O debate social e suas implicações para a análise do discurso sobre saúde e processos migratórios

Julián David González Moreno,
Jocenilson Ribeiro

Resumo

O objetivo deste texto é apresentar uma resenha crítica e colaborativa da videoconferência do professor Antonio Bañón Hernández (Universidade de Almería, Espanha) intitulado O debate social como marco para a análise do discurso sobre a saúde e os processos migratórios, mediada pela linguista Carmen Victoria Marrero Aguiar (UNED, Espanha). O debate social é discutido como um elemento que pode ser analisado em vários campos disciplinares como uma unidade de referência para a construção crítica do discurso. Com um corpus de recortes jornalísticos e científicos envolvendo conceitos e discursos das áreas de medicina, imigração e mídias, o autor analisa distintos dilemas que vão surgindo no campo ético da medicina e dos meios de comunicação em que se evidencia que os argumentos e valorações geradas nos debates sociais abrem caminho a uma série de problemas no nível discursivo e, ao mesmo tempo, no nível prático para o tratamento desses conflitos.

Texto

Os estudos discursivos e enunciativos, emergem no final da década de 1960, na Europa como alternativa às ideias estruturalistas (PUECH, 2005[1]; MALDIDIER, 2011[2]; CRUZ, 2016[3]) e fazem suas entradas na América Latina, particularmente no Brasil, via análise de discurso de orientação materialista (PAULA, STAFUZZA, 2010[4]; KOGAWA, 2015[5]), convertendo-se em um campo fértil onde se apresentam diferentes interfaces, problemas, domínios e modos de analisar uma diversidade de materialidades e objetos discursivos. Nestes últimos 50 anos, a riqueza e a diversidade de objetos de estudo requereram o necessário diálogo interdisciplinar, como ocorre na interseção entre a medicina, as mídias e os estudos de migração. É nesse interessante exercício analítico no campo da Análise Crítica do Discurso onde Antonio Miguel Bañón Hernández, um dos mais influentes linguistas espanhóis da atualidade, desenvolve o que ele define como “debate social” em sua conferência[6] proferida no dia 21 de julho de 2020 no evento Abralin ao Vivo – Linguists Online, organizado pela Associação Brasileira de Linguística (Abralin) em parceria com a Sociedad Española de Lingüística (SEL).

O pesquisador começa falando da importância de levar em conta o debate social como uma unidade de referência à Análise Crítica e Construtiva do Discurso. Dessa maneira, o debate social deve ser concebido como um hipergênero onde se reúnem outros temas mais complexos, como é nesse caso a saúde, a imigração, a mídia e os artigos científicos. Graças a essa caraterística interdisciplinar do discurso, o autor afirma que é necessário então que os pesquisadores saibam claramente os temas e o campo que está se estudando para, assim, conhecer o objeto de estudo profundamente, já que o debate social tem sido apresentado de uma forma muito intuitiva e pouco aprofundada.

Logo, são definidas e descritas as doenças pouco frequentes [enfermedades poco frecuentes (EPF)] – conhecidas no Brasil como doenças raras – dentro do campo da medicina, com referências a livros e artigos de investigação, com os quais Hernández sustenta o seu interesse na investigação dos discursos que circulam nesses textos. Nesse conjunto, ele ressalta conceitos-chave como a medicalização, desmedicalização, patologização e despatologização; também mostra como esses termos são desenvolvidos em artigos jornalísticos e, consequentemente, na vida cotidiana.

Em seguida, Hernández Bañón estabelece os principais níveis de análise discursiva aplicados ao debate social, começando pelo nível de espaço e tempo (repercussão e alcance), passando pelo estudo dos atores, agentes e actantes; e terminando com o estudo das estruturas textuais (macro, meso e micro).

O autor dá ênfase ao conceito de valorações e o relaciona com o discurso migratório. Para explicitar isso, o analista faz um percurso por pesquisas anteriores do seu grupo de investigação nas quais ele reflete sobre distintas estruturas de valorações no discurso migratório (BAÑÓN HERNÁNDEZ, 2002; 2018[7,8]). O pesquisador distingue as valorações dos grupos de pessoas sobre coletivos de migrantes, que oscilam entre positivas, pouco positivas, e muito positivas, ou ao contrário: valorações negativas, pouco negativas e muito negativas. Em seguida, ele evidencia que, ao fazer um estudo sobre o discurso e a saúde utilizando essas mesmas valorações, percebe-se que existe um “descontrole” no uso de termos para valorizar aos grupos de pessoas afetadas por uma doença.

A partir daí o autor apresenta uma série de argumentos e exemplos que abordam diversos debates sociais que levam à aparição de inconvenientes entre os atores da meso e microestrutura. Em alguns títulos jornalísticos, Hernández demonstra que existem termos utilizados pela mídia para se referir a doenças e doentes raros, que possuem uma carga conotativa pejorativa e, muitas vezes, inferiorizam esse grupo de sujeitos.

Dentro dos dilemas apresentados em relação à saúde e os tratamentos para enfermidades pouco frequentes, destaca o papel fundamental que o custo económico tem para a solução desses problemas, com o dilema ético que isso carrega. Em muitos dos exemplos mostrados pelo pesquisador, se questiona se é pertinente ou não que sejam investidas quantidades consideráveis de dinheiro na investigação de medicamentos e/ou tratamentos desenvolvidos para combater as doenças raras. Igualmente, o autor mostra exemplos onde utilizam-se enunciados recorrentes nos discursos das mídias cuja colocação põe em dúvida, pois podem gerar uma ameaça para o bem-estar dos pacientes afetados por essas enfermidades. Em seguida, é retomada a análise do discurso sobre as pessoas migradas, que pode ser abordada na sua totalidade por meio de quatorze estratégias baseadas na argumentação dirigida aos migrantes, e se refletem no discurso político e da mídia. Com essas, é possível apreciar claramente uma grande quantidade de exemplos onde existe deformação da informação e, também, outros onde há deslegitimação, criminalização e desumanização dos grupos migrantes.

Finalmente, o autor conclui que, dentro do debate social, a microestrutura representa um fator-chave para fortalecer uma determinada posição ideológica, seja ela dentro do campo da medicina ou do discurso migratório. Também analisa uma cobertura mediática da relação entre os refugiados e a propagação da COVID-19, apresentando brevemente os argumentos com os quais é analisado o papel do refugiado dentro da atual pandemia. Por último, destaca a importância da Análise Crítica do Discurso e todos aqueles que se envolvem nessa disciplina como agentes que têm uma função importante dentro da análise de temas de impacto social na atualidade.

Em síntese, podemos afirmar que esse tipo de análise, como o que estabelece o linguista Antonio Bañón Hernández, permite alcançar dois tipos de conclusões gerais: (i) o do nível dos objetos de investigação e (ii) o da interdisciplinaridade necessária ao campo dos estudos dos discursos, o que não se encerra apenas à Análise Crítica e Construtiva do Discurso como terreno mais específico. No nível dos objetos, podemos depreender com as reflexões e o trabalho cuidadoso de Hernández que os estudos de linguagem e do discurso podem apresentar com clareza uma descrição e análise do modo como a ciência e a comunicação produzem efeitos de interpretação. No nível epistemológico, devemos entender a necessária articulação entre os estudos linguísticos, o da história e dos processos ideológicos constitutivos de outros campos como o da ciência médica, ainda que se arrogue ao discurso científico uma vontade de neutralidade.

A conferência de Antonio M. Bañón Hernández - além de sugerir vias para novos projetos de pesquisa em tempos de pandemia quando a COVID-19 é um marco paradigmático no campo da saúde em nível global, permite aos jovens investigadores e aos mais experientes questionarem-se sobre como os discursos políticos e sanitários e o debate social em torno do tema do vírus produziram novos saberes, preconceitos, estereótipos e antagonismos para distintos sujeitos. Esse “como” não se pode perder de vista em Análise de discurso, seja de vieses materialista e foucaultiano, seja na perspectiva crítico-construtivista com que trabalha o pesquisador espanhol. Fica o convite para (re)assistir à conferência no canal do Youtube da Abralin.

Referências

CRUZ, M. A. O saussurismo e a escola francesa de análise do discurso: ruptura ou continuidade? 2006. 2008 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística, Universidade Federal de Alagoas, UFAL, Maceió-AL, 2006.

EL debate social como marco para el análisis del discurso sobre la salud y los procesos migratorios. Conferência apresentada por Antonio M. Bañón Hernández [s.l., s.n.], 2020. 1 vídeo (1h 24m 35s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HZwkpvOIAOk&t=2055s. Acesso em: 25 jul. 2020.

BAÑÓN HERNÁNDEZ, A. M. Discurso e inmigración: propuestas para el análisis de un debate social. Prólogo de Teun A. Van Dijk, Murcia, Universidad de Murcia, Servicio de Publicaciones, 2002.

BAÑÓN HERNÁNDEZ, A. M. Discurso y salud: análisis de un debate social. Pamplona: EUNSA, 2018.

KOGAWA, J. Linguística e Marxismo: condições de emergência para uma teoria do discurso francesa no Brasil. São Paulo: Editora FAP-Unifesp, 2015.

MALDIDIER, D. A inquietude do discurso. Um trajeto na história da Análise do discurso: o trabalho de Michel Pêcheux. In: PIOVEZANI, C.; SARGENTINI, V. (Org.) Legados de Michel Pêcheux: inéditos em Análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2011, p. 39-62.

PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Org.). Da Análise do Discurso no Brasil à Análise do Discurso do Brasil: três épocas histórico-analíticas. Uberlândia-MG: EDUFU, 2010.

PUECH C. L’émergence de la notion de “discours” en France et les destins du saussurisme. Langages. Paris, n. 159, p. 93-110, 2005.