A luta pelo poder dizer “impeachment” e “golpe” na narrativa midiática do impedimento de Dilma Rousseff
Resumo
O processo de impedimento de Dilma Rousseff foi um dos acontecimentos históricos mais emblemáticos e tensos de nossa história política recente, sendo marcado por uma luta acirrada pelo poder e pelo poder dizer. Diante desse confronto discursivo, surgiu o objetivo central da presente pesquisa, que é analisar os processos de designação desse acontecimento histórico na narrativa midiática do Jornal O Globo e das revistas Veja e Carta Capital, em suas versões online, observando os funcionamentos discursivos que produziram os sentidos de legalidade (efeito parafrástico) e de golpe (efeito metafórico), para o termo “impeachment”. Para tanto, filiamo-nos à teoria da Análise de Discurso Pecheuxtiana, a partir da qual desenvolvemos nossos gestos de análise sobre o funcionamento da memória discursiva nas narrativas midiáticas dos referidos órgãos de imprensa. Para efeitos de conclusão, podemos dizer que a narrativa midiática produzida sobre o evento de 2016 foi determinada por um jogo de forças que acabou institucionalizando o discurso da legalidade, o qual foi construído, essencialmente, por meio do funcionamento da paráfrase discursiva, que (re)atualizou os saberes da FD do impeachment, cristalizados no imaginário social brasileiro, após o processo de impeachment de Collor. Por seu turno, a narrativa midiática do golpe foi construída, essencialmente, por meio do efeito metafórico, que produziu a deriva dos sentidos em torno do significante “impeachment” que, em meio ao jogo de forças existentes, gradativamente, tem se descolado do sentido de legalidade e tem funcionado como paráfrase de golpe.
Introdução
Em 2016, o Brasil foi palco de um dos acontecimentos políticos mais tensos de nossa história recente, no caso, o processo de impedimento de Dilma Vana Rousseff, que foi destituída do poder de Presidente da República, no dia 31 de agosto do referido ano. Processo esse que, desde sua fase inicial, foi marcado por uma acirrada luta em torno de sua designação1 como impeachment/processo legal e como golpe.
Esse processo - cujo início e fim não se pode datar, uma vez que ele se iniciou antes de 2016 e ainda se encontra em curso, apresentando novos desdobramentos com o surgimento de novos fatos que têm feito trabalhar a memória discursiva do golpe e do impeachment/processo legal - foi desencadeado por um conjunto de fatores, entre os quais destaca-se uma grave crise política que se instalou no país, uma longa e devastadora recessão econômica, uma série de escândalos de corrupção envolvendo os principais partidos políticos, inclusive, o Partido dos Trabalhadores (doravante PT) e uma enorme insatisfação e revolta popular.
Além disso, percebe-se que o afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República foi fruto de uma acirrada luta de classes, movida por interesses socioeconômicos distintos, assim como foi marcada por um efeito de polarização político-ideológica que acabou determinando os processos de significação sobre esse acontecimento.
O clima de tensão, de revolta, de protestos, de confronto e até de agressões físicas e morais, que invadiu as ruas e as mídias virtuais em 2016, acabou por despertar meu interesse para esse momento histórico, não só enquanto cidadã brasileira que assumia uma posição nesse conflito e uma posição de classe, mas, principalmente, enquanto pesquisadora e analista do discurso, que se interessava por investigar a determinação histórica na constituição dos sentidos produzidos sobre esse acontecimento e na tomada de posição dos sujeitos nessa luta travada pela palavra e pelo poder.
Aqui, vale destacar que a Análise de Discurso que praticamos2 é a de filiação pecheuxtiana que, segundo Eni Orlandi (2012[1]), é a disciplina que trabalha a opacidade do texto, investigando a presença do político, do simbólico e do ideológico, no funcionamento da linguagem. Isso implica dizer que, de acordo com essa perspectiva teórica, os sentidos não se encontram na literalidade das palavras, mas são (re)produzidos pelos sujeitos, de acordo com suas posições de classe e suas filiações ideológicas.
No tocante à noção de sujeito, é importante dizer que, segundo Grigoletto (2005, p. 99[2]), “O sujeito da AD não é o indivíduo, sujeito empírico, mas o sujeito do discurso, que carrega consigo marcas do social, do ideológico e do histórico e tem a ilusão de ser a fonte do sentido”. Compreensão essa que decorre do princípio básico da teoria pecheuxtiana de que não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia.
É desse lugar teórico, então, que surgiu o objetivo principal do presente artigo3, que é analisar o funcionamento da memória discursiva no processo de designação do acontecimento histórico em tela, observando os modos pelos quais os efeitos de sentido de golpe e de impeachment vêm sendo (re)formulados e postos em circulação na mídia digital.
Vale pontuar que a noção de memória discursiva, no campo teórico da Análise do Discurso, diz respeito ao funcionamento discursivo responsável pelo retorno dos saberes do interdiscurso4 na atualidade do dizer, por meio do qual os efeitos de sentido são (re)produzidos no interior de cada formação discursiva5 (doravante FD). Nos termos de Pêcheux (2015a, p. 46[3]), “a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita”.
Nesse sentido, podemos dizer que a memória discursiva é constituída por ditos anteriores que são retomados no processo discursivo, possibilitando, assim, a produção dos efeitos de sentido no interior de cada FD. Vale reiterar que, de acordo com Pêcheux ([1975]2009[4]), a inscrição do dizer, no espaço da memória, se realiza por meio da repetibilidade e da regularização de sentidos. Em outros termos, dizemos que a repetibilidade, ao promover a regularização de determinados sentidos, é responsável pela construção de efeitos de sentido sobre os sujeitos e sobre os eventos/acontecimentos do mundo, no interior de cada FD. Efeitos esses que passam a ser (re)atualizados no intradiscurso, ou seja, na atualidade de uma dada formulação discursiva, por meio de alguns processos discursivos, entre os quais se encontram a paráfrase, a metáfora e o silenciamento.
No tocante à noção de paráfrase, podemos dizer que, na Análise do Discurso, ela pode ser entendida como um dos funcionamentos responsáveis pelo processo de constituição dos sentidos, uma vez que é por meio dos processos parafrásticos que os sentidos se repetem, constituindo o fio do discurso de uma dada narrativa, o que nos remete à definição pecheuxtiana de formação discursiva “como espaço de reformulação-paráfrase” (PÊCHEUX, [1975]2009, p. 161[4]). No entanto, é importante pontuar que a paráfrase, na perspectiva do discurso, não produz sentidos, apenas, na ordem do mesmo, uma vez que, segundo Pêcheux e Léon (2014[5]), é possível se produzir a diferença, na repetição.
Nesse sentido, podemos dizer que o funcionamento próprio da memória discursiva é restabelecer os implícitos, no presente da enunciação, produzindo, assim, a repetição e, consequentemente, a regularização dos sentidos no interior de cada FD. Entretanto, essa regularização de sentidos pode ser tensionada pelo acontecimento discursivo6, o qual acaba desestabilizando as redes de memória, produzindo a deriva de sentidos, ou seja, produzindo “novas” redes de memória. A respeito desse processo de desregulação dos sentidos no espaço da memória, Pêcheux (2015a, p. 47[3]) afirma que “[...] sob o ‘mesmo’ da material idade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação discursiva... Uma espécie de repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase”.
Com efeito, podemos dizer que o acontecimento novo estabelece um jogo de forças com a memória, através do qual pode acontecer tanto a manutenção da regularização dos sentidos, produzindo a repetição da identidade material do item (efeito parafrástico), quanto a “desregulação” dos sentidos, produzindo a divisão da identidade material (efeito metafórico).
Nesse sentido, vale pontuar que estamos tomando a metáfora como um funcionamento discursivo de substituição de uma palavra por outra, por meio do qual se produz o deslizamento de sentidos. Nos termos de Pêcheux ([1969]2010, p. 96[6]): “Chamaremos efeito metafórico o fenômeno semântico produzido por uma substituição contextual, para lembrar que esse ‘deslizamento de sentido’ entre x e y é constitutivo do ‘sentido’ designado por x e y” (grifos do autor), o que nos leva a pensar que o sujeito do discurso, ao substituir uma palavra por outra, em condições de produção específicas, acaba produzindo o deslize de sentidos entre os termos substituíveis. Deslizamento esse que pode levar a uma ruptura das redes de memória existentes.
Assim sendo, é possível afirmar que, no processo de (re)atualização dos sentidos, no presente da enunciação, a memória discursiva, que funciona reestabelecendo os implícitos, produz comumente a repetição e, consequentemente, a regularização dos sentidos (efeitos parafrásticos); no entanto, mediante o peso de um acontecimento “novo”, ela também pode produzir a desregulação dos sentidos (efeitos metafóricos), o que nos remete ao pensamento pecheuxtiano de que:
[...] uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização...um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos (PÊCHEUX, 2015a, p. 50[3]).
Por fim, vale dizer que, além de funcionar por meio da repetibilidade, que produz tanto regularização quanto a desregulação dos sentidos, a memória discursiva também funciona pelo viés do silenciamento que, segundo Orlandi (2007[7]), é o funcionamento responsável pelo apagamento, embora parcial, dos sentidos indesejados no interior das FD. Isso significa que é no silêncio que os sentidos interditados no interior de uma dada FD habitam, podendo emergir a qualquer momento. Afinal, o silêncio, na perspectiva discursiva, não é da ordem da negação, mas sim da constituição. Nos termos de Orlandi (2007, p. 31[7]), “o silêncio não fala. O silêncio é. Ele significa. Ou melhor: no silêncio, o sentido é”.
Com base nessas noções teóricas, passamos, então, a observar o funcionamento da memória discursiva no processo de designação do evento político de 2016 como impeachment e como golpe, na narrativa midiática da revista Veja, do Jornal O Globo e da revista Carta Capital, em suas versões online,7 analisando os efeitos parafrásticos, os efeitos metafóricos e os efeitos de silenciamento responsáveis pela regularização/desregulação dos efeitos de sentidos no interior de duas FD, a saber: a FD do impeachment e a FD do golpe. Aqui, vale pontuar que a nomeação dessas duas FD é resultado de nossos gestos de análise sobre o modo como as narrativas midiáticas designaram esse acontecimento.
Como seria impossível dar conta de todos os textos jornalísticos (notícias, reportagens, editoriais, entrevistas, artigos de opinião, entre outros) divulgados, nesses sites, sobre o acontecimento político de 2016, e como a Análise do Discurso trabalha no nível da verticalidade dos discursos e não no nível da sua horizontalidade, optamos por selecionar o corpus da pesquisa, que é composto por sequências discursivas recortadas de textos jornalísticos que circularam nesses espaços midiáticos, tendo como referência os três momentos que, a nosso ver, foram determinantes para o desenrolar do processo de destituição de Dilma Rousseff, a saber: a admissibilidade do pedido de afastamento na Câmara dos Deputados, no dia 02 de dezembro de 2015; a votação na referida Casa Legislativa, no dia 17 de abril de 2016; o julgamento de Dilma no Senado, cujo encerramento se deu no dia 31 de agosto de 2016.
Em termos metodológicos, buscamos, a princípio, identificar os saberes regularizados na FD do golpe e na FD do impeachment que retornaram na atualidade do dizer sobre o acontecimento em tela como efeito de memória. Para tanto, selecionamos os enunciados “Impeachment é democracia. Impeachment é constitucional” e “impeachment sem crime é golpe” como sequências discursivas de referência (doravante SDR), a partir das quais foi possível reconhecer a unidade na dispersão dos enunciados que constituem os objetos dos discursos em questão: impeachment e golpe, o que confirma o ponto de vista de que a SDR é “um ponto de referência, a partir do qual o conjunto dos elementos do corpus receberá sua organização” (COURTINE, p. 107-108, 2014, grifos do autor[8]).
Por fim, realizamos nossos gestos analítico-interpretativos em torno das práticas discursivas que circularam nos sites dos órgãos de imprensa mencionados, conforme podemos ver a seguir.
1. A narrativa midiática do afastamento de Dilma Rousseff como impeachment
Em linhas gerais, podemos dizer que a formação discursiva em que se inscreveram os sujeitos favoráveis ao afastamento de Dilma se fundamentou, a princípio8, na naturalização do efeito de sentido de que a presidenta Dilma cometeu crime de reponsabilidade, por meio das pedaladas fiscais e da assinatura dos decretos de crédito suplementar, devendo, pois, ser deposta do poder, por meio de um processo constitucional. Com efeito, o processo de afastamento de Dilma, enquanto referente construído no/pelo discurso, foi nomeado e designado de impeachment/processo legal, atualizando, assim, os sentidos cristalizados na FD do impeachment.
A designação do processo de afastamento de Dilma como impeachment pode ser vista nos enunciados abaixo, constantemente (re)atualizados no interior da referida FD:
Ao analisarmos os enunciados acima, notamos que o sujeito do discurso faz trabalhar a memória que cola o sentido de processo legal ao termo “impeachment”, por meio da mobilização de alguns funcionamentos discursivos de retomada, tais como o implícito, a paráfrase e o silenciamento. Ao dizer “impeachment é democracia! Impeachment é constitucional!”, implicitamente, o sujeito do discurso faz trabalhar o sentido de que Dilma cometeu crime de responsabilidade, produzindo o efeito de paráfrase de que “impeachment com crime é constitucional”, o que fundamenta legalmente a instauração do processo contra a então presidenta.
Aqui, vale pontuar que a necessidade de se dizer “impeachment é democracia! Impeachment é constitucional!” faz ressoar o dito em outro lugar, ou seja, o discurso do sujeito que diz que “impeachment é golpe”, e mais, que é um “golpe contra a democracia”. Saberes esses que são (re)produzidos no interior da FD antagônica, a FD do golpe, e que colocam a legalidade do processo de afastamento de Dilma Rousseff e a própria democracia em questão, conforme apontamos no próximo tópico.
Ainda no tocante à figura acima, podemos dizer que o uso das cores verde e amarelo e de outros símbolos nacionais, como o Hino e a Bandeira Nacional, pelos manifestantes pró-impeachment, funciona como um efeito de memória, uma vez que esses símbolos têm se configurado, ao longo da história, como uma estratégia política de naturalização do caráter patriótico dos movimentos populares em determinados momentos de crise de representatividade política.
Com isso, estamos entendendo que o retorno das cores verde e amarelo e dos símbolos nacionais, nas manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff, funcionam como um efeito de memória, por meio do qual coloca-se em evidência o pretenso patriotismo desse grupo, com vistas a ressaltar a luta anticorrupção e pró-democracia, reforçando, assim, o argumento da constitucionalidade do processo no interior da referida FD. Como o sujeito do discurso, ao colocar determinados sentidos em evidência, acaba apagando outros, notamos que, ao evidenciar o pretenso patriotismo, os sujeitos pró-impeachment silenciam os interesses políticos e a luta de classes que motivaram o processo de impedimento, enfraquecendo, assim, o discurso do golpe.
Ao analisarmos os discursos veiculados no site da revista “Veja” a respeito do processo de impedimento de Dilma Rousseff, percebemos que os enunciados “Impeachment é democracia! Impeachment é constitucional!” servem como base de sustentação da narratividade, por meio da qual esse acontecimento foi designado de impeachment/processo legal. Isso porque esses enunciados, ao serem constantemente (re)atualizados no intradiscurso9 da FD do impeachment, por meio de relações parafrásticas, acabaram produzindo uma rede de sentidos que teceram discursivamente esse evento político como um processo legal, amparado pelo manto da Constituição Federal. Vejamos:
SD1 – Cunha aceita pedido de impeachment de Dilma Rousseff
Presidente da Câmara acatou argumentos da peça apresentada pelos juristas
Hélico Bicudo e Miguel Reale. Seguimento do processo agora terá de ser votado em plenário.
Ao analisarmos a SD110, percebemos que a designação do processo de impedimento de Dilma como impeachment aparece como transparente, ou seja, como um sentido cristalizado. Esse saber universal, produzido como evidência pelo funcionamento ideológico, acaba sendo atualizado no discurso do sujeito jornalista, por meio da ênfase dada à legalidade da admissibilidade do pedido de cassação realizada pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o qual, no dizer do sujeito jornalista, fundamentou-se nos argumentos da peça (acusatória), (re)inscrevendo no fio do discurso o efeito de evidência de que houve cometimento de crime de responsabilidade. E se há crime, o processo é legal.
Nesse sentido, notamos que o enunciado “Presidente da Câmara acatou argumentos da peça apresentada pelos juristas Hélio Bicudo e Miguel Reale” encontra-se em relação de paráfrase com a SDR, uma vez que produz o efeito de sentido de que a abertura do processo foi motivada exclusivamente pelo teor jurídico da denúncia. Com efeito, podemos dizer que, na SD em análise, o processo de impedimento de Dilma é designado de processo legal, atualizando a rede de memória da FD do impeachment como um remédio constitucional, por meio do qual é possível destituir um presidente que cometa crime de responsabilidade, de acordo com os preceitos determinados pela Constituição Federal (GALINDO, 2016[9]).
Vale pontuar, aqui, que o sujeito jornalista, ao colocar em evidência os trâmites do processo, acaba apagando o dito em outro lugar: Cunha age por vingança. Esse dizer, que circula na FD antagônica, remete ao fato de que a admissibilidade do processo de impedimento de Dilma, na Câmara, se deu logo após o anúncio de que a bancada do PT votaria contra Cunha no Conselho Ética11. O esquecimento do dito em outro lugar é um funcionamento discursivo muito produtivo na narrativa midiática, conforme apontamos ao longo de nossas análises, uma vez que se esquece de dizer isso ao dizer aquilo e, assim, vai-se construindo os efeitos de "verdade" tão (in)consistentes que a opinião pública repete sem cessar.
No entanto, como entendemos que não existe unidade de sentido na língua, ou melhor, “não há ritual sem falhas” (PÊCHEUX, 2009, p. 277[4]), é possível dizer que o verbo “acatar”, na SD em análise, acaba inscrevendo o sentido de golpe, no interior da FD do impeachment. Isso se deve ao fato de que, segundo o Dicionário Online de Português12, o verbo “acatar” funciona como sinônimo de “cumprir” e de “obedecer”. Assim, é possível dizer que o sujeito jornalista, ao dizer que Cunha “acatou” os argumentos da defesa, faz ressoar o efeito de sentido de que Cunha, movido por um ressentimento pessoal, não agiu de forma independente e neutra, mas agiu por “obediência” ao que lhe foi imposto por forças superiores, “cumprindo as ordens” da elite política e empresarial que, por ver no instituto do impeachment a possibilidade de voltar ao poder, vinha pressionando-o a “acatar” o pedido de cassação do mandato da presidenta, o que coloca em cena a tese de que o processo era inconstitucional. Assim, é possível dizer que o verbo “acatar” deixa escapar os sentidos produzidos em condições de produção heterogêneas, fazendo ressoar o sentido de golpe, além de colocar em evidência os interesses de classe que impulsionaram o processo de impedimento de Dilma.
Dessa forma, ao longo da narrativa do impeachment, o discurso do golpe acaba sendo deslegitimado pelo sujeito jornalista da Veja, assim como a discussão jurídica em torno da caracterização (ou não) das pedaladas fiscais como crime é, em certa medida, silenciada, conforme podemos notar nas SD13 a seguir:
SD2- Dilma e o PT insistem em dizer que a democracia brasileira sofre um golpe, e que seu impeachment representará uma ruptura institucional. Mas a votação de hoje está imune a qualquer questionamento. O governo teve ampla oportunidade de atacar na Justiça todos os aspectos da tramitação do processo de impeachment na Câmara. Seus argumentos foram analisados pelo Supremo Tribunal Federal, acolhidos em alguns casos, rejeitados na maioria. Disso resultou um rito que já não pode ser questionado (grifo nosso).
SD3 - Dilma, obviamente, repetiu reiteradas vezes que não cometeu crime algum. Mas o relatório do deputado Jovair Arantes, defendendo o contrário, é uma peça poderosa. Pedaladas fiscais e outros atentados à ordem orçamentária da República – os crimes de que Dilma é acusada – não representam, nas palavras de Arantes, “atos de menor gravidade ou mero tecnicismo contábil” (grifo nosso).
Conforme podemos ver, tanto na SD2 quanto na SD3, os saberes da FD do golpe são inscritos na FD do impeachment, porém são formulados na ordem da negação e da refutação. Para tanto, o discurso de golpe e o de inexistência de crime, além de serem marcados como pertencentes a Dilma e ao PT, por meio do uso do discurso indireto, são refutados pelo sujeito do discurso, por meio de argumentos genéricos, os quais (re)atualizam a significação de que o processo é legal, por estar seguindo os trâmites constitucionais e por estar sendo supervisionado pelo STF, sem apresentar argumentos técnico-jurídicos que comprovem a caracterização das pedaladas como crimes de responsabilidade.
Esse efeito de generalização dos crimes que embasaram o processo pode ser percebido no enunciado “Pedaladas fiscais e outros atentados à ordem orçamentária da República – os crimes de que Dilma é acusada – não representam, nas palavras de Arantes, “atos de menor gravidade ou mero tecnicismo contábil”, no qual notamos que a expressão “outros atentados” traz para a cena discursiva não apenas os crimes descritos na peça acusatória, mas todos os crimes que eram atribuídos ao governo petista, no interior da FD do impeachment. E, a partir desse efeito de generalização, o sujeito jornalista acaba saturando o efeito de legalidade do processo, uma vez que, para os sujeitos filiados à FD do impeachment, o efeito de sentido de que há crime(s) praticado(s) pela presidenta Dilma é produzido como evidente pelo efeito ideológico.
A designação do afastamento de Dilma como impeachment, por encontrar respaldo de instituições legitimadoras, como o STF e as Casas Legislativas, retorna no fio do discurso, conforme podemos notar no enunciado: “Mas a votação de hoje está imune a qualquer questionamento”, no qual apaga-se toda e qualquer possibilidade de o sentido ser outro. Para tanto, o sujeito do discurso produz como evidente o efeito de sentido de que a atuação do STF, supervisionando o processo e analisando os recursos da defesa, é inquestionável, do ponto de vista jurídico, apagando, assim, as contradições próprias dessa instituição que, ao longo dos tempos, tem se desgastado publicamente devido às constantes controvérsias nas decisões tomadas por seus ministros.
No tocante à questão do crime de responsabilidade, notamos ainda que a edição dos decretos nem é mencionada na descrição dos possíveis crimes praticados por Dilma, indicando, pois, que os saberes produzidos na FD jurídica sobre o crime de responsabilidade acabam sendo, paulatinamente, diluídos na narrativa midiática do impeachment. Com isso, notamos que os argumentos jurídicos que, inicialmente, foram a tônica da abertura do processo, vão se suavizando até desaparecer, mas a "certeza" do crime, que a narrativa midiática construiu, e o desejo do “Fora Dilma” se sobrepuseram ao longo do processo. Disso decorreu a dificuldade em se travar um diálogo pelo viés da argumentação jurídica, já que o importante do processo não era a comprovação ou não do crime, mas sim "tirar a Dilma" do poder.
Vale pontuar também que a discussão em torno da (in)existência da prática de crime de responsabilidade por parte da presidenta Dilma estava longe de alcançar uma unanimidade, no campo jurídico, ao contrário do que se pretendeu regularizar na FD do impeachment. No caso das pedaladas fiscais, a perícia realizada no Senado reconheceu que Dilma não agiu diretamente no atraso dos repasses de dinheiro aos bancos públicos, fortalecendo, assim, a tese da defesa de que o processo de impedimento não tinha base jurídica, tratando-se, pois, de um golpe travestido de legalidade.
Já no que diz respeito aos decretos de crédito suplementar, os peritos reconheceram a participação direta da presidenta, assim como reconheceram a existência de irregularidade em sua edição, entretanto os mesmos peritos chegaram à conclusão de que a edição dos decretos não feriu a meta fiscal anual. Conclusão essa que, no nosso entendimento, se configura como uma contradição discursivo-jurídica que coloca em questão a tese da constitucionalidade do processo14.
Nesse sentido, reiteramos que o crime que embasou a peça acusatória era alvo de uma série de controvérsias jurídicas que, embora tenham sido tratadas em notícias esporádicas, foram silenciadas ao longo da narratividade que se produziu na FD do impeachment, pelo viés da repetibilidade, conforme podemos notar nas SD15 abaixo, que foram recortadas do editorial publicado no jornal O Globo, no dia 25 de agosto de 2016, já na fase final do julgamento de Dilma no Senado:
SD4 - Não faltam provas para o impeachment de Dilma
Processo chega à fase final, tendo sido dado todo espaço à defesa, mas que não consegue responder, sem deixar dúvidas, às acusações de crimes de responsabilidade
SD5 - O processo de impeachment da presidente afastada, Dilma Rousseff, entra hoje na fase final, sem que o lulopetismo e o advogado da presidente, José Eduardo Cardozo, sejam convincentes ao rebater a acusação de que ela cometeu crimes de responsabilidade no campo fiscal, como definidos pela lei 1.079, de 1950, e estabelecidos na Constituição. E foram muitas as etapas de debates e votações, garantida liberdade absoluta à defesa. E muito menos convence a delirante acusação de que há um “golpe”.
Conforme podemos verificar na SD4, o sujeito jornalista, para (re)produzir o efeito de legalidade do processo, (re)atualiza o efeito de naturalização da existência do crime de responsabilidade. Para tanto, ele atribui um efeito de realidade ao enunciado “não faltam provas para o impeachment”. Esse pretenso efeito de realidade é produzido por meio do silenciamento dos argumentos da defesa que, conforme podemos ver com mais detalhes no próximo tópico, buscou comprovar que Dilma não participou diretamente das pedaladas fiscais, assim como questionou, com embasamento técnico-jurídico, a tese de que a edição dos decretos foi ilegal, indicando, pois, que as provas contra Dilma estavam longe de serem abundantes e indubitáveis, tal como se cristalizou na FD do impeachment.
O silenciamento em torno das alegações da defesa de Dilma também pode ser verificado na SD5, na qual podemos perceber que o sujeito jornalista, além de reiterar a existência dos crimes, citando inclusive a lei 1.079, conhecida como lei do impeachment, silencia e deslegitima a atuação da defesa, durante o processo.
Assim sendo, percebemos que o efeito de evidência da constitucionalidade do processo de impedimento de Dilma Rousseff da SDR é constantemente (re)construído nos discursos da Veja e do Globo, pelo viés do funcionamento da ideologia. Funcionamento esse que se materializa no discurso jornalístico, por meio do silenciamento e das relações parafrásticas entre os enunciados do domínio da memória, do domínio da atualidade e do domínio da antecipação, os quais têm regularizado e atualizado os sentidos produzidos na FD do impeachment. Esses domínios a que nos referimos dizem respeito aos domínios de objetos, a partir dos quais, segundo Courtine (2014[8]), podemos identificar a unidade na dispersão das sequências discursivas em torno de uma SDR, sendo o domínio da memória “constituído por um conjunto de sequências que pré-existem à sdr” (COURTINE, 2014, p. 111[8]), o domínio de atualidade “formado por um conjunto de sequências discursivas que coexistem com a sdr em uma conjuntura histórica determinada” (idem, 2014, p. 112[8]), e o domínio de antecipação “constituído por sequências discursivas que sucedem à SDR (idem, 2014, p. 113, grifos do autor[8]).
Isso implica dizer que a SDR, ao ser reformulada por meio do regime de repetibilidade e do silenciamento, faz trabalhar a memória do passado, por meio do retorno de saberes já ditos em outro lugar e em outra época, assim como projeta a memória do futuro, por meio do efeito de antecipação dos sentidos que poderão se inscrever na memória coletiva do brasileiro.
A figura a seguir resume bem esse processo discursivo de regularização de sentidos no interior da FD do impeachment. Vejamos:
Conforme podemos notar, na figura anterior, defendemos a ideia de que o funcionamento da memória discursiva produz tanto o retorno dos saberes estabilizados no interdiscurso e autorizados pela forma-sujeito da FD do impeachment quanto a regularização dos sentidos no nível do intradiscurso. Processo de regularização esse que, por seu turno, se realiza por meio da repetibilidade e do silenciamento. Ademais, entendemos que, embora as FD, em sua essência sejam heterogêneas, por abrigarem o sentido outro, acabam estabilizando suas redes de memória no campo do mesmo. E, nesse processo de produção dos sentidos, notamos a circularidade dos pré-construídos entre o nível do interdiscurso e o nível do intradiscurso, sendo a memória discursiva a responsável pelo processo de regularização e de deslocamentos de sentidos.
Para efeitos de conclusão dos gestos de análise da narrativa midiática do impeachment, podemos dizer, então, que o impedimento de Dilma Rousseff foi pretensamente designado de impeachment/processo constitucional, por meio do funcionamento da memória discursiva que, entre o repetir e o apagar, discursivizou o acontecimento em tela na direção da legalidade, produzindo tanto a estabilização parafrástica quanto o deslizamento de sentidos, sem a ruptura com a FD do impeachment.
Posto isso, apresentamos a seguir a análise da narrativa midiática da revista Carta Capital, que discursivizou o processo de impedimento de Dilma Rousseff como golpe.
2. A narrativa midiática do afastamento de Dilma Rousseff como golpe
A entrada da designação do instituto do impeachment como golpe, na cena discursiva brasileira, é difícil de ser demarcada no tempo e no espaço. No entanto, é fato que ela passou a produzir eco nas formulações dos sujeitos que se posicionaram contrários ao impedimento de Dilma, em várias materialidades linguístico-discursivas: nos discursos de Dilma Rousseff e de seus aliados políticos, em cartazes de protestos hasteados nas manifestações contrárias ao afastamento, nos comentários publicados nas redes sociais, em notícias divulgadas por jornais e sites de linha editorial considerada progressista, em artigos e livros produzidos no campo das Ciências Sociais, em entrevistas e pronunciamentos de juristas e de ministros do STF, em cursos realizados em Universidades Federais Brasileiras, etc.
A repetibilidade à exaustão da designação do processo de impedimento de Dilma Rousseff como golpe acabou produzindo uma memória do dizer, sobre o acontecimento histórico de 2016, antagônica ao discurso oficial assumido pela grande mídia e pelas instituições responsáveis pela condução do processo - Câmara dos Deputados, Senado e STF - intensificando, assim, a batalha em torno da designação desse acontecimento, nos campos linguístico, político e jurídico.
A designação do afastamento de Dilma como golpe pode ser vista no enunciado a seguir, o qual, inclusive, será utilizado como SDR da FD do golpe. Vejamos:
Ao analisarmos a SDR em tela, percebemos a existência de uma ruptura com a rede de memória da FD do impeachment, uma vez que, ao se acrescentar o adjunto adnonimal “sem crime” ao termo impeachment, quebra-se com a regularidade parafrástica da FD do impeachment, a qual, conforme pontuamos no tópico anterior, se estrutura em torno da ideia de que o impeachment é uma garantia constitucional para proteger a nação dos governantes que cometam crime de responsabilidade, que percam sua governabilidade e que estejam envoltos em crises econômicas e políticas.
Como, no enunciado acima, o adjunto adnominal modifica a natureza do impeachment, atribuindo-lhe uma nova característica, por meio da locução adjetiva “sem crime”, instaura-se uma “nova” rede discursiva de formulações que, por sua vez, faz trabalhar o discurso do golpe. Isso porque o sujeito do discurso inscreve, no intradiscurso, ou seja, no presente da enunciação, o efeito de sentido de que o uso político do instituto do impeachment contra um(a) presidente(a) sem a prática do crime, mesmo seguindo o rito processual previsto na CF, é uma ofensa à ordem democrática brasileira, sendo, pois, designado de golpe.
Nesse sentido, é possível dizer que, no enunciado em análise, a relação entre os termos “impeachment e golpe” é da ordem da metáfora discursiva que, conforme pontuamos anteriormente, é concebida como um funcionamento discursivo de substituição de uma palavra por outra, por meio do qual se produz o deslizamento de sentidos. Deslizamento esse que pode levar a uma ruptura com as redes de memória existentes.
No tocante ao funcionamento metafórico entre os termos “impeachment sem crime” e “golpe”, partimos do pressuposto de que o sujeito do discurso filiado à FD do golpe, ao inscrever no intradiscurso o termo “impeachment”, o faz de outra posição-sujeito, produzindo, assim, a divisão dos sentidos em torno do significante “impeachment”. Com isso, a unidade imaginária do sentido de legalidade, que foi colada ao significante “impeachment” pela regularidade discursiva da FD do impeachment, passa a ser tensionada pelos sentidos produzidos no interior da FD do golpe e, nesse jogo de forças e de disputa pela designação do evento político em tela, o significante impeachment passa a significar de modo diferente.
Aqui, vale ressaltar que, segundo Mariani (2007, p. 69[10]):
[...] o deslocamento dos sentidos, embora fluido e ininterrupto na cadeia do dizer, é necessariamente barrado pelo enlaçamento pontual dos significantes em determinados pontos da cadeia. E esse enlaçamento, uma ancoragem semântica, não se processa indiferentemente, ele tem a ver com a história, com a tensão entre memória e esquecimento, e com a subjetividade.
Com efeito, estamos entendendo que, no processo metafórico, o sujeito do discurso tanto desregula os sentidos que constituem a “ancoragem semântica” do significante quanto produz efeitos de sentido(s) outro(s), inscrevendo na memória do dizer uma “nova” rede de significação para o mesmo significante. Nesse sentido, interessa-nos saber os modos pelos quais o significante “impeachment” passa a significar golpe, na narrativa midiática do golpe, observando as relações (de paráfrase, de metáfora e de silenciamento) que se estabelecem entre os saberes da ordem da memória (sentidos estabilizados na FD do impeachment e na FD do golpe) e da ordem da atualidade (sentidos postos em funcionamento a partir do acontecimento histórico de 2016).
Ao analisarmos os discursos que circularam no site da revista Carta Capital, percebemos que o evento político de 2016, em sua fase inicial, foi nomeado de impeachment devido a um conjunto de fatores, dentre os quais destacamos as relações de forças institucionais que legitimaram o discurso da legalidade, a posição social de jornalista, a formalidade e a complexidade do processo e o efeito de interdição do termo “golpe” produzido pelos sujeitos defensores do processo de afastamento de Dilma como impeachment/processo legal, os quais encontraram o amparo de instituições legitimadoras.
No entanto, no decorrer de nossas análises, percebemos que o processo de impedimento de Dilma, embora tenha sido nomeado de “impeachment”, foi designado16 de golpe, ao longo da narrativa midiática da Carta Capital, corroborando a tese pecheuxtiana de que os sentidos não se encontram na literalidade das palavras, mas são determinados pelas posições ideológicas sustentadas pelo sujeito do saber próprio de cada FD. Isso implica dizer que o termo “impeachment” foi (res)significado no interior da FD do golpe, a partir do acontecimento político de 2016, o que nos remete também ao pensamento de Guimarães (2017[11]) de que a designação é o processo de significação dos nomes no acontecimento de linguagem.
Vejamos, na SD17 a seguir, como se dá esse processo de designação do evento político de 2016 como golpe, na narratividade midiática da Carta Capital, por meio do qual se produziu a divisão de sentidos em torno do termo “impeachment” (efeitos metafóricos):
SD6 - Em retaliação ao PT, Cunha acolhe pedido de impeachment contra Dilma
Dilma Rousseff disse estar indignada com acusação e afirmou que não aceitará qualquer tipo de barganha política
Na SD acima, percebemos que, embora o evento em curso tenha sido nomeado de impeachment, o efeito de sentido de que o processo de afastamento de Dilma não tem base legal ressoa no plano discursivo e no plano linguístico, ao contrário do que vimos nos discursos da Veja e do Globo.
Essa ressonância do sentido de golpe, no plano linguístico, é produzida por meio da inversão sintática do adjunto adverbial “Em retaliação ao PT”, que põe em destaque a finalidade da ação de Cunha: vingar-se do PT; e por meio do uso do verbo “acolher” para descrever a ação de Cunha, que coloca em evidência o efeito de satisfação pessoal de Cunha ao “receber com agrado” o pedido de impedimento de Dilma, produzindo o efeito de sentido de que a tomada de posição de Cunha foi motivada por interesses pessoais, o que caracteriza, no dizer do sujeito do discurso, o desvio de poder e, consequentemente, a nulidade do processo. Nesse sentido, podemos dizer que o adjunto adnominal “Em retaliação ao PT” e o verbo “acolher” funcionam como paráfrases discursivas de “golpe”, uma vez que produzem a ressonância do sentido de ilegalidade.
O efeito de sentido da ilegalidade do processo é reiterado no subtítulo da reportagem, no qual o sujeito jornalista acrescenta a informação de que Dilma “está indignada” com a acusação e “não aceitará qualquer tipo de barganha política”, produzindo, assim, o efeito de evidência de que a então presidenta estava sendo vítima de uma chantagem praticada pelo presidente da Câmara, que condicionou a aceitação do pedido de sua cassação a uma troca de favores, (re)inscrevendo no fio do discurso o efeito de desvio de finalidade na ação de Cunha.
Nesse sentido, percebemos que os termos “impeachment” e “golpe”, devido aos deslizamentos de sentidos produzidos pelo efeito metafórico, passam gradativamente a funcionar como paráfrases discursivas. Disso decorre o enunciado “impeachment sem crime é golpe”, o qual coloca os termos “impeachment sem crime” e “golpe” no campo do mesmo. Vejamos mais algumas SD da narratividade do golpe, no discurso da Carta Capital, a partir das quais é possível identificar esse efeito metafórico:
SD7 - Por volta das 22h, o governo concedeu a derrota. “Os golpistas venceram aqui na Câmara, mas a luta continua, nas ruas e no Senado”, disse o líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE).
SD8 - “Acredito que temos chance de reverter o jogo. Não é possível afastar uma presidenta que não cometeu nenhum crime de responsabilidade. É uma derrota momentânea. A luta está apenas começando, será lenta e gradual. Até porque o vice-presidente não reúne a menor condição de governar o País”, afirmou. “Perdemos porque os golpistas foram mais fortes, comandados por Eduardo Cunha.”
SD9 - Ao justificar os votos pelo impeachment, a imensa maioria dos parlamentares deixou de lado os argumentos jurídicos apresentados no pedido feito pelos juristas Janaína Paschoal, Hélio Bicudo e Miguel Reale Júnior – as pedaladas fiscais e a publicação de decretos orçamentários sem autorização do Congresso. Uma grande proporção dos deputados usaram as famílias e Deus como justificativas para afastar Dilma do poder. Houve também muitas manifestações em favor das cidades e dos estados dos parlamentares.
As SD acima, que foram recortadas da notícia intitulada “Câmara aprova abertura de impeachment de Dilma”, publicada no site da revista Carta Capital, no dia 17 de abril de 2016, trazem para a cena do discurso o sentido de golpe, de forma expressa, conforme podemos notar na SD7, na qual aparece o termo “golpista”, que é usado pelos aliados de Dilma Rousseff para designar os parlamentares que votaram a favor do processo de afastamento da presidenta. No entanto, notamos que esse termo só aparece no discurso direto dos parlamentares da base aliada do governo. O sujeito jornalista continua usando o termo “impeachment” para se referir ao processo em curso, embora faça ressoar o efeito de sentido de golpe no fio do discurso, indicando, assim, que o jogo de forças institucionais travado em torno da designação do evento em tela, nessa fase do processo, era mais favorável ao discurso do impeachment como processo legal.
Outro ponto que merece atenção, no conjunto das SD em análise, é a forma como o sujeito jornalista produz como transparente o efeito de sentido de inexistência do crime, naturalizando o sentido de que o processo é movido por interesses unicamente políticos. Além disso, destacamos o efeito de silenciamento produzido em torno da crise política do governo Dilma Rousseff que, paulatinamente, perdia sua governabilidade, e em torno da discussão jurídica sobre as pedaladas fiscais e da edição dos decretos.
Esse efeito de silenciamento pode ser notado na SD8, na qual o sujeito jornalista, por meio do discurso direto do deputado José Guimarães (PT-CE), líder do governo na Câmara, produz o sentido de que o afastamento não se consumará por duas razões: por não haver crime e porque “o vice-presidente não reúne a menor condição de governar o País”, como se a presidenta Dilma possuísse tais condições na época. Se não há crime, no dizer dos sujeitos inscritos nessa FD, “é impossível afastar uma presidenta” do poder. E, ao categorizar o impedimento como impossível, apaga-se a possibilidade de o sentido ser outro, ou seja, apaga-se a possibilidade da comprovação da prática do crime de responsabilidade, durante o julgamento no Senado.
Entretanto, vale pontuar que o sujeito do discurso, embora produza o sentido de golpe como evidente, acaba sendo apanhado pela equivocidade da língua, produzindo o deslize de sentido, por meio do qual o sentido outro aparece. Esse deslizamento de sentido encontra-se materializado no enunciado “Acredito que temos chance de reverter o jogo”, no qual percebemos que, ao designar o processo de impedimento como um “jogo”, o sujeito coloca em evidência o sentido de que o processo de impeachment é uma luta travada no campo da política, cujo vencedor é aquele que possui mais forças e mais aliados, indicando, pois, que a questão jurídica em torno da caracterização das pedaladas fiscais e da edição dos decretos como crime de responsabilidade, no interior da FD do golpe, também não era a questão central, nessa fase do processo.
Na SD9, notamos que o sujeito jornalista da Carta Capital, para produzir o sentido de golpe como evidente, coloca em destaque a votação dos parlamentares favoráveis ao processo, os quais utilizaram a moralidade religiosa e a família como argumentos para justificar seus votos, ao invés da evidência do crime, expondo, assim, o jogo político que estaria por trás do processo de impedimento de Dilma Rousseff. Isso nos mostra que, enquanto o sujeito do discurso da FD do impeachment apaga os interesses da classe política por trás do processo de Dilma, o sujeito do discurso da FD do golpe os expõe como estratégia de resistência e de legitimação de sua posição-sujeito.
No tocante à relação parafrástica entre os termos “impeachment” e “golpe”, notamos que ela passou a ganhar visibilidade na narrativa midiática do golpe, especialmente, a partir do vazamento dos áudios entre o então senador Romero Jucá e o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado, assim como a partir da divulgação18 das perícias realizadas no Senado.
A partir do vazamento dos áudios entre Jucá e Sérgio Machado, percebemos que a tese do golpe que, até então, vinha sendo construída à margem do discurso oficial, por ser este legitimado pelas instituições democráticas, começa a ganhar força, nos discursos jornalísticos veiculados na mídia alternativa. Isso porque os vazamentos trouxeram à cena do discurso a designação do processo como golpe, descortinando os interesses políticos dos congressistas que apoiavam o processo.
Por sua vez, as perícias realizadas no Senado foram vistas pela defesa como uma prova material da inexistência de crime por parte da presidenta, devido ao fato de os peritos terem concluído que não houve a participação de Dilma nas pedaladas e que os decretos não ofenderam a meta fiscal anual, confirmando, assim, a tese da ilegalidade do processo.
Ainda sobre as perícias, vale ressaltar que nós percebemos um deslocamento na narrativa do golpe, a qual deixa de se fundamentar no argumento de que as pedaladas não se configuram como crime de responsabilidade e passa a se fundamentar na ideia de que Dilma não teve participação no atraso dos repasses ao Banco do Brasil. No tocante ao parecer dos peritos sobre os decretos de crédito suplementar, notamos que o sujeito jornalista, por um lado, dá sustentação ao ponto de vista de que sua edição exigia a autorização dos parlamentares. No entanto, por outro lado, se contrapõe ao ponto de vista de que Dilma era a responsável por eles, uma vez que, de acordo com o próprio parecer dos peritos, Dilma Rousseff não foi alertada pela Secretaria de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento a respeito da incompatibilidade com a meta fiscal ao emitir os decretos, (re)produzindo o efeito de sentido de que, mesmo que os decretos tivessem sido editados de forma irregular (o que não era um ponto de vista consensual entre os órgãos jurídicos competentes, inclusive, tais decretos tinham sido editados por presidentes anteriores), não houve dolo da presidenta na sua edição. Sem o dolo da presidenta, não há, pois, crime de responsabilidade.
Diante disso, podemos dizer que o parecer técnico do Senado é visto pelos sujeitos inscritos na FD do golpe como um documento importante para a legitimação do discurso do golpe, uma vez que ele corrobora, em grande medida, o ponto de vista de que Dilma Rousseff não cometeu crime de responsabilidade, reforçando, assim, a narrativa do golpe.
A seguir apresentamos mais algumas SD, recortadas de uma notícia19 sobre o discurso de Dilma Rousseff no Senado, cujo título é “Estamos a um passo de um verdadeiro golpe de Estado, diz Dilma”, a partir das quais percebemos que o uso do termo “golpe” passa a ganhar maior visibilidade na narrativa midiática da Carta Capital. Vejamos:
SD10 - Ciente de que o processo de impeachment chega à reta final praticamente definido, a presidenta Dilma Rousseff optou por fazer um discurso no Senado menos conciliador aos parlamentares que decidirão sobre seu afastamento e lançou mão de um tom de denúncia contra elites políticas, econômicas e setores da mídia. “Viola-se a democracia e pune-se uma inocente. Estamos a um passo de um verdadeiro golpe de Estado”, disse. Na avaliação de Dilma, o resultado eleitoral de 2014 foi um “rude golpe em setores da elite conservadora brasileira”, que se voltaram contra ela.
SD11 - A partir de então, lembrou Dilma, a possibilidade de impeachment passou a assombrar seu segundo mandato, tornando-se tema central tanto da pauta política quanto jornalística, sem necessariamente poder ser justificado pelos crimes de responsabilidade fiscal dos quais é acusada. “Eu não pratiquei atos ilícitos”, disse. “Dizem que esse processo de impeachment é legítimo porque respeita ritos e prazos. No entanto, para que seja feita justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. O conteúdo importa.”
SD12 - Dilma observou que enquanto Vargas “sofreu uma implacável perseguição” que o levou ao suicídio, JK “foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe” e Jango “superou o golpe do parlamentarismo, mas foi deposto” antes de a ditadura se instaurar em 1964. “Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática”, denunciou.
Conforme podemos notar, o termo “golpe” aparece no título da notícia, indicando, assim, uma certa estabilização da designação do termo “impeachment”, em referência ao processo de impedimento de Dilma, como golpe, na narrativa midiática da Carta Capital. Isso porque o enunciado, embora tenha sido produzido pela presidenta Dilma, coloca em evidência a posição de identificação do sujeito jornalista com o discurso do golpe. Com efeito, reiteramos que, de acordo com nosso ponto de vista, o sujeito do discurso, inscrito na FD do golpe, passa a utilizar o termo “impeachment”, referindo-se ao evento de 2016, como paráfrase de golpe.
Esse processo parafrástico pode ser percebido na SD10, na qual o sujeito jornalista, ao afirmar que “o processo de impeachment chega à reta final praticamente definido”, atualiza o efeito de sentido estabilizado na memória discursiva do golpe de que o processo se tratava de um jogo político, com cartas marcadas, já que a decisão pelo afastamento estava “praticamente” definida. Com efeito, podemos dizer que o enunciado em análise produz a seguinte ressonância de sentido: o impeachment de Dilma já estava definido, antes de seu julgamento, tratando-se, pois, de um golpe.
Na SD11, destacamos que a (re)inscrição do sentido de golpe se dá pela naturalização do efeito de sentido de que o processo de impedimento de Dilma está se realizando sem que haja crime de responsabilidade. Ao dizer que o impeachment era tema central da pauta política e jornalística, “sem necessariamente poder ser justificado pelos crimes de responsabilidade fiscal dos quais é acusada” (itálico nosso), notamos que o sujeito jornalista, que se encontra em relação de identificação com a posição-sujeito da presidenta, atualiza o efeito de sentido de que o processo de impedimento é um golpe articulado pela elite política e econômica, uma vez que não há “necessariamente” a comprovação do crime. Ao utilizar o advérbio “necessariamente”, o sujeito do discurso traz para a cena do discurso a rede de memória que designa o processo de impeachment como legal, apenas, quando ele está fundamentado na comprovação do crime de reponsabilidade, o que não se aplica ao processo de impedimento de Dilma Rousseff. Disso decorre a sua designação como golpe.
Por fim, na SD12, é possível notar o retorno das redes de memória dos golpes de Estado como um funcionamento discursivo de estabilização do processo de designação do evento de 2016 como golpe. Esse retorno encontra-se materializado no discurso da presidenta Dilma que, ao comparar seu governo com os governos de Vargas, de Juscelino Kubitschek (JK) e de João Goulart (Jango), reinscreve, no fio do discurso, o efeito de sentido de que a elite econômica e política, quando se vê ameaçada por governos populistas, tem tomado o poder, por vias inconstitucionais. Esse efeito de memória encontra-se materializado no enunciado: “Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática”. Ao utilizar-se da locução adverbial “mais uma vez”, o sujeito do discurso, produz como evidente a ideia de que as elites brasileiras, em 2016, repetiram a estratégia golpista de tomar o poder, sem o crivo das urnas.
Com base nisso, podemos dizer que o sujeito jornalista da carta Capital, entre o repetir, o contradizer e o silenciar, discursivizou o evento na direção da inconstitucionalidade, conforme podemos notar na figura abaixo:
Analisando a figura acima, percebemos que, a partir da SDR, foi possível identificarmos os saberes que, no processo discursivo, acabaram designando o impedimento de Dilma Rousseff, enquanto referente discursivo, como golpe. Aqui, vale pontuar que, para designar o evento em tela de golpe, o sujeito do discurso acabou articulando os saberes do domínio da memória, da atualidade e da antecipação. Com isso, os sentidos regularizados no interior da FD do golpe (domínio da memória) acabaram sendo (re)atualizados no acontecimento do dizer (domínio da atualidade) e abrindo uma latência de futuro (domínio de antecipação) e, nesse entrelaçamento, os saberes do interdiscurso, autorizados pela forma-sujeito da FD do golpe, retornaram no intradiscurso produzindo a desregulação da rede de memória do impeachment como processo legal, o que vem implicando no desenlace entre o significante impeachment e o sentido de legalidade (efeito metafórico).
Assim sendo, é possível dizer que o processo de impedimento de Dilma, em sua fase inicial, foi nomeado de “impeachment”, na narrativa midiática da Carta Capital, atualizando, em certa medida, a memória do dizer desse nome que o caracteriza como processo constitucional, o que segundo Mariani (2007[10]) representa o enlaçamento pontual do significante em um determinado ponto da cadeia. No entanto, notamos que, a cada nova inscrição no acontecimento do dizer, o termo impeachment foi sendo designado como um processo de destituição sem a existência/comprovação do crime de responsabilidade. E, nesse processo de deslizamentos, o termo “impeachment” passou a significar golpe, por meio do funcionamento metafórico, o que nos remete à afirmação de Pêcheux (2015b, p. 47[12]) de que “sob o ‘mesmo’ da material idade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação discursiva... Uma espécie de repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase”.
3. Considerações finais
Com base na análise realizada sobre o funcionamento da memória discursiva nas narrativas midiáticas que designaram o evento político de 2016 como impeachment/processo legal e como golpe, nos deparamos com alguns efeitos de conclusão.
No que diz respeito à narrativa midiática do impeachment, percebemos que, no início do processo, o efeito de legalidade se sustentou na naturalização do cometimento de crime de responsabilidade por parte da presidenta Dilma Rousseff. Efeito de sentido esse que, por ser legitimado por importantes instituições democráticas, tais como a grande mídia, as casas legislativas, a OAB, a procuradoria Geral da União e o STF, acabou sendo produzido como efeito de realidade, nas práticas discursivas midiáticas da Veja e do Globo, essencialmente, por meio do funcionamento da paráfrase discursiva e do silenciamento: o primeiro responsável pela (re)atualização dos saberes do interdiscurso regularizados na FD do impeachment e o segundo responsável pelo efeito de silenciamento dos sentidos produzidos no interior da FD do golpe.
Outro efeito de conclusão que pode ser apontado a partir do nosso gesto de interpretação sobre a narrativa do impeachment é que, ao longo do processo, o efeito de sentido de que Dilma Rousseff praticou crime de responsabilidade acabou se diluindo na narrativa midiática e o processo passou a ser designado de impeachment, por seguir os ritos processuais e ser supervisionado pelo STF, o que acabou produzindo deslizes de sentido em torno da designação do termo “impeachment”, sem rupturas com a forma-sujeito da FD do impeachment. Desse modo, chegamos à conclusão de que, no interior das práticas discursivas da Veja e do Globo, novos sentidos foram sendo colados ao termo impeachment a cada nova enunciação, o que acabou sustentando o efeito de legalidade do processo e legitimando o discurso do impeachment/processo legal.
No que diz respeito ao crime de responsabilidade, percebemos que ele passou a figurar em segundo plano, ao longo da narrativa do impeachment (se é que, em algum momento, o crime foi a questão central dos discursos pró-impeachment). A diluição da discussão sobre a existência do crime de responsabilidade, no nosso entendimento, se deveu ao conjunto de indicativos políticos (vazamentos de áudio do senador Romero Jucá) e de contradições jurídicas (perícias no Senado) que acabaram enfraquecendo a tese da acusação de que o processo tinha uma base jurídica sólida.
Quanto ao funcionamento da memória discursiva no processo de designação do impedimento de Dilma como golpe, entendemos que ele se deu, essencialmente, por meio de três processos discursivos: a metáfora, a paráfrase e o silenciamento.
O efeito metafórico que, na narrativa midiática do golpe, se deu por meio da substituição do significante “impeachment” por golpe, acabou produzindo a divisão dos sentidos em torno do termo “impeachment”. Com isso, notamos tanto a desregulação dos sentidos que constituem a “ancoragem semântica” do significante impeachment como processo legal quanto a estabilização de uma “nova” rede de significação, na memória do dizer sobre o impedimento de Dilma Rousseff, a partir da qual o significante “impeachment” passou a funcionar como paráfrase de golpe.
Por fim, percebemos que a inscrição do efeito de sentido de golpe na narrativa midiática da Carta Capital foi feita no domínio da antecipação, ou seja, como uma memória do futuro, a qual se confirmaria a partir do momento em que os parlamentares consolidassem o afastamento definitivo de Dilma Rousseff. Como, ao longo do processo, surgiram indícios jurídico-políticos que fragilizaram, em grande medida, a tese da acusação, notamos que a designação do evento como golpe passou a se estabilizar na narrativa midiática desse órgão de imprensa, o que nos leva a concluir que o termo “impeachment”, paulatinamente, passou a funcionar como paráfrase de golpe.
Os indícios jurídicos que surgiram durante o processo dizem respeito ao conjunto de provas levantadas pela defesa de Dilma Rousseff e confirmadas pela perícia realizada pelo Senado, por meio da qual os peritos concluíram que as pedaladas se configuraram como crime de responsabilidade, porém a ex-presidenta não teve participação nelas, assim como concluíram que a edição dos decretos foi ilegal, mas não feriu a meta fiscal. Sem o dolo da presidenta, no caso das pedaladas, e sem o descumprimento da meta fiscal, no caso dos decretos, o processo de impedimento de Dilma acabou perdendo seu embasamento jurídico; por seu turno, os indicativos políticos dizem respeito aos vazamentos de áudios do Senador Romero Jucá, os quais indicaram os interesses dos políticos que viam, no processo de impedimento de Dilma Rousseff, uma forma de “estancar a sangria”, fazendo referência às investigações da Lava Jato, assim como indicaram que o processo fazia parte de um acordo nacional “com o supremo com tudo”.
Levando em consideração esse conjunto de indicativos jurídico-políticos que, no nosso entendimento, tem legitimado muitos dos efeitos de sentidos produzidos no interior da FD do golpe, é possível dizer, sim, que o processo de destituição de Dilma Rousseff tratou-se de um golpe jurídico-midiático e parlamentar, ou melhor, tratou-se de um neogolpe, termo cunhado por Monteiro (2018[13]) para designar as novas formas de deposição presidencial surgidas após a redemocratização iniciada em 1980, especialmente na América Latina. Nos termos do autor, o neogolpe é “uma forma de destituição complexa, relativamente nova na literatura política, que tem como principal característica a ausência do uso da força e a aparente manutenção da ordem institucional, por meio de um estrito, porém deturpado, respeito ao rito constitucional” (MONTEIRO, 2018, p. 61[13]).
Vale pontuar, aqui, que a designação do impedimento de Dilma Rousseff como golpe encontra ressonância em discursos de muitos dos atores políticos que patrocinaram o golpe, dentre os quais encontra-se o vice-presidente, Michel Temer, que, em discurso proferido para empresários e investidores nos Estados Unidos20, no dia 21 de setembro de 2016, afirmou que Dilma sofreu impeachment porque rejeitou o projeto neoliberal, confirmando que a motivação do processo era política e não jurídica. O efeito de sentido de golpe volta a encontrar eco no discurso de Temer, no dia 16 de setembro de 2019, proferido em uma entrevista dada ao programa Roda Viva21, na qual o ex-presidente afirmou “O pessoal dizia ‘o temer é golpista’ e que eu teria apoiado o golpe. Diferente disso, eu jamais apoiei ou fiz empenho pelo golpe”.
Diante disso, é possível dizer que a designação do impedimento de Dilma como golpe é um gesto de resistência de classe, e mais, da classe trabalhadora que, desde o afastamento definitivo de Dilma Rousseff, tem sofrido os efeitos da política neoliberal, implementada no governo Temer e consolidada no governo Bolsonaro, a qual tem se sustentado, essencialmente, na lógica perversa da privatização, da precarização dos serviços públicos e do trabalho, e do ataque às políticas públicas e aos direitos trabalhistas e previdenciários.
Portanto, entendemos que o golpe de 2016 difere dos golpes de Estado tradicionais, no tocante ao rito processual; todavia, em sua essência, continua igual, uma vez que, ao compararmos o golpe de 2016 com o golpe de 1964, é possível dizer que, ressalvadas as suas diferenças, os dois processos foram patrocinados pelas elites política, econômica e midiática que, em meio à crise, articularam-se para tomar o poder e implementar o projeto de governo antissocial, o que nos remete à citação de Marx que, ao analisar o ponto de vista de Hegel sobre a repetição da história afirma: “Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” (MARX, 2011, p. 25[14]).
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