Na conferência
At the lecture
Refletir sobre o valor das conjunções “e” presentes no título de uma conferência destinada a linguistas e a professores de língua é uma boa maneira de lembrar-nos que o sentido não é construído apenas nos usos ditos espontâneos da língua, mas também em sua análise. Com esse gesto, a professora Magda Soares
Quando a conferencista destaca o papel da primeira conjunção aditiva, convoca-nos a compreender “alfabetização” e “letramento” como processos que “andam juntos”, ou, ainda, como parte de um mesmo processo – a aprendizagem inicial da língua escrita. Soares também explicita o sentido em que nos convida a pensar a relação entre “teoriaS” e “práticaS”: “não é ‘teorias aplicadas às práticas’, nem ‘práticas apoiadas em teorias’ – são teorias e práticas somadas, interagindo”. Os plurais grafados em maiúscula também serão significativos ao longo da conferência.
Desde o início, Magda Soares ressalta que a concepção de alfabetização e letramento que apresenta é resultado de uma construção coletiva, que decorre justamente das interações entre teorias e práticas. Dois espaços em especial têm possibilitado essas interações no trabalho da pesquisadora:
a rede municipal de ensino de Lagoa Santa (MG), onde atua como voluntária há 12 anos, coordenando o Núcleo de Alfabetização e Letramento, que conta com um professor representante de cada escola da rede;
o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação da UFMG, fundado em 1990 a partir da pesquisa
Outro marco do trabalho de Soares é a publicação de
Ainda para situar a concepção apresentada, é importante mencionar outra a que ela se opõe: “aquilo que nós construímos como uma concepção de alfabetização e letramento diverge fundamentalmente da assumida pelo plano nacional de alfabetização que o governo atual está propondo”, afirma Soares. Para compreender essa divergência, duas noções da Política Nacional de Alfabetização – PNA (BRASIL, 2019
A política acima – à qual, lembremos, a conferencista se opõe – recomenda o ensino do princípio alfabético com foco em estratégias de codificação/decodificação, ao passo que Magda Soares defende que se oriente a criança na aprendizagem desse princípio como um sistema de representação. Uma diferença fundamental está em considerar os conceitos de escrita que a criança é capaz de construir em cada momento de seu desenvolvimento cognitivo e linguístico. Nesse sentido, são relevantes as teorias que indicam as fases desse desenvolvimento. Soares destaca estudos de Vygotsky (1935
Entre esses estudos, o último é o de maior influência no campo da alfabetização no Brasil. Como Soares observa, sua relevância tem relação com o fato de que “põe o foco na criança, e não propriamente no sistema – é a criança na interação com o sistema alfabético”. Na conferência, Soares explicou como as fases de conceitualização da escrita descritas pela teoria psicogenética (garatuja; escrita com letras; silábica sem valor sonoro; silábica com valor sonoro; silábico-alfabética; alfabética; e ortográfica) têm sido articuladas às práticas de alfabetização e letramento na rede de ensino de Lagoa Santa.
E por que é possível considerar as fases da teoria psicogenética como uma evidência científica relevante para a alfabetização em língua portuguesa? Para Soares, pelo fato de a pesquisa ter sido “replicada e comprovada em línguas de ortografias transparentes, ou próximas da transparência”, como o espanhol (idioma original da pesquisa), o catalão, o italiano e o português, tanto o brasileiro como o europeu. Em línguas de ortografia transparente, as sílabas são bem demarcadas e há consistência na correspondência entre fonemas e grafemas – em contraposição, quanto maior a opacidade da ortografia de uma língua, menos essas características serão observadas. Aqui, outra diferença em relação à proposta do governo federal é marcada: a PNA é fortemente baseada em um estudo (NATIONAL READING PANEL, 2000
Outro ponto da divergência fundamental entre as duas concepções: a PNA postula a pronúncia de fonemas como prática essencial do processo de alfabetização, o que, segundo Soares, contraria teorias linguísticas: “é uma evidência científica da Fonologia que os fonemas não são pronunciáveis. Eles expressam uma relação linguística abstrata. Não é possível pronunciar um fonema, a não ser as vogais (‘a’, ‘e’, ‘i’, ‘o’, ‘u’), assim mesmo, com diferenças entre /a/, /ã/ etc.”. Neste ponto, a conferencista faz uma interessante comparação: essencialmente, a criança identifica fonemas da mesma forma como são feitas as descrições fonológicas das línguas. Em resumo, tanto para a criança quanto para o linguista, “dois sons são identificados como dois fonemas quando estão em contraste e oposição em palavras com significados diferentes”. Por exemplo, ‘bata’ e ‘mata’, “duas palavras que se distinguem oralmente apenas por sons situados na mesma posição na cadeia sonora”. Segundo Soares, a partir do momento em que a conceitualização de escrita da criança corresponde à fase “silábica sem valor sonoro”, o professor de alfabetização irá fundamentalmente “trabalhar com contrastes e oposições, para que a criança chegue à consciência grafofonêmica, e aí possa aprender sistematicamente, como quer o método fônico, e explicitamente o conhecimento das relações fonema-grafema”.
Esperar o desenvolvimento da consciência grafofonêmica para depois investir no processo de letramento é um erro grave, afirma a conferencista. Segundo Soares, as teorias da Linguística Textual, do Discurso e dos Gêneros, assim como as práticas vivenciadas em Lagoa Santa, oferecem evidências de que o desenvolvimento cognitivo e linguístico da criança permite e favorece o trabalho com textos reais desde a Educação Infantil, o que está contemplado nas metas da rede. Como exemplo, apresenta o quadro das “habilidades de leitura e interpretação no ciclo de alfabetização e letramento”, que, na pré-escola, incluem “relacionar texto e ilustrações” e “incorporar ao vocabulário novas palavras encontradas em textos”, entre outras. É importante mencionar que as metas do município – tanto de alfabetização quanto de letramento – são construídas a partir das habilidades que se verifica que as crianças daquela mesma etapa educacional desenvolveram em anos anteriores. Com isso, a conferencista enfatiza que a concepção de alfabetização e letramento que apresenta, além de construída coletivamente, é aberta à atualização.
Somada às reflexões sobre teorias e práticas, uma importante lição da conferência de Magda Soares vem do uso da língua. A pesquisadora é uma das principais responsáveis pela introdução do termo “letramento” no Brasil. Sua obra é marcada pela reiterada afirmação da necessidade de integrar a alfabetização e o letramento. Após décadas contribuindo para que os dois termos tenham cada um seu espaço na língua, o trabalho mais recente de Magda Soares nos convida a explorá-los também de outro modo. E até nos instiga a pensar nos limites do sentido de uma adição pela sintaxe: afinal, em “alfabetização e letramento”, continua havendo palavras distintas, portanto, uma separação linguística dos conceitos. É aí que desponta a intimidade com o objeto de quem se dedica com tanto rigor e entusiasmo a estudá-lo. “Quando as pessoas perguntam: qual é o método que vocês usam em Lagoa Santa? Nós não usamos um método! Se quiser que chame um método, nós alfaletramos, nós usamos o alfaletrar, que é alfabetizar e letrar ao mesmo tempo.”