A articulação entre ciência, sociedade e cidadania no ensino de gramática
Resumo
Neste texto, resenhamos a conferência Ensino de gramática em três eixos: uma questão de ciência, cidadania e respeito linguístico, a qual é parte do evento Abralin ao vivo – linguists online, moderada por Isabel Monguilhott e debatida por Silva Rodrigues Vieira, no dia 16 de julho de 2020. Em sua fala, Vieira propõe, a partir da análise da prática pedagógica e dos documentos nacionais referentes à educação, uma metodologia para o ensino de gramática em três eixos que, igualmente, consideram a atividade reflexiva, a produção de sentido e a variedade linguística. Nesse sentido, o objetivo da conferência é expor, através de pesquisas já realizadas com base nos eixos e de reflexões acerca dos problemas que envolvem tanto o ensino quanto o estudo da gramática enquanto ciência, uma nova visão, a qual deve considerar diferentes eixos teóricos de estudo a respeito das metodologias de ensino e pesquisa em gramática.
Texto
Ao se discutir sobre educação, percebe-se, com o decorrer dos anos, o aprimoramento das práticas pedagógicas, de modo a considerar o caráter dialógico do ensino, isto é, a necessidade de uma interação entre educador, aluno e ambiente, em conformidade com a pedagogia freiriana. Tendo em vista essa perspectiva metodológica, o ensino de gramática tem tentado se aperfeiçoar, o que pode ser percebido no Brasil com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC[1]), documento educacional normativo que propõe que tal ensino deve considerar: oralidade, produção, leitura e análise linguística. Assim, após apresentar sua vasta experiência profissional como professora da educação básica e, atualmente, da graduação e da pós-graduação, como professora associada do Departamento de Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Silvia Rodrigues Vieira inicia sua apresentação[2] reforçando a importância de se ensinar gramática afirmando que a percepção dos elementos propostos pela BNCC fará diferença na prática do ensino abordado em seu texto, o que é complexo em razão da interdisciplinaridade e das abordagens linguísticas, que são diversas. Para Vieira, o ensino de gramática deve considerar o que ciência produz e a cidadania que ele garante e deve ser feita a partir do respeito a toda sociedade.
Sem qualquer intenção de criticar documentos ou de aconselhar uma prática pedagógica específica, Vieira apresenta, antes de discutir sua proposta de ensino em três eixos, um panorama do ensino de gramática a partir da instauração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN[3]), isto é, a partir de 1998. Para a professora da UFRJ, substituição é a palavra que melhor define os PCN, já que, em consonância com os avanços da Linguística Contemporânea e com a abordagem pedagógica sociointeracionista, tal documento recomenda a substituição do ensino de gramática pela prática de análise linguística. Essa nova abordagem educacional é considerada por Castilho (2019, p.99[4]) “um grande avanço para a linguística, com ênfase nos usos da linguagem e na valorização da língua falada”, o que é feito sem desconsiderar o trabalho com a norma padrão tida como culta. Entretanto, quando a proposta é retirada das linhas da teoria e é posta em prática, são percebidos três principais problemas, sendo eles: a abordagem da gramática, tendo em vista as inconsistências conceituais referentes aos termos gramaticais e à norma; o objeto de trabalho, devido à recorrente de escolha de um específico método ou objeto, de modo a não considerar toda complexidade do ensino; a prática de metodologias pedagógicas sem comprovação científica, mas baseadas em experiências pessoais.
A proposta do ensino de gramática em três eixos, presente nos livros Escola, Ensino e Linguagens, por Claudianny Noronha e Lucrécio Araújo Júnior[5], e Gramática, Variação e Ensino: Diagnose e Propostas Pedagógicas, organizado pela palestrante Silvia Rodrigues Vieira[6], é apresentada metaforicamente por um banco tripé, no qual cada pé faz referência às concepções de ensino de gramática, isto é, à sistematicidade, à heterogeneidade e à interatividade, sendo todas elas importantes pra a sustentação de tal metáfora e, consequentemente, para a sustentação da pesquisa e do ensino de gramática. É com base nessa analogia que se constitui a proposta do ensino de gramática em eixos. O Eixo I refere-se a uma atividade reflexiva, visto que os conceitos gramaticais, por meio de uma atividade metalinguística, serão trabalhados em sala considerando o que o aluno já tem de domínio consciente em relação à gramática interna. O Eixo II tem como foco a relação entre o que se estuda da gramática e a construção de sentidos tanto no micro quanto no macrotexto. Essa análise da produção de sentido pode ser feita pela abordagem formalista, a qual considera a língua, por meio das relações de seus elementos e de suas propriedades internas, completa e contextualizada em si (DILLINGER, 1991[7]), ou pela abordagem funcionalista, em que os textos, quando em uso, são discursivos-interativos, adquirindo, assim, sentido (NEVES, 2006[8]). No Eixo III, é fundamental considerar a proposta de Faraco (2008[9]) de trabalhar com a norma padrão a partir da reflexão dos usos, já que, nesse eixo, considera-se a variação linguística.
O Eixo III demanda maior atenção daqueles que se interessam por esse projeto de ensino, posto que ele é dependente das concepções de norma. A partir desse impasse, Vieira retoma a fala de Faraco, feita na live Bases para uma pedagogia da variação linguística, em que se discute a possibilidade de uma gramática que parte plano da realização e do uso para o plano da idealização a partir da definição de normas, visando uma maior uniformização. Então, para que essa proposta tenha sua devida validade, é fundamental considerar a variação daquilo que a gramática fundamenta, constituindo, assim, uma pedagogia da variação, em que se considera tanto a norma culta quanto as variedades de uso, haja vista que esta faz uso daquilo que aquela prescreve (FARACO; ZILLES, 2015[10]). Logo, esse ensino é fundamental, posto que dá a devida importância ao caráter heterógeno da língua (CYRANKA, 2014[11]).
A relação entre os três eixos demanda uma equidade valorativa entre eles, pois todos são igualmente fundamentais. Porém, o trabalho com esse ensino prevê que Eixo I seja transversal aos demais, tendo em vista a necessidade de se produzir sentido e de trabalhar com os usos e a normas por meio de uma abordagem reflexiva. Em referência aos pontos positivos, vê-se a possibilidade de conciliar o conhecimento do aluno, que no ensino de português é nomeado como sua gramática interna, à análise linguística e ao conhecimento da gramática externa, a qual é estudada na escola pela abordagem teórica-descritiva e pela abordagem prescritiva.
Em seguida, Silvia destaca a importância de haver uma conciliação entre as abordagens teóricas que dizem respeito ao ensino de gramática, uma vez que, segundo a professora, todas essas concepções são essenciais para que se compreenda e se aplique o estudo da gramática não só como ensino mas também como pesquisa científica.
Para dar, então, continuidade à exposição sobre os eixos de ensino propostos, são apresentados trabalhos que colocaram em práticas os três eixos juntos, como é o caso de Souza (2015), o qual realiza um estudo sobre a indeterminação do sujeito considerando que, em sua pesquisa, no que se refere ao Eixo I, seria necessário trabalhar com os graus de indeterminação e os expedientes gramaticais. No Eixo II, seria preciso lançar olhos para os efeitos da indeterminação na construção do sentido dos textos e, no Eixo III, foram consideradas as regras variáveis de indeterminação, o prestígio/desprestígio dessas variantes e os limites da descrição tradicional. A partir do trabalho de Souza (2015[12]) e de outros mencionados é possível notar, então, que tanto a pesquisa científica quanto o ensino de gramática com base nessa perspectiva de eixos são aplicáveis.
São apresentados, também, trabalhos que consideraram uma perspectiva maior de relação entre dois determinados eixos, como Eixo I-II e Eixo II-III, tendo em vista que, como supracitado, o Eixo I perpassa todos os outros. Nestes e em todos os estudos colocados em pauta, nota-se a evidente necessidade de realizar uma diagnose do problema a ser compreendido e analisado e a necessidade de, sobretudo, realizar uma intervenção a partir de uma perspectiva Sociolinguística de eixos. O que se deseja, portanto, é evidenciar que a gramática deve ser considerada como objeto de estudo não apenas do ensino como também da ciência.
Por fim, pontua-se uma crítica ao ensino de gramática e ao estudo de gramática com base em um único referencial, o que limita tanto os objetos de pesquisa quanto a compreensão da gramática em suas inúmeras dimensões. Além disso, destaca-se a necessidade de que a pesquisa científica esteja em constante diálogo com os órgãos de educação estaduais e municipais, a fim de que tais estudos possam ser, efetivamente, levados ao campo de ensino propriamente dito e de que sejam consideradas as condições adversas encontradas nos ambientes escolares e, enfim, enfatiza-se, mais uma vez, que o estudo e o ensino de gramática são essenciais para a construção de leitores, escritores e, principalmente, cidadãos conscientes de suas normas, variações e usos.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2016.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Os parâmetros curriculares nacionais. Brasília: INEP, 2011.
CASTILHO, A. T. Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2019.
CYRANKA, L. F. M. Avaliação das variantes: atitudes e crenças em sala de aula. In: MARTINS, M. A.; VIEIRA, S. R.; TAVARES, M. A. (Orgs.). Ensino de português e sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014. p. 133-155.
DILLINGER, M. Forma e função na linguística. DELTA: Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 395-407, 1991.
ENSINO de gramática em três eixos: uma questão de ciência, cidadania e respeito linguístico. Conferência apresentada por Silvia Ro-drigues Vieira. [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo. (2h 02min 45s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ypVJ2tVT3Yw.Acesso em: 17 jul 2020.
FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.
FARACO, C. A.; ZILLES, A. M. S. Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e ensino. São Paulo: Parábola, 2015.
NEVES, M. H. M. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006.
NORONHA, C. A; JÚNIOR, L. A. S. (org.). Escola, ensino e linguagens: propostas e reflexões. Natal: EDUFRN, 2017.
SOUZA, D. S. Estratégias de indeterminação do sujeito: uma proposta pedagógica para o ensino de gramática. 2015. Dissertação (Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
VIEIRA, S. R. (org.). Gramática, variação e ensino: diagnose e propostas pedagógicas. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2018.