Entre a Linguística Cognitiva e a Linguística Aplicada em tempos pandêmicos

Diego da Silva Vargas

Resumo

Nesta resenha, pretendo apresentar a proposta teórica e os dados trazidos na mesa redonda Metáfora, Cognición y Emoción: reflexiones en tiempos de pandemia como possibilidade de contribuição para o desenvolvimento de uma maior integração entre abordagens cognitivas e sociais dentro do campo da Linguística Aplicada. Na mesa, apresentou-se o Projeto #ReframeCovid, uma interessante ação aberta e de alcance internacional que busca promover metáforas não bélicas para tratarmos da pandemia de Covid-19. O projeto parte do pressuposto de que a metáfora é um mecanismo cognitivo encarnado em experiências e situado socioculturalmente, conceptualizando e manipulando sentidos, e busca ampliar as narrativas sobre o Covid-19, evitando que apenas uma única se imponha, o que se alinha completamente à proposta de atuação da Linguística Aplicada contemporânea.

Texto

O campo da Linguística Aplicada no Brasil1 vive, nos últimos anos, uma acirrada separação entre uma abordagem cognitivista da linguagem e uma abordagem social. Tal apartamento se concretiza na construção teórica das pesquisas e alcança espaços políticos importantes, como a construção de propostas para educação básica e para cursos de graduação e de pós-graduação. Se, mais recentemente, por um lado, é possível notar que o cognitivismo tem ampliado espaços de inserção na Linguística Aplicada, por outro, ainda é possível encontrar em trabalhos do campo uma crítica a esta abordagem, derivada de uma visão redutora de cognição (cf. VARGAS, 2020[1]).

Este debate é fundamental para entendermos a importância da mesa Metáfora, cognición y emoción: reflexiones en tiempos de pandemia, realizada no evento Abralin ao Vivo - Linguists Online. Nesta resenha, busco trazer o trabalho apresentado na mesa como forma de contribuir para a inserção desta perspectiva na Linguística Aplicada brasileira contemporânea (cf. VARGAS, 2020[1]). A mesa, composta por Laura Filardo-Llamas (U. Valladolid), Iraide Ibarretxe-Antuñano (U. Zaragoza), Reyes Llopis-García (Columbia), Paula Pérez-Sobrino (U. La Rioja) e Inés Olza (U. Navarra) apresentou as bases teóricas e as ações desenvolvidas pelo projeto #ReframeCovid - uma iniciativa de linguistas (cognitivistas) para mapear metáforas referentes à pandemia de Covid-19 e compreender seus efeitos sobre como as pessoas concebem sua existência neste tempo. Sem aderir à prescrição, busca promover metáforas alternativas a noções bélicas, entendendo que representam um modo de estar no mundo catalizador de emoções negativas (FILARDO-LLAMAS et al., 2020[2]).

Em pouco tempo, a iniciativa alcançou profissionais da comunicação e da saúde e cidadãos não especialistas, transformando-se em uma ação aberta e colaborativa. Com a participação de 65 pessoas, conseguiu-se mais de 400 exemplos de metáforas não bélicas em 24 línguas. Como manifestação de seu alcance, no dia 31 de julho, ao buscar no Google #reframeCovid, encontraram-se 5.980 resultados, entre artigos acadêmicos, postagens em redes sociais e textos jornalísticos de diferentes partes do mundo.

Cabe observar que essa ação surge de um movimento que se dá pelas redes sociais, o que comprova a possibilidade de, nestes espaços, escaparmos de uma “política oficial” ou de uma “política do senso comum”, “anunciando o futuro” “em formas de construção, discussão, negociação e contestação de sentidos” (MOITA LOPES, 2010, p. 401[3]). Aqui, podemos ressaltar a importância de linguistas aplicados ocuparem também estes espaços, movidos pelo idealismo de que nossa ação, mesmo limitada e localizada, possa desencadear mudanças sociais (RAJAGOPALAN, 2003[4]). Destaca-se ainda seu caráter, como afirmado pelas pesquisadoras da mesa, de Citizen Science, propondo um modelo sem barreiras entre especialistas, comunicadores e cidadãos (FILARDO-LLAMAS et al., 2020[2]), o que “contrasta (...) com orientação da linguística teórica, segundo a qual o leigo nada teria a ensinar ao perito” (RAJAGOPALAN, 2006, p. 162[5]).

Seu ponto de partida se deu com uma fala de Macron ao anunciar a quarentena na França: “Estamos em guerra, em uma guerra sanitária. Não lutamos nem contra um exército nem contra uma nação, mas o inimigo está aí: invisível e inalcançável. E avança”. Com base nela e na de governantes e mídias de diversos países, Inés Olza publicou no Twitter uma discussão sobre as metáforas usadas, partindo de um trabalho anterior sobre metáforas relativas ao câncer (cf. SEMINO et al., 2018[6]).

Figure 1. Postagem de Inés Olza no Twitter Fonte: Twitter (2020)

O questionamento se dá porque a metáfora não é apenas uma ferramenta decorativa ou um elemento retórico supérfluo, mas sim um mecanismo cognitivo encarnado em nossas experiências e situado em um contexto sociocultural, utilizado como ferramenta cotidiana necessária para conceptualizar e manipular sentidos e apelar às emoções (FILARDO-LLAMAS et al., 2020[2]).

As metáforas cotidianas evidenciam o princípio de que a linguagem e o pensamento se constroem de modo corporificado. Como apontam Lakoff e Johnson (1999[7]), a natureza do nosso corpo modela nossas possibilidades de conceptualização e categorização. Dessa maneira, os processos linguísticos e não linguísticos de construção da nossa percepção/conceptualização do mundo estão inseridos em uma realidade cultural específica e em situações específicas de significação.

Segundo Ferrari (2011, p. 92[8]), “a metáfora é, essencialmente, um mecanismo que envolve a conceptualização de um domínio de experiência em termos de outro”. Por isso, em determinada situação de comunicação, identificamos um domínio-fonte, “que envolve propriedades físicas e áreas relativamente concretas da experiência” e um domínio alvo, “que tende a ser mais abstrato” (FERRARI, 2011, p. 92[8]).

As metáforas evidenciam também que nossa cognição é baseada na organização em frames dos saberes acumulados, e que o significado linguístico não é isolado de outras formas de conhecimento. Segundo Fillmore (2006[9]), frames são estruturas que envolvem conceitos relacionados pela forma como as coisas acontecem em situações reais. Duque (2015[10]) assinala que eles constroem e orientam nosso modo de compreender o mundo, sendo acionados pela seleção lexical, pelo arranjo gramatical da sentença e/ou pelo mapeamento metafórico.

Portanto, as metáforas da pandemia são muito mais do que jogos de palavras. Elas evocam frames organizados em nossas mentes e orientam nossa compreensão da pandemia e de tudo a ela relacionado: o vírus, o isolamento, os sintomas e os tratamentos, os profissionais da saúde etc., e, consequentemente, nossa própria existência em tempos pandêmicos.

Certos domínios fonte são frequentes para se tratar de situações novas e complicadas. Um deles é o da guerra. Na guerra contra a Covid-19, o vírus é o inimigo, lutar para não adoecer é lutar pela sobrevivência, unir forças é alistamento militar, cura e medidas de prevenção são armas e a possibilidade de se terminar com a pandemia é a vitória (FILARDO-LLAMAS et al., 2020[2]).

Figure 2. Representação da metáfora da pandemia como guerra Fonte: Twitter (2020)

As metáforas bélicas são uma escolha fácil, pois ativam um conhecimento compartilhado e efetivo que concretizam a gravidade da situação. Entretanto, têm um impacto emocional (FILARDO-LLAMAS et al., 2020[2]). Perguntam, então as pesquisadoras, qual seria o custo dessa escolha e se tal custo compensaria. Para conduzir essa reflexão, são trazidos exemplos de falas de governantes, notícias de jornal, propagandas, canções e imagens diversas, ressaltando o papel da multimodalidade na construção das metáforas, uma vez que não se constroem apenas com palavras, mas envolvem também imagens e gestos.

Figure 3. Propaganda do Burger King analisada na mesa Fonte: Youtube (2020)

Ao analisar os dados, as pesquisadoras e a audiência problematizaram sentidos atrelados a tais metáforas. Se, por um lado, o belicismo reforça a noção de perigo e amplia a ideia de ameaça, demandando maior atenção ao problema, por outro, legitima sem questionamentos ações de governo, aumenta a pressão sobre os profissionais da saúde e elimina diferenças sobre como diferentes pessoas podem lidar de diferentes modos e atuar de diferentes maneiras em relação ao problema. Caberia, por exemplo, questionar se crianças são soldados nessa guerra ou se podemos colocar na mesma condição de batalha pessoas que vivem em condições precárias de vida e pessoas que possuem seus direitos respeitados (FILARDO-LLAMAS et al., 2020[2]).

Uma das principais consequências das metáforas bélicas parece ser o desgaste dos profissionais da saúde, que não veem suas funções e seus direitos respeitados diante das ações de governantes e dos usos políticos de seus trabalhos. Além disso, a metáfora da guerra constrói a percepção de que estamos sendo derrotados e amplia a ideia de polarização (FILARDO-LLAMAS et al., 2020[2]), que alcança, por exemplo, discursos xenófobos, disputas por equipamentos, vacinas e testes, ou mesmo, como no Brasil, políticas públicas sanitárias e escolhas por protocolos de tratamentos. Em resumo, a guerra impõe reações de medo e traz imagens de penúrias, terror, escassez, estressando a população e ativando percepções negativas (FILARDO-LLAMAS et al., 2020[2]).

Por isso, as pesquisadoras trouxeram outras metáforas encontradas, dentre as quais destaco a do vírus como um turista intrometido, encontrada em uma campanha em Madagascar, os profissionais da saúde como anjos na canção Los Abrazos Prohibidos, de Vetusta Morla, e metáforas esportivas, derivadas do futebol ou do atletismo, por exemplo. Entretanto, parece não ser simples o uso de outras metáforas. As linguistas mostraram postagens de redes sociais e matérias jornalísticas que dizem que as metáforas não são as culpadas por todo o entorno que vivemos e, de outro lado, que temem que metáforas menos bélicas minimizem o problema. Isso se comprovou em comentários no chat que reivindicavam, especialmente para a situação brasileira, a pertinência da metáfora da guerra.

Nesse sentido, cabe destacar novamente que o projeto não tem um caráter prescritivo, buscando ampliar concepções sobre tempos pandêmicos e dar ferramentas para que as pessoas possam escolher qual metáfora lhes convém (FILARDO-LLAMAS et al., 2020[2]). Como enfatiza Moita Lopes (2006), não é papel do linguista aplicado encontrar soluções ou resolver os problemas que busca investigar, mas sim problematizá-los, ou “criar inteligibilidades sobre eles, de modo que alternativas (...) possam ser vislumbradas” (MOITA LOPES, 2006, p. 20[11]).

Afirmam as pesquisadoras que o objetivo do projeto é ampliar as narrativas sobre o Covid-19, evitando que apenas uma única se imponha. Como apontam, os dados apresentados evidenciam a importância de analisar as metáforas segundo quem as utiliza ou as propõe, em que contexto e em que gênero discursivo aparecem, qual é a lógica argumentativa que as precede e qual as acompanha e qual o grau de convencionalidade e criatividade que supõe entender um domínio alvo em termos de um domínio fonte concreto. Além disso, evidenciam também o papel do linguista (aplicado) na sociedade atual, alimentando o espírito crítico e o trabalho com enfoques e campos que tenham aplicação direta ou interseção real com o mundo (FILARDO-LLAMAS et al., 2020[2]).

Neste sentido, nos lembra Nobre (2019[12]) que o reenquadre (reframing) é uma ferramenta interessante na resolução de conflito e na mudança de ponto de vista, podendo inclusive respaldar propostas de letramento crítico. Como a competência metafórica é, portanto, um dos fundamentos da cognição humana, essa foi a abordagem escolhida pelas pesquisadoras da mesa para pensar a sociedade em tempos pandêmicos. Essa, obviamente, é apenas uma das possibilidades de atuação dos linguistas aplicados neste momento. Entretanto, considero-a fundamental para pensarmos como uma perspectiva pejorativa sobre abordagens cognitivistas não se fundamenta quando observamos o que se faz, contemporaneamente, dentro dos Estudos em Cognição. Portanto, é bastante significativo que talvez a ação linguística que tenha tido maior alcance para além da academia, neste momento, seja derivada desta linha teórica.

Cabe, por fim, dizer que a Linguística Cognitiva, como explica Geeraerts (2006[13]), é um arquipélago sem um território delimitado, constituído por um conjunto de muitas abordagens parcialmente sobrepostas e, justamente, por isso, como nos lembra Gerhardt (2017[14]), podemos associá-la ao campo da Linguística Aplicada, rompendo com definições disciplinares para se falar das pessoas e de suas experiências com a linguagem em diferentes planos experienciais/conceptuais.

Referências

DUQUE, Paulo Henrique. Discurso e cognição: uma abordagem baseada em frames. Revista da Anpoll, Florianópolis, n. 39, p. 25-48, 2015. DOI: https://doi.org/10.18309/anp.v1i39.902

FERRARI, Lilian. Introdução à linguística cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011.

FILLMORE, Charles. Frame semantics - Frame semantic. In: GEERAERTS, Dirk (ed.) Cognitive linguistics: basic readings. Berlin: Mouton de Gruyter, 2006, p. 373-400.

GEERAERTS, Dirk. A rough guide to Cognitive Linguistics. In: GEERAERTS, Dirk (ed.) Cognitive linguistics: basic readings. Berlin: Mou-ton de Gruyter, 2006, p. 1-28.

GERHARDT, Ana Flávia Lopes Magela. É de pessoas que se trata: o lugar da Linguística Cognitiva numa Linguística Aplicada Indiscipli-nar. In: ALVARO, Patricia Teles; FERRARI, Lilian. Linguística Cognitiva: pensamento, linguagem e cultura. Campos dos Goytacazes: Brasil Multicultural, 2017. p. 116-135.

LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge to western thought. New York: Basic Books, 1999.

METÁFORA, Cognición y Emoción: reflexiones en tiempos de pandemia. Mesa redonda apresentada por Laura Fillardo-Llamas et al. [s.l.,s.n.], 2020. 1 vídeo (2h 03min). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MBsPqwGjIlM. Acesso em: 31 jul. 2020.

MOITA LOPES, Luiz Paulo. Linguística Aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo (org.) Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 85-107.

LOPES, Luiz Paulo da Moita. Os novos letramentos digitais como lugares de construção de ativismo político sobre sexualidade e gênero. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 49, n. 2, p. 393-417, dez. 2010. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-18132010000200006.

NOBRE, Natália de Lima. Uma proposta metacognitivista de didatização da leitura para o Ensino Médio com vistas a um Letramento Críti-co: a contribuição dos conceitos de frame e reframing. 2019. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) - Faculdade de Letras, Universi-dade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma linguística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. Repensar o papel da linguística aplicada. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo (org.) Por uma Linguística Aplicada In-disciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 149-168.

SEMINO, Elena, et al. Metaphor, Cancer and the End of Life: A Corpus-based Study. New York: Routledge, 2018.

VARGAS, Diego da Silva. A inserção dos Estudos em Cognição na Linguística Aplicada de hoje: questões para uma educação linguística brasileira do/no século XXI. Revista Raído. Dourados, 2020 (no prelo).