Gramática de Libras: perspectivas terminológicas sobre a fonologia

Silvana Alves Cardoso

Resumo

A conferência, intitulada Gramática de Libras, proferida pela professora Dr.ª Ronice Quadros diz respeito à apresentação de uma proposta de sistematização gramatical para os fenômenos linguísticos presentes na Libras, materializada, por sua vez, totalmente em Libras, e com tradução de voz para a Língua Portuguesa. Trata-se de um projeto que objetiva, entre outras questões, a produção de uma primeira gramática da Libras, o registro da Libras e a socialização de trabalhos desenvolvidos por linguistas nessa área. Nela, estão presentes os fenômenos de diversos componentes linguísticos (Fonologia, Morfologia, Sintaxe etc.) constatados e estudados nos trabalhos realizados por surdos de diferentes regiões do Brasil.

Texto

Desde o surgimento dos primeiros estudos sobre línguas de sinais de um modo geral, historicamente iniciados com as pesquisas de William Stokoe (1960[1]), os linguistas e estudiosos vêm desempenhando um árduo trabalho na tentativa de analisar, descrever e sistematizar os mais variados fatos linguísticos presentes nessas línguas. No Brasil, a obra pioneira Por uma gramática de línguas de sinais (1995[2]), de Lucinda Ferreira Brito, é, por exemplo, um desses empreendimentos descritivos, em termos de pensar uma gramática para a Língua de Sinais Brasileira (Libras).

A proposta Gramática de Libras[3], apresentada pela professora Dr.ª Ronice Müller de Quadros na conferência do Abralin ao Vivo, também se configura como uma dessas tentativas, todavia com um caráter bastante interessante e inovador, tendo em vista que trabalhos descritivos anteriores tomavam a Língua Portuguesa como metalinguagem na caracterização dos fenômenos linguísticos: diferentemente, Quadros, que é uma pesquisadora reconhecida na área da Libras, e atualmente professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), propõe uma descrição gramatical da Libras em Libras. De acordo com a idealizadora, essa nova perspectiva, identificada como gramática tipológico-funcional e composta por dados de produção espontânea, tem como pretensão principal estabelecer, a partir de um Corpus de Libras, a primeira gramática diretamente em Libras, além de assegurar o registro da Libras e a socialização dos trabalhos desenvolvidos nessa área.

Assim, a Gramática de Libras – apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e com tradução em voz para o português e lançamento previsto para o corrente ano – não se configura como um projeto solitário, mas uma proposta coletiva que envolve os dados dos estudos de trinta e cinco informantes surdos de referência nas regiões do território brasileiro. Dentre esses dados (organizados por meio de glosas a partir da ferramenta de transcrição ELAN), a conferencista evidencia casos de fenômenos característicos de alguns dos componentes linguísticos que formam a Gramática de Libras, a saber, construção dos sinais, variações do léxico, neologismos, entre outros no campo fonológico e morfológico; e ordem e reordenação sintática, contextos de coordenação (parataxe) e de subordinação (hipotaxe) etc. no campo sintático.

De fato, a gramática em realce mostra-se como um importante instrumento de autonomia e reposicionamento da Libras no âmbito das pesquisas linguísticas, atenuando cada vez mais o laço comparativo-descritivo entre os fenômenos visuais e os das línguas orais. E é nesse ensejo que questões de cunho terminológico devem ser olhadas com maior atenção nesse novo modo de fazer a gramática da Libras, pois, como ressalta Benveniste (1989, p. 252[4]), “a constituição de uma terminologia própria marca, em toda ciência, o advento ou o desenvolvimento de uma conceitualização nova, assinalando, assim, um momento decisivo de sua história”. Portanto, a precisão terminológica é, também, um aspecto exigido pelo fazer científico enquanto constatação linguística, uma vez que tão necessário e importante quanto à descoberta dos constituintes de uma língua é a sua devida nomeação.

Nessa direção, encontram-se, na literatura especializada da área, cada uma representando, portanto, a percepção teórica/discursiva do seu proponente, algumas propostas de atualização da nomenclatura para o campo da, conhecida, Fonologia da Libras, no que diz respeito aos termos da tradição oral (e de raiz etimológica sonora) Fonologia e Fonema, como forma de levantar a reflexão sobre o emprego de termos que melhor representam a realidade linguístico-modal dos elementos da Libras, são elas: Visologia e Visema, de Mariângela Barros (2008[5]); SematosEma e SematosEmia, de Fernando Capovilla (2015[6]); Signema e Sigmanulogia, de Valdo Nóbrega1 (2016[7]); Sinema e Sinologia2, de Vicente Masip (2019). Embora existam tais perspectivas terminológicas, a preferência continua a ser pelos termos conservadores cunhados para os estudos das línguas orais, com a justificativa de estarem adotando as mesmas nomenclaturas para atender e não se distanciar da tradição conceitual linguística já consolidada.

Muito além da ideia da partilha de universais linguísticos e da referência a elementos mínimos abstratos presentes tanto nas línguas orais quanto nas línguas de sinais, essa preferência revela ainda, por outro lado, a força hegemônica das línguas orais, tidas como majoritárias, sobre as línguas de sinais, consideradas minoritárias, evidenciando a influência político-discursiva, de natureza social, das primeiras, que asseguram (e, por que não, impõem), por vezes, a preservação dos termos nas investigações linguísticas das últimas. Porém, como ainda se trata da primeira edição da proposta Gramática de Libras, e, por certo, haverá, conforme Quadros, outras versões, a temática do aperfeiçoamento terminológico é um forte candidato a ser repensado e contemplado nesse novo recurso que busca registrar e resguardar os aspectos naturais e particulares da Libras.

Referências

BARROS, Mariângela Estelita. ELiS – Escrita das Línguas de Sinais: proposta teórica e verificação prática. 2008. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. 2008.

BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral. Tradução de Maria da Glória Novak e Luiza Neri. Revisão do Prof. Isaac Nicolau Salum. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1976.

CAPOVILLA, Fernando César. Paradigma neuropsicolinguístico para refundação conceitual e metodológico da linguagem falada, escrita e de sinais para alfabetização de ouvintes, deficientes auditivos, surdos e surdocegos. In: CAPOVILLA, Fernando César; RAPHAEL, Walkiria Duarte; MAURÍCIO, Aline Cristina L. (Org.). Novo Deit-Libras: Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue da Língua de Sinais Brasileira (Libras) baseado em Linguística e Neurociências Cognitivas. Vol. I: (sinais de A a H). 3ª edição (ver. e ampl.). São Paulo: editora da Universidade de São Paulo, 2015.

FERREIRA. Lucinda. Por uma gramática de línguas de sinais. [reimpr.]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2010.

GRAMÁTICA DE LIBRAS. Conferência apresentada por Ronice Müller de Quadros. [S.l.: s.n.], 2020. 1 vídeo (1h08min25seg). Publicado pelo canal Abralin. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yT7Z0y4_n3U. Acesso em: 03 de julho de 2020.

NÓBREGA, Valdo Ribeiro Resende da. Sigmanulogia: proporcionando uma teoria linguística da língua de sinais. Revista Leitura, Alagoas, v.1, n. 57, p. 198-218, 2016.

STOKOE, William C. Sign language structure. Reedição. Silver Spring, Maryland: Linstok Press, 1960.