Como falar sobre as bases da pedagogia da variação linguística num contexto sem norma de referência?

Vitor Hochsprung,
Caroline Huntermann,
Karina Zendron da Cunha

Resumo

Nesta resenha, iremos falar sobre a vídeo conferência intitulada “Bases para uma Pedagogia da Variação Linguística” ministrada pelo autor Carlos Faraco, que ocorreu em 08 de maio de 2020. O autor aborda diversos pontos de extrema importância, que necessitam cada vez mais de atenção por parte dos professores de língua portuguesa. Ele explica sua visão de ensino através da chamada “Pedagogia da variação linguística” e de como ela deve estar presente em sala de aula de forma científica. Faraco cita também a importância de se trabalhar com a bagagem sociocultural dos alunos e a necessidade de quebrar o senso comum e mitos da linguagem, que acabam reproduzidos por gerações de professores. Mostramos, assim, nosso ponto de vista de acordo com a fala do autor.

Texto

No dia 08 de maio de 2020, no evento Abralin ao Vivo1, Carlos Faraco abordou, dentro dos estudos sociolinguísticos, a variação linguística e os desafios para o ensino de português, em uma conferência intitulada “Bases para uma Pedagogia da Variação Linguística”[1].

Carlos Alberto Faraco, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Paraná, tem diversas publicações, entre as quais destacamos “Norma culta brasileira: desatando alguns nós” e “Para conhecer norma linguística”, este em coautoria com Ana Maria Zilles[2].

Nesta resenha, pretendemos, além de comentar os principais pontos destacados por Faraco, reforçar a necessidade urgente de uma renovação nas aulas de língua portuguesa, uma vez que, como a mediadora, Raquel Freitag, salientou, há reflexões antigas sobre o tema que infelizmente ainda são muito atuais.

O professor começa a fala explicando que a pedagogia da variação linguística deve estar correlacionada às pedagogias da oralidade, da leitura, da produção textual, da gramática etc. Ao assumi-las, o docente deve tratá-las com clareza e consistência. Faraco também menciona o perigo de lidar com a variação de forma folclorizada e cosmética, alegando que isso reforça o senso comum. A variação, como todo aspecto linguístico, deve ser trabalhada cientificamente.

Concordamos com este ponto de vista, pois acreditamos que a perspectiva científica contribui com o conhecimento dos estudantes, assim como com criatividade e capacidade interpretativa, já que, com o contato científico, eles ficarão muito mais resistentes ao senso comum.

Para trabalhar com variação linguística na escola, Faraco determina três objetivos: (i) conhecer e entender a variação; (ii) entender e respeitar a variação e; (iii) entender e transitar com segurança pela heterogeneidade linguística.

Ao primeiro objetivo, acrescenta que entender a língua que falamos é entender a sociedade em que vivemos. Isso abre espaço para trabalhos transdisciplinares com disciplinas como Sociologia e História. Na nossa perspectiva, o trabalho com variação linguística também é cabível em disciplinas que não necessariamente incorporam as ciências humanas, como matemática, por exemplo, se pensarmos em um trabalho de pesquisa sociolinguística em que os dados aparecem ilustrados em gráficos ou tabelas.

O segundo objetivo aborda a visão de que o modo como cada pessoa fala espelha a sua bagagem sociocultural. Logo, trabalhar com respeito em termos linguísticos também abre portas para o desenvolvimento do respeito em outros âmbitos.

Alcançar esses dois objetivos, contudo, não é tarefa fácil. Sabemos que muitos professores não estão aptos a falar de variação linguística, o que pode ser fruto da falta de abertura pessoal para o tema. Alguns professores defendem o senso comum de que existe um jeito certo de falar e que tudo o que desvia disso não é língua. A visão de língua como ciência é ignorada também por alguns professores universitários, o que pode ter relação com o fato de que uma parcela dos nossos cursos, ao invés de despertar para uma crítica sistemática, tem servido mais para reforçar o que há de pior no senso comum. Faraco aponta esse tema como possibilidade para debate futuro. Um debate urgentíssimo, acreditamos.

É comum ouvir professores de língua portuguesa reproduzirem discursos em que lamentam o “assassinato da língua portuguesa”. Bagno (2007)[3] chama esse tipo de manifestação de "tradição da queixa" e salienta que a crença nesse padrão, muito distante da realidade dos usos, fomenta essa tradição em todos os países e momentos históricos. Não é difícil de entender, portanto, que a simples menção à heterogeneidade linguística seja duramente criticada pela escola, pelos pais e pela mídia.

Sobre isso, Faraco relembra a polêmica ocorrida em 2011 sobre o livro didático "Por uma vida melhor" que abordava variação linguística. Essa polêmica deu espaço para gramáticos normativos defenderem que a discussão sobre variação linguística não deve sair das universidades. Bechara concedeu uma entrevista em que afirma que "a defesa que foi feita desse livro decorre de um equívoco. Estão confundindo um problema de ordem pedagógica, que diz respeito às escolas, com uma velha discussão teórica da sociolinguística, que reconhece e valoriza o linguajar popular" (VEJA, 2011, p. 21)[4]. Esse posicionamento revela incoerência, já que na escola existe heterogeneidade social (logo linguística) que deve ser conhecida, entendida e respeitada. A defesa de uma norma-padrão, como bem aponta Faraco, é falha, pois não conhecemos as características dessa norma.

Para embasar sua discussão, Faraco retoma Bakhtin que chama de “consciência galiliana” o que percebe a heterogeneidade como um fato e de “consciência ptolomaica”, o que não percebe a heterogeneidade. Faraco explicou que é preciso superar a consciência ptolomaica e adotar, na pedagogia da variação linguística, a consciência galiliana. Porém, adotar uma pedagogia da variação linguística é uma revolução radical que só é possível em situações socio-históricas muito específicas.

Atualmente, fazer isso parece utopia. Aos poucos, devemos usar as contribuições científicas para contraponto e debate, pois há uma crença comum de que, ao mostrar apoio à ciência e defender o trabalho com variação linguística, estamos defendendo que na língua “tudo pode”.

Para responder a esse pensamento, Faraco retoma o terceiro objetivo e acrescenta as reflexões sobre monitoramento linguístico, que diz respeito ao modo como cada falante se adequa às situações comunicativas2. Ele propõe construir, no interior da pedagogia da variação linguística, uma pedagogia da norma de referência (para fugir dos termos norma culta e norma-padrão)3.

Faraco defende que norma de referência (norma-padrão) deveria se relacionar com o português brasileiro standard falado (normas cultas faladas), mas infelizmente não é uma realidade no Brasil. A norma de referência é ainda artificial e anacrônica.

De acordo com Faraco, não há conflito entre respeitar as diferenças e promover o ensino da norma de referência. Sendo assim, retomando os três objetivos apontados inicialmente, ele conclui que os dois primeiros estão no domínio da utopia. Também não é fácil dar condições de acesso e domínio do português brasileiro standart e, portanto, à variedade normatizada da escrita monitorada, pois não é possível trabalhar com a norma de referência sem situá-la no quadro da variação linguística. O estudante precisa entender as variedades e querer se apropriar da norma de referência.

Faraco cita pesquisas sobre variação linguística em livros didáticos e ENEM feitas por Marcos Bagno. Nessas pesquisas, ele verifica 21 diferentes terminologias para o mesmo fenômeno de normatização linguística. Se não há consenso sobre a norma-padrão/norma de referência, o que deve ser ensinado afinal? Como construir uma pedagogia da norma de referência se nem sabemos quais são as suas características?

Para ampliar um pouco a discussão e entrar no mérito de algumas questões feitas pelo público ao Faraco sobre a Base Comum Curricular (BNCC)[5], é importante mencionar que essa confusão terminológica está presente inclusive no documento oficial. No trecho a seguir, é perceptível que a norma-padrão é considerada uma variedade da língua:

[...] estudos de natureza teórica e metalinguística – sobre a língua, sobre a literatura, sobre a norma padrão e outras variedades da língua – não devem nesse nível de ensino ser tomados como um fim em si mesmo [...] [5]

(BRASIL, 2019, p. 71)

Essa falta de um norte normativo relativamente consensual acaba dando espaço ao charlatanismo normativo que resulta em prejuízos enormes. A confusão terminológica cria impedimentos para atingirmos os objetivos escolares, por isso, Faraco aponta como tarefa urgente da universidade desfazer essas confusões.

Ele sugere que sejam considerados o desenvolvimento de um conceito flexível de norma de referência e a construção de um consenso empírico para saciar essa insegurança terminológica que incomoda linguistas e professores.

No final, Faraco destaca a proposta do livro “Variação, gêneros textuais e ensino de Português: da norma culta à norma-padrão”, organizado por Vieira e Lima (2019)[6]. As pesquisas mostram a importância de se trabalhar a língua através dos contínuos fala-escrita, rural-urbano e de monitoramento linguístico através de gêneros textuais que contextualizam a língua4. Fazer isso é um avanço, pois revela a diversidade estilística no interior da norma culta e nos dá parâmetros para a criação de uma norma de referência sustentável que não desmerece a variação.

A tradição normativa na escola é sustentada na cultura do erro e fugir disso é um sonho utópico, mas Faraco nos instiga a continuar sonhando e trabalhando para desatar esses nós!

A conferência está disponível online. Recomendamos para pesquisadores, professores e estudantes que, como nós, sonham com novos caminhos para o ensino de língua materna.

Referências

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum curricular. Brasília, DF, 2019. 595p.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.

FARACO, Carlos Alberto; ZILLES, Ana Maria. Para conhecer norma linguística. São Paulo: Contexto, 2017.

FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.

BASES por uma pedagogia da variação linguística. Conferência apresentada por Carlos Amberto Faraco [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h 9min 15s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3kS-RHie0Zw. Acesso em: 07 jun 2020.

VEJA. Em defesa da gramática. São Paulo, p. 21-25. 01 jun. 2011. Entrevista a Roberta de Abreu Lima.

VIEIRA, Silvia Rodrigues; LIMA, Monique Débora Alves de Oliveira (orgs.) Variação, gêneros textuais e ensino de Português: da norma culta à norma-padrão. Rio de Janeiro: Letras UFRJ, 2019.