Reflexões acerca da Fonologia: conquistas e desafios

Fábio José de Abreu Moura,
Diana Vasconselos Lopes

Resumo

A conferência apresentada por Thaïs Cristófaro Silva durante o evento Abralin Ao Vivo, foca em colaborar com alunos e interessados que desejam ingressar na área da fonologia, ou àqueles sem elementos decisivos em meio a diversidade de estudos que a priori não parecem claros. A autora desconstrói a visão ortodoxa sobre o IPA, julgando-o apenas como uma forma de representação e aponta diferentes problemas em consequência disso. Apresenta também pesquisas emergentes na área da fonética e fonologia que foram pouco exploradas, analisando fenômenos como a nasalização de vogais (e de consoantes) em finais de sílabas, palatização de oclusivas alveolares e o “apagamento” do [i] átono. E ainda, debate sobre as atuais conquistas e desafios da fonologia.

Texto

O discurso de Thaïs Cristófaro Silva[1] é focado em alunos e interessados que desejam ingressar na área da fonologia, ou àqueles sem elementos decisivos em meio à diversidade de estudos que, a priori, não parecem claros. Sua fala também é pautada na necessidade de criar novas alternativas, pois nenhuma teoria permanece a mesma, sempre haverá avanços.

Para começo de discussão, a autora apresenta o Alfabeto Fonético Internacional (IPA – International Phonetic Alphabet), que permite descrever qualquer som, desde que se conheça os princípios que os regulem. Sendo muito útil no caráter descritivo, estritamente quando trabalhando com a produção dos sons da fala através do uso de símbolos. Entretanto, ela apresenta um contraponto, que faz bastante sentido, ao posicionar o IPA como um simples tipo de escrita. Embora reconheça seu caráter exemplar, o compara com outros tipos de escrita (ex.: o fenício, o grego clássico, grego atual, hieróglifo egípcio, escrita asteca, entre outros), julgando-os como de mesmo nível, simplesmente um tipo de representação.

Alguns dos símbolos do IPA foram inspirados nos símbolos alfabéticos da escrita (ex.: p (na ortografia) à /p/ (na fonologia) à [p] (na fonética); t (na ortografia) à /t/ (na fonologia à [t, tʃ] na fonética). E outros podem não ser tão semelhantes (ex.: lh (na ortografia) à /ʎ/ (na fonologia) à [ʎ, lʰ, y] (na fonética). Dito isso, Cristófaro Silva sugere o caráter de confusão da representação simbólica.

Apoiada na pesquisa Phones and phonemes are conceptual blends, not cognitive letters, de Robert Port (2011[2]), reafirma que o IPA seja um sistema simbólico representacional, e que, de algum modo, não é translúcido. “Ele, de alguma maneira, surfa para lados diferentes” (CRISTÓFARO SILVA, 2020[1]), fazendo-a acreditar que esse pode ser um dos motivos pelos quais muitos alunos não se interessam pelos estudos da fonologia, pela confusão da própria representação. Outro exemplo de conflito, quanto à representação “padrão” dos símbolos do IPA, de acordo com Cristófaro Silva, é referente às formas de representação dos glides e do tap ou flap, do inglês. Ela faz uma crítica à falta de razão para certas escolhas na hora de empregá-los, e ainda, pela possibilidade de ocorrências de uso de outros símbolos que não fazem parte do padrão do IPA. Para ajudar alunos e curiosos na área, não apenas neste momento em específico, mas durante toda sua fala, a autora se preocupa em referenciar pesquisas e indicar livros de apoio. Ela comenta também sobre o software gratuito PRAAT, desenvolvido por Paul Boersma e David Weenink, que revolucionaram os estudos em fonética. Foi enriquecedor dar maiores passos além da descrição articulatória.

Posteriormente, a autora fala sobre sua pesquisa usando livros didáticos, que investiga como é feita a representação fonética e fonológica das palavras, isto é, se estavam sendo devidamente utilizadas – dado a necessidade de uso de /barras transversais/ para as representações fonológicas e de [colchetes] para as fonéticas. Observou-se que, geralmente, os dados são apresentados sem colchetes ou barras transversais (ex.: aˈsĩ, aˈsiN, ‘assim’); por vezes apenas por barras transversais, sem indicar se é fonética ou fonológica (ex.: aˈsĩ, /aˈsiN/, ‘assim’); barras transversais para fonética (ex;: /aˈsĩ/). Também foram verificadas ocorrências em que se listam as formas ortográficas e indicam-se fonologicamente os símbolos correspondentes de acordo com o som explicado na unidade do livro (ex.: pintar, símbolo, sim: /iN/ ou [ĩ]). E, por fim, combinação da ortografia e da representação fonética (ex.: [in]acabado, [ĩ]feliz, [i]mortal). Então, se os símbolos são tão importantes, por que não são usados nos livros didáticos? A autora tenta justificar tal questionamento, apontando para a existência de uma semiose entre a fonética e a fonologia, e reflete que temos que, pelo menos, refletir sobre essa problemática. De fato, há uma multirepresentacionalidade fonológica que nos leva a discutir a não pertinência de uma representação única da fonologia.

Há um consenso de problemas fonológicos, pelos quais a maioria dos pesquisadores se interessam. Por outro lado, há fenômenos que estão temporalmente em épocas diferentes, que podem levar a questionamentos novos. Um deles é o fenômeno da nasalização de vogais – evoluída de uma consoante nasal que “desapareceu” com o tempo do falar brasileiro – que contrasta com a vogal oral correspondente (ex.: [a] e [ã]). No entanto, há evidências de que a nasalização da consoante está voltando a se manifestar em alguns dialetos do Português Brasileiro (PB). Esse fenômeno pode ser observado em “vamos” como [vʌm], ou em “Dona Maria” como [donmaɾiə], ou ainda em “cano torto” como [kʌntohtʊ] (CRISTÓFARO SILVA, 2020[1]).

Outro fenômeno que merece atenção é a palatização de oclusivas alveolares. Em 1970, Câmara Junior reporta a aspiração do /t/ em sílabas tônicas seguidas de [i] (ex.: tia [tˈia] à [tʃia], tinta [ˈtĩta] à [ˈtʃĩta], dia [ˈdiə] à [dʒiə], ardia [ahˈdiə] à [ahˈdʒiə]). Porém, outros estudos que investigam a palatização, identificam outras possibilidades para este fenômeno: quando as oclusivas alveolares ocorrem em posição pós-tônica e há um glide. Como, por exemplo, em “pátio”, em que há ocorrências da produção de [ˈpatʃjʊ] ou [ˈpatʃʊ], como resultado de uma assimilação do glide com o /t/. O mesmo pode ocorrer em “índio” [ˈindƷjʊ] ou [ˈindʒʊ]; pronunciar as palavras “festa” [ˈfɛstə] e “desde” [dezdɪ] como [ˈfɛʃta] e [ˈdeʒdɪ] também são exemplos de palatização por assimilação com consoante alveolar (CRISTÓFARO SILVA; OLIVEIRA-GUIMARAES; NASCIMENTO, 2012[3]; BARBOZA, 2013[4]; BATISTA FILHO, 2018[5]). Isso nos mostra que a palatização pode ter percursos diferentes das ocorrências em posições tônicas. Questiona-se ainda se as africadas podem ocorrer antes de vogais diferentes de [i]. Como mostra a autora, a resposta é sim: em palavras “adjetivo” e “adjunto”, decorrentes da epêntese entre [d] e [ʒ] realizadas como [aˈdʒetʃivʊ] e [aˈdʒũtʊ]; em empréstimos de palavras como “tchau, capuccino e jeans”, por exemplo, tem-se [tʃaw], [kapuˈtʃinʊ] e [dʒĩs] como possibilidade de pronúncia; em palavras criadas como “tchã e lindja” pronunciadas como [tʃã] e [ˈlĩdʒa]; e em “questionário” e “teatro”, retornando o exemplo de glide tratado anteriormente, tendo [kestʃoˈnáɾiʊ] e [ˈtʃatɾʊ] como possibilidades de pronúncias. Conclui-se, que o [tʃ] e [dʒ] podem ter sido inseridos no português brasileiro através da palatização. A autora diz que esse fenômeno está se propagando na língua, mas não há muitos estudos sobre estes casos novos. Ela completa dizendo que essa ação faz parte da língua, numa tentativa de harmonização do sistema para que ele seja eficiente.

Um terceiro fenômeno abordado foi o do “apagamento” do [i] átono. A primeira menção ao fenômeno foi através de Miriam Lemle (1966 apud CRISTÓFARO SILVA, 2020[1]), mas por muito tempo não foi dada devida atenção. Atualmente é que estão surgindo diversos estudos voltados a estas ocorrências. Para Cristófaro Silva, esse apagamento pode acontecer de forma muito ampla: entre duas sibilantes como em “meses” [ˈmezis] à [ˈmezs] (CRISTÓFARO SILVA; ALMEIDA; GUEDRI, 2008[7]); evidências a favor da sequência [kɪs] como em “leques” e “destaques” demonstram que a realização sem a vogal [i] é permitida. Ao invés de [ˈlɛkɪs] ou [desˈtakɪs] diz-se [ˈlɛks] ou [desˈtaks] (CANTONI, 2009[6]); o [i] também pode sumir após sibilantes (ex: passe [ˈpasɪ] à [ˈpas] (MENESES; ALBANO, 2015[8]); em formas de plural, como em “potes” [ˈpͻtʃɪs] à [ˈpͻts] (CRISTÓFARO SILVA; LEITE, 2015[9]) ou palavras como “chaves” [ˈʃavɪs] à [ˈʃavs] (SOARES, 2016 apud CRISTÓFARO SILVA, 2020[1]); realização de encontros consonantais através do apagamento do [i], possível em ‘júpiter” [ˈʒupiteh] à [ˈʒupteh] (NASCIMENTO, 2016[10]); em palavras iniciadas com [i] seguidas de [s] (ex.: estado [ɪstadʊ] à [stadʊ] (GOMES, 2009[11]).

Por fim, termina sua fala sintetizando as conquistas que deram título à palestra, e que foram abordadas gradualmente durante seu discurso. Cristófaro Silva, coloca que os avanços teóricos e metodológicos da fonética e da fonologia atualmente são abrangentes. Ferramentas novas como o uso de vídeo, ultrassom, EMA (articulografia magnética), eletropalatrografia, eletroglotografia, ressonância magnética (fMRI) e eletroencefalografia (EGG) constroem uma nova realidade. Por isso, muito se sabe sobre o PB. Por essa razão também, foi influente no reconhecimento da Libras como língua oficial, no aceitamento de línguas originárias como línguas locais de uso, e das línguas de herança. Investimentos na área possibilitaram a qualificação profissional e o surgimento de laboratórios e grupos de pesquisa, e em consequência o crescimento da pós-graduação e eventos na área. Atualmente é comum a transdisciplinaridade entre campos de estudo, gerando um tipo de conhecimento compartilhado. E, por fim, a interlocução entre pares, o aceitamento da diversidade e a cordialidade como resultado de todos esses avanços.

Contudo, embora haja grandes conquistas, a fonologia ainda tem como desafios, segundo Cristófaro Silva (2020[1]), a formalização de propostas de integração multi e transdisciplinar como parte das ciências cognitivas. Ela enxerga necessário o diálogo entre campos de estudos distintos e idealiza uma instituição que os reúna, a fim de possibilitar reflexões sobre as ciências cognitivas. Outros desafios pontuados foram: avanços teóricos lentos, necessidade de mais exploração do PB, aceitação do plurilinguismo (línguas minoritárias) e a socialização do conhecimento.

Os fonólogos carregam uma responsabilidade social. Por isso precisam construir argumentos sólidos e defender ideias. E faz isso preenchendo lacunas, ousando e criando o novo (CRISTÓFARO SILVA, 2020[1]).

Referências

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BATISTA FILHO, E. Oclusivas Alveolares e Africadas Alveopalatais no Português de Recife. 2018. 147f. Tese (Doutorado em Letras) Univer-sidade Federal de Pernambuco. Centro de Artes e Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Letras, Recife (PE). Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/33264. Acessado em: 20 jul. 2020.

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CRISTÓFARO SILVA, T.; BARBOZA, C. ; OLIVEIRA-GUIMARAES, D. M. L. ; NASCIMENTO, K. . Revisitando a Palatalização no Português Brasileiro. Revista de Estudos da Linguagem, v. 20, p. 59-89, 2012.

CRISTÓFARO SILVA, T.; LEITE, Camila Tavares. Padrões sonoros emergentes: (oclusiva alveolar + sibilante) no Português Brasileiro. Ca-derno de Letras (UFPEL), v. 24, p. 15-36, 2015.

FONOLOGIA: Conquistas e desafios. Conferência apresentada por Thaïs Cristófaro Silva, 2020. 1 vídeo (1h 47min 45s). Publicado pelo ca-nal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4V6soidUjOw&t=3920s. Acessado: 17 julho 2020.

GOMES, M. F. A redução segmental em sequências #(i)sC no português brasileiro. –2019. 152 f. Dissertação (Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Disponível em: http://www.poslin.letras.ufmg.br/defesas/1994M.pdf. Acessado em: 20 jul. 2020.

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