Espaços de subjetivação discursiva: o funcionamento da autoria em textos autobiográficos da Psicologia Analítica
Resumo
Este artigo propõe uma análise do funcionamento discursivo das instâncias de enunciação em textos autobiográficos, situando-se no quadro conceitual da Análise do discurso (MAINGUENEAU, 2016a). O objetivo é investigar o modo como os eventos enunciativos do corpus instituem um regime de subjetivação no qual se inscrevem imagens de autor. Dialogo com os conceitos da Análise do discurso francesa, a fim de estudar como a cenografia discursiva legitima a enunciação, constituindo um problema do ponto de vista da autoralidade. O estudo mobiliza as noções de funcionamento de autoria e cenografia, a fim de reafirmar a tese de que o enunciador cria as condições da própria enunciação. Trabalho com um corpus composto de textos autobiográficos de Carl Gustav Jung (1875-1961) – fundador da Psicologia Analítica –, considerando os enunciados como a materialidade de um posicionamento específico, de um discurso constituinte. A análise apresentada demonstra que, no texto autobiográfico Livro Vermelho, a cenografia subscreve a subjetividade autoral e legitima a fala individual como campo de estudos validado por uma “Obra”.
Introdução
Este artigo propõe, a partir dos conceitos do quadro teórico da Análise do discurso (MAINGUENEAU, 2016a)[1], uma análise do funcionamento das instâncias de autoria em textos que representam a cenografia autobiográfica, com o objetivo de demonstrar como se constitui o fenômeno da autoralidade em um posicionamento específico do campo Psicológico: a Psicologia Analítica. A hipótese de partida deste trabalho é a de que é possível analisar o mecanismo de inscrição da subjetividade na cenografia de enunciados autobiográficos a partir da imbricação de distintas instâncias de enunciação, às quais Dominique Maingueneau (2016a)[1] designou pessoa, inscritor, e escritor. Uma abordagem das instâncias de autoria é desenvolvida por Maingueneau em vários artigos publicados pelo autor desde a década de 1990; conceitos ligados ao funcionamento da autoria são reunidos e tratados de modo específico em Análise do discurso literário, obra na qual o Maingueneau demonstra que as instâncias de autoria estão imbricadas e se apresentam de modo indissociável no âmbito da enunciação, o que se faz perceptível na forma como a identidade autoral é apreendida a partir da cenografia que a enunciação instaura.
O estudo dos regimes de inscrição da subjetividade, do ponto de vista da Análise do discurso, aborda o modo como estão associadas as noções de imagem de autor e gestão da obra pela comunidade discursiva e pelos editores. Cabe, no entanto, observar que as noções de “imagem de autor” e “instâncias da autoria” (MAINGUENEAU, 2016a)[1] referem-se a conceitos distintos, porém, complementares, reunidos no presente estudo com a finalidade de abordar um corpus de textos do campo da Psicologia, dadas as suas especificidades. Com o objetivo de analisar enunciados psicológicos desde o prisma da ordem do discurso, abordarei o regime de subjetivação que opera em textos autobiográficos assinados pelo psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961).
Mobilizarei os conceitos de instâncias de enunciação, cenografia, paratopia, imagem de autor, comunidade discursiva e gestão da obra, inserindo este estudo no quadro teórico da Análise do discurso (MAINGUENEAU, 2016a)[1].
1. Autoralidade e instâncias de enunciação
A fim de analisar os aspectos discursivos a partir de textos cuja categorização genérica é problemática quanto à definição de seu status pragmático – como é o caso da obra Livro vermelho, de Carl Jung – será necessário ampliar a concepção de enunciação para além das abordagens que distinguem um sujeito enunciador e um sujeito exterior à enunciação, dada a complexidade dos processos de criação textual em jogo. No caso específico de textos produzidos no âmbito do discurso psicológico, e que, no entanto, não são propriamente (formalmente) teóricos, mas utilizam-se da cenografia literária, considerar a questão genérica e o posicionamento no interdiscurso significa problematizar a oposição entre um “enunciador” e um “escritor”, um “interior” e um “exterior” ao texto (MAINGUENEAU, 2016b, p. 103)[2]. Tendo em vista estas características relativas à nossa abordagem, procurarei apresentar algumas das condições para a reflexão sobre autoralidade1.
A princípio, considero a instituição interdiscursiva da Psicologia Analítica, de Carl Gustav Jung, tomando-a como um discurso constituinte que pretende legitimar o direito de dizer o que diz, impondo-se e atravessando outros territórios sociodiscursivos (ciência, religião, literatura, filosofia). Analisarei, deste modo, os enunciados do corpus, demonstrando como a cenografia e as instâncias de enunciação funcionam no caso específico de um gênero autobiográfico inscrito no campo da Psicologia, no início do século XX (cuja produção é permeada por um processo de edição que durou de 1914 a 1956, e ainda foi editada para publicação póstuma).
Conforme demonstrou Maingueneau em Gênese dos discursos (2005),[3] considerando a semântica global das práticas discursivas, cada posicionamento é atravessado por outros, contra os quais ele se coloca no interdiscurso a fim de se afirmar; assim sendo, a instituição discursiva está constitutivamente presente na produção e circulação de textos e obras. Ao reorientar a abordagem da autoralidade, Maingueneau (2016a, p. 53)[1] propõe que os eventos enunciativos de uma obra textual sejam compreendidos como instituição discursiva; logo, ao abordar determinados gêneros discursivos como produtos e reprodutores de discursos constituintes, a AD opera um deslocamento do foco das questões que opõem texto e contexto, para ocupar-se do modo de existência das obras no interdiscurso. Desta forma, dissolvem-se as representações tradicionais do texto e do contexto para se admitir que não há um “dentro” e um “fora” do texto, uma vez que o texto seja considerado uma forma de gerir o contexto; logo, as condições de enunciação são geridas na própria constituição dos enunciados. Assume-se, deste modo, que o sistema de restrições semânticas é inerente à condição sociodiscursiva dos sujeitos, conformando os enunciados e a atitude de enunciar.
Em parte significativa dos estudos sobre a autoria, a preponderância das abordagens que analisavam o status das obras baseando-se na polarização entre um enunciador intratextual e um sujeito biográfico externo ao texto perdurou desde o romantismo até a década de 1960, quando então se disseminara a noção de “morte do autor” (FOUCAULT, 2000; [1966])[4]. Esta ruptura visava desconstruir a ideia de sujeito moderno, colocando em evidência os efeitos de autoria de obras textuais. A reviravolta epistêmica deu ensejo ao surgimento de métodos de análise de textos que colocavam a intertextualidade em primeiro plano.
O apagamento da figura do autor permitia, portanto, considerar um “exterior” ao texto sem, no entanto, sair do “círculo da textualidade”. Este procedimento, conforme coloca Maingueneau (2005, p. 19)[3], insere-se no debate entre as abordagens que consideram uma consciência criadora exterior à enunciação, e a abordagem intertextual da obra. Nada obstante, a ruptura epistemológica com a biografia autoral não alteraria por completo a limitação da apreensão “textualista” das obras. Considerando, pois, a Análise do discurso em sua função de zona de contato entre as ciências da linguagem e as ciências humanas, Maingueneau (2016b)[2] aponta possibilidades metodológicas para além da sociologia da literatura e da sociopoética, bem como da arqueologia foucaultiana.
Nas abordagens de tipo enunciativo opera-se a distinção binária entre uma figura textual – “narrador” – e um caractere extratextual – “escritor”. No trabalho O contexto da obra literária (2001, p. 121)[5], Maingueneau enumera as limitações destas abordagens, e explora o alcance de um conceito ampliado de enunciação:
Quando se fala, em linguística, de situação de enunciação é para designar não as circunstâncias empíricas da produção do enunciado, mas o foco de coordenadas que serve de referência diretamente ou não à enunciação: os protagonistas da interação da linguagem, enunciador e co-enunciador, assim como sua ancoragem espacial e temporal (EU < > e TU, AQUI, AGORA) [grifos do autor].
Em textos posteriores, Maingueneau (2008; 2016a)[1,6] falará em “cenas da enunciação” para se referir às condições e instituições enunciativas materializadas nos textos. Em Discurso literário (2016a, p. 135)[1], o analista discorre que “‘entre’ o texto e o contexto, há a enunciação, ‘entre’ o espaço de produção e o espaço textual, há a cena de enunciação, um ‘entre’ que descarta toda exterioridade imediata”. Conforme coloca Maingueneau (2001, p. 121)[5], a cena de enunciação é constituída na própria enunciação, e o texto se converte em uma forma de gerir o “contexto”. Assim colocada a questão, o mundo representado pela obra tenderia a legitimar sua cenografia2. No entanto, fundamentalmente, “qualquer obra administra a seu modo a relação entre o que diz e o próprio fato de que pode dizê-lo” (MAINGUENEAU, 2001, p. 171)[5].
Entendo por “regime de subjetivação” aquelas condições sociodiscursivas (institucionais) materializadas em marcas linguísticas distintivas de espaços enunciativos em que se inscrevem imagens autorais; tais espaços são, por esta razão, chamados “instâncias de inscrição da subjetividade” (MAINGUENEAU, 2016a)[1]. A análise da autoralidade abrange produção e recepção, sem que estas estejam dissociadas uma da outra, haja vista que a imagem de autor é inscrita na enunciação e gerida por editores e comunidade discursiva. Ademais, as obras podem ser abordadas, paralelamente, quanto à geneticidade (sua associação a gêneros historicamente instituídos) e à autoria, sem que haja contradição na análise. O conceito de “instâncias da enunciação”, portanto, propõe noções fundamentais para a abordagem da construção interdiscursiva de uma “identidade criadora”.
A instituição discursiva, sobretudo nos textos escritos, produz sentidos inscrevendo espaços de subjetivação constituídos em instâncias de fala. O processo de inscrição se dá, segundo Mussalim (2014, p. 23)[7], na enunciação de uma determinada identidade criadora. É nesse sentido, pois, que pretendemos analisar o mecanismo de inscrição da autoralidade a partir do funcionamento do regime de subjetivação materializado na autobiografia de Carl Jung.
A Análise do discurso recoloca a concepção de instância autoral e nos permite analisar a interface textualidade/autoralidade dos enunciados psicológicos, considerando a Psicologia um discurso constituinte, autolegitimador, que produz as próprias condições de enunciação. Desta forma, o analista do discurso desloca a pergunta do foco foucaultiano – “o que é um autor” –, para concentrar a análise sobre “qual o modo de funcionamento da autoralidade”, indagando sobre seus mecanismos discursivos.
Na obra Discurso literário, Maingueneau (2016a, p. 52)[1] afirma que
recusar noções como ‘visão de mundo’, ‘autor’, ‘documento’, ‘influência’, ‘contexto’, etc. é liberar espaço para um empreendimento de análise do discurso que traz para o primeiro plano a pressuposição mútua de uma enunciação e de um lugar nas instituições de fala.
A relação imediata entre um “lugar” e uma “enunciação” tende a produzir a legitimação de um posicionamento cujos vetores atravessam as dimensões sociológica, histórica e etnológica do discurso. É possível indagar os processos que se dão no universo mais amplo da comunidade discursiva3 – publicações póstumas, prefácios, notas de rodapé, cartas pessoais do autor –, bem como considerar os textos canônicos e assim recolocar a questão da instituição autoral sob o prisma da encenação, do contrato e do ritual (cenas de enunciação, cenografia, paratopia). Os conceitos serão discutidos concomitantemente e em articulação com a problematização do corpus.
2. A cenografia autobiográfica
A delimitar como corpus de análise textos associados ao campo da Psicologia, circunscrevemos a problemática a respeito das instâncias de autoria e da cena de enunciação: o Livro vermelho, elaboração estetizante4 de textos compostos sob a técnica da imaginação ativa, encena um drama autobiográfico. Intitulado também Liber novus, o livro é o fac-símile de um manuscrito de Carl Gustav Jung5.
Considerando, com Maingueneau (2001, p. 84)[5], que a maneira como um texto se institui materialmente é parte integrante de seu sentido, afirma-se que “as mediações materiais não vêm acrescentar-se ao texto como ‘circunstância’ contingente, mas intervêm na própria constituição de sua ‘mensagem’”. Um livro moderno composto materialmente ao estilo medieval já representa, pela constituição física que encena, uma “mensagem” específica.
O modelo de Jung são os códices medievais, os quais o autor emula, com a caligrafia gótica que utiliza na manuscrição, e pela forma de encadernação das páginas em fólios numerados em frente e verso. O “códice” de Jung foi fotografado, editado com comentários e prefácios na publicação póstuma do Livro vermelho, que veio a público em 2009, em edição bilíngue alemã e inglesa. Compõem ainda o corpus deste estudo uma biografia, epístolas e obras científicas do autor, a fim de situar o problema da autoria na conjuntura do interdiscurso.
Os mecanismos de inscrição de autoria na obra Livro vermelho, de Jung (2013a)[8], sinalizam confrontos e alianças de posicionamentos nas fronteiras entre os campos literário, religioso e científico no início do século XX; o modo de inscrição do autor na obra constitui uma paratopia, na medida em que os textos são atravessados por enunciados dos campos das artes, e dos discursos religioso e científico.
“O psicólogo é obrigado a adentrar vários domínios, deixando o castelo seguro de sua especialidade” (JUNG, 2013b, p. 86)[9]. De fato, o psicoterapeuta tem licenças para transgredir as fronteiras disciplinares, pois trata-se da “busca pela verdade”, e ele o faz “por amor ao conhecimento”, o que o aproxima do pensador. A Psicologia é assim apresentada como um discurso constituinte, o que legitima suas incursões por outros domínios a fim de se colocar no interdiscurso: o psicoterapeuta “não conseguirá limitar a alma à estreiteza do laboratório e do consultório médico; deverá persegui-la em domínios talvez estranhos a ele” (JUNG, 2013b, p. 86)[9].
Esse procedimento é compreensível, haja vista que o posicionamento da Psicologia Analítica emerge e se constrói no interdiscurso e embate com enunciados científicos, religiosos, filosóficos e literários:
É certo e até mesmo evidente que a psicologia, ciência dos processos anímicos, pode relacionar-se com o campo da literatura. A alma é ao mesmo tempo mãe de toda ciência e vaso matricial da criação artística (JUNG, 2013b, p. 87)[9].
A ciência é por demais superficialidade, somente palavras, apenas instrumento6(JUNG, 2013a, p. 417)[8].
Nenhuma cultura do espírito [intelecto] é suficiente para fazer da tua alma um jardim (JUNG, 2013a, p. 128)[8] (Keine geistes cultur genügt umaus deiner Seele einen Garten zu machen).
Uma das características da instituição de fala que é a Psicologia Analítica é que ela tenta integrar, na produção de sua semântica global, aqueles significantes socialmente interditados e aparentemente insignificantes, os quais a medicina tradicional do Ocidente por muito tempo ignorou ou relegou ao território do irracional, da psicopatologia, do inverossímil e do imoral.
Ao lado do campo da reflexão, há outro domínio, pelo menos tão vasto quanto ele, ou talvez ainda mais vasto, onde a compreensão racional e a descrição dificilmente encontram algo que possam captar. É o domínio do Eros. Na Antiguidade, este era considerado como um deus cuja divindade ultrapassava as fronteiras do humano e que, portanto, não podia ser nem compreendido nem descrito. Eu poderia tentar abordar, como tantos outros o fizeram antes de mim, esse daímon, cuja eficácia se estende das alturas infinitas do Céu aos abismos tenebrosos do Inferno; mas falta-me a coragem de procurar a linguagem capaz de exprimir adequadamente o paradoxo infinito do amor (JAFFÉ, 1986, p. 139)[10].
An dieser Stelle drängt sich mir die Tatsache auf, dass es neben dem Feld der Reflexion ein anderes mindestens ebensoweit, wenn nicht weiter sich erstreckendes Gebiet gibt in welchen das verstandesmäßige Begreifen und Darstellen kaum etwas findet dessen es sich bemächtigen könnte. Es ist das Feld des Eros. Der Antike Eros ist sinnvollerweise ein Gott, dessen Göttlichkeit die Grenzen des Menschlichen überschreitet und deshalb weder begriffen noch dargestellt werden kann. Ich könnte mich, wie so viele andere vor mir es versucht haben, an diesen Daimon wagen, dessen Wirksamkeit von den endlosen Räumen des Himmels bis in die finsteren Abgründe der Hölle erstreckt, aber es entfällt mir der Mut, jene Sprache zu suchen, welche die unabsehbaren Paradoxien der Liebe adaequat auszudrücken vermöchte (JAFFÉ, 1962, p. 355)[11].
Desse modo, a postura do fundador da Psicologia Analítica é a de alguém que “procura uma linguagem”, que integra ao seu campo de pesquisa aquelas pedras rejeitadas pelos construtores de outras posições do campo psicológico – tais como o behaviorismo e a psicanálise, por exemplo –; o posicionamento da Psicologia Analítica se constitui na interlocução com a mitologia expressa na poesia, nos cultos, na pintura, com o ensaio filosófico, os aforismos e textos sagrados, além de outros gêneros discursivos – considerando a relação entre linguagem e subjetividade como constitutiva da condição sociodiscursiva dos sujeitos –, o que a coloca na polêmica frente às abordagens positivistas e reducionistas do campo, as quais tendem mais à explicação psicopatológica dos fenômenos da religiosidade e da criação artística.
Jung atribui à Psicologia o status de uma ciência e, não apenas se posiciona na polêmica com outros discursos fundadores – equiparando-a a todas as “outras” ciências –, como também indica criticamente o limite de todo conhecimento discursivo, cuja semântica é restringida pelas limitações mesmas da linguagem que lhe é própria:
Como toda ciência, também a Psicologia tem apenas uma modesta contribuição para o melhor e mais profundo conhecimento dos fenômenos da vida, mas está tão longe do saber absoluto quanto suas ciências irmãs (JUNG, 2013b, p. 78)[9].
A gestão da obra de Jung pelos editores trouxe a público diários, cartas e textos autobiográficos que vieram a contribuir para a modificação da imagem do autor. O gesto de censura, por exemplo, por parte da sociedade dos herdeiros de Jung que, interessada em ocultar certos fatos biográficos do autor, solicita a alteração de trechos de suas cartas pessoais destinadas à publicação (ELMS, 2009, p. 332)[12], mostra que a instância pessoal de enunciação, ou o espaço de subjetivação ligado à imagem de pessoa (ser empírico, dotado de uma certidão de nascimento, garante de um texto), é um valor de inscrição determinante na gestão da imagem do autor pela comunidade discursiva, quando consideramos a dimensão de regulação da obra (MAINGUENEAU, 2016a)[1], isto é, aqueles eventos enunciativos em que o produtor dos textos negocia e justifica sua obra – tal como, por exemplo, na autobiografia.
No texto de um dos editores da obra de Jung, Sonu Shamdasani (2011, p. 14)[13], lê-se:
Prólogo
“O mais amaldiçoado diletante”
“Não me transformem numa lenda”
Ocultista, cientista, profeta, charlatão, filósofo, racista, guru, antissemita, libertador das mulheres, misógino, apóstata de Freud, gnóstico, pós-modernista, polígamo, curador, poeta, falso artista, psiquiatra e antipsiquiatra – do que C. G. Jung ainda não foi chamado? Mencione o nome dele para alguém e é provável que você escute um desses rótulos, pois Jung é alguém a cujo respeito as pessoas têm alguma opinião, consistente ou não. A rapidez do tempo de reação indica que as pessoas reagem à vida e à obra de Jung como se fossem suficientemente conhecidas. Entretanto, a própria proliferação de “Jungs” nos leva a questionar se, de fato, todos estariam falando de uma mesma criatura.
Em 1952, Jung reagiu ao fato de ter sido tão diversamente descrito como religioso, ateu, místico e materialista, com o seguinte comentário: “Em minha forma de ver, quando as opiniões a respeito de um mesmo assunto diferem amplamente, forma-se uma justificada suspeita de que nenhuma delas seja correta, isto é, de que existe um equívoco” [Religião e Psicologia, OC 18, § 1500, trad. mod.]. Quase cinquenta anos mais tarde, o número de opiniões e interpretações divergentes sobre Jung multiplicou-se de maneira prodigiosa. Ele se transformou num personagem sobre quem uma infindável sucessão de mitos, lendas, fantasias e ficções continuam a ser tecidas (SHAMDASANI, 2011, p. 14)[13].
O trecho mostra as imagens de autor decorrentes do processo de recepção de seus textos, e a gestão destas imagens pela comunidade discursiva. Jung, porém, enunciou em diversos gêneros: seu Livro vermelho, junto com a autobiografia editada por Aniela Jaffé (1986)[10] – ambas obras que vieram à luz postumamente –, mobilizam de maneira distinta os efeitos de sentido implicados pelas instâncias de inscrição da autoria, se comparadas às obras psicológicas veiculadas durante a vida do escritor.
Neste ponto, distinguindo alguns conceitos básicos: por “espaços de subjetivação” (MAINGUENEAU, 2016a)[1] ou de “funcionamento de autoria” entendo o regime de enunciação em que as distintas instâncias de inscrição – inscritor, escritor e pessoa – refletem imagens de autor, as quais interagem pela atuação de diferentes agentes da comunidade discursiva. O autor é assim considerado como um ator da cena que é construída na enunciação. Sobre o fundo de uma lenda comum, cada discurso constrói sua própria lenda (MAINGUENEAU, 2005, p. 117)[3]. A cena de enunciação põe em evidência uma atividade enunciativa capaz de gerar sua presença, ao mesmo tempo, no mundo que ela constrói e no mundo em que ela se constrói. Esta atividade enunciativa deve legitimar a situação de enunciação em que ela pretende surgir.
Ao abordar os enunciados autobiográficos ligados à constituição histórica da Psicologia Analítica considero-os no espaço interdiscursivo; como, pois, referir seu estatuto, se o Livro vermelho institui um regime de enunciação que impõe um rito de escrita próprio?
Ritos de escrita
O ato de escrever, de trabalhar num manuscrito, constitui a zona de contato mais evidente entre “a vida” e “a obra”. Trata-se de fato de uma atividade inscrita na existência, como qualquer outra, mas que também se encontra na órbita de uma obra, na medida daquilo que assim fez nascer. A ponto de se discutir muitas vezes para se saber onde passa a fronteira entre o texto e o “antetexto” (MAINGUENEAU, 2001, p. 46-47)[5].
Já sabemos que estas fronteiras são indeterminadas e, além disso, nossa concepção de texto se amplia, uma vez que cada texto enuncia à sua maneira o próprio contexto. Ademais, a tal ponto a linguagem ou o discurso conformam (deformam e transformam) a imagem de autor, que não é possível distinguir com certeza o que seria um sujeito do discurso disperso nas instâncias de enunciação. O regime de subjetivação que opera na autobiografia se processa na instituição de uma suposta interface entre vida e obra (Bio/grafia), que justifica e legitima uma imagem de criador: “os indivíduos se recolhem para criar, mas, criando, adquirem os meios de validar e preservar esse recolhimento” (MAINGUENEAU, 2001, p. 56)[5]. A obra de Carl Jung parece abranger esses dois extremos: a solitude e a produção em e para uma comunidade discursiva, haja vista a heterogeneidade de seus escritos, oriundos de transcrições de conferências, diálogos com pacientes, auto-experimentos, artigos em revistas, registros autobiográficos, etc., nos quais interagem as imagens autorais do médico – e psicólogo –, do escritor erudito, do pai de família, a figura do sábio representante da espécie humana etc.
A paratopia é, não somente o que torna a obra possível, como também aquilo que a obra configura e legitima dando-lhe sentido. É, portanto, por meio da paratopia que a obra pode vir à existência (MAINGENEAU, 2016a, p. 119)[1]. A paratopia em jogo na Bio/grafia junguiana é paradoxal: o Livro vermelho foi composto em sua maior parte na biblioteca de Jung, um espaço apartado do universo cotidiano, portanto, paratópico tanto quanto à cronografia (manuscrito em caligrafia gótica) quanto à topografia (“paratopia espacial”) (MAINGUENEAU, 2010, p. 161)[14]. Na biblioteca do erudito, espécie de museu da memória discursiva, convivem manuscritos clássicos e códices medievais, falas de filósofos, entidades mitológicas e ditos religiosos das mais variadas procedências do Ocidente e do universo discursivo oriental.
Parecia-me que estava vivendo num manicômio que eu mesmo tinha construído. Eu andava para lá e para cá com todas estas figuras fantásticas: centauros, ninfas, sátiros, deuses e deusas como se fossem pacientes e eu os estivesse analisando. Eu lia um mito grego ou negro como se um lunático estivesse me contando sua anamnese7 (SHAMDASANI, 2009, p. 197)[15].
No trecho a seguir, o enunciador se inscreve como o pensador reservado cujas ideias não foram bem compreendidas, e legitima um campo de estudos em torno da polêmica sobre a psique humana; neste deslocamento do lugar sociodiscursivo, o enunciador adota a postura (ethos ascético) do mensageiro cuja solitude é a condição (paratópica) para a criação:
Quando criança, sentia-me solitário e o sou ainda hoje, pois sei e devo dizer aos outros coisas que aparentemente não conhecem ou não querem conhecer. A solidão não significa a ausência de pessoas à nossa volta, mas sim o fato de não podermos comunicar-lhes as coisas que julgamos importantes, ou mostrar-lhes o valor de pensamentos que lhes parecem improváveis. Minha solidão começa com a experiência vivida em sonhos precoces e atinge seu ápice na época em que me confrontei com o inconsciente. Quando alguém sabe mais do que os outros, torna-se solitário. Mas a solidão não significa, necessariamente, oposição à comunidade; ninguém sente mais profundamente a comunidade do que o solitário, e esta só floresce quando cada um se lembra de sua própria natureza, sem identificar-se com os outros8 (JAFFÉ, 1986, p. 143)[10].
Als Kind fühlte ich mich einsam, und ich bin es noch heute, weil ich Dinge weiß und andeuten muss, von denen die anderen anscheinend nichts wissen und meistens auch gar nicht wissen wollen. Einsamkeit entsteht nicht dadurch, daß man keine Menschen um sich hat, sondern vielmehr dadurch daß man ihnen die Dinge, die einem wichtig erscheinen, nicht mitteilen kann, oder daß man Gedanken für gültig ansieht, die den anderen unwahrscheinlich gelten. Die Einsamkeit begann mit dem Erlebnis meiner frühen Träume und erreichte den Höhepunkt in der Zeit, als ich am Unbewußten arbeitete. Wenn ein Mensch mehr weiß als andere, wird er einsam. Einsamkeit steh aber nicht notwendigerweise im Gegensatz zu Gemeinschaft, indem nämlich niemand Gemeinschaft mehr empfindet als der Einsame und Gemeinschaft blüht nur dort, wo jeder Einzelne sich seiner Eigenart erinnert und sich nicht anderen identifiziert (JAFFÉ, 1962, p. 357)[11].
É neste sentido que as condições de produção de sentido no Livro vermelho constituem uma “paratopia de identidade” (MAINGUENEAU, 2010, p.161)[14]. Este conceito, como o coloca Maingueneau (2016a, p. 26), diz respeito a um “pertencimento paradoxal”, que é não apenas condição mas é também o “motor da criação e da enunciação”.
O processo de inscrição da autoria passa pelo deslocamento de um lugar sociocomunicativo dado de antemão; assim, o inscritor9 – agenciador do texto (MAINGUENEAU, 2010, p. 143)[14] – enuncia um espaço impossível criado pela própria fala; enunciar, neste sentido, é colocar-se, mas também deslocar-se. Deste modo, a paratopia se dá na impossibilidade de que a forma de subjetividade autoral assim engendrada pertença plenamente ao espaço social, ao mundo das atividades ordinárias. Este não-encontrar-seu-lugar é a condição de “fazer obra”. A dicotomia “interior” versus “exterior” da obra se mostra, de forma dialética, na cenografia autobiográfica em questão, na primazia ora da instância de enunciação pessoa, ora do inscritor, ora do escritor, sendo esta contiguidade, cujos limites são indiscerníveis, a resultante indissociável do mundo ficcional instaurado pela enunciação; neste âmbito da análise é lícito perguntar: não seria o “autor”, ou a imagem autoral, neste caso, mais uma das personagens de seu livro? Se os enunciados criam as condições da enunciação, o autor caracteriza-se como personalidade, isto é, articula uma subjetividade intradiscursiva, a uma “biografia” pré-discursiva; logo, o imbricamento das instâncias de enunciação dão margem a que se confundam sua inscrição no discurso e seu pertencimento impossível ao espaço social. A escrita, ou o ato de enunciação que ela materializa, é responsável por produzir esta refração espectral em que é possível adivinhar o “fantasma” do autor (sua presença/ausência, sua ocultação nos mundos ficcionais criados pela enunciação) – resultado do próprio exercício discursivo – e representação abstraída da obra que se constitui na interzona da cenografia literária/biográfica.
Quando a produção é uma questão profundamente individual, a paratopia elabora-se na singularidade de um afastamento biográfico. Por sua maneira de ‘inserção’ no espaço literário da sociedade, o autor cria, na verdade, as condições de sua própria criação; há obras cuja autolegitimação passa pelo afastamento solitário de seu criador e outras que exigem sua participação em empreendimentos coletivos (MAINGUENEAU, 2016a, p. 92)[1].
Bio/grafia que se percorre nos dois sentidos: da vida rumo à grafia ou da grafia rumo à vida. [...] Existe aí um envolvimento recíproco e paradoxal que só se resolve no movimento da criação: a vida do escritor está à sombra da escrita, mas a escrita é uma forma de vida (MAINGUENEAU, 2001, p. 46-47)[5].
Estando, portanto, o discurso psicológico constituído de enunciados dos tipos auto-observação introspectiva e interpretação dos significados dos símbolos, qual seria a forma de insinuação/inserção da Bio/grafia do autor Jung nos textos do campo?
Na análise do corpus, percebi que os eventos enunciativos do Livro Vermelho operam um trabalho de estabilização de enunciados. Na publicação póstuma da obra é possível observar a reprodução dos esboços anteriores ao volume caligráfico encadernado, que foram reunidos pelo editor na biblioteca de Jung, e dispostos como notas de rodapé; as versões apresentam rasuras, trechos e palavras riscados, acréscimo de parágrafos feitos pelo autor. O trabalho de gerenciamento da obra pelo editor Sonu Shamdasani[16], feito a partir do fac-símile dos originais, representa uma “montagem” de tipo histórico-investigativa, porém, nem por isso desprovidas do gesto de organização e interpretação, disposição e apresentação.
De acordo com Shamdasani (2009, p. 215)[15], Jung considera suas experiências oníricas e visionárias como a gênese dos textos contidos no Liber novus, os quais representam, por sua vez, a gênese de sua obra psicológica. A obra paratópica é assim mostrada como sendo uma espécie de matriz ou protótipo germinal: de apenas 35 páginas do manuscrito Livro vermelho teria se desdobrado uma obra psicológica de mais de 400 páginas escrita por Jung – Tipos Psicológicos – texto de ampla repercussão na comunidade discursiva10:
O texto do Prólogo à autobiografia de Jung (Memórias, sonhos, reflexões – Erinnerungen, Träume, Gedanken) (JAFFÉ, 1962; 1989)[10,11] resume sua aventura com a linguagem:
Minha vida é a história de um inconsciente eu se realizou [...]. A fim de descrever esse desenvolvimento, tal como se processou em mim, não posso servir-me da linguagem científica; não posso me experimentar como um problema científico.
O que se é, mediante uma intuição interior e o que o homem parece ser sub specie aeternitatis só pode ser expresso através de um mito [...]. Assim, pois, comecei agora, aos oitenta e três anos, a contar o mito da minha vida. No entanto, posso apenas fazer constatações imediatas, contar histórias (JAFFÉ, 1989, p. 5)[10].
Mein Leben ist die Geschichte einer Selbstverwirklichung des Unbewußten […]. Um diesen Werdegang bei mir darzustellen, kann ich mich nicht der Wissenschaftlichen Sprache bedienen; denn ich kann mich nicht als wissenschaftliches Problem erfahren.
Was man das inneren Anschauung nach ist, und was der Mensch sub specie aeternitatis zu sein scheint, kann man nur durch einem Mythus ausdrücken […]. So habe ich heute, in meinem dreiundachtzigsten Lebensjahr, unternommen, den Mythus meines Lebens zu erzählen. Ich kann jedoch unmittelbare Feststellungen machen, nur “Geschichten erzählen” (JAFFÉ, 1962, p. 10)[11].
O texto mostra o caráter auto-constituinte do discurso Psicológico, que encontra no mito a linguagem que lhe é própria, ainda que se inscreva no interdiscurso com as restrições semânticas da ciência. A cenografia autobiográfica da obra de Jung narra à sua maneira o entrelaçamento entre a história de uma “jovem ciência” (fröliche Wissenschaft) – a saber, a Psicologia Analítica – e a própria vida de seu autor: “Minha vida é a história de um inconsciente eu se realizou”.
A esse propósito, Michel de Certeau propõe reflexões significativas sobre o entrelaçamento entre mito e ciência na história: “A escrita historiográfica cria ‘a-topias’; ela abre ‘não lugares’ (ausências) no presente; [...] ela coloca-se, então, do lado do sonho [...]. A análise freudiana, de maneira mais aprofundada, nos ensinou: a alteridade do real ressurge na ficção” (CERTEAU, 2011, p. 185)[17]. O que o autor chama de “alteridade do real” são as marcas, na linguagem psicológica de Jung, da insurgência de uma “realidade psíquica”, e da demanda pela simbolização dos processos subjetivos de forma objetiva, analítica, em diálogo com os discursos científico, filosófico e religioso, porém, de forma a instituir posicionamentos que legitimem as falas da psique e os enunciados sobre ela produzidos pela interpretação da “linguagem do inconsciente”.
Tomei todo meu material empírico de meus pacientes, mas a solução do problema tirei-a de dentro, de minhas observações do processos inconscientes. Procurei fundir essas duas correntes de experiência exterior e experiência interior no livro dos Tipos (JUNG, 2013a, p. 185)[8].
Por isso falo principalmente das experiências interiores. Entre elas eu incluo meus sonhos e visões. Estes formam a prima materia de meu trabalho científico. Eles foram o magma ígneo a partir do qual a rocha a ser talhada se cristalizou (JAFFÉ, 1989 [1961], p. 4)[18].
Em Tipos psicológicos (1921), Jung observava que, em Psicologia, as concepções são “um produto da constelação psicológica subjetiva do pesquisador (OC, v. 6, §9). Esta reflexividade formou um tema importante em sua obra ulterior11 (SHAMDASANI, 2009, p. 232 [nota 38])[15].
Da interpretação dos trechos, depreende-se o assim chamado “trabalho de estabilização dos enunciados”, através do qual os diferentes gêneros discursivos nos quais as imagens do autor se inscrevem, ao contrário de formarem uma Opus ou obra unívoca acabada, mostram uma obra espectral, fantasmagórica, edificada na instabilidade das fronteiras genéricas. O Livro vermelho se apresenta ao leitor e à análise de forma paradoxal: seu estatuto em termos de gênero discursivo é dúbio. Ao princípio, lê-se: “Escrito por C G. Jung de próprio punho, em sua casa em Küsnacht/Zurique, no ano de 1915”12 (Geschrieben von C. G. Jung mit eigener Hand in seinem Haus in Küsnacht/Zürich im Jahr 1915) (SHAMDASANI, 2009, fólio 1f)[15].
No excerto lemos “escrito por C. G. Jung, de próprio punho”, expressão que confere ao autor o estatuto de criador da obra que leva seu nome. São ainda oferecidas as coordenadas espaciotemporais (data em que foi escrito): é um procedimento que corrobora a lenda de uma “identidade criadora” (MAINGUENEAU, 2016b)[2]. O fato de ter sido escrito a mão pelo próprio autor, isto é, com a caligrafia própria, supõe autenticidade, originalidade, por não ter sido adulterado pela intervenção/edição de outros sujeitos. Este procedimento coliga as instâncias do enunciador agenciador do texto, que faz seu garante, portanto, responsável por ele, e o Auctor – responsável por um agrupamento de textos referidos a uma identidade socialmente referendada, portanto, reconhecida.
A cena de enunciação imposta pelo suporte “livro manuscrito em caligrafia medieval” atua como um embreante paratópico: denuncia o distanciamento do escritor e sua obra com relação ao “tempo moderno”. Este problema de paratopia discursiva, descrito por Maingueneau (2001, p. 62)[5] como uma forma de posicionar-se em um “entrelugar” demonstra que, por mais se aproxime da ideia de um “eu soberano”, o estatuto do enunciador oscila entre um “autor-responsável”, um “autor-ator” e o Auctor. O “autor-responsável” representa a “instância de estatuto historicamente variável que responde por um texto”; o “autor-ator” é aquele que gere uma trajetória ou uma carreira, “organizando sua existência em torno da atividade de produção de textos”. Auctor refere-se ao autor como correlato de uma obra maior (Opus) (MAINGENEAU, 2010, p. 30)[14].
De forma sintética, o processo de inscrição no Livro vermelho legitima a subjetividade do escritor Jung, e reforça o “mito do indivíduo” – ou “autoficção”, segundo Maingueneau (2001, p. 61)[5]. Os textos assinados por Jung que foram excluídos de suas Obras completas vieram, portanto, a modificar a imagem autoral quando publicados postumamente.
3. O fantasma do autor
I am not my own history, or my historiographer.
(Jung em entrevista à rede BBC, 1959)
Ao enunciar neste mídium que é a rede televisiva, que o seu “eu” não é a sua “própria história”, nem tampouco seu historiador, esta observação vetusta inscreve a imagem de “cidadão comum do gênero humano” no afastamento do enunciador com relação à obra que leva seu nome, sua assinatura. “Eu sempre desconfiei de uma autobiografia porque alguém nunca pode dizer a verdade. Na medida em que alguém é verdadeiro, ou acredita ser verdadeiro, isto é uma ilusão ou uma piada de mau gosto” (SHAMDASANI, 2005, p. 11).
O produtor de textos, posicionado em um entrelugar, negocia sua inserção como uma instituição por direito próprio, e valida sua autoridade criando uma obra “atópica”; assim ele se impõe no campo da Psicologia, em um regime de alianças e oposições com outros autores e “escolas”: para se colocar, Jung deveria instituir um lugar de fala que desestabilizasse o lugar das ciências médicas e humanas. Isso ele o faz enunciando através do ethos crítico, analítico.
Pode-se concluir que a obra de Jung se mostra em um quadro sócio histórico em que a Psicologia tenta demarcar e ocupar um lugar entre as ciências, por meio da instituição da personalidade como um campo legítimo de estudos científicos, condição constitutiva da semântica discursiva desta obra. O nome autoral de Jung está colocado no status de um Auctor porque seu prestígio se tornou de tal relevância que se publicam textos seus que não estavam destinados à publicação – como é o caso do Livro vermelho. De acordo com Maingueneau (MAINGUENEAU, 2010, p. 32)[14], “para ser plenamente Auctor, é preciso ser reconhecido, ter uma ‘imagem de autor’”. Os mediadores (editores) da obra de Jung interviram reunindo seus textos e modificaram a imagem de autor associada a seu nome.
A assinatura “C. G. Jung” não se refere de maneira idêntica aos seus textos publicados como ensaios psicológicos, cartas pessoais, autobiografia, diários, prefácios em livros de outros autores, etc. Como já foi dito, cada uma dessas tipologias textuais e gêneros de discurso carrega de modo distinto a relação entre imagem de autor, obra e biografia.
O Livro vermelho compõe uma cenografia da odisseia íntima, peregrinação do escritor por regiões intrapsíquicas e seu diálogo com personagens que são personificações de funções mentais. Apresentarei, a seguir, uma análise da cenografia de trechos do Livro vermelho que, ainda que indiretamente, são valiosos para se compreender o funcionamento da autoria.
O corpus apresenta enunciados metalinguísticos; os diálogos e solilóquios da obra são uma reflexão sobre o próprio processo de criação. A cenografia autobiográfica em forma de diálogos faz-nos ver a pessoa (pelo disposição textual cronográfica, em forma de diário) e a encenação do escritor: trata-se da escritura como processo discursivo de instituição da subjetividade, no qual, enunciando, o Auctor (já consagrado e “canonizado”) desvenda o funcionamento da construção do sentido da própria obra.
O discurso direto mostra a personagem “Alma” incorporando o ethos sábio, proverbial. A enunciação instaura a cenografia em que a Alma fala desde uma posição onisciente, tal como numa proclamação oracular. O trecho a seguir é enunciado pela “Alma”:
Se dizes que o lugar da alma não existe, então ele não existe. Mas se dizes que ele existe, então ele existe. Observa o que diziam os antigos na imagem: a palavra á ato criador. Os antigos diziam: no princípio era a palavra [logos]. As palavras que oscilam entre a tolice e o sentido são as mais verdadeiras (JUNG, 2013a, p. 130)[8].
Neste trecho, o intertexto bíblico, que remete ao Evangelho de João, aparece como citação implícita – é a boca profética que fala e possui a autoridade de se apropriar do dito “verdadeiro”: o ethos oracular tem por efeito compor uma cenografia atemporal. A fala profética tem as marcas verbais bem definidas do augúrio e da vidência mântica, que incorpora a atitude e a postura discursiva dos textos clássicos da Antiguidade, e dota o caráter da personagem “alma” do aspecto de mediadora entre a “verdade” e a “linguagem”, entre o discurso primordial, autêntico, e as falas cotidianas, uma vez que “Alma” fala por enigmas.
Analisando a semântica global desses enunciados e seus desenvolvimentos analíticos posteriores feitos pelo enunciador ao longo do texto, o ethos sapiencial, mântico, em que o co-enunciador incorpora a atitude da revelação oracular, tem por efeito engendrar uma língua através da qual a alma torna-se uma interlocutora e pode ser “observada”, “interpelada”, podendo-se ouvi-la e com ela dialogar. O escritor assim se posiciona como um interlocutor do mundo psíquico; e seu texto toma os moldes de um metagênero dialógico – ao estilo platônico, ciceroniano – (o que é, aliás, uma prática característica da psicoterapia, o diálogo; na psicoterapia, o interdito na cotidianidade dos discursos ganha espaço e voz). A linguagem assim pode institucionalmente transgredir enunciados referendados.
4. Considerações finais
A análise da edição do Livro vermelho nos defronta com um mídium cuja constituição semântica está em correspondência com a forma de sua apresentação material, o que é significativo do ponto de vista discursivo: trata-se de uma réplica comentada que emula o original em suas dimensões espaciais e seu aspecto manuscrito, haja vista ser, em grande parte, composto por fotocópias do volume original quirografado pelo autor. “Traduzida” para o leitor contemporâneo, adaptada, portanto, pelos comentários do editor e seus adendos que visam “completar” a obra inacabada, o texto representa o memorial de um Auctor, de sua vida/escritura, e tem o efeito de incorporação da imagem de um personagem/indivíduo em seu lastro histórico; esta incorporação da Bio/grafia, da vida na escrita e vice-versa, insufla perenidade às imagens autorais, sempre reconstituídas pelas comunidades discursivas que se formam em torno às lendas que envolvem a obra.
O regime enunciativo autobiográfico constitui-se em um espaço de subjetivação no qual a representação da trajetória de seu autor, de seu autodescobrimento, é um testemunho da assunção da Alma, ou instituição da subjetividade como “lugar” legítimo para se fazer ciência. Por contraposição ao materialismo científico, que nega sentido aos enunciados ilógicos da desrazão e do simbolismo, da esquizofrenia, dos poetas, visionários e místicos, a Psicologia Analítica dialoga com o infra e o intradiscursivo, e interpreta a linguagem cifrada do símbolo, os códigos criptografados de regiões crepusculares da psique. Na autobiografia, a relação entre a obra e a vida é tal que a imagem de autor ganha contornos míticos e demasiado humanos: trata-se da lenda autoral, cuja assinatura institui uma escola, uma sociedade – comunidades discursivas. Os eventos enunciativos autobiográficos de Jung, pois, legitimam uma trajetória na literatura psicológica, constituindo-se como obra fundadora; obra da qual a gestão pelo editor, com sua introdução, comentários, notas de rodapé, diagramação, justaposição de capítulos, montagem, “colagem” de sequências do exemplar da versão caligráfica e do esboço, e remissão aos “esboços corrigidos”, conforma uma espécie de odisseia bio-historiográfica. Por meio de uma reconstituição ou “restauração”, o editor acaba por reestruturar postumamente um projeto “abandonado”, oferecendo-o ao leitor como fosse uma peça singular – quando, na verdade, trata-se de um texto polifônico em último grau –, conferindo ao todo assim costurado a ideia de uma Opus completada. O fato de o editor ser um historiador é notável, pois sua manipulação do legado junguiano se estabelece nas dimensões linguístico-discursivas e filológicas. Neste sentido, no processo de gestão da obra, o editor atua como um coautor. Ao geri-la, o gesto póstumo guarda seus sentidos para a posteridade, salvando a obra da fragmentação e do oblívio.
A voz do editor, evidentemente, ainda que de maneira implícita, perpassa o texto, envolve-o, interpõe-se entre leitor e enunciador, amarra, costura, emenda, intercala; é, portanto, uma das vozes que se destacam do fundo polifônico no regime enunciativo em questão. Ora imiscui-se, ora funde-se às vozes “originárias” do texto, delimitando um espaço de trocas: o estabelecimento do texto faz da gestão editorial um processo não só historiográfico, mas interdiscursivo e co-enunciativo.
Quanto à gestão, portanto, da obra pelos editores, no trecho citado a seguir é notável que a edição publicada ajunta passagens extraídas de um volume manuscrito chamado Esboço corrigido, ao qual o editor teve acesso na biblioteca dos herdeiros de Jung. Em nota de rodapé, o editor apresenta os trechos riscados pelo autor e, entre chaves, pontua observações, bem como acrescenta passagens que foram “retocadas” pelo autor. O trecho a seguir apresenta uma passagem omitida pelo autor no volume caligráfico:
A esta altura o esboço corrigido tem uma longa passagem, da qual segue uma paráfrase: Enquanto você via como o orgulho e a força encheram os homens e a beleza jorrou dos olhos das mulheres quando a guerra fascinou as pessoas, você sabia que a humanidade estava a caminho. Você sabia que esta guerra não era apenas aventura, atos criminosos e assassinatos, mas o mistério do autossacrifício. O [“grande”, mudado do início ao fim] espírito das profundezas apoderou-se da humanidade e forçou-a, através da guerra, ao autossacrifício. Não procure a culpa aqui ou ali. [“A culpa não está fora”]. – É o espirito das profundezas que leva as pessoas ao Mysterium, assim como me levou a mim. Ele leva o povo ao rio de sangue, como me levou a mim. Experimentei no Mysterium aquilo que as pessoas foram levadas a fazer na realidade (JUNG, 2013a, p. 184)[8] (grafias originárias da edição publicada por Sonu Shamdasani).
Fica claro, portanto, o trabalho de descrição dos originais e continuação/reconstituição da obra que a publicação pretende, vindo a apresentar em maior destaque a figura do escritor e seu trabalho manual sobre o texto; é perceptível também um trabalho de “adaptação”, em que se pode perceber distintos “momentos” enunciativos e imagens de público leitor esperado implicadas no ato de correção, câmbio de expressões e sentenças inteiras, desenvolvimentos de trechos e supressões de outros.
Os enunciados, que nasceram dos auto-experimentos de seu autor, ao serem codificados esteticamente, produzem efeitos de sentido que abrangem também o aspecto paradiscursivo das imagens que acompanham o texto do Livro vermelho. Ao decantar as visões de seu autor, o Livro vermelho transcodifica em diferentes registros linguísticos, distintos níveis semânticos materializados nos comentários que se seguem às visões e sonhos. Acontece um trabalho dialógico com princípios da Filosofia, da Religião, do Gnosticismo, da Alquimia, da Antropologia e da Psicologia – com personagens míticos, bíblicos e históricos –, implicados na reflexão empreendida na seção final de cada conjunto de narrativas, organizadas em capítulos de “aventuras” ou dramas. O enunciador ocupa diferentes posições simultâneas propiciadas pela multiplicação da voz do escritor e da pessoa nas vozes das personagens e da instância inscritor; esta simultaneidade da representação do escritor e da pessoa Jung, principalmente, confere ao texto seu caráter peculiar de evento enunciativo deslocado de qualquer topia dada de antemão, uma vez que o texto é visto retrospectivamente do ponto de vista de sua confecção, porém lida contemporaneamente a partir do escopo de um Auctor já consagrado, com um histórico de produções – uma Opus, portanto.
De maneira paradoxal, o conjunto de textos do Livro vermelho desestabiliza qualquer familiaridade genérica, ao mesmo tempo que dialoga com a tradição visionária, da qual são perceptíveis as citações ao princípio, do vidente bíblico Isaías, além dos diálogos com personagens míticas e da hierografia, dentre outros arquétipos. A forma de apresentação da edição do Livro vermelho expõe a sua “ossatura”, seus “andaimes”, o processo de sua constituição tanto física, ou midiática, quanto semântica; assim pois, é como processo que os textos se impõem, não como fim: indício disto é o gesto súbito com que o autor abandona a transcrição e interrompe o volume caligráfico no meio de uma frase:
O Pássaro: “Estás me ouvindo? Estou longe. O céu é distante. O inferno está bem mais próximo da terra. Eu encontrei algo para ti, uma coroa abandonada. Ela estava numa estrada nos espaços incomensuráveis do céu, uma coroa de ouro”. Já está em [...] [minhas mãos, uma coroa régia de ouro. Na parte interna estão gravadas letras, o que dizem? “O amor não acaba jamais”...] (JUNG, 2013a, p. 389)[8].
Der Vogel: hörst du mich? Ich bin ferne. Der Himmel ist so weit weg den Hölle, ich viel näher bei der Erde. Ich fand etwas für dich / eine verlassene Krone. Ich lag auf eine Straße in den unermesslichen Himmelsräumen / eine goldene Krone... und liegt schon Sund in […] (JUNG, 2009, p. 189).
O trecho final foi justaposto ao texto pelo editor Sonu Shamdasani na publicação do Livro vermelho, haja vista que o texto acaba abruptamente na frase “Já está em”; desse modo a gestão da obra parece fornecer a ideia de conclusão de uma Opus, integrando-a no circuito de sentido tecido em torno da imagem do autor. O que segue é o diálogo entre dois personagens: o “Eu” – a instância associada à pessoa Jung – e o Pássaro mítico. Este trecho está circunscrito pelo desfecho em que o enunciador assimila e se diferencia das personagens bíblicas Salomé e Elias, as quais são interpretadas como aspectos da própria psique da pessoa Jung.
A seguir, apresento o texto em que há a alternância ou predominância de distintas instâncias de enunciação: em Sete sermões aos mortos (Septem sermonem ad mortuos), o enunciador incorpora a persona de Basílides de Alexandria, gnóstico do século I d.C. falecido no ano de 140, no Egito – e não apenas adota a máscara do autor antigo, como também se apropria de seu léxico, de sua linguagem gnóstica, sua cosmologia. Na pretendida “autobiografia” de Jung, editada por Aniela Jaffé (1989)[18], é a própria editora13 quem enuncia: “Jung consentiu na inclusão dos Sete Sermões em seu livro de Memórias após certa hesitação e apenas ‘pelo amor à honestidade’”, ao que segue a transcrição dos Sermões: “Os sete sermões aos mortos, escritos por Basílides em Alexandria, a cidade onde o Oriente encontra o Ocidente” (“Die sieben Belehrungen der Toten. Geschrieben von Basilides in Alexandria, der Stadt, wo der Osten den Westen berührt) (JAFFÉ, 1962, p. 388)[11].
Sermão I.
Os mortos voltaram de Jerusalém, onde não encontraram o que procuravam. Eles pediram para serem admitidos à minha presença e exigiram ser por mim instruídos e, assim, eu os instruí: “Ouvi. Eu começo com o nada. Nada é o mesmo que Plenitude. No estado de Infinito, Plenitude é mesmo que o Vazio. O Nada é vazio e pleno [...]. Por que, então, não discorremos sobre o Pleroma, se ele é o Todo e o Nada? Eu vos falo como ponto de partida, e também para eliminar de vós a ilusão de que, em algum lugar, dentro ou fora, existe algo absolutamente sólido ou definido. Tudo o que chamam de definido e sólido não é mais do que relativo, porque apenas o que está sujeito a mudança apresenta-se definido e sólido”. Indagamos: “Como se originou a Criação?” As criaturas de fato têm origem, mas não no mundo criado [...].
Sermo I.
Die Toten kamen zurück von Jerusalem, wo sie nicht fanden, was sie suchten. Sie begehrten bei mir einlaß und verlangten bei mir lehre und so lehrte ich sie: Höret: ich beginne bei nichts. Das Nichts ist dasselbe wie die Fülle. In der Unendlichkeit ist voll so gut wie leer. Das Nichts ist leer und voll […]. Warum aber sprechen wir den Überhaupt vom Pleroma, wenn es doch Alles und Nichts ist? Ich rede davon, um irgendwo zu beginnen, und um euch den Wahn zu nehmen, dass irgendwo außen oder innen ein von vorherein festes oder irgendwie bestimmtes sei. Alles sogenannte feste oder Bestimmte ist nur verhältnismäßich. Nur das dem Wandel unterworfene ist fest und bestimmt […]. Wir erheben die Frage: “Wie ist die Creatur entstanden?" Die Creaturen sind entstanden, nicht aber die Creatur […] (JAFFÉ, 1962, p. 389)[11].
A principal abstração a ser extraída desses exemplos é a indissociabilidade entre linguagem/discurso e percepção de si. Para a instituição discursiva que é a Psicologia Analítica, o discurso psicoterapêutico lida com campos semânticos remotos dos primórdios da Cristandade, enunciados cujas significações ultrapassam um conjunto de valores referendados pelas práticas sociodiscursivas cristalizadas na cultura cristã no Ocidente moderno.
O posicionamento da Psicologia Analítica institui a audição da mensagem pagã, pré-cristã como resgate daqueles enunciados apócrifos interditados com relação ao discurso eclesiástico da moral cristã dominante no Ocidente, em meados do século XX. O discurso mitológico subverte a discursividade convencional, a da lógica aristotélica, da moralidade eclesial e da razão cartesiana, e desta forma a Psicologia Analítica ocupa seu lugar na polêmica com os discursos religioso, filosófico e médico-científico. Neste sentido, a obra de Jung transita nos âmbitos de um discurso constituinte trazendo à tona certos sintagmas silenciados pela histórica cultural judaico-cristã no Ocidente, o que parece ser propiciado por suas condições enunciativas. O texto autobiográfico do psicólogo suíço emula o tom de fala da Antiguidade, a sentença lapidar, oracular, fato que é endossado pelos elementos paradiscursivos do corpus: as imagens pintadas a mão no livro manuscrito. Os valores de inscritor e de escritor no Livro vermelho representam o aspecto de manugrafia, da artesania de entalhes que contornam os sentidos entreditos.
“Tudo está predito. Mas quem saberá interpreta-lo?” (JUNG, 2013a, p. 130)[8]. Neste trecho representativo, o enunciador incorpora o ethos enigmático, esfíngico. E coloca a significação sob o signo da adivinhação, donde a necessidade da descoberta de uma linguagem “autônoma”, capaz de traduzir simbolicamente os sinais do inconsciente. O Livro vermelho joga com três registros linguísticos: o registro descritivo, em que são encenados os diálogos – no qual se confundem as imagens do inscritor e da pessoa –, o registro mântico, em que um enunciador interpreta poeticamente os eventos encenados, e uma terceira camada conceitual com que o Auctor interpreta os enunciados das cenas dialógicas e apresenta traduções das cenas descritivas.
O solilóquio psicodramático do Livro vermelho encena a lenda do advento de uma obra (e o mito pessoal do seu criador/escritor). O texto “literário”, ou melhor dizendo, paratópico de Jung está, logo, em relação interdiscursiva com sua obra psicológica, pois se estabelece como discurso fundador, que confere ao texto poderes de dizer e certa soberania sobre a própria enunciação. Este “poder dizer” se refere ao gesto autocrático, à autolegitimação autoral. Neste quadro conceitual, o “contexto” da obra é desvinculado da exclusividade dos pressupostos sociológicos e psicológicos e, em uma análise do discurso, podemos considerar que o “contexto” está inscrito na cenografia da enunciação, isto é, o dizer se constitui de forma a legitimar o dito; o contexto e as circunstâncias de produção são, em outras palavras, constituintes intradiscursivos. De acordo com esta abordagem, ao enunciar, o autor cria e gere as condições de sua própria enunciação.
Para concluir, a identidade autoral é também gerenciada: por editores, prefaciadores, tradutores, pela comunidade criada pela repercussão da obra (comunidade discursiva) e, como já foi dito, pela imagem de leitor esperado implicada no processo de inscrição. Tendo em vista a instabilidade de relações entre as instâncias autorais, a pergunta “quem é o autor dessa obra” admite um nome próprio como resposta; porém, esse é apenas um dos aspectos relacionados à enunciação: a identidade remete a um estado civil, uma biografia pessoal, instância ou forma de subjetividade à qual Maingueneau designa pessoa. Mas a imagem construída do autor pode também recair sobre o aspecto da trajetória literária do escritor e, ainda, do inscritor, o qual incorpora a imagem de um enunciador que faz o garante do texto – valores copresentes na enunciação, em um jogo de ocultação/revelação e deslocamentos que são condições para se criar. É na explicitação da imbricação destas instâncias, portanto, que procurei construir este estudo.
Referências
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