da origem de gênero de Humboldt como categorial linguística alimentou a imaginação das descrições linguísticas do século XIX, como a que Jacob Grimm fez do alemão (GRIMM, 1831[17]), bem como o imaginário da descrição linguística tipológica no século XX.

Seiler (1987[18]) chama nossa atenção para o conceito de ficções linguísticas de Roman Jakobson (1968), para quem a relação entre a estrutura gramatical e seus valores cognitivos e referenciais são marcas indeléveis da língua, e que, segundo o autor, foram uma questão cara para Jakobson:

[o] papel indispensável e obrigatório desempenhado pelos conceitos gramaticais confronta-nos com o intrincado problema da relação entre referencial, valor cognitivo e ficção linguística. O significado dos conceitos gramaticais é realmente questionável ou talvez existam algumas suposições verossímeis subliminares associadas a ele? Até que ponto o pensamento científico pode superar a pressão dos padrões gramaticais? Qualquer que seja a solução para essas questões ainda controversas, certamente há um domínio das atividades verbais em que ‘as regras classificatórias do jogo’ (Sapir 1921) adquirem seu significado mais elevado […] (JAKOBSON, 1968, p. 88).

As categorias gramaticais não refletem tanto “nossa análise intuitiva da realidade, mas nossa capacidade de compor essa realidade em uma variedade de padrões formais” (SAPIR, 1921, p. 125[7]). Para Jakobson, a representação linguística, aqui entendida como categorização gramatical, é uma ficção,4 um ensaio tentativo de classificar o que se depreende por realidade. Essa ficção também é indicativa da invenção, por parte dos pensadores ocidentais, das categorias gramaticais, as quais chamarei de ficção linguística. As diferentes teorias linguísticas procuraram estabelecer uma relação inteligível entre função cognitiva e ficção linguística, assumindo por muitas vezes um papel autônomo da primeira.

O exercício linguístico da rasura das marcas de gênero no que diz respeito à representação dos sujeitos é legítimo sociocultural e, particularmente, linguisticamente, pois seu lançamento é permitido pelos princípios básicos de construção linguística. Esse exercício não é novidade nas línguas do mundo e mostram como as relações sociais estabelecem o funcionamento de diversas estruturas.

2. As marcas dos diferentes corpos na gramática

A ficção linguística tem sustentação na descrição das línguas do mundo não ocidental.5 A clausura linguístico-epistêmica cristã foi mote no processo de evangelização das américas nos séculos XVI e XVII. As relações da hierarquia patriarcal judaico-cristã refletem-se na discussão feita no texto de Cândida Barros e Ruth Monserrat (2019[19]) sobre a utilização nas doutrinas jesuítas, em especial a de José de Anchieta, na catequese indígena. Segundo as autoras, o tupi apresentava dois termos para o referente pai: tuba, que abarcava o pai biológico, tios paternos e primos do pai; e tutyra, usado para tios maternos e primos da mãe.

Barros e Monserrat (2019[19]) ainda mencionam a ciência de Anchieta da distinção entre os termos que representam relações de paternidade. Segundo as autoras, Anchieta observou a distinção entre tuba e tubaete (túba-eté ‘pai verdadeiro’), quando afirma que “[...] na matéria de parentesco nunca usam deste vocábulo etê [...] para declararem quem é seu pai, ou filho verdadeiro, etc, nunca dizem xerubetê, meu pai verdadeiro, senão xeruba xemonhangára meu pai qui me genuit” (ANCHIETA, 1989, p. 79[20]). A passagem de Anchieta demonstra a intenção de isolamento de um pai que gera (monhang significa “fazer”; xeruba xemonhangára “meu pai que me geriu”) das demais modalidades de “pai”, das demais relações familiares das figuras masculinas. Dessa forma, os missionários introduziram o sufixo -eté “verdadeiro” para dar legitimidade ao parentesco paterno, sob a ótica cristã. Assim, nos manuais de catequização, o sufixo foi instaurado para designar o que, aos olhos da igreja, deveriam ser as relações parentais, incluindo a divina: tubaete “pai celestial”, tayraete “irmão verdadeiro”, anama ete “parente de verdade” (BARROS; MONSERRAT, 2019, p. 68[19]). Esse uso do sufixo -eté era estranho aos índios, como bem lembra as autoras, o que não impediu sua inclusão na disciplina eclesiástica. No século XVIII, começam a ser encontrados registros dos neologismos paya “pai” e maya “mãe” em tupi. Barros e Monserrat (2019, p. 69[19]) fazem as seguintes observações sobre a introdução desses neologismos portugueses:

1. O uso do empréstimo do português paya para ‘pai’ ocorreu simultaneamente ao de maya. Este último termo substituiu cy (‘mãe’) nas fontes do século XVIII.

2. A produtividade de paya (assim como de maya) transparece na presença de termos relacionados semanticamente com ‘pai’ (órfão, Adão, Padrinho, etc.). O caso mais exemplar dessa recorrência é o verbete abelha: construído com a raiz ub (eiruba ‘pai do mel’) em 1621, o termo foi modificado, aparecendo como ira paya ou ira maya no século XVIII. [...]

3. Tanto paya como maya foram identificados como próprios da variedade vulgar [do tupi] [...].

Na passagem acima, a associação de paya com um campo semântico associado à cultura cristã, como Adão e padrinho, pode indicar um esforço dos índios à uma separação entre o que a imposição dogmática determinou como relação parental e o que sua cultura original entendia por esse sistema. Essa relação expressa a difundida anterioridade masculina, paternal da língua portuguesa, hoje cortejada como pura marca de neutralidade formal.

As formas de tratamento (pronominais e nominais, cuja referência é estabelecida a partir do falante) do japonês padrão são outro bom exemplo de como as diferentes culturas estabelecem suas relações parentais e de gênero. A norma da língua japonesa possui um complexo sistema de tratamento formado por pronomes, sufixos e nomes baseado em uma hierarquia sociocultural. O emprego das pessoas pronominais no japonês obedece a uma longa série de requisitos hierárquicos. Ilustro abaixo os que têm relação direta com gênero: pronomes pessoais lexicais (não-clíticos).

Figure 1. FIGURA 1 – Pronomes pessoais em japonês padrão Fonte: elaborado pelo autor a partir de Kikuchi (2012[21])

Essa distribuição é um produto histórico da língua japonesa, tendo se perdido suas origens em alguns momentos, mas podendo ser mapeada a partir das diferentes dinastias que dominaram o arquipélago nipônico. Kazuhiko Suzuki e Ôki Hayashi (1972[22]) relatam a existência de um número grande de pronomes durante a dinastia Nara (710-794), cerca de 32, desses restando apenas três na língua atualmente: ore, kare e kimi. Houve ainda um processo de gramaticalização de pronomes demonstrativos na língua, fenômeno recorrente na maioria das línguas do mundo descritas. Segundo Yoshiharu Kobayashi (1970[23]), o pronome de segunda pessoa anata tem registros como demonstrativo na dinastia Kamajura (1192-1333), mas sendo encontrado como pronome pessoal já na dinastia Muromachi (1333-1573). Sua afinidade com as relações sociais, entretanto, pode ser explicada a partir da identificação empática (FUJII, 1970[24]), o que leva as pessoas do discurso a serem traçadas a partir de uma visão exterior às relações discursivas, como se fossem vistos não de seu próprio ponto de vista, mas a partir do ponto de vista de um terceiro, do outro.

Essa mesma estrutura hierárquica familiar é encontrada em igbo, língua níger-congo, falada nas regiões sul e sudeste da Nigéria. Em igbo, a esposa não se refere ao marido pelo nome (seja o primeiro nome ou o de família), mas apenas pelas seguintes expressões:

(1) a) Nna anyi “nosso pai”

b) Nna anyi ukwu “nosso mestre”

c) Nna m “meu pai”

d) Nna m ukwu “meu mestre”

e) Mpa/Papa/Nna X (em que x é o nome da primeira criança nascida)

f) Dee/deede (forma de tratamento para pessoas mais velhas)

g) di m “meu marido”

O marido igbo refere-se à esposa com as seguintes expressões:

(2) a) Nwinga m “minha esposa”

b) Nne “mãe”

c) Mma/Mama/Nne X “mãe de x”

d) Primeiro nome

e) Um assovio específico

f) Onyenga m “minha esposa”

Essas relações sociais do igbo extrapolam os muros familiares. A hierarquia social é representada na atribuição de honoríficos na interlocução. Alguns honoríficos igbo são ilustrados abaixo:

Figure 2. QUADRO 1 – Honoríficos em igbo Fonte: Ugorji (2009[25])

Os honoríficos nwóké e nwânỳ são, na verdade, expressões de gênero, que significam literalmente, “masculino” e “feminino”, respectivamente. Essas formas, juntamente com nwá, são interpretadas como tendo tom paternalista.

Em um trabalho meu com Rafael Almeida (CARVALHO; ALEMIDA, 2018[26]), também partimos do conceito de empatia linguística para examinar a variação dos usos pronominais vocativos de expressões comumente depreciativas para se referir aos membros da comunidade gay, tais como bicha, viado, passiva. O trabalho, de cunho sociolinguístico, objetivava analisar dados de fala de membros da comunidade e como os usos dessas expressões indicavam um grau maior ou menor de filiação à comunidade a partir do grau de empatia empregado nesses usos. Concluímos que quanto mais o falante se sente pertencente à comunidade, mais usos positivos das expressões são realizados, incluindo seus usos como pronomes pessoais de primeira e segunda pessoa.

(3) A bicha1sg foi ver o boy mas ele era uó.6

(4) A bicha2sg tá fazendo o quê tão quietinha?

(5) Eu vim só ver a bicha2sg e ela me trata assim.

(CARVALHO; ALMEIDA, 2018, p. 88[26])

Já os usos menos empáticos, mais depreciativos, ocorriam em enunciados de falantes que não se identificavam com o imaginário no qual percebia a comunidade, mais próximo da percepção de comunidades mais conservadoras e repressoras da sexualidade, como a igreja, chegando a associar seus usos a outros de outras classes sociais, como raça:

(6) [...] eu não ligo se alguém chegar pra mim e chamar de , de binho, de binha tal, mas viado eu acho um palavrado muito ofensivo, né, é como... É como chegar pro negro e chamar de passo preto, como chamar o negro de... comé de... urubu coisa do tipo.

(CARVALHO; ALMEIDA, 2018, p. 92[26])

A indexicalização fórica e suas tentativas de neutralização da referência sexuada de seus referentes nas línguas pode acontecer pelos mais diversos motivos e diferentes contextos históricos. Um exemplo da neutralização pronominal vem do inglês. A língua apresenta em sua história uma tentativa de oferecer opções de neutralização pronominal aos seus falantes. A terceira pessoa do plural (they) é encontrada com referência singular ainda no período medieval, na obra William and the Werewolf (cerca de 1375), segundo o dicionário online Oxford da Língua Inglesa. A possibilidade do uso de uma forma pronominal plural permite leituras não individuadas em línguas que fazem distinção de gênero nessas circunstâncias. Atualmente, o pronome pode ser usado como alternativa aos binários he (ele) e she (ela). Ainda que venha sendo usado na tentativa de referir-se a um "terceiro gênero", seu uso tem remissão à binaridade, uma vez que sua interpretação é de que seu referente pode tanto ser masculino como feminino, não sendo possível capturar uma leitura fora desse espectro. Uma alternativa são as formas pronominais ze,7 que sugiram no intuito de desmarcação de gênero em seu referente.

Essa possibilidade corrente da decisão pronominal nos falantes de língua inglesa (pelo menos em alguns países anglófonos, como o Reino Unido e os Estados Unidos) é uma tentativa de desnaturalizar a associação entre a referência gramatical sexuada, marcada nos elementos pronominais na língua em um contexto em que há uma séria reflexão sobre as (auto)percepções dos corpos. Essa tentativa é também encontrada em línguas como o sueco, que adotou a forma neutra hen (BÄCK; LINDQVIST GUSTAFSSON; SENDEN, 2015[27]), e o finlandês, com a inserção dicionarizada do pronome hän (SENDÉN; BÄCK; LINDQVIST, 2015).

O português brasileiro oferece uma opção cuja circulação ainda é restrita, mas pode ser percebida como a tentativa de dessexualização no tratamento pronominal. Em algumas variedades do português brasileiro, foram encontradas ocorrências de um novo pronome, o êla ([′ela]), que seria a fusão fonética dos pronomes de terceira pessoa masculino (ele - [′eli]) e feminino (ela - [′ɛla]). Os usos de êla, entretanto, diferem do de hen. Êla é usado majoritariamente para se referir à indivíduos transgêneros femininos e é utilizado na maioria das vezes por indivíduos masculinos cisgêneros heterossexuais. Em um outro trabalho que fiz em parceria com Ian Jardim Silva (CARVALHO; SILVA, 2019[28]), apontamos um uso predominante do pronome êla para referir-se a indivíduos socioeconomicamente vulneráveis. Observamos, a partir dos resultados obtidos através das respostas dadas em um inquérito feito eletronicamente, uma gradação quanto à afetividade ligada ao pronome: seu uso está vinculado a contextos em que indivíduos homossexuais cisgêneros e transgêneros femininos desempenham atividades associadas ao feminino, como a dança, apresentando predominantemente representação de afeto negativo quando usado por indivíduos heterossexuais, por um lado, e afeto positivo quando utilizado por indivíduos LGBTQIA+. Em nossa análise, esse fator dificulta a implementação desse pronome na língua, pois o afeto negativo é praticado pelos corpos que compõem a autoridade que decide o que pode e o que não deve fazer parte das instituições sociais, como é o caso da língua, e, portanto, da gramática.

Esses exemplos demonstram que houve em alguns momentos um esforço social e linguístico para a inclusão de formas cujo emprego original não correspondiam ao seu passado linguístico dos povos. O argumento formalista purista8 de que os padrões gramaticais têm volição é contraditório com a própria natureza da língua.

Essa redução dos corpos a padrões ocidentais tradicionais de gênero, no modelo bíblico de homem e mulher, marcados nas gramáticas das línguas ocidentais e ocidentalizadas, como uma herança judaico-cristã na difusão do conhecimento ocidental, é fruto de uma padronização que reproduz uma submissão ao ideal patriarcal, que não o exerce somente aos corpos femininos, mas a tudo que não é reconhecido como o masculino do topo na hierarquia dos corpos.

De volta às relações gramaticais de gênero e associando-a às marcações dos diferentes corpos da contemporaneidade, retorno a discussão iniciada no trabalho de Pereira (2020[29]), sobre o jogo gramatical no sintagma nominal como rasura de gênero, ilustrado no exemplo “eu gosto da Pabllo Vittar”. A indicação de um corpo político que rompe as fronteiras da norma faz parte dessa “contribuição conversacional” (GRICE, 1975[30]). A função dos traços gramaticais, como pessoa, número e gênero, é dar informações mínimas essenciais dos referentes na sentença para que haja compreensão e, mais importante, reconhecimento do referente pelo ouvinte. Para além de um desafio ao padrão, a ruptura com a norma de marcação de gênero é desnaturalizada e passa a ser politizada, aculturada e demarca um lugar de pertencimento, ou, antes, rasura a demarcação do lugar imposto aos corpos.

Exemplos como os de Pereira (2020[29]) também são tratados por mim, já nas considerações finais de um trabalho guiado por outros caminhos, mais formalistas, que permitiu, porém, enxergar essa imposição das marcas de gênero (CARVALHO, 2020[31]). Seguindo uma perspectiva mais tipológica da morfossintaxe de gênero, argumentando em favor de uma ampliação da função dessa categoria no português, deparei-me com exemplos como os ilustrados em (7), (8) e (9), que ocorrem, segundo meu argumento naquele texto, quando um enviesamento do gênero semântico e gramatical gera leituras pragmaticamente especializadas.

(7) A.fem João.masc adora Lady Gaga.

(8) A.fem Danniel.masc é uma.fem safada.fem.

(9) O.masc Carol.fem tá sempre casado. masc.

Além de usos de expressões que sempre foram proferidas como xingamentos e depreciação do ser gay (viado, bicha, baitola), do ser lésbico (sapatão/sapatona, caminhoneira, gobi), do ser transsexual/transgênero/travesti (trava, traveco/traveca), como pronome, invertendo a lógica perversa do “ser” a partir do apoderamento e sentimento de pertencimento dessas/nessas expressões, a comunidade LGBTQIA+ faz uso dessa inversão de concordância nominal de gênero, utilizando determinantes marcados no feminino pareado com nomes masculinos (ex.: 7) ou estabelece concordância no feminino na sentença com um referente masculino (ex.: 8), ou ainda, utilizando determinantes e estabelecendo concordância masculinos com nomes femininos (ex.: 9).

Esse tipo de exemplo não é exclusivo do português. Ele foi documentado em outras línguas, como o grego contemporâneo. Phoevos Panagiotidis (2019[32]) descreve esse fenômeno no grego moderno, que é encontrado tanto com nomes próprios, ilustrado nos exemplos (10) e (11), quanto com nomes comuns animados, ilustrado em (12), (13) e (14).

(10) O Antonis irthe.

det.def.masc Antonis.masc chegou

“Antonis chegou”

(11) I Antonis irthe.

det.def.fem Antonis.masc chegou

“Antonis chegou”

(Pode ser usado como um termo de carinho, pejorativamente)

(12) O vasilias irthe.

det.def.masc rei.masc chegou

“O rei chegou”

(13) I vasilias irthe.

det.def.fem rei.masc chegou

“O rei chegou”

(Pode ser usado como um termo de carinho, pejorativamente)

(14) I vasilisa irthe.

det.def.fem rainha.fem chegou

“A rainha chegou”

(PANAGIOTIDIS, 2019, p. 198[32])

Essa sensação de pertencimento e apoderamento não é algo natural, no entanto. Lembro de minha infância, quando tentava “endurecer” meus modos para esconder o que poderia ser considerado como desvio do comportamento masculino, tão cobrado das crianças pela tradicional família brasileira: “Ande como homem! Fale como homem!” Essa memória também resgata o que eu considerava o pior xingamento: Danniela! O simples uso da versão feminina do meu nome causava um sentimento de inferioridade cultivado sempre na nossa sociedade, no seio familiar. Esse sentimento não era algo pessoal, exclusivo meu. Alguns estudos mostram que a referência feminina, seja por associação à sexualidade feminina propriamente ou por qualquer outro tipo de relação à referência feminil, continua sendo o campo semântico predominante no xingamento nas culturas ocidentais.

Deborah James (1998[33]), em estudo experimental sobre o uso de palavras pejorativas no xingamento e sua referência masculina e feminina, aponta, como resultados do trabalho, que falantes de língua inglesa estadunidenses fazem uma imagem voltada a insinuação à sexualidade na maioria das expressões informadas para xingamento feminino, e voltados à imagem feminina, sexualidade ou ao imaginário homossexual na maioria das expressões informadas para xingamento masculino. O QUADRO 2 sumariza os principais termos e suas categorias na pesquisa de James:

Figure 3. QUADRO 2 – Xingamentos preferenciais para referentes femininos e masculinos em inglês9 Fonte: Adaptado de James (1998, p. 402-403[33]).

Resultados semelhantes foram encontrados em outros trabalhos experimentais (FÄGERSTEN; DALARNA, 2007[34]; ZANELLO; BUKOWITZ; COELHO, 2011[35]). Segundo Eleonora Orlando e Andrés Saab (2020[36]), xingamentos podem ser entendidos como expressões prima facie associadas à expressão de uma atitude de desprezo em relação a um grupo de pessoas identificadas em termos de sua origem ou descendência (spic10), raça (nigger), orientação sexual (bicha) , etnia ou religião (kike11), gênero (puta) etc.

O relatório sobre a situação dos direitos humanos das pessoas LGBTI12 e as diversidades ancestrais no contexto dos povos indígenas em Abya Yala, em sua seção 12, reclama um protagonismo de outras formas de identificação dos corpos não hegemônicos de acordo com as diferentes culturas. Portanto, mesmo a tentativa de imprimir diversidade nas línguas através da dissociação entre gêneros e formas linguísticas pode ser limitadora:

[...] no contexto atual, é também uma forma de violência neocolonial, a forma como indígenas com orientação sexual e identidade de gênero diversas são forçados a aceitar as formas ocidentais de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, transgêneros e intersexo. Ser muxhe (Zapoteca) ou Omeguit (Kuna) não é sinônimo de transgênero; ser Quewa (Quechua) não é sinônimo de gay ou lésbica; ser teví (Guaraní), Nàdleehé (Navajo), winkte (Sioux), hwame (Mojave), Ihamana (Zuni), mexoga (Omahas), achnucek (Aleutas e Kodiaks), he man eh (Cheyen), wínjkte (Lakota), wigunduguid (Kuna), reze abuay (Samuco-Ayoreo); cuña oye mbo cuimba (Guarayo), nawíki ou renéke (Tarahumara) e outras formas de diversidade ancestral não são sinônimos de termos ocidentais, eurocêntricos, capitalistas, pois assumem sexualidade e gênero a partir de uma visão antropocêntrica-solipsista enquanto para a cosmovisão indígena, a sexualidade e os gêneros (podem ser mais de dois) são entendidos apenas na medida em que estão conectados e fazem parte da Mãe Terra, Pachamama e Abya Yala, coexistindo com as várias formas de vida que existem nela onde o ser humano é outra forma de viver, com a peculiaridade de ter o racionamento para ser sustentado no cuidado da vida como parte de uma cadeia da biodiversidade, por isso que a sexualidade e o gênero da visão de mundo indígena não podem e não devem ser desfeitos e isso deve ser respeitado por várias teorias e estudos acadêmicos.13

A epígrafe deste artigo cita um excerto de Eduardo Galeano, extraído de seu livro Voces de nuestro tempo (Vozes do nosso tempo), publicado em 1981, expressa no capítulo intitulado Defensa de la palabra. A escolha desse fragmento foi emblemática do que eu queria discutir, buscando mostrar autenticidade no reclame sobre diferenças. Os diferentes corpos devem poder pensar suas diferenças na língua. Não nego nas presentes páginas o caráter fundamentalmente histórico de uma língua, mas reivindico o lugar do outro no pensamento gramatical, o lugar dos seres naturalizadamente marginais nas ciências da linguagem. Até hoje, por exemplo, os corpos falantes são apenas classificados em masculino e feminino, em homem e mulher, nos estudos sociolinguísticos de base quantitativa. Apenas o fator sexual, chamado atualmente de gênero, parece-me por uma mortificação do passado, é considerado nas estatísticas sociolinguísticas. Reconheço o esforço de trabalhos sociolinguísticos qualitativos de trazerem diferentes corpos ao debate, mas, muitas vezes, esses trabalho são re(des)qualificados como políticos na área. Ainda, mais recentemente, a própria vertente formalista da linguística busca lançar um olhar atualizado sobre o debate de como a língua oferece mecanismo para a neutralização de gênero gramatical (SCHWINDT, 2020[37]).

Como o presente artigo procurou demonstrar, a língua é um trabalho político, como também o é o corpo de seus falantes. Sua relação com cognição, volição e afeto14 não pode ser descartada ou posta em segundo plano em favor de uma neutralidade inexistente, uma objetividade contaminada.

3. Fechação

O título dessa seção de encerramento remete a uma expressão da comunidade LGBTQIA+, fechação, um convite ao extravasamento na diversão, “dando pinta”, não escondendo seus traços efeminados, tão diminuídos pela sociedade patriarcal. Ao mesmo tempo que indica um fechamento, ele convida o leitor a transgredir os limites que são impostos, reverter apagamentos quando feitos de maneira arbitrária e repressora. Meu convite foi à provocação, e essa provocação, por si, é transgressora, como “dar pinta”. Fazendo uma analogia à fala da querida e belíssima Verônica Ribeiro, ilustre travesti baiana, uma quase vizinha em meus tempos de morador da Barra, em Salvador, que viralizou nas mídias sociais: esse artigo aqui é uma grande provocação!15

Quis trazer os corpos travestis para iniciar a finalização dessa discussão, que acredito ser apenas um primeiro passo na direção do amadurecimento do tema, por ser um dos corpos mais negados, diminuídos e violentados, seja nas relações sociais, seja nas linguísticas. Um exemplo disso é a exclusão de suas personae na marcação de gênero masculino à referência travesti, que, em muitos casos, como na imprensa sensacionalista e no discurso conservador cristão, dominantes na atualidade, é feita de forma a violentar sua identidade e lugar de fala e no mundo, impondo uma origem masculina a seus corpos ao referir-se a elas como “o/aquele travesti”, “o/esse traveco”, sem falar nas expressões que as associam ao falo: “mulher de pau”, “mulher com cacete” etc. Essa discussão ultrapassaria os objetivos traçados no início do artigo, mas merece atenção, que é dada, fazendo-se a devida referência, na literatura linguística cuir e em algumas outras vertentes dos estudos da linguagem.

Neste artigo, procurei provocar a reflexão, criando um ambiente crítico a partir de uma revisão histórica, sobre o conceito aristotélico de categoria, fundamental na construção da gramática ocidental que serve de base para a descrição e discussão de toda e qualquer língua e sua constituição enquanto entidade estruturada, e, consequentemente, na sua construção teórica. Busquei isso a partir do questionamento do papel de gênero gramatical como categoria linguística descritiva e de análise. Gênero, como as demais categorias gramaticais, é apenas uma ilusão, ou emprestando de Roman Jackobson, uma ficção técnica, ou, ainda, um delírio de uma lógica genealógica eurocêntrica, nas palavras de Maurice Olender (2012[38]). Essa ilusão, entretanto, ganhou ares de verdade através da história e tornou-se um dogma incorruptível na visão de puristas teóricos. Incluo-me, muitas vezes, no lugar desse purismo e é a partir desse lugar que procurei suscitar essa reflexão.

Minha discussão foi motivada inicialmente pela defesa de teorias linguísticas de uma inflexibilidade nos padrões de realização de algumas categorias semântico-gramaticais, tais como gênero, em algumas línguas, através do fenômeno denominado neutralização de gênero ou desantropomorfização de gênero. Ela foi ampliada à medida que mesmo a padronização tradicional da distribuição dessa categoria na descrição das línguas, como instrumento metodológico, mostrava-se enclausurante. A defesa de uma métrica binária prototípica na marcação linguística, cujos valores masculino/feminino são assumidos como arbitrários na classificação de entidades inanimadas e animadas não-humanas (com ressalvas, nesse caso) em línguas de marcação de gênero, como as indo-europeias, em especial o grego, o latim, o aramaico e o hebraico, línguas que influenciaram o pensamento ocidental seja através da filosofia, seja pelas religiões cristãs, na descrição de línguas desconhecidas pelo europeus na expansão colonialista/imperialista, não deve ser estendida à representação de entidades humanas na contemporaneidade, pelo menos. Isso se dá pela associação desses valores às funções sociais que, por razões que extrapolam minha ciência e, até onde conheço, a própria arqueologia linguística, são ignoradas, foram gramaticalizadas, ou seja, receberam o estatuto de unidade linguística de uma dada língua e passaram a fazer parte de seu instrumental gramatical. Essa tarefa original, se existiu, não pode (nem deve) sujeitar os falantes e suas línguas a um monumento gramatical, nas palavras de Le Goff (2003 [1988][39]), erigido como símbolo de poder de alguns muito poucos. A reivindicação científica da língua pela linguística é válida e justa, mas precisa acompanhar o próprio entendimento de ciência e dos conhecimentos que constroem o fazer e o saber científico.

A atualização conceptual que dá origem à categoria linguística gênero precisa acompanhar as diferenças nas relações que representam e sofrer suas metamorfoses, já há muito refreadas. Como as sociedades caminham em direção a um maior reconhecimento das diferentes identidades, seja de gênero ou de qualquer outra classe social, em suas atitudes e práticas, sua língua também as acompanha nesse trajeto. É dever da linguística e da gramática perceber essa caminhada e acompanhá-la, e jamais criar barreiras para seu curso.

Agradecimentos

Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo apoio no desenvolvimento da pesquisa da qual faz parte o presente trabalho. Agradeço imensamente aos pareceristas Luiz Carlos Schwindt e Celda Maria Gonçalves Morgado, pelas preciosas sugestões que, na medida do possível, foram agregadas ao texto final. Todo e qualquer erro remanescente é de minha total responsabilidade.

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