A necessária integração entre alfabetização e letramento na aprendizagem inicial da língua escrita

Vicente de Souza Cardoso Jr.

Resumo

Na conferência Alfabetização e Letramento – TeoriaS e PráticaS, que integrou a programação do evento Abralin ao Vivo – Linguists Online, a professora Magda Soares apresenta a concepção de alfabetização e letramento que tem orientado o trabalho na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental na bem-sucedida experiência do município de Lagoa Santa (MG). Esta resenha apresenta aspectos fundamentais dessa concepção, que, segundo Soares, é centrada na orientação do processo de aprendizagem da língua escrita pela criança, com atenção a seu desenvolvimento cognitivo e linguístico. A conferencista apresenta algumas das principais teorias psicológicas e linguísticas que oferecem evidências científicas importantes para a alfabetização e o letramento, defendendo que esses processos sejam sempre integrados. Algumas dessas teorias são recuperadas nesta resenha, que também destaca divergências entre a concepção apresentada por Magda Soares e a que é proposta pela atual Política Nacional de Alfabetização do governo federal.

Texto

Refletir sobre o valor das conjunções “e” presentes no título de uma conferência destinada a linguistas e a professores de língua é uma boa maneira de lembrar-nos que o sentido não é construído apenas nos usos ditos espontâneos da língua, mas também em sua análise. Com esse gesto, a professora Magda Soares[1] deu início à sua apresentação intitulada Alfabetização e Letramento – TeoriaS e PráticaS, no dia de encerramento do evento Abralin ao Vivo – Linguists Online, 31 de julho de 2020, após três meses de programação diária.

Quando a conferencista destaca o papel da primeira conjunção aditiva, convoca-nos a compreender “alfabetização” e “letramento” como processos que “andam juntos”, ou, ainda, como parte de um mesmo processo – a aprendizagem inicial da língua escrita. Soares também explicita o sentido em que nos convida a pensar a relação entre “teoriaS” e “práticaS”: “não é ‘teorias aplicadas às práticas’, nem ‘práticas apoiadas em teorias’ – são teorias e práticas somadas, interagindo”. Os plurais grafados em maiúscula também serão significativos ao longo da conferência.

Desde o início, Magda Soares ressalta que a concepção de alfabetização e letramento que apresenta é resultado de uma construção coletiva, que decorre justamente das interações entre teorias e práticas. Dois espaços em especial têm possibilitado essas interações no trabalho da pesquisadora:

  • a rede municipal de ensino de Lagoa Santa (MG), onde atua como voluntária há 12 anos, coordenando o Núcleo de Alfabetização e Letramento, que conta com um professor representante de cada escola da rede;

  • o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação da UFMG, fundado em 1990 a partir da pesquisa Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento, lançada por Soares nos anos 1980 e ainda em andamento (coordenada hoje por Francisca Maciel, da FaE/UFMG).

Outro marco do trabalho de Soares é a publicação de Alfabetização: a questão dos métodos (SOARES, 2016[2]), obra vencedora do Prêmio Jabuti em 2017 como Livro do Ano de Não-Ficção, em que a autora se debruça sobre os principais estudos do campo produzidos internacionalmente. Com base em seu trabalho de referência na área, a pesquisadora adverte: “Nós temos feito repetidamente a pergunta: qual é o método melhor? A pergunta não é essa. Essa pergunta é a pergunta errada.” E propõe, como a pergunta certa, a seguinte: “como devemos orientar o processo de aprendizagem do sistema de escrita alfabético e de habilidades de seu uso, respeitando as evidências científicas que nos dão as teorias do desenvolvimento cognitivo e linguístico da criança?”. Nessa mudança, o foco deixa de ser no ensino, voltando-se para a orientação do processo de aprendizagem da criança.

Ainda para situar a concepção apresentada, é importante mencionar outra a que ela se opõe: “aquilo que nós construímos como uma concepção de alfabetização e letramento diverge fundamentalmente da assumida pelo plano nacional de alfabetização que o governo atual está propondo”, afirma Soares. Para compreender essa divergência, duas noções da Política Nacional de Alfabetização – PNA (BRASIL, 2019[3]) devem ser destacadas. Primeiro, a compreensão do sistema alfabético como um código. “Se alguém é alfabetizado, significa que é capaz de decodificar e codificar qualquer palavra em sua língua.” (BRASIL, 2019, p. 19[3]). Segundo, a proposta para o ensino desse código, com ênfase na “instrução fônica sistemática” (BRASIL, 2019, p. 16[3]), “de forma explícita e sistemática, numa ordem que deriva do mais simples para o mais complexo” (BRASIL, 2019, p. 18[3]).

A política acima – à qual, lembremos, a conferencista se opõe – recomenda o ensino do princípio alfabético com foco em estratégias de codificação/decodificação, ao passo que Magda Soares defende que se oriente a criança na aprendizagem desse princípio como um sistema de representação. Uma diferença fundamental está em considerar os conceitos de escrita que a criança é capaz de construir em cada momento de seu desenvolvimento cognitivo e linguístico. Nesse sentido, são relevantes as teorias que indicam as fases desse desenvolvimento. Soares destaca estudos de Vygotsky (1935[4]) e Luria (1929[5]), sobre pré-história da escrita; de Read (1970[6]) e Bissex (1980[7]), sobre escritas inventadas; de Gentry (1982), sobre estágios de desenvolvimento; de Frith (1985[8]) e Ehri (1997[9]), sobre fases de desenvolvimento da leitura; e, por fim, de Ferreiro e Teberosky (1986[10]), sobre a psicogênese da língua escrita.

Entre esses estudos, o último é o de maior influência no campo da alfabetização no Brasil. Como Soares observa, sua relevância tem relação com o fato de que “põe o foco na criança, e não propriamente no sistema – é a criança na interação com o sistema alfabético”. Na conferência, Soares explicou como as fases de conceitualização da escrita descritas pela teoria psicogenética (garatuja; escrita com letras; silábica sem valor sonoro; silábica com valor sonoro; silábico-alfabética; alfabética; e ortográfica) têm sido articuladas às práticas de alfabetização e letramento na rede de ensino de Lagoa Santa.

E por que é possível considerar as fases da teoria psicogenética como uma evidência científica relevante para a alfabetização em língua portuguesa? Para Soares, pelo fato de a pesquisa ter sido “replicada e comprovada em línguas de ortografias transparentes, ou próximas da transparência”, como o espanhol (idioma original da pesquisa), o catalão, o italiano e o português, tanto o brasileiro como o europeu. Em línguas de ortografia transparente, as sílabas são bem demarcadas e há consistência na correspondência entre fonemas e grafemas – em contraposição, quanto maior a opacidade da ortografia de uma língua, menos essas características serão observadas. Aqui, outra diferença em relação à proposta do governo federal é marcada: a PNA é fortemente baseada em um estudo (NATIONAL READING PANEL, 2000[11]) sobre alfabetização em língua inglesa, cuja ortografia “é sempre indicada como uma das mais opacas”, afirma Soares. Além disso, a conferencista também considera o estudo desatualizado, mesmo nos EUA, onde foi realizado, e também parcial – “o Reading Panel chegou à conclusão que o melhor era o método fônico, embora outros métodos não tenham sido estudados”.

Outro ponto da divergência fundamental entre as duas concepções: a PNA postula a pronúncia de fonemas como prática essencial do processo de alfabetização, o que, segundo Soares, contraria teorias linguísticas: “é uma evidência científica da Fonologia que os fonemas não são pronunciáveis. Eles expressam uma relação linguística abstrata. Não é possível pronunciar um fonema, a não ser as vogais (‘a’, ‘e’, ‘i’, ‘o’, ‘u’), assim mesmo, com diferenças entre /a/, /ã/ etc.”. Neste ponto, a conferencista faz uma interessante comparação: essencialmente, a criança identifica fonemas da mesma forma como são feitas as descrições fonológicas das línguas. Em resumo, tanto para a criança quanto para o linguista, “dois sons são identificados como dois fonemas quando estão em contraste e oposição em palavras com significados diferentes”. Por exemplo, ‘bata’ e ‘mata’, “duas palavras que se distinguem oralmente apenas por sons situados na mesma posição na cadeia sonora”. Segundo Soares, a partir do momento em que a conceitualização de escrita da criança corresponde à fase “silábica sem valor sonoro”, o professor de alfabetização irá fundamentalmente “trabalhar com contrastes e oposições, para que a criança chegue à consciência grafofonêmica, e aí possa aprender sistematicamente, como quer o método fônico, e explicitamente o conhecimento das relações fonema-grafema”.

Esperar o desenvolvimento da consciência grafofonêmica para depois investir no processo de letramento é um erro grave, afirma a conferencista. Segundo Soares, as teorias da Linguística Textual, do Discurso e dos Gêneros, assim como as práticas vivenciadas em Lagoa Santa, oferecem evidências de que o desenvolvimento cognitivo e linguístico da criança permite e favorece o trabalho com textos reais desde a Educação Infantil, o que está contemplado nas metas da rede. Como exemplo, apresenta o quadro das “habilidades de leitura e interpretação no ciclo de alfabetização e letramento”, que, na pré-escola, incluem “relacionar texto e ilustrações” e “incorporar ao vocabulário novas palavras encontradas em textos”, entre outras. É importante mencionar que as metas do município – tanto de alfabetização quanto de letramento – são construídas a partir das habilidades que se verifica que as crianças daquela mesma etapa educacional desenvolveram em anos anteriores. Com isso, a conferencista enfatiza que a concepção de alfabetização e letramento que apresenta, além de construída coletivamente, é aberta à atualização.

Somada às reflexões sobre teorias e práticas, uma importante lição da conferência de Magda Soares vem do uso da língua. A pesquisadora é uma das principais responsáveis pela introdução do termo “letramento” no Brasil. Sua obra é marcada pela reiterada afirmação da necessidade de integrar a alfabetização e o letramento. Após décadas contribuindo para que os dois termos tenham cada um seu espaço na língua, o trabalho mais recente de Magda Soares nos convida a explorá-los também de outro modo. E até nos instiga a pensar nos limites do sentido de uma adição pela sintaxe: afinal, em “alfabetização e letramento”, continua havendo palavras distintas, portanto, uma separação linguística dos conceitos. É aí que desponta a intimidade com o objeto de quem se dedica com tanto rigor e entusiasmo a estudá-lo. “Quando as pessoas perguntam: qual é o método que vocês usam em Lagoa Santa? Nós não usamos um método! Se quiser que chame um método, nós alfaletramos, nós usamos o alfaletrar, que é alfabetizar e letrar ao mesmo tempo.”

Referências

ALFABETIZAÇÃO e Letramento – TeoriaS e PráticaS. Conferência apresentada por Magda Soares [s.l., s.n.], 2020, 1 vídeo (2h 26min 15s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UnkEuHpxJPs. Aces-so em: 03 ago. 2020.

BISSEX, G. L. Gnys at wrk: a child learns to write and read. Cambridge: Harvard University Press, 1980. 223p.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. PNA: Política Nacional de Alfabetização. Brasília: MEC, Sealf, 2019. 54p. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/images/banners/caderno_pna_final.pdf. Acesso em: 03 ago. 2020.

EHRI, L. Learning to read and learning to spell are one and the same, almost. In: PERFETTI, C.; RIEBEN, L.; FAYOL, M. (org.). Learning to spell: Research, theory, and practice across languages. Mahwah: Erlbaum, 1997. p. 237-269.

FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Tradução: Diana Myriam Lichtenstein et al. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986. 284p.

FRITH, Uta. Beneath the surface of developmental dyslexia. In: PATTERSON, K. E.; MARSHALL, J. C.; COLTHEART, M. (eds.). Surface dys-lexia: neuropsychological and cognitive analyses of phonological reading. London: Lawrence Erlbaum, 1985. p. 301-330.

LURIA, A. R. O desenvolvimento da escrita na criança. In: VYGOTSKY, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. Tradução: Maria da Penha Villalobos. São Paulo: Ícone: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. p. 103-117. Original de 1929.

NATIONAL READING PANEL. Teaching children to read: an evidence-based assessment of the scientific research literature on reading and its implications for reading instruction. Washington: National Institute of Child Health and Human Development, 2000. Dis-ponível em: https://www.nichd.nih.gov/sites/default/files/publications/pubs/nrp/Documents/report.pdf. Acesso em: 12 ago. 2020.

READ, W. C. Children's perceptions of the sounds of English: phonology from three to six. 1970. 464 f. Tese de Doutorado. Harvard Gradua-te School of Education, Harvard University, Cambridge, 1970.

SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2016. 384p.

VYGOTSKY, L. S. A pré-história da língua escrita. In: VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. Tradução: José Cipolla Neto et al. São Paulo: Martins Fontes, 1984. p. 119-134. Original de 1935, publicação póstuma.