Literatura, linguística e ensino: formação de professores e de leitores em uma perspectiva aplicada

Danielle Reis Araújo,
João Paulo da Silva Nascimento

Resumo

A conferência Literatura, Linguística e Ensino, ministrada pela Prof.ª Dra. Marisa Lajolo (UNICAMP/MACKENZIE), propôs-se à discussão de diálogos entre literatura e linguística na formação crítica de professores de línguas. Teve como intuito a reflexão de como essas duas grandes áreas que balizam atualmente os cursos de Letras no Brasil, ao dialogarem de modo aplicado ao ensino, podem reverberar intervenções diretas e eficazes na formação de leitores críticos e autônomos, seja nos cursos de formação docente, seja na educação básica. Em vista disso, abordaram-se tópicos de interesse às áreas de Linguística Aplicada e Educação, tais como (a) políticas de avaliação educacional no tocante à leitura; (b) concepções de leitura e o lugar desta prática no cotidiano de brasileiros; (c) estado da arte da formação de professores de línguas e literaturas em uma perspectiva crítica; e (d) objetos do letramento literário na atualidade.

Texto

Parece ser consensual a ideia equivocada de que a leitura tem se tornado uma prática cada vez mais obsoleta frente às diversas alternativas midiáticas oferecidas pela era tecnológica. Tal concepção enviesada, contudo, não se mostra exclusiva ao século XXI: já no século XIX, por volta dos anos de 1880, começa a ser construído um discurso um tanto quanto tendencioso a respeito da valoração de práticas leitoras de prestígio, ainda que por motivações não tão contemporâneas como a tecnologia (LAJOLO; ZILBERMAN, 1996[1]).

É, pois, neste intento que a conferência Literatura, Linguística e Ensino, ministrada por Marisa Lajolo[4], circunscreve-se: a busca de um debate atual, respaldado em considerações críticas presentes nas obras Literatura ontem, hoje e amanhã (LAJOLO, 2018[2]) e A Formação da leitura no Brasil (ZILBERMAN; LAJOLO, 2019[3]), sobre os principais percalços na formação de professores e cidadãos leitores críticos. Para tanto, a fala dividiu-se nos seguintes pontos: em primeiro momento, contemplaram-se resultados de pesquisas avaliativas sobre leitura; em segundo, abordaram-se concepções de leitura de modo a refletir sobre o lugar dessa prática no cotidiano brasileiro; em terceiro, foram desenvolvidas considerações críticas sobre o estado da arte da formação de professores de línguas e literaturas; e, por fim, o quarto momento centrou-se na proposição de objetos do letramento literário impressos em práticas docentes.

No primeiro instante de sua fala, Lajolo expõe resultados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA)1, por meio dos quais busca estruturar reflexões acerca da leitura no Brasil. De acordo com as informações trazidas à baila pela pesquisadora, o Brasil, que em 2018 esteve na 57ª posição dentre 79 países avaliados, apresentava uma média de 1.7 livros por habitantes2. Ainda, detalhou-se que dos 350 milhões de exemplares de 46.828 títulos contemplados nos resultados de 2018, 175 milhões eram de obras didáticas e 68 milhões de obras religiosas, sendo 10.726 e 6.451 títulos de cada categoria, respectivamente.

Com base nesses dados, os quais induzem a uma interpretação de diminuição no número de leitores dentre o público contemplado pelo PISA, Lajolo propõe os seguintes questionamentos a professores e pesquisadores da área de línguas e literaturas: pode-se tomar como verdade que as pessoas estão lendo menos, ou as pesquisas avaliam um tipo de leitura que não é a dominante? Como funciona a avaliação de leituras hipermidiáticas, como as realizadas em smartphones, tablets etc? Notadamente, tais provocações aludem a tópicos de interesse de inúmeras pesquisas desenvolvidas no escopo da Linguística Aplicada e representam o caráter essencial de se compreender as diversas formas de leitura para o processo de ensino-aprendizagem na perspectiva dos letramentos críticos (SILVA. 2016[5]; TAKAKI; MONTE MOR, 2017[6]).

As indagações postas pela conferencista conduzem-na ao segundo ponto de seu debate: a busca por uma definição de leitura que considere a pluralidade de linguagens e intertextualidades e não se detenha a paradigmatizações excludentes. Nesse sentido, Lajolo defende que o ato de ler não se restringe à mera decodificação da linguagem verbal, como também se expande ao domínio do não verbal e suscita recrutamento de competências interpretativas influenciadas por diferentes fatores (e.g. conhecimento de mundo, determinantes culturais, acordos pragmáticos implícitos etc.).

Nesta alínea de sua discussão, Lajolo demonstra, inclusive, que as práticas de leitura são há muito associadas a um prestígio utópico que parece se consolidar em uma relação de distopia dentre a cultura brasileira. Vale-se, assim, de três exemplificações: duas do século XIX e uma do século XXI.

A primeira delas se trata de uma publicação datada de 24 de março de 1872, no jornal Diário do RJ, em que o célebre literato brasileiro Machado de Assis tece uma crítica sobre a situação de baixa publicação de livros, julgando como inferior quaisquer tipos de leituras que não fossem as de romances.

A segunda, de uma matéria de 1889, publicada na Revista Brazileira, em que constam insinuação de valores em curso na sociedade do século XIX, concebendo a ideia de que o povo brasileiro não estaria preparado para consumir o livro e abarcando discursos machistas, na medida em que observava o livro como “substancial alimento de organizações viris e fortemente valorizadas” e a leitura como uma prática que demandaria largo fôlego.

Por fim, situa-se o exemplo deste século, do ano de 20183, no qual, ao apresentar resultados de uma pesquisa que considera que 44.0% de brasileiros não leem e 30.0% nunca compraram um livro4, afirma-se que “a prática de leitura ainda não está totalmente presente entre os brasileiros”, de modo semelhante aos exemplos de 1872 e 1889.

Após apreciar criticamente as concepções questionáveis a respeito do hábito de ler na sociedade brasileira, Lajolo parte para o terceiro ponto de sua conferência, no qual debate a formação de profissionais docentes da área de Letras no Brasil. Nesse ponto, a pesquisadora utiliza dados coletados pelo INEP, que demonstram a quantidade de faculdades autorizadas à oferta de cursos de graduação em Letras, bem como o quantitativo de programas de pós-graduação que representam a interdisciplinaridade desse campo. A tabela abaixo sintetiza os dados apresentados pela autora:

GRADUAÇÃO EM LETRAS
Faculdades autorizadas a ofertar o curso de Letras em 2017 Matrículas em licenciatura em Letras Vernáculas Matrículas em licenciatura em Letras Estrangeiras Modernas Matrículas em licenciatura em Letras: habilitação dupla
500 78.912 44.099 41.574
Total: 164.585
PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Quantidade de programas em 2020 Mestrado Acadêmico Doutorado Acadêmico Mestrado Profissional
265 150 105 10
Table 1. Dados de cursos de formação em Letras Fonte: Produção nossa.

Diante do panorama quantitativo dos cursos de formação e qualificação de profissionais da área de Letras, é trazida à tona a interseção imprescindível entre os estudos literários e os estudos linguísticos para a formação de leitores críticos que terão como objetivo docente a formação de outros leitores críticos. A fim de expor tal proposição, Lajolo menciona a forte tendência de se discutir nesses cursos os estudos bakhtinianos e o campo da análise do discurso, áreas de interesse tanto da Linguística quanto da Literatura5. Assim, considera que a atual formação dos estudantes de Letras privilegia tópicos naturalmente interdisciplinares, que cumprem com o propósito de promover um olhar elucidativo sobre as diversas formas de manifestação da linguagem na sociedade.

Por fim, no derradeiro instante, a conferencista expõe possibilidades de utilização da avaliação como instrumento de promoção do letramento crítico nos cursos de Letras. A título de exemplificação utiliza uma atividade em que graduandos do curso de Letras devem assumir de modo autoral e autônomo papéis colaborativos na construção de um livreto de Literatura para o Ensino Médio. Além disso, Lajolo expõe recomendações disparadas a seus orientandos em instâncias de pós-graduação, dos quais são solicitados: (a) um texto de divulgação científica (para graduandos e pós-graduandos) e (b) propostas de atividades inspiradas em suas pesquisas voltadas para a Educação Básica.

Ao final de sua fala, sua interação com o público foi marcada por questionamentos relativos à formação de professores, tais como: a maneira como exames avaliativos e materiais didáticos têm tratado o texto literário, o espaço para o trabalho com a Literatura a partir de possibilidades pressupostas pela BNCC, a especialização do ensino de linguagens6, dificuldades apresentadas por alunos referente à leitura oral e à leitura de clássicos, entre outros. De modo geral, as respostas de Lajolo enriqueceram o debate sobre o fazer pedagógico e práticas de letramentos na atualidade.

De fato, as questões suscitadas pela conferência proferida por Lajolo chamam a atenção ao equívoco de se pensar o desenvolvimento da leitura como uma prática encerrada na alfabetização, uma vez que, como assinala Jouve (2002, p. 17[7]), “a leitura é uma atividade complexa, plural e que se desenvolve em várias dimensões”. Essa concepção nos induz a pensar a respeito dos entraves que se põem à prática docente em Línguas e Literaturas, principalmente: como promover, em uma dinâmica educacional fortemente marcada por aspectos quantitativos e tradicionais, o encontro com o prazer pela leitura crítica?

Como nos adverte Câmara (2012[8]), as escolhas de leitura para o trabalho na Educação Básica devem ser pensadas sob pontos de vista cautelosos, já que em vez de aproximar o aluno à prática leitora, pode surtir efeitos contrários, de modo a afastá-los. Ademais, especificamente sobre o ensino de Literatura, Soares (2009[9]) alega que a leitura dos clássicos não deve ser proposta como algo que propicia somente entretenimento, mas como um artefato cultural fundamental à sociedade. Nesse sentido, a leitura de fragmentos isolados, além de não ser eficaz a esse propósito, retira de estudantes possibilidades de construções do letramento literário.

Em suma, tais questões, que se alojam simultaneamente nos estudos linguísticos e nos estudos literários, mostram-se cruciais ao desenvolvimento de agentes (trans)formadores de leitores.

Referências

CÂMARA, Tânia Maria Nunes de Lima. Leitura na escola básica: preocupações pedagógicas. In: SIMÕES, Darcilia (org.). Língua Portugue-sa e ensino: reflexões e propostas sobre a prática pedagógica. São Paulo: Factash Editora, 2012.

JOUVE, Vicent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996.

LAJOLO, Marisa. Literatura: ontem, hoje, amanhã. 1a. ed. São Paulo: Editora UNESP, v.1, 170p, 2018.

LITERATURA, Linguística e Ensino. Conferência apresentada por Marisa Lajolo [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (2h 05min 40s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ea7i79bu5C8. Acesso em: 22 jul 2020.

SILVA, Edna Marta Oliveira da. O letramento crítico e o letramento digital: a web no espaço escolar. Revista X, volume 2, 2016.

SOARES, Magda. O jogo das escolhas. In: MACHADO, Maria Zélia Versiane et ali (ORG). Escolhas (literárias) em jogo. Belo Horizonte. Au-têntica Editora, 2009.

TAKAKI, N. H. (Org.); MONTE MOR, W. (Org.). Construções de sentido e letramento digital crítico na área de línguas/linguagens. 1a ed. Campinas: Pontes, 293p, 2017.

ZILBERMAN, Regina; LAJOLO, Marisa. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, v.1. 467p., 2019.