"Pidgin" e "crioulo" como rótulos sócio-históricos

Bruno Pinto Silva

Resumo

Na conferência “How Pidgins Emerged? Not as We Have Been Told” proferida por Salikoko S. Mufwene, professor do Departamento de Linguística da Universidade de Chicago, e destacado especialista na área de estudos de línguas classificadas como pidgins e crioulos, questionam-se diversos pontos da narrativa tradicional adotada por muitos linguistas sobre a emergência de pidgins e crioulos. Toda a obra de Mufwene se contrapõe à narrativa tradicional acerca de pidgins e crioulos por, entre vários outros pontos, redefinir a compreensão dos rótulos “pidgin” e “crioulo”. Segundo Mufwene, pidgins e crioulos se desenvolveram separadamente, em ecologias diversas, e em épocas diferentes. A partir desta perspectiva, os rótulos “pidgin” e “crioulo” são rótulos sócio-históricos, não estruturais e tampouco se relacionam a uma etapa de um ciclo de vida.

Texto

A conferência “How Pidgins Emerged? Not as We Have Been Told[1] apresentada por Salikoko S. Mufwene, professor do Departamento de Linguística da Universidade de Chicago, como parte do evento Abralin ao vivo – Linguists online, é de notável importância não apenas aos linguistas cujas pesquisas se inserem na Linguística de Contato, ou ainda mais precisamente dos que lidam diretamente com crioulos e pidgins, mas também a todos os colegas das demais áreas que não estão a par das longas discussões que ainda estão em andamento na área conhecida como “crioulística”.

É muito comum que em manuais de Linguística, dicionários de Linguística e, consequentemente, nossas aulas nas Letras, explique-se a gênese de línguas crioulas exclusivamente por meio do modelo clássico conhecido como “ciclo de vida dos crioulos” (HALL 1962, 1966[2,3]). Tal ciclo tem, resumidamente, as seguintes etapas: pidgin → crioulo → pós-crioulo. É justamente este ciclo que toda a obra de Salikoko S. Mufwene questiona. Questionar esta ideia tão antiga na Linguística se vê claramente no título da conferência sobre a qual ora se comenta, e também em seus muitos livros, capítulos de livros e papers em que se faz questão de citar Crioulos e Pidgins (nesta ordem), só para contrariar a ordem do Ciclo de Vida.

Mufwene começa sua conferência chamando a atenção para a narrativa tradicional dentro da Linguística acerca do desenvolvimento de pidgins. Pidgins seriam línguas que se desenvolveram a partir do contato esporádico de comerciantes europeus com populações não europeias entre os séculos XV e XIX. Destes contatos, teriam surgido línguas reduzidas, menos complexas, como resultado de uma ‘aprendizagem imperfeita’ (como se lê comumente na literatura especializada). Com o tempo, os pidgins passaram pelo processo de nativização, ou seja, passaram a ter falantes nativos e, desse modo, se tornaram línguas crioulas. Em suma, a tradicional diferença entre pidgins e crioulos seria o fato de pidgins não terem falantes nativos, pois ao se expandirem e passarem a ter falantes nativos tornam-se crioulos (cf. BICKERTON 1984[4]).

Mufwene traz à tona em seus textos, e também na conferência que é tema desta resenha, o fato de que a narrativa tradicional muitas vezes é anistórica e anacrônica (i.e., é contrária à História e à cronologia dos fatos). Com isso, levantam-se muitas questões importantes que são deixadas de lado na narrativa tradicional. É imprescindível, por exemplo, entender como se davam as interações sociais nas transações comerciais, a ordem dos acontecimentos dos processos de globalização, e levar em conta o que a História diz sobre a ecologia particular de cada caso em que surgiu uma nova língua a partir do contato. Estes são alguns dos pontos levantados por Mufwene em sua conferência, e visto que eu não entrarei em sua argumentação aqui, fica a recomendação aos interessados a leitura de Mufwene (2007[5]) para explicação mais ampla.

Mufwene prossegue então com o objetivo de defender que os rótulos “pidgin” e “crioulo” são rótulos sócio-históricos, não estágios ou etapas de um ciclo. Trazendo a atenção para fatos históricos, ele mostra que crioulos e pidgins se desenvolveram em ecologias diferentes e em épocas diferentes. Em Mufwene (2015)[6], explica-se que pidgins surgiram em colônias desenvolvidas em torno de fortes de comércio, ao passo que crioulos se desenvolveram em colônias de povoamento cuja atividade principal era o cultivo de cana-de-açúcar e arroz por parte de escravos. Em sua conferência, Mufwene também enfatiza que o termo “crioulo” surgiu no final do século XVI na América Latina, ao passo que o termo “pidgin” surgiu no começo do século XIX em Cantão, na China.

Repensar toda a narrativa tradicional sobre a gênese de crioulos e pidgins é muito importante por várias razões e passarei a comentar algumas delas, ainda que de maneira bastante superficial, não da maneira que gostaria. Espero, no entanto, que as referências usadas nesta resenha sirvam aos leitores para remediar isso.

A tradição do ciclo de vida dos crioulos criou também a tradição de considerar estas línguas como exceções a todas as outras línguas naturais. Por sua vez, isso levou a que se postulassem teorias específicas que tentam explicar a gênese de uma língua a partir do contato. Estas teorias, no entanto, deixam de lado questões sócio-históricas que são vitais para contar a história dessas línguas e entender como de fato se deu a formação delas.

Entre algumas das noções que nasceram desta tradição, pode-se citar (1) a quebra ou ruptura de transmissão linguística regular, (2) a aprendizagem imperfeita, (3) a quebra da relação genética dessas línguas com aquelas que participaram de sua formação. Também é comum que na literatura apareçam questionamentos quanto à complexidade de pidgins e crioulos. Em Dixon (2010, p. 21)[7], por exemplo, lê-se que “dentre os crioulos mais bem documentados, nenhum se equipara à complexidade — ou ao poder comunicativo — de uma língua não-crioula”. Tal comentário em um livro de introdução a teorias linguísticas é reflexo da ideia de que tanto pidgins quanto crioulos são menos complexos do que línguas que não têm estes mesmos rótulos.

Ora, será mesmo que a faculdade da linguagem dos primeiros falantes de pidgins e crioulos tem um funcionamento diferente da dos falantes de línguas que não são classificadas como pidgins e crioulos? Por muito tempo prevaleceu a ideia de que esses primeiros falantes de línguas de contato eram pessoas “de uma raça linguística inferior”, como se lê no “Dictionnaire des Sciences Anthropologiques” de Julien Vinson[11] (1889 apud ABOH e DEGRAFF, 2017[8]). Olhar atentamente para o começo da narrativa tradicional da crioulística nos ajudará a ver que ideias colonialistas acerca de crioulos e pidgins penetraram de tal modo esses primeiros estudos que até hoje prevalecem (cf. DEGRAFF 2005[9]). Estas ideias precisam ser repensadas com urgência, e é justamente isso que está sendo feito por Mufwene e outros cujos objetivos de investigação tocam especialmente nessas ideais tão propagadas na crioulística clássica.

Entre outros linguistas que seguem a linha de Mufwene, e que também têm contribuído para revisitar e repensar essas ideias clássicas da crioulística, estão Enoch Aboh, Michel DeGraff e Umberto Ansaldo, para citar apenas alguns. Recomendo a leitura de Ansaldo et al. (2007[10]) a todos os dispostos a repensar os estudos de pidgins e crioulos. Neste livro, do qual Mufwene é coautor de um dos capítulos, trata-se de alguns mitos sobre línguas crioulas, a saber, o mito da simplicidade, o mito da descrioulização, o mito da diacronia excepcional (no sentido negativo da palavra).

Referências

ABOH, Enoch; DEGRAFF, Michel. A Null Theory of Creole Formation Based on Universal Grammar. Oxford Handbooks Online, 2017. DOI: 10.1093/oxfordhb/9780199573776.013.18

ANSALDO, Umberto; MATTHEWS, Stephen; LIM, Lisa. Deconstructing Creole. John Benjamins: 2007.

BICKERTON, Dereck. The language bioprogram hypothesis. The brain and behavioral sciences 7(2), p. 173-221. 1984.

DEGRAFF, Michel. Linguists’ most dangerous myth: The fallacy of Creole Exceptionalism. Language in Society, 34(04), 2005.

DIXON, R. M. W. Basic linguistic theory. Volume 1: Methodology. Oxford: Oxford University Press, 2010.

HALL JR., Robert A. The life-cycle of pidgin languages. Lingua 11, p. 151-156, 1962.

HALL JR., Robert. Pidgin and creole languages. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press. 1966.

HOW Pidgins Emerged? Not as We Have Been Told. Conferência apresentada por Salikoko S. Mufwene [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h 19min 11s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9nsTHFxq-9w. Acesso em: 07 maio 2020.

MUFWENE, Salikoko S. Population movements and contacts in language evolution. Journal of Language Contact 4 THEMA 1: 63491, 2007.

MUFWENE, Salikoko S. Pidgin and Creole Languages. In: WRIGHT, James (ed.). International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences. 2nd edition, Vol. 18. Oxford: Elsevier, 2015.

VINSON, Julien. Créoles. In: BERTILLON, Adolphe et al. (ed.). Dictionnaire des sciences anthropologiques. Paris: Doin, p. 345–347, 1889.