Da Fonética à Fonologia: conquistas teóricas e metodológicas
Resumo
Neste texto, apresentamos uma resenha da conferência Fonologia: conquistas e desafios proferida pela Professora Doutora Thaïs Cristófaro Silva (FALE-UFMG) e moderada pelo Professor Doutor José Sueli Magalhães (UFMG) no dia 16 de julho de 2020, integrando a programação do evento Abralin Ao Vivo – Linguists Online. Cristófaro-Silva explana acerca das conquistas, dos avanços e dos desafios dos últimos anos na Fonologia. A conferencista i) apresenta um panorama das contribuições metodológicas e teóricas da Fonética aos estudos de Fonologia, considerando as peculiaridades referentes aos respectivos campos de estudo; ii) considera fenômenos fonológicos emergentes no Português Brasileiro, a exemplo da nasalização e da palatalização; e iii) descreve as principais conquistas da Fonologia no Brasil, chamando atenção para a diversidade plurilinguística existente no país e o compromisso social dos cidadãos em conhecer esta realidade.
Texto
Uma das capacidades inatas ao ser humano é a capacidade da evolução. O homem é, por natureza, criativo e inovador. Inovamos e evoluímos sempre. Esses avanços trazem ganhos para toda humanidade e para diversas áreas do conhecimento científico. Sendo ciência, a Linguística também evoluiu muito, desde os neogramáticos aos estudos experimentais de processamento linguístico, com a disposição de novas teorias e metodologias.
As conquistas e os avanços dos últimos anos na Fonologia, explanadas pela Professora Doutora Thaïs Cristófaro Silva (FALE-UFMG)[1] no evento Abralin ao Vivo – Linguists Online, são discutidas neste texto. A conferência Fonologia: conquistas e desafios, ocorrida no dia 16 de julho de 2020, foi mediada pelo Professor Doutor José Sueli Magalhães (UFMG).
Thaïs Cristófaro Silva é professora voluntária do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais. É uma exímia profissional e referência nos estudos de Fonética e Fonologia do Português Brasileiro (PB). Além disso, possui uma vasta publicação de artigos e livros, dentre os quais citamos: Fonética e Fonologia do Português - Roteiro de Estudos e Guia de Exercícios (1999[2]); Exercícios de Fonética e Fonologia (2003[3]); e, mais recente, Fonética Acústica: os sons do português brasileiro (2019[4]), os quais compõem a bibliografia de muitos cursos de Letras em todo o Brasil.
Na contextualização de sua fala, Cristófaro-Silva salienta a importância dos avanços da Fonética e a incorporação de outros aspectos que, geralmente, ficavam à margem dos estudos dos sons, a exemplo da relação entre Linguagem e Cérebro, numa perspectiva cognitivista. Esta progressão científica contribuiu diretamente para as reflexões da Fonologia enquanto área de conhecimento.
A autora exemplifica estes ganhos com o livro Articulatory phonetics (2013[5]), de Bryan Gick, Ian Wilson e Donald Derrick, que traz reflexões sobre articulação dos sons e produção da fala por um viés anatômico, começando pelo cérebro, seguindo pelo sistema nervoso periférico e só então terminando com o movimento muscular. Este diálogo, para além de descrições puramente articulatórias, faz com que a ciência linguística progrida e fornece uma compreensão mais ampla do funcionamento da língua; não apenas sobre anatomia, mas sobre física e muitas coisas que ampliam esta área do conhecimento.
Cristófaro-Silva argumenta que a evolução da Fonética fez com que os foneticistas repensassem suas práticas, com a nova proposta de incorporar análise acústica e metodologias experimentais. Para autora, um desses avanços foi a criação do PRAAT, software gratuito que possibilita a análise acústica de dados de fala (BOERSMA; WEENINK, 2017[6]), além de sintetizar e manipular desde os segmentos até a melodia dos sons da fala, criando figuras de alta qualidade como espectrogramas, oscilogramas, curvas de pitch e intensidade (FONSECA, 2009[7]).
Se, com base nas experiências da própria pesquisadora, só era possível rodar um espectrograma da fala da noite para o dia, hoje, dispomos de novas tecnologias e até mesmo de novas metodologias que automatizaram o processo. Houve outros avanços, além do PRAAT, nas análises como o uso de vídeo na captura da fala (FREITAG et al., 2020[8]); analise ultrassonográfica, usada para avaliar imagens dos órgãos internos durante a produção da fala (GICK, 2002[10]; VASSOLER; BERTI, 2015[9]); análise com uso do magnetômetro (EMA- electromagnetic articulography), que utiliza dispositivos de campo magnético alternativo para aquisição de dados articulatórios (BAKEN; ORLIKOFF, 2000[12]; MEIRELES, 2017[11]); uso de Eletropalatografia, que fornece informações do contato da língua com o palato em tempo real (JESUS, 2012[13]); estudo com Eletroglotografia, utilizado para investigação das funções vibratórias das pregas vocais (MOURÃO; BASSI; GAMA, 2011[14]); dentre outras perspectivas metodológicas.
Percebe-se, então, a evolução na Fonética em direção à Fonética Experimental. Para Cristófaro-Silva, esse direcionamento, por consequência, impactou na compreensão da Fonologia. À medida que são aplicadas novas metodologias também são feitas novas perguntas.
Outro avanço mencionado pela autora diz respeito à elaboração de um aparato simbólico capaz de representar e transcrever características da produção dos sons de línguas naturais, como é o caso do Alfabeto Fonético Internacional (International Phonetic Alphabet – IPA), elaborado pela Associação Internacional de Fonética, baseado no Alfabeto Latino. Apesar de sua importância, segundo Cristófaro-Silva, as representações do IPA são violáveis por, geralmente, serem confundidas com representações do sistema de escrita e representações fonológicas. Essa confusão é compreensível, uma vez as evidências mostram que as pessoas armazenam material linguístico com um código auditivo e motor-sensorial rico e detalhado que tende a ser único para cada falante (PAUL, 2011[15]).
Para apresentar as diferenças das representações em cada um dos sistemas, Cristófaro-Silva sistematizou o quadro abaixo:
FONÉTICA | FONOLOGIA | ESCRITA |
Nível dos fones | Nível dos fonemas | Nível das letras |
Nível concreto/físico | Nível abstrato | Nível ortográfico |
Processamento motor | Processamento cognitivo | Processo de Escrita |
Pronunciável | Não-pronunciável | Leitura |
Desempenho | Competência | Escrita |
Gradiente | Discreto | Convencional |
[....] colchetes | /.../ barras transversais | Letras |
Mas, apesar dessa consolidação e dos avanços simbólicos do IPA, as normas de transcrição não têm chegado efetivamente à sala aula por meio dos livros didáticos. Cristófaro-Silva discorre acerca de uma pesquisa realizada em 8 livros didáticos nos quais encontrou padrões distintos para as representações fonéticas e fonológicas, a saber: 1) dados apresentados SEM [colchetes] ou /barras transversais/; 2) dados somente com as /barras transversais/ indicadas; 3) representações fonéticas apresentadas entre /barras transversais/, no caso de dicionários; 4) lista-se as formas ortográficas e indica-se fonologicamente o(s) símbolo(s) correspondente(s); 5) combina-se ortografia e representação fonética.
Os níveis de descrição e representações já consolidados são importantes e não são usados nos livros didáticos. Isso acontece, de acordo com autora, porque existe uma simbiose entre a Fonética e a Fonologia, um problema não resolvido e que requer muita atenção pela confusão que pode ser gerada. Para tanto, Cristófaro-Silva sugere a leitura de Sounds, brain, and evolution: or ,why phonology is plural (2007[16]), de April Mcmahon, segundo o qual o problema na distinção entre os dois domínios similares é parte da nossa confusão representacional. Enquanto a Fonética trabalha com empírico e simbólico, a Fonologia trabalha com o abstrato (MCMAHON, 2007[16]).
A autora continua sua fala explanando acerca da evolução teórica e de terminologias aplicadas à Fonologia. Temos, como exemplos: Representação Fonológica; Representação Fonêmica; Representação Subjacente, do Gerativismo; Representação Lexical; Representação Mental, dos Modelos de Uso (BYBEE, 2001[17]) e da Teoria da Otimalidade (PRINCE; SMOLENSKY; 1993[18]); Representação Gestual; Input; e Exemplares, do Modelo de Exemplares (JOHNSON, 1997[19]; PIERREHUMBERT, 2001[20]).
Essas mudanças teóricas e terminológicas são importantes para concebermos e percebermos o quanto a área evoluiu. Como exemplo, a autora recorre a uma comparação entre a proposta tradicional da Fonologia e o Modelo de Exemplares, apresentado no quadro 2.
FONOLOGIA TRADICONAL | MODELO DE EXEMPLARES |
Representação mental minimalista | Representação mental detalhada |
Separação entre fonética e fonologia | Inter-relação entre fonética e fonologia |
Visão de fonologia como uma gramática formal, com a utilização de abstração | Efeitos de frequência armazenados na memória de longa duração |
Julgamento fonotático categórico | Efeitos de gradientes nos julgamentos fonotáticos |
Léxico separado de gramática fonológica | Palavras como lócus da categorização |
Em se tratando da Gramática e da Língua enquanto um sistema complexo, uma representação única, proposta pela Fonologia Tradicional, cria uma série de problemas para lidar com a dinamicidade que é inerente ao próprio sistema. Por isso, faz-se necessário pensar em formas alternativas, como a Fonologia Experimental ou Fonologia de Laboratório, uma abordagem proposta incialmente por Pierrehumbert, Beckman e Ladd (2000[22]), que “buscou fortalecer as bases cientificas da fonologia, por meio da utilização de dados empíricos, do aprimoramento metodológico, da modelagem explicita e da acumulação de resultados” (CANTONI, 2013, p. 85[23]).
Para evidenciar os avanços metodológicos, a autora traz à baila um panorama de fenômenos fonológicos do Português Brasileiro (PB) e cita o processo da nasalização, quando uma vogal é seguida de uma consoante nasal (CÂMARA JR., 2009[1970][24]). A autora argumenta que no PB a nasalização em finais de sílabas e palavras é um fenômeno emergente, como nos casos vamos > [vʌm], Dona Maria > [donmaɾiə] e cano torto > [kʌntohtʊ]. De tal forma, Cristófaro-Silva discorre acerca do fenômeno da palatalização de /t/ e /d/ diante da semivogal /y/ e/ou seguidas da vogal alta /i/, vogal média /e/ átona em posição elevada [i], que podem acontecer em realizações como [‘ti.ɾʊ] e [‘tʃi.ɾʊ]. Em ambos os fenômenos, a análise acústica, por exemplo, pode demonstrar a diferença espectrográfica entre o sinal da fala e a sua variabilidade quando observadas as características físicas de diferentes falantes.
Por fim, a autora descreve as principais conquistas da Fonologia no Brasil e chama a atenção para a diversidade linguística existente no Brasil, com ênfase para as línguas minoritárias e descrição dos sistemas sonoros de línguas indígenas. Além disso, a conferencista destaca a qualificação profissional advinda da abertura de diversos programas de Pós-Graduação em Linguística, Laboratórios, Grupos de Pesquisas e eventos em Fonética e Fonologia em inúmeros estados brasileiros.
Apesar de todo esse avanço teórico e metodológico na Fonologia, precisamos continuar evoluindo e dar mais um passo. Dispomos de amadurecimento científico e tecnológico para pensarmos novas propostas metodológicas e novas perguntas às nossas pesquisas e descrições linguísticas. Um desses avanços, para Cristófaro-Silva, seria formalizar uma proposta de integração com as ciências cognitivas, como em outros países, o que pode aprofundar a nossa compreensão sobre a produção da linguagem humana. Avancemos, pois!
Referências
BAKEN, Ronald J.; ORLIKOFF, Robert F. Clinical measurement of speech and voice. Cengage Learning, 2000.
BOERSMA, Paul; WEENINK, David. Praat: Doing phonetics by computer (Versão 6.0.33). 2017. Disponível em: http://www.praat.org/. Acesso em: 21 mai. 2020.
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