A ‘História Monumental’ de dois heróis: Historiografia Linguística

Michael Soares Silva

Resumo

Seria a polarização das ideias o que torna a ciência uma instigante sucessão de evoluções, ou, as ideias contrárias não são necessárias para manter uma disciplina em órbita e vigor pluridimensional? Assim, Cristina Altman definiu estar a ciência extremamente complexada pelas polarizações. A Conferência, mencionada no ciclo de Conferências da ABRALIN AO VIVO 2020, teve o título idêntico ao curso de pós-graduação que ela proferira em 2017 na Faculdade de Letras da USP: “A Guerra Fria Estruturalista”, em que fui aluno especial, e, por isso; ponho-me à composição desse ofício. Neusa Bastos (prof. Dra. PUC/SP) fez a apresentação da conferencista. A relevância internacional de Cristina Altman não está em suas partidas ao exterior, mas especialmente pela recepção no Brasil, por exemplo de Pierre Swiggers e David Ernst Frideryk Konrad Koerner. A formação da linguista prima pela disciplina da Historiografia Linguística, ao qual se centra “A Guerra Fria Estruturalista”.

Texto

Após o Curso de Linguística Geral de Saussure (1857-1913) e com o término da primeira guerra mundial houve a eclosão de um novo método de fazer ciência. Em especial, a ciência linguística, contou com a partida de Roman Jakobson para Praga – (Rep. Tcheca e Eslováquia) em 1926; onde o Círculo Linguístico de Praga floresceu o campo da Fonologia. A independência dos estudos fonológicos estava se inaugurando entre os linguistas do Círculo de Praga, com novos conceitos e valores distribuídos em sistema estrutural, cuja oposição fonológica em feche binário foi identitária e distintiva.

Anterior à Jakobson em Praga (1926), Edward Sapir (1884-1939), filólogo de formação e especializado em descrições comparativas entre as línguas indo-europeias, abandonara o campo teórico para centrar atenção em descrever as línguas indígenas do território norte-americano. A institucionalização dos trabalhos de Sapir data de 1921 com a edição do Language[1], periódico que apresentou o jeito americano de fazer linguística, após o término da primeira guerra mundial. Isso, para dizer que a congregação de importantes figuras (“heróis”) para a história da ciência linguística nos Estados Unidos releva, ou melhor, põe em relevo o trabalho produzido no território de então.

Na década de 1930, Edward Sapir enfrentou seu principal oponente intelectual, o jovem Leonard Bloomfield (1887-1949) que escreveria em 1933 o livro Language[2], mesmo título da obra de E. Sapir (1921[1]) e Jespersen (1922[3]). Em Yale, Sapir já tinha desenvolvido o grande volume dos trabalhos dele, sendo essa oportunidade crucial para assumir uma liderança organizacional “ele teve toda oportunidade para se dirigir com atividades organizacionais, ainda mais quanto aos materiais linguísticos ou pesquisas de delimitação etnográfica” (MURRAY, 1994, p.102[4]). Cabe distinguir o programa de método mecanicista frente ao método mentalista como outra polarização reconhecida.

Roman Jakobson parte de Praga para Copenhagen em 1939. Lá, adentra o Círculo Linguístico de Copenhagen com a liderança de Hjelmslev (1899-1965), definidamente composta na expansão do Estruturalismo a campos como a semiótica, por exemplo. Antes mesmo de Hjelmslev publicar Expressão e Conteúdo em 1943 Roman Jakobson –quem teve oportunidade de rever Saussure, pioneiro indiscutível –embarcara para Nova Iorque e lecionara na École des Hautes Études entre 1942–1946. A confluência de Joaquim Mattoso Câmara Júnior (1904-1970) nos Estados Unidos entre 1943-1944 trará novas oportunidades para a produção brasileira, chegando ele a assistir encontros no Círculo Linguístico de Nova Iorque.

Jakobson chegou aos Estados Unidos como um grande “Schooler”; nas palavras de Cristina Altman. Mas a institucionalização das publicações na revista Word, criada em 1945, pelo Círculo Linguístico de Nova Iorque introduziria a polarização da ciência linguística, como outrora fizera o periódico Language de 1921. Cristina Altman[5] encerra sua exposição acentuando “o diálogo de praticantes (agentes/heróis) e discurso(s) socia(l/is) que levem ao bem do homem e coocorrência das polarizações”.

Jakobson ministrou o curso Six Leçons sur le sens et son, com Mattoso Câmara no corpo discente. Mattoso Câmara fora peça-chave em grandes sagas pelo reconhecimento da linguística no Brasil, foi o primeiro a traduzir, em 1938, o Language: Introdution in The Speech Studies de Edward Sapir (1921[1]) para a língua portuguesa; sendo responsável pela introdução do estruturalismo no Brasil. De sua produção destaco o Princípio de Linguística Geral (1942, 2ª ed. 1954) que conquistou espaço no quadro nacional como o melhor manual linguístico, por Carlos Uchôa “o primeiro trabalho de orientação estruturalista em relação à nossa língua por um autor de língua portuguesa” (UCHÔA, 2004, p.19[6]).

Está provado que Jakobson fora um grande herói para o estatuto da ciência linguística, onde quer que estivesse –ainda mais pelo artigo de Morris Halle, problematizador do Soviet Phonology, por ser matéria de três escolas maiores: “Leningrad, cuja teorias/práticas sustentam considerável semelhança com os linguistas americanos pós-bloomfieldinos; a escola de Moscow que em muitos aspectos paraleleliza a pesquisa fonológica de Sapir; e a escola baseada nas teorias fonológicas de Avanesov” (HALLE, 1970, p.05).

A relativa polarização dos estudos linguísticos no contexto da Guerra Fria Estruturalista relativizou o campo de estudo fonológico com a criação americana de um sistema descritivo em três feches, e, a adoção do termo Fonêmica –para o método de estudo americano dos sons da fala. Foi possível para Mattoso Câmara Júnior fazer referências americanas e europeias na descrição e estudo da “fonêmica” na tese de doutorado (1949[7]), após regressar ao Brasil. A linguística que seguia o modelo europeu não fora abandonada, mas reincorporada por Nova Iorque, em especial durante a Guerra Fria.

A ponto de receber as passagens de volta para a Europa, Roman Jakobson esteve a ponto, também, de ter suas influências para o avanço da ciência linguística no Círculo de Nova Iorque comprometidas. Segundo conta a Dra. Cristina Altman; a solidez de suas afirmações –sobre o destino, estadas e pesquisas dos heróis no percurso historiográfico –viriam depois do ‘intuitivo’ e ‘rigoroso’ estudo de línguas nativas da América.

Câmara Júnior questiona-se do porquê E. Sapir não usar o termo fonema; e, nos conta uma anedota: “é sintomático que neste livro de 1921 E. Sapir ainda não utilize o termo “fonema”, típico de Boudain de Courtenay, mestre de São Petersburgo, para designar um conceito (“equivalente psíquico de som”) muito próximo do que desenvolve o mestre norte americano [...] O Círculo Linguístico de Praga, oficialmente fundado cinco anos depois da publicação do presente livro, entrou em contacto com Sapir em 1930. Quando o convidou a participar do Congresso Fonológico Internacional naquela cidade, o que, entretanto, êle não pôde comparecer” (SAPIR, 1971, prefácio do Tradutor[8]).

Estamos longe de ver as influências do Estruturalismo que emergiu com Ferdinand du Saussure e o Curso de Linguística Geral de 1917 deixarem o estatuto paradigmático dessa ciência. As descobertas que se podem fazer, seja através das portas que nos guiam ao ‘porão’ para solidificar as bases da ciência nos manuais, periódicos e teses; seja através das portas do ‘sótão’ que permitem sempre contemplar uma vista panorâmica sobre o assunto, a favorecer os heróis da ciência linguística.

Referências

A Guerra Fria Estruturalista. Conferência apresentada por Maria Cristina Fernandes Salles Altman [S.1. s.n.] 2020. 1 vídeo (1h 51min 45s). Publicado pelo Canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-v=UsgBMHjwbxU. Acesso em: 12 jun. 2020.

ALTMAN, Cristina. A pesquisa Linguística no Brasil (1968-1988). São Paulo: Humanitas, 1998.

BLOOMFIELD, Leonard. Language. New York: Holt, 1933.

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Para o Estudo da Fonêmica Portuguesa. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1953.

GONÇALVES VIANA, Anacleto. Ortografia Nacional Lisboa: Tavares Cardoso, 1904.

JESPERSEN, Otto. Language. London: Allen & Unwin, 1922.

MURRAY, Stephen O. Theory groups and the study of language in North America. Amsterdam & Philadelphia: John Benjamins, 1994.

SAPIR, Edward. Language. New York: Harcourt & Brace, 1921.

SAPIR, Edward. A linguagem. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1971[1921].

SEBEOK, T. A. Current Trends in Linguistics. Paris: Mounton, 1975.

SWIGGERS, Pierre. Modelos, métodos y problemas en l’Historigrafía de la Linguística. Madrid: Arco Libros, 2004.

UCHÔA, Carlos Eduardo Falcão. Dispersos de J. Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.