Linguagem e universidade: diálogos para a vida

Jennifer de Araújo Rosa

Resumo

Objetiva-se, neste texto, resenhar a conferência Linguagem e Universidade como forma de vida, proferida por João Carlos Salles, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em vista do contexto de precarização das universidades públicas brasileiras, Salles desenvolve reflexões acerca do papel dessa esfera que é singular na sociedade. Ao questionar as razões para tal instituição incomodar certos setores, a fala presente na conferência destaca algumas das adversidades encontradas no contexto atual. Ainda que essas não sejam poucas, como a visão dos professores como atores genéricos, os cortes orçamentários e os déficits em representação e representatividade, Salles indica que a universidade possui uma capacidade intrínseca de resistência e diálogo. Logo, através de um olhar para além da esfera local, a Universidade não se torna apenas uma forma de vida, mas fonte de diálogo e acolhimento.

Texto

Como o próprio título da apresentação do trabalho sugere[1], as universidades brasileiras têm sido, por um lado, fonte de vitalidade à sociedade por meio dos fazeres científicos e de tantas contribuições oportunizadas através de projetos impactantes. Por outro lado, elas também se apresentam como mecanismo de resistência contra retrocessos negacionistas e ataques orçamentários. Nesse sentido, a fala de João Carlos Salles pode ser vista como congruente em vista do atual contexto que as instituições públicas de ensino superior enfrentam.

Salles introduz a sua fala chamando atenção a alguns dos fatos que remetem às implicações financeiras que prejudicam as universidades brasileiras, como, por exemplo, as inúmeras reduções e cortes de investimentos. O professor indaga, então, o porquê dessas políticas públicas (ou ausência das mesmas) acontecerem em um momento em que as instituições demandam justamente o contrário, isto é, apoio e fomento para ampliar o acesso democrático à todas as camadas da sociedade.

Assim, discute a implementação da Lei Complementar 173/2020[2], que prevê, entre outras medidas, o congelamento de salários de servidores públicos até 31 de dezembro de 2021, fato que prejudica diretamente as instituições brasileiras ao cercearem possíveis contratações de funcionários, bem como a viabilização de cursos e compromissos acadêmicos dos agentes educacionais. Igualmente, Salles enfatiza que, na esfera universitária, não há a figura do professor genérico, e, sim, o professor altamente especializado e qualificado para atender necessidades acadêmicas formativas particulares. Nesse sentido, demonstra que a ausência desses recursos impacta as universidades de forma global, uma vez que ela é construída como lugares singulares feitos de pontes e trocas de experiências múltiplas.

Ainda refletindo sobre as origens e as razões que expliquem o porquê de a universidade pública causar incomodo, Salles enfatiza que, sendo uma instituição originada a partir de um projeto de elite, hoje ela não mais atende aos interesses de uma classe minoritária excludente. Pelo contrário, tornou-se fonte de resistência onde as diversas gerações se confrontam através de seus saberes individuais e se acolhem por meio dos diálogos.

Para ilustrar seu ponto de vista, o professor se apoia em um trabalho coordenado pelo filósofo e sociólogo francês Pierre Bourdieu na tentativa de definir esse espaço: “A universidade é um lugar, talvez o único lugar de confrontação crítica entre as gerações, um lugar de experiências múltiplas, afetivas, políticas, artísticas, por completo insubstituíveis” (ARESER, 1997, p. 120-121[3]). Surge o questionamento, então, se a universidade pública deve ser vista com um olhar utópico, idílico e privilegiado. Longe disso, na opinião de Salles, essa instituição vive hoje um duplo déficit: de representação e representatividade. Não enfrentar essa problemática resultaria, então, no aprofundamento das mazelas que contrariam a ideia base do próprio sentido da universidade pública.

Percebe-se que há, assim, questões no âmbito dos valores gerais do todo científico na perspectiva de representação. Ainda que vejamos inúmeras diferenças e particularidades, para Salles, um rigor específico é seguido em todas as regiões brasileiras. Através de apresentações de resultados e do alto padrão de qualidade dessas instituições, um fio invisível as costura para fins de um objetivo comum. Entretanto, também é perceptível a fragilidade que ameaça as instâncias políticas que envolvem toda a organização universitária – as quais, pelo excesso de burocracia e tensões internas, lembram repartições públicas. Salles busca, então, na sua fala, um resgate à natureza da universidade através do enfrentamento dessas adversidades que assombram o futuro desse segmento.

Pensando no quesito da representatividade, o autor afirma que existe um duplo sentido nessa precariedade. À priori, ainda que hoje as universidades tenham atingido marcas históricas de alunos matriculados, esse número ainda é extremamente baixo ao pensarmos na dimensão populacional brasileira. Tal fato torna-se ainda mais significativo quando a Meta 12 do Plano Nacional de Educação (PNE)[4] é observada. Vê-se que a realidade brasileira ainda se encontra longe da elevação da taxa bruta em 50% de alunos com matrícula ativa como proposto inicialmente. Ademais, Salles aponta que outro fator que chama atenção no aspecto de representatividade diz respeito à composição dos estudantes. Mesmo que possamos ver uma diferença em comparação às primeiras universidades brasileiras – predominantemente elitizada, a organização democrática deve aproximar o talento de todas as camadas sociais, não cercear apenas às mais privilegiadas.

Ao discorrer sobre as modalizações no discurso filosófico, o professor indica que linguagem e política andam juntas e conectadas com o objetivo de construírem pontes acerca da razão e suas inerentes lacunas. Dentro desses espaços, ele percebe que, para muito além da política, outros são os motivos que tornam a universidade um espaço que busca combater o obscurantismo de maneira espontânea. Conforme a atribuição do léxico “balbúrdia”, proferida por membros que deveriam defender o ensino público brasileiro, Salles defende que as instituições de ensino superior progridam como fontes de balbúrdia conceitual, de mobilização política e de vitalidade para que as atuais e futuras gerações combatam qualquer imposição de barbárie.

Embora Salles explique que, nesse espaço, possamos encontrar competitividade, pouca inventividade e repetições improdutivas, esse é um micro olhar se pensarmos no macro que transborda potencialidades em ampliação dos direitos e colaboração. Dessa maneira, o professor indica que a sociedade deve ter um olhar atento à universidade e mais ainda um posicionamento crítico em vista do que deve ser afirmado e defendido. Para tanto, elenca quatro esferas que são colocadas em oposição às que perpetuam preconceitos e exclusão, sendo elas: igualdade de direitos, igualdade de compreensão, reconhecimento da alteridade potencial e a crença comum na eficácia da linguagem. Sendo assim, ao se desafiar as imposições excludentes, surge um espaço renovado em que todos existam e resistam, não apenas os mais privilegiados.

Finalmente, Salles destaca a importância da universidade não se fechar dentro de muros. Por ser um espaço que naturalmente transborda as salas de aula ao considerar o propósito mais basilar dessa esfera, ela deve também dialogar com o entorno imediato e regiões mais periféricas. Ainda que diversos desafios se imponham, esses devem ser encarados como inerentes à própria vida das instituições públicas brasileiras. Assim, ainda que as diversas instâncias que compõem esse grande arco não pareçam dialogar, é preciso lutar para que todas as atividades se comuniquem, sejam elas de início, meio ou fim. Afinal, como o Salles indica, esse espaço deve ser compreendido como aberto, onde não há penetras nem suspeitos, mas comunidades que dialogam entre si.

Referências

ARESER – Association de réflexion sur les enseignements supérieurs et la recherche, Quelques diagnostics et remèdes urgents pour une uni-versité en péril, Paris, Raisons d’Agir, 1997, p. 120-121.

BRASIL. Lei complementar nº 173 de 27 de maio de 2020. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 27 maio 2020. Dis-ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp173.htm Acesso em: 30 jul. 2020.

BRASIL. Plano Nacional de Educação 2014-2024: Lei no 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) e dá outras providências. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2014a. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/documents/186968/485745/Plano+Nacional+de+Educa%C3%A7%C3%A3o+PNE+2014-2024++Linha+de+Base/c2dd0faa-7227-40ee-a520-12c6fc77700f?version=1.1 Acesso em: 30 jul. 2020.

LINGUAGEM e Universidade como forma de vida. Conferência apresentada por João Carlos Salles [s.l, s.n], 2020.1 vídeo (1h 22min 50s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CHBq6vXUjcA Aces-so em: 29 jul. 2020.