Descobrindo a língua: as relações entre fala e escrita no processo de aquisição da linguagem

Willamy Matos dos Santos

Resumo

A Associação Brasileira de Linguística (Abralin), durante o período da pandemia, em 2020, promoveu uma série de mesas-redondas, transmitidas ao vivo pelo canal da associação no YouTube. O objetivo desta resenha é apresentar a mesa redonda: A criança e o uso da língua: fala, escrita e suas relações na aquisição da linguagem, que abordou o emprego da língua pela criança enquanto falante e escrevente. No primeiro momento, o professor Lourenço Chacon apresentou dados não convencionais da escrita infantil de modo a observar a relação fala/oralidade e escrita/letramento. Em seguida, a professora Marlete Diedrich explorou a aquisição da linguagem como uma experiência de significação a partir de uma perspectiva enunciativa, baseada nos postulados de Benveniste (2005). Por fim, a professora Gabriela Maria de Oliveira-Codinhoto apresentou uma proposta funcionalista de textos infantis com ênfase na frequência de utilização de orações relativas em produções textuais de crianças.

Texto

Neste texto, resenhamos a mesa redonda intitulada A criança e o uso da língua: fala, escrita e suas relações na aquisição da linguagem[1], realizada no dia 17 de julho de 2020, como parte da série de transmissões ao vivo promovidas pela Associação Brasileira de Linguística (Abralin) em cooperação com diversas associações internacionais.

Durante a mesa redonda, sob mediação do doutorando Giovane Fernandes Oliveira, os professores: Lourenço Chacon (Unesp), Marlete Sandra Diedrich (UPF) e Gabriela Maria de Oliveira-Codinhoto (UFAC) discutiram, sob diferentes pontos de vistas, como o uso da língua, especialmente o da fala e o da escrita, colaboram para a constituição da criança como falante e escrevente a partir da observação de produções linguísticas iniciais.

Em sua fala de abertura, o professor Lourenço Chacon (Unesp) indaga se dados não convencionais da escrita infantil podem levantar questões acerca das relações entre a fala e a escrita e para quais questões da aquisição da escrita tais dados podem apontar.

A partir disso, o debatedor apresentou conceitos-chave sobre a fala e a escrita. O professor realizou um percurso teórico conceituando a fala desde uma perspectiva biomecânica, definida como um ato motor, até uma perspectiva textual interativa, definida como um ato de produção textual. Do mesmo modo, a escrita é conceituada desde um código linguístico, em uma perspectiva mais formal, até um ato de produção textual, em uma perspectiva interativa. Nesse ângulo, o professor assume uma perspectiva em que as relações entre fala e escrita são vistas sob o viés de uma abordagem linguístico-discursiva, pois envolvem dois planos essenciais da linguagem: a língua e as práticas discursivas (orais e letradas).

Outra conceituação importante é a diferença entre fala/oralidade e escrita/letramento. Chacon afirma que fala e escrita são produtos linguísticos sob forma de enunciados, enquanto oralidade e letramento são as práticas discursivas que regulam a produção e a circulação de enunciados falados e escritos, respectivamente. Vale destacar que esses planos fazem parte de um fenômeno complexo: a organização de enunciados linguísticos, produzidos com base em determinada semiose (acústico-auditiva e gráfica-visual), regulada por práticas discursivas.

Na análise, o professor destaca algumas estruturas não convencionais de um texto produzido por uma criança da primeira série do ensino fundamental. Nesse sentido, são observados a segmentação das palavras inpe e en pé e a ortografia da palavra cansar. Tal reflexão é formulada com o objetivo de refletir que, por um lado, na escrita da criança, há pistas de práticas da oralidade, representadas pelas grafias cançar e inpe, e, por outro lado, há também nessa escrita marcas de práticas de letramento, representadas pelas convenções ortográficas, como o acento gráfico na palavra en pé.

Lourenço Chacon encerra sua fala afirmando que os dados não convencionais da escrita infantil levantam questões sobre a fala e a escrita, na medida que indicam um atravessamento do escrevente por práticas de oralidade e letramento, bem como conflitos em relação àquilo que deve orientar sua escrita, que são vistos como marcas da subjetividade do escrevente, isto é, o modo como ele se inscreve na sua escrita. Por fim, Chacon afirma que esses dados da aquisição apontam para características de enunciados falados e escritos projetados na escrita inicial da criança, como resultado das práticas de oralidade e letramento pelas quais ela transita.

A segunda convidada para esta mesa é a professora Marlete Sandra Diedrich (UPF), que abordou o tema da aquisição da linguagem como uma experiência de significação, apoiada na perspectiva enunciativa de Benveniste. A pesquisadora procede a tal abordagem a partir de três pontos: a criança fala com outros que falam, a criança se constitui como falante de uma língua e a criança apreende o mundo por meio da fala.

A apresentação parte do princípio de Benveniste (2005[2]) que coloca em foco uma experiência que se dá no simbólico da língua, unindo o homem, a língua e a cultura e permitindo à criança a consciência do meio social no qual ela está inserida. Desse modo, a criança se apropria da língua para viver suas experiências de significação com os outros via discurso.

A partir dessas reflexões, a professora apresenta a pesquisa que desenvolveu com duas crianças: Antônia (5 anos) e Lulu (1 ano e meio). Foram observados dois momentos, com intervalo de seis meses entre cada um, em que a irmã mais velha lia histórias infantis para a irmã mais nova. Nesses recortes, foram observados os fatos da linguagem que revelam as relações da criança com o emprego da língua e suas implicações na constituição da criança como falante. Destacamos, a seguir, os principais pontos abordados pela pesquisadora.

O primeiro ponto aborda a questão da intersubjetividade, desenvolvida a partir dos estudos de Benveniste, que afirma que a criança, assim como os adultos, também fala com outros que falam. Conforme a análise de Diedrich, no primeiro recorte, isso é muito claro, uma vez que há um investimento da irmã mais velha, que está lendo, para convocar a atenção da outra com o objetivo de que ambas vivam essa experiência da leitura. Em contrapartida, no segundo recorte, percebemos um movimento no curso da aquisição: a irmã mais nova deixa a posição de ser convocada, ao utilizar algumas formas que se assemelham à estrutura linguística, para, então, convocar a irmã mais velha.

No segundo ponto, Diedrich destaca a constituição da criança como falante de uma língua. De acordo com o princípio da subjetividade, a criança assume seu lugar no mundo pela linguagem, o que foi observado nos dados dos recortes em que as duas crianças estão se deslocando no mundo por meio de arranjos particulares da língua, utilizando-a à sua maneira. Vale destacar uma convergência entre esses dois pontos: esse uso particular da linguagem leva a irmã mais velha a buscar significação na fala da irmã mais nova, isto é, há uma influência do outro nessa subjetividade.

No terceiro ponto, a pesquisadora afirma que a criança apreende o mundo por meio da fala, ou seja, a criança entra em contato com a língua em situações específicas de uso, vivenciando determinados esquemas culturais. As crianças nos dois recortes assumem a língua a partir de determinados valores já dados pela sociedade: por exemplo, o modo como a irmã mais velha mobiliza os arranjos vocais durante a leitura para a irmã mais nova, alterando sua entonação, revela a vivência de um esquema cultural.

Encerrando sua fala, a debatedora converge os três pontos apresentados destacando que, “na relação com o outro, com uma maneira particular de estar na língua, a criança apreende o mundo e se manifesta na realização desta língua na fala”, construindo, assim, uma experiência de significação.

A última convidada da mesa é a professora Gabriela Maria de Oliveira-Codinhoto (UFAC), que apresentou uma proposta de análise funcionalista de textos infantis, produzidos por dois alunos ao longo do Ensino Fundamental I, em que focalizou o uso de orações relativas (ORs).

Por se tratar de uma análise funcionalista, a noção de língua concebida é a de um instrumento de interação social em que as estruturas linguísticas são observadas de acordo com dados reais de fala. Além disso, a aquisição da linguagem é vista como um processo de desenvolvimento ou aprendizagem.

O estudo apresentado busca hipóteses que expliquem a distribuição da frequência de orações relativas em textos infantis a partir da análise de produções textuais de dois alunos, evidenciando: a extensão, o tipo de oração, o tipo de conexão entre as partes e as estratégias de composição textual. A partir desses dados, os textos foram comparados em busca de generalizações pertinentes.

A pesquisadora acompanhou os dois alunos ao longo dos quatro anos do Ensino Fundamental I e percebeu um aumento no número de ORs na composição dos textos ao longo dos anos.

Com a análise dos textos, foi possível notar uma evolução na escrita dos alunos. Ambos passaram de construções com enunciados curtos, orações truncadas e justapostas para textos com enunciados longos, orações complexas e refinamento de estratégias de articulação/progressão textual, como parágrafos com unidades temáticas, além do aumento do número de orações relativas.

Nesse sentido, foi observado que, nas primeiras produções, os escreventes não buscavam situar o leitor em relação ao enredo ou ao propósito comunicativo do texto, devido à falta de experiência com as produções textuais e ao processo de alfabetização ainda em andamento. No entanto, nas produções finais, há uma maior preocupação no estabelecimento de um contexto interacional, que, além de alterar a carga informacional desses textos, também colabora para o aparecimento de estruturas linguísticas mais complexas.

A discussão realizada nesta mesa redonda teve um papel fundamental nos estudos de aquisição da linguagem. A apresentação de questões relevantes sobre a fala e a escrita infantis, a partir de diferentes pontos de vista, traz a possibilidade de desdobramentos de pesquisas futuras na área que podem colaborar para a maior compreensão desse processo complexo que é a aquisição da linguagem.

Referências

A criança e o uso da língua: fala, escrita e suas relações na aquisição da linguagem. Mesa redonda mediada por Giovane Fernandes Oliveira e apresentada por Lourenço Chacon, Marlete Sandra Diedrich e Gabriela Maria de Oliveira-Codinhoto [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (2h 01 min 35s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fP2o-hF7jtg. Acesso em: 17 jul 2020.

BENVENISTE, Emile. Problemas de Linguística Geral I. 5. ed. Campinas: Pontes, 2005.