Por um ensino de língua portuguesa sociolinguisticamente orientado

Victor Renê Andrade Souza,
Vitória Laís Santos Silva,
Lucas Santos Silva

Resumo

Este texto apresenta uma resenha crítica e colaborativa da conferência “Bases para uma pedagogia da variação linguística” proferida por Carlos Alberto Faraco (UFPR) e mediada por Raquel Meister Ko. Freitag (UFS) no evento Abralin ao Vivo – Linguists Online, organizado pela Associação Brasileira de Linguística (Abralin). Faraco advogou acerca das bases para uma pedagogia da variação linguística (FARACO, 2008; ZILLES; FARACO, 2015). O conferencista discutiu conceitos sociolinguísticos basilares, como a noção de normas linguísticas; abordou os princípios e objetivos da proposta pedagógica, apontando as dificuldades da implementação no ensino de língua portuguesa na educação básica; e destacou os avanços nas propostas pedagógicas baseadas numa pedagogia da variação linguística.

Texto

Estudos acerca da variação linguística não são incipientes no Brasil e uma proposta de ensino voltada à diversidade linguística não é novidade. A Sociolinguística brasileira tem um amplo conjunto de trabalhos descritivos que sistematizam e explicam a variação (cf. PAIVA; SCHERRE, 1999[1]; SCHERRE, 2012[2]; ABRAÇADO; MARTINS, 2015[3]; FREITAG, 2016[4]). A diversidade linguística já figura nos documentos oficias das políticas públicas educacionais (cf. FREITAG, 2015[5]; ANDRADE; FREITAG, 2016[6]; CONCEIÇÃO; PEREIRA, 2018[7]). Entretanto, o grande gargalo é fazer com que a compreensão da variação linguística extrapole os meios acadêmicos e chegue efetivamente às salas de aula de língua portuguesa. Como alternativa a esse desafio, o professor Carlos Alberto Faraco propõe as bases para uma pedagogia da variação linguística (FARACO, 2008[8]; ZILLES; FARACO, 2015[9]), tema de sua conferência[10], ocorrida no dia 08 de maio de 2020 no evento Abralin ao Vivo – Linguists Online, organizado pela Associação Brasileira de Linguística.

A pedagogia da variação linguística defendida por Faraco se aproxima da Sociolinguística Educacional, proposta pela professora Stella Maris Bortoni-Ricardo (2004)[11]. É a Sociolinguística a serviço da educação, tal qual desenvolvida pioneiramente por Labov (1972)[12], na obra Language in the Inner City: Studies in the Black English Vernacular. Para Faraco, significa pensar em um ensino de português sociolinguisticamente bem informado em bases empíricas, o que pressupõe uma abordagem não “folclorizada” e “cosmética” da variação.

Não existem línguas fora das sociedades humanas. A diversidade linguística é reflexo da organização social. Faraco argumenta que entender a heterogeneidade da língua é entender a sociedade em que vivemos, sua história, sua cara socioeconômica e cultural, como destaca Dante Lucchesi (2015)[13], no livro Língua e Sociedades Partidas: a polarização sociolinguística no Brasil. Somente a partir desta compreensão é possível desenvolver práticas pedagógicas que conquistem os alunos e oriente-os a uma atitude de respeito linguístico, na medida em que se apropriem da história social, da miscigenação dos povos e do impacto desses fatores na estrutura linguística.

Nesse sentido, consoante a Faraco, cabe aos professores de língua portuguesa desenvolver uma pedagogia da variação linguística, integrada às demais dimensões do ensino de língua, com vistas a três grandes objetivos: i) conhecer e entender a variação linguística; ii) entender e respeitar a variação linguística; e iii) entender e transitar com segurança pelo universo da variação linguística.

Entretanto, Faraco reconhece que percorrer este caminho não é fácil e aponta os desafios imbricados na consecução desses objetivos. O conhecimento consistente da variação linguística é pouco disseminado entre professores de língua portuguesa e entre alunos dos cursos de Letras, já que eles muitas vezes saem sem entender suficientemente sobre variação linguística e sem sequer superar criticamente os estigmas sociais, contrariando o terceiro dos objetivos. Tendo em vista que o evento Abralin ao Vivo – Linguists Online tem um público-alvo especializado, perguntas feitas no chat durante a transmissão ao vivo da conferência do professor Faraco sinalizam falhas na formação inicial de professores para o ensino de língua materna: “Quando um adulto fala ‘eu ouvo’ podemos considerar como variação linguística?”; “Você poderia explicar se, um adulto que emprega de maneira errada uma palavra (no âmbito gramatical, semântico), mesmo tendo acesso às normas gramaticais, está cometendo desvio ou variação?”; “Quando o aluno fala errado na sala de aula e o professor imediatamente o corrige é correto?”.

Na mesma direção, não é fácil enfrentar as representações do senso-comum acerca das normas linguísticas, baseadas numa prescrição de gramáticas tradicionais. Faraco traz ao debate a celeuma do livro didático Para uma Vida Melhor que abordava variação linguística e foi alvo de críticas pelos principais meios de comunicação no Brasil, levantando em todas as esferas um intenso debate acerca do ensino de língua portuguesa (LUCCHESI, 2011)[14]. No episódio, Faraco destaca que à época um renomado gramático afirmou que a variação linguística deveria ficar restrita ao universo acadêmico, pois a única função da escola seria ensinar a norma padrão. Essa afirmação é mais uma amostra do desafio que envolve a aplicação da pedagogia da variação linguística.

Faraco critica também o forte imaginário social que estigmatiza parte das variedades linguísticas e afirma que a nossa sociedade é extremamente polarizada. Por isso, é provável que a pedagogia da variação linguística seja recusada nas escolas, pois os dirigentes, professores, pais e até mesmo os alunos estão imersos no imaginário social que demoniza a variação, seja ela linguística ou social. Esse imaginário autoritário defende que a língua é homogênea e que todos devem falar igual, transformando a diferença linguística em marca de inferioridade. Assim, assumir uma pedagogia da variação linguística requer um compromisso político, um ativismo sociolinguístico pela construção de uma sociedade justa, democrática e pluralista.

Nenhuma variedade é linguisticamente superior à outra, mas, apesar de não haver hierarquização dessas variedades baseada em critérios linguísticos, há hierarquização construída histórica e socialmente. Perceber esse constructo histórico-social é uma revolução conceitual e valorativa que nos permite questionar e desconstruir essa hierarquização. E é no interior desse quadro que Faraco defende ser possível entender a existência da norma de referência pertinente a certas situações linguísticas e ser importante conhecer essa norma como parte do domínio das respectivas práticas e tradições em que ela é pertinente. Faraco argumenta que não existe conflito em adotar uma pedagogia da variação linguística e o ensino de uma norma. O professor propõe, dentro da própria pedagogia da variação linguística, o desenvolvimento de uma pedagogia da norma de referência – termo adotado em alternativa à expressão norma culta – a fim de escancarar que não há negação da norma de referência. Assim, os defensores da pedagogia da variação linguística devem garantir que os alunos, além de compreenderem e respeitarem a variedade linguística, tenham acesso à norma de referência, conhecendo e dominando suas funcionalidades e características, sobretudo no que tange à escrita monitorada.

Entretanto, o linguista argumenta que essa norma de referência deveria se relacionar com o que ele chama de português standard falado, isto é, com a norma culta falada. Faraco salienta a confusão terminológica e conceitual que afeta a questão da norma de referência, assumindo que é tarefa urgente das universidades destrinchar essa confusão. Além disso, sinaliza que não foi construído até hoje um consenso sobre a norma de referência, fato que deixa os professores sem um norte seguro de qual normatização seguir e ensinar. Para o linguista, as contradições entre os instrumentos normativos são pouco percebidas pelos professores, mídia e público em geral, e essa falta de um direcionamento normativo relativamente consensual acaba por dar espaço ao que ele chama de norma curta, que é um discurso autoritário, dogmático, inflexível e sem fundamento empírico sobre a língua, resultando em rótulos de avaliação social como “essa palavra não existe na língua X”, “é errado falar assim”. É preciso construir um consenso com base em um estudo empiricamente consistente e desenvolver um conceito flexível de norma de referência, o que significa fazê-la emergir das práticas do português brasileiro standard.

Voltando aos desafios do ensino de língua portuguesa, Faraco diz que a escola deve garantir o domínio e o acesso ao português brasileiro standard falado e, dentro desse processo, à variedade normatizada, ou em outros termos à modalidade formal escrita do português brasileiro contemporâneo. Assim, não há como trabalhar com a variedade do português brasileiro standard sem situá-la no quadro amplo da variação linguística.

Em suas palavras finais, o linguista destaca os avanços no que tange às práticas pedagógicas baseadas na pedagogia da variação linguística, na figura das propostas da professora Silvia Rodrigues Vieira (UFRJ) (cf. VIEIRA, 2018)[15], que publicou juntamente com Monique Débora Alves de Oliveira Lima o ebook Variação, gêneros textuais e ensino de português: da norma culta à norma padrão (VIEIRA; LIMA, 2019)[16], obra que demonstra como é fundamental trabalhar a variação linguística nos contínuos propostos por Bortoni-Ricardo (2004)[11], tendo os diferentes gêneros textuais como referência. Carlos Alberto Faraco encerra sua potente fala afirmando que a tradição escolar opera com rigidez e se sustenta numa cultura do erro e que o horizonte que estamos a desbravar é o da flexibilidade e o da cultura da adequação.

Referências

ABRAÇADO, J.; MARTINS, M. A. (Ed.). Mapeamento sociolinguístico do português brasileiro. Editora Contexto, 2015.

ANDRADE, S. R. de J.; FREITAG, R. M. K. A evolução do tratamento da variação linguística no Enem. Signum: Estudos da Linguagem, v. 19, n. 1, p. 293-320, 2016.

BASES para uma pedagogia da variação linguística. Conferência apresentada por Carlos Alberto Faraco [s.l., s.n.], 2020. 1 vídeo (1h 9 min 15s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3kS-RHie0Zw&feature=emb_title. Acesso em: 08 maio 2020.

BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

CONCEIÇÃO, R. B. da; PEREIRA, T. C. Avaliação de políticas que orientam o ensino da variação linguística. Web Revista SOCIODIALETO, v. 8, n. 23, p. 65-79, jun. 2018.

FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.

FREITAG, R. M. K. Entre a teoria e a prática: a Provinha Brasil e o tratamento da variação linguística na alfabetização. Interfaces cientificas-educaçâo, v. 3, n. 3, p. 43-54, 2015.

FREITAG, R. M. K. Sociolinguística no/do Brasil. Cadernos de Estudos Lingüísticos, v. 58, n. 3, p. 445-460, 2016.

LABOV, W. Language in the inner city: Studies in the Black English vernacular. University of Pennsylvania Press, 1972.

LUCCHESI, D. Ciência ou dogma? O caso do livro no MEC e o ensino de língua portuguesa no Brasil. Revista Letras, Curitiba, n. 83, p. 163-187, 2011.

LUCCHESI, D. Língua e sociedade partidas: a polarização sociolinguística do Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2015.

PAIVA, M. da C. de; SCHERRE, M. M. P. Retrospectiva sociolingüística: contribuições do PEUL. DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada, v. 15, n. SPE, p. 201-232, 1999.

SCHERRE, M. M. P. Padrões sociolinguísticos do português brasileiro: a importância da pesquisa variacionista. Tabuleiro de Letras, n. 4, 2012.

VIEIRA, S. R. Gramática, variação e ensino: diagnose e propostas pedagógicas. 2. ed. São Paulo: Blucher, 2018.

VIEIRA, S. R.; LIMA, M. D. A. de O. (Orgs.). Variação, gêneros textuais e ensino de Português: da norma culta à norma-padrão. Rio de Janeiro: Letras UFRJ, 2019.

ZILLES, A. M. S.; FARACO, C. A. (Org.). Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.