Um estudo comparativo das mudanças ideacionais na representação de Brás Cubas no par-linguístico português-espanhol

Giovanna Marcella Verdessi HOY,
Adail Sebastião RODRIGUES JÚNIOR

Resumo

Neste estudo de caso, objetiva-se analisar as mudanças ideacionais nas representações de Brás Cubas, narrador e personagem principal de Memórias Póstumas de Brás Cubas (ASSIS, 1881) presentes na tradução de Alatorre (1951). Neste artigo, o conceito de mudanças ideacionais, cunhado por Rodrigues-Júnior e Garcia de Oliveira (2015), é entendido como a alteração em qualquer elemento da transitividade que provoca uma representação no texto alvo (TA) diferente daquela do Texto Fonte (TF) (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014). O procedimento metodológico utilizado foi o uso das ferramentas do WordSmith Tools para descrição e análise dos elementos de transitividade. As análises confirmam a hipótese da pesquisa, a de que houve escolhas que provocaram mudanças ideacionais na representação ficcional de Brás Cubas. Verificou-se, igualmente, que as mudanças ideacionais nem sempre provocam a alteração na equivalência semântica.

Introdução

Machado de Assis figura entre os mais renomados escritores brasileiros e sua obra tem sido traduzida em vários países, sobretudo naqueles de língua espanhola, como destacou há alguns anos Carlos Espinosa Domínguez (2010[1]). Contudo, as traduções de Machado no mundo hispânico vêm aumentando gradativamente e podemos encontrá-las em países como a Argentina, a Espanha, o México e o Uruguai, por exemplo. Dentre essas, é de nosso interesse a tradução mexicana de Memórias Póstumas de Blas Cubas de Antonio Alatorre (1982[1951][2]), por ter uma distância de cinquenta anos do texto fonte e por ter sido feita por um conhecedor de Literatura e de Filologia.

A pesquisa está inserida nos Estudos Sistêmicos-funcionais em Tradução com foco na descrição do texto literário, mais especificamente na descrição das escolhas linguísticas que representam o mundo experiencial de Brás Cubas. Sendo assim, fizemos um estudo comparativo com o objetivo de analisar as mudanças ideacionais na representação do personagem principal e narrador do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (ASSIS, 1881[3]) e de sua tradução para o espanhol mexicano (ALATORRE, 1982[1951[3]]).

A escolha de um corpus da literatura brasileira se deve ao fato de que este, além de ser portador de significados experienciais, textuais e interpessoais, é um texto com um valor para a sociedade que o constitui em um artefato cultural, de acordo com Halliday e Matthiessen (2014). A esse respeito, Matthiessen (2017[4]) se remete a Hasan (1985) para usar sua definição de literatura como arte verbal, revelando a importância deste produto cultural para a sociedade, pois há uma “atribuição de valor pelos seus membros” (MATTHIESSEN, 2017, p. 10[4]) em torno desse objeto, como é o caso da obra machadiana. Nesse sentido, Memórias Póstumas de Brás Cubas apresenta um valor atribuído pela comunidade leitora e até mesmo por boa parte do mundo das Letras, onde encontramos escolhas linguísticas presentes na tessitura de seu texto que caracterizam os eventos e personagens (MONTGOMERY, 1993[5]), especialmente de seu personagem principal, Brás Cubas. Essas escolhas o destacam diante de tantos outros, devido a uma identidade própria e particular, caracterizado pela crítica literária como sendo o representante da aristocracia e burguesia brasileira do século XIX. Além disso, destaca- se também por ser um personagem denso e rico subjetivamente, sobretudo por ser construído como a testemunha dos fatos e aquele que julga as hipocrisias da sociedade de seu tempo, como afirma Bosi (2006). Em relação a esse personagem tão característico da obra machadiana, uma das dúvidas que surgem sobre essa representação ao ser traduzido ou retextualizado para outro idioma é se uma escolha linguística diferente da original provocará mudanças ideacionais na representação de suas experiências ficcionais; e, ocorrendo mudanças ideacionais nessa representação, de que forma isso ocorre e como se relaciona com a equivalência semântica.

Sabe-se que o trabalho do tradutor inclui muito mais do que a simples transcrição de uma palavra pela outra, uma vez que envolve, além de dois sistemas linguísticos, questões culturais, estilísticas, e, sobretudo a interpretação do texto por parte do tradutor. Por esse motivo, acreditamos que encontraremos determinadas escolhas linguísticas que provocam mudanças ideacionais e estas poderão afetar a representação ideacional do personagem principal de Memórias Póstumas de Brás Cubas, caracterizando-o de modo distinto do TF. Além disso, baseados nas conclusões de Rodrigues-Júnior e Garcia de Oliveira (2015[6]), propomos que nem sempre a ocorrência de uma mudança ideacional resultará também em uma mudança na equivalência semântica1, embora isso também possa ocorrer.

O trabalho se justifica, em primeiro lugar, pela importância da obra selecionada, pois, se a qualidade da escrita machadiana é exemplar na literatura brasileira, Memórias Póstumas de Brás-Cubas (ASSIS, 1881[7]) é, indiscutivelmente, uma de suas melhores produções literárias. A sua importância pode ser observada, por exemplo, quando o renomado crítico literário Alfredo Bossi (1978, p. 196) a nomeia como “divisor de águas”, “obra capital” (BOSSI, 1978, p. 197), “salto qualitativo” (BOSSI, 2006, p. 282). Em segundo lugar, poucas têm sido as pesquisas das abordagens textuais da tradução na análise das Memórias Póstumas de Brás-Cubas, distinguindo-se apenas a dissertação de Oliveira (2012) que pesquisou alguns dos capítulos da obra, diferentemente desta pesquisa que amplia a análise do personagem ao selecionar todos os capítulos onde ele está representado.

O artigo está dividido em seis seções com as seguintes temáticas, incluindo a introdução e a conclusão: a primeira é a contextualização da obra e do autor no texto fonte e texto alvo, de modo a entender as escolhas léxico-gramaticais do autor e do tradutor; na sequência, apresentamos o referencial teórico relacionado aos Estudos Sistêmicos Funcionais em Tradução; a terceira seção trata dos procedimentos metodológicos; e na quarta seção realizamos as análises e discutimos os dados.

1.    Contextualização da obra e do autor no texto fonte e texto alvo

As Memórias Póstumas de Brás Cubas foram publicadas primeiramente na forma de folhetins em um periódico do Rio de Janeiro chamado Revista Brasileira durante o ano de 1880. Essa prática foi muito frequente em jornais da época e tinham a finalidade de despertarmaiorinteresse, aumentandoseupúblicoleitor, sobretudo, do público feminino, segundo aponta pesquisa de Farias (2013[8]). É por esse motivo que essa obra foi publicada no formato de livro somente um ano depois, em 1881, pois seu primeiro meio de publicação havia sido o folhetim, como dito anteriormente.

Em linhas gerais, a história trata de um defunto autor que conta suas memórias quando vivo, durante o início do século XIX, apresentando a sociedade daquele período histórico. Nesta obra ficcional, é sob o ponto de vista narrativo de um defunto autor que as marcas da aristocracia escravista e o surgimento de uma incipiente burguesia são apresentadas, isto é, por meio de um narrador que representa esta elite que a sociedade é descortinada, uma vez que ele é filho de um rico proprietário de terras que enriqueceu durante o auge do período colonial (SCHWARZ, 1990[9]; OLIVEIRA, 2012). É sob o olhar deste personagem narrador que essa sociedade passa pelo crivo de sua mordaz crítica, ao desvelar aspectos sociais por meio da descrição de si mesmo e de outros personagens mediante uma narrativa do além, desprovida de qualquer tipo de controle.

Em relação a esse aspecto memorialístico, Bosi (2006) ressalta o papel de Brás Cubas, que se desdobra de duas formas complementares: um narrador que, mediante sua fala, atesta ter participado dos fatos e outro que, na figura do defunto autor, julga os fatos sem o véu das convenções e hipocrisias sociais. A utilização do recurso narrativo do defunto autor desvela um aspecto mais profundo do valor testemunhal de Brás Cubas, uma vez que “ele surpreende-se a si próprio como ator e espectador no processo das relações de força entre os sujeitos” (BOSI, 2006, p. 182).

Embora parte da crítica literária situe esta obra no realismo, devido ao detalhamento da sociedade e à presença de uma crítica sarcástica do narrador em relação a essa sociedade, o crítico literário Carlos Fuentes (2000[10]) destaca que Machado de Assis não é herdeiro da tradição antiquada do realismo e do romantismo, e sim da tradição de Don Quixote de la Mancha, de Cervantes. Para ele, Machado é um milagre do século XIX, aquele que já havia ocorrido na Espanha de Cervantes e que agora surge no Brasil, país herdeiro da língua portuguesa.

Sendo assim, é na narrativa memorialística que Brás Cubas revela a sociedade brasileira do século XIX, o Brasil Império, e mais especialmente, a elite daquele tempo (SCHWARZ, 1990[9]). Sob o olhar do narrador, identificamos, por um lado, a frivolidade, a ganância, o luxo, a opressão da aristocracia brasileira e da burguesia que começava a despontar no país do século XIX, e por outro, os explorados por essas classes, representados pela escravidão e pelas camadas menos favorecidas que surgem na composição de personagens menos centrais, como os escravos de seu pai, a empregada Dona Plácida, por exemplo.

A tradução de Memorias Póstumas de Blás Cubas para o espanhol mexicano foi realizada por Antônio Alatorre, em 1951, publicada pela editora Fundo de Cultura Econômica e reimpressa pela Casa de las Américas em 1982. Apesar de a bibliografia consultada não deixar claro se Alatorre era conhecedor da obra machadiana, é muito provável que sim, devido à sua formação e grande erudição. Ele foi filólogo e estudioso da literatura espanhola, crítico literário, escritor, linguista, tradutor e professor da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e do El Colégio de México. Conhecedor do inglês, italiano e português, além de outras línguas, Alatorre destacou-se pela tradução de obras como Language: an Introduction to the Study of Speech, de Edward Sapir, em 1954; La disputa del Nuovo Mondo, de Antonello Gerbi, em 1960 (PAREDES, 2010[11]); e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em 1951.

O reconhecimento do valor de Alatorre em áreas que vão da literatura à tradução veio coroada por diversos prêmios. Um deles foi a Medalha José María Vigil, concedida, em 1956, por seu trabalho como pesquisador em literatura e diversos assuntos afins en El Colegio de México. Também recebeu o Premio José Gaos, outorgado pelo Instituto de Intérpretes e Tradutores em 1991, e, ainda, a conquista do Premio Nacional de Ciências e Artes no campo da Linguística e Literatura, em 1998 (PAREDES, 2010[11]; LARA, 2011[12]).

2.    Referencial teórico: Estudos da Tradução e Estudos Sistêmicos Funcionais em Tradução

Munday (2001[13]) distingue autores que adotam uma abordagem mais sistemática e orientada linguisticamente em relação ao estudo da tradução durante a década de 1950 e 1960, tais como Jean-Paul Vinay and Jean Darbelnet (1958), Georges Mounin (1963) e Eugene Nida (1964). Destes, Nida (2000, p. 127[14]) apresenta a ideia de que “duas línguas não são idênticas e, por isso, [...] é evidente que não pode haver correspondência absoluta entre línguas”2, ainda mais ao se levar em conta os contextos diferentes e a capacidade interpretativa do tradutor que não é apenas um reprodutor de palavras, mas um leitor, primeiramente. A hipótese defendida por Nida (2000[14]) mostra que a correspondência absoluta é uma falácia, não havendo essa possibilidade entre duas línguas diferentes, o que reforça a ideia desta pesquisa de que mudanças ideacionais fazem parte de todo produto tradutório e que serão identificadas até mesmo em uma tradução feita por alguém que prima pela palavra.

Outro autor que se destaca pela contribuição às abordagens textuais da tradução é Catford (1965), pois não é possível deixar de reconhecer o valor da contribuição ao trabalhar com os conceitos de correspondência formal e equivalência textual, a partir dos quais introduz o conceito de mudança (shifts), com base na Linguística Sistêmico Funcional (LSF). Essas mudanças (shifts) ocorreriam, segundo o autor, quando não fosse possível encontrar a correspondênciaformal, revelandoumaspectodosistemalinguístico que abre espaço para vários tipos de mudanças, assim como as ideacionais que são abordadas neste artigo e que foram estudadas por outros autores recentemente (RODRIGUES-JÚNIOR; GARCIA DE OLIVEIRA, 2015[6]).

Seu pioneirismo deve-se, sobretudo, ao conciliar os Estudos da Tradução e a LSF. Até mesmo Matthiessen (2001, p. 43[4]) reconhece a importância do trabalho de Catford dizendo que “a tarefa teórica central [dos novos pesquisadores] é expandir a sua proposta à luz dos novos desenvolvimentos teóricos e descobertas descritivas”. Um trabalho que coaduna com os pressupostos da LSF, que defende um estudo descritivo da linguagem, como o que se faz neste trabalho, o que exclui qualquer tipo de prescrição por não fazer parte do uso real da língua.

No século XX, Matthiessen (2001[4]) representa novos desenvol- vimentos teóricos dessa área. Ele promove uma discussão da equivalência e da mudança sob uma nova perspectiva, discutindo esses conceitos no nível das metafunções. Segundo o autor, a tradução está mais próxima do nível semântico do que do léxico- gramático, cuja localização aproximada é o contexto de cultura do texto de origem (MATTHIESSEN, 2001[4]). E é justamente com base nestes dois últimos autores, Catford (1965) e Matthiessen (2001[4]), que Rodrigues-Júnior e Garcia de Oliveira (2015[6]) propuseram o conceito de mudanças ideacionais, conceito relevante para esta pesquisa. Contudo, nas palavras dos autores, é uma ampliação dos trabalhos anteriores, pois não se prende somente à ‘mudança-classe gramatical’ – como em Catford, mas volta-se para as “mudanças nos níveis da ideação”, que focaliza os elementos da metafunção ideacional, isto é, os “processos, participantes, circunstâncias e expansões” (RODRIGUES-JÚNIOR; GARCIA DE OLIVEIRA, 2015, p. 399[6]). As mudanças ideacionais ocorreriam, segundo os autores, quando um desses elementos fosse alterado, como se vê no exemplo a seguir:

Exemplo 13:

Virei (MAT) e revirei (MAT) o papel.

Miré (COM) y remiré (COM) el papel

No exemplo 1, a representação ideacional de Brás Cubas no TF é a de um Ator (virei e revirei) que executa duas ações sobre uma Meta (o papel), um bilhete que havia recebido. É alguém que age com certo nervosismo ao repetir uma mesma ação sobre a meta, o pedaço de papel que era um bilhete de sua amada para que ajudasse uma velha empregada. No TA a representação ideacional de Brás Cubas é sutilmente alterada provocando uma mudança ideacional. Ele é representado não como um Ator que age sobre o papel e que mostra seu nervosismo ao repetir essa ação, mas como um comportante que apenas olha (miré) o bilhete com insistência, porém, repetindo o comportamento (remiré), como quem indaga a procedência e o porquê desse pedido, demonstrando assim o incômodo com o conteúdo do bilhete.

A análise mostra o potencial da LSF na descrição e análise do texto traduzido, especialmente, do texto literário. Nota-se, portanto, que as pesquisas nas abordagens textuais da tradução têm sido úteis para análise de diversos aspectos dos textos, dentre os quais os significados ideacionais, textuais e interpessoais.

Na próxima seção é detalhado o sistema de transitividade e o complexo oracional da Metafunção Ideacional.

2.1       Metafunção Ideacional: o sistema de transitividade e o complexo oracional

A Metafunção Ideacional organiza discursivamente o fluxo de experiências sociais, culturais e da consciência dos seres humanos por meio do sistema de transitividade. Sobre o sistema de transitividade, Halliday (1982[1978][15]) explica que:

a linguagem interpreta nossa experiência, reduzindo os fenômenos infinitamente variados do mundo que nos cerca, e também de nosso mundo interno, dos processos de nossa consciência, a um número controlável de classes de fenômenos: tipos de processos, acontecimentos e ações, classes de objetos, de gente e de instituições (HALLIDAY, 1982[1978], p. 33[15]).

Depreende-se disso que, para a LSF, o termo representação, diferentemente de outras áreas do conhecimento, refere-se ao uso da linguagem para organizar as experiências humanas por meio do sistema de transitividade da metafunção ideacional. Esse sistema é responsável pela codificação gramatical das experiências humanas e produz uma figura (figure) constituída por processos (verbos), participantes (grupos nominais) e, ocasionalmente, circunstâncias (sintagmas preposicionados e grupos adverbiais).

Os processos são os eventos da experiência que, junto aos participantes desses eventos, constituem o centro experiencial dessa figura, enquanto as circunstâncias são consideradas elementos menos centrais. Elas contribuem com informações adicionais, que podem iluminar certos detalhes, tais como, localização, tempo, frequência, modo do evento, entre outras (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014).

Para exemplificar, a figura experiencial mostra os processos, participantes e circunstâncias no exemplo 2, a seguir:

Exemplo 2:

quando eu nasci

(a) (b) (c)

No excerto 1, identifica-se um processo material (c) que indica as experiências de mundo ficcional de Brás Cubas como participante ator (b). A figura do excerto 1 mostra a representação das experiências de mundo ficcional de Brás Cubas. Para complementar, essa experiência está circunscrita a determinado momento indicado pela circunstância de tempo (a), que dá uma característica específica a essa experiência. Assim, essas e outras figuras são modelagens das experiências humanas (ou goings on em termos hallidianos) reais ou ficcionais realizadas pela linguagem mediante seis tipos de processos. Segundo Halliday e Mathiessen (2014) estes são os materiais, relacionais, mentais, verbais, existenciais e comportamentais, e para cada um deles haverá pelo menos um participante obrigatório, como se vê no Table 1, a seguir:

Tipos de Processos Participantes obrigatórios Realizados por verbos Exemplo
Materiais Ator Meta Beneficiário Escopo Atributo Fazer Ir Fui aos alforjes
Relacionais Portador Atributo Identificador Identificado Ser Ter […] eu não sou propriamente um autor defunto
Mentais Experienciador Fenômeno Saber Perceber Era o que eu pensava comigo […]
Verbais Dizente Receptor Verbiagem Alvo Falar Dizer confesso que era um problema insolúvel […]
Existenciais Existente Haver Existir há coisas que se não podem reaver integralmente […]
Comportamentais Comportante Comportamento Dormir Respirar Começo a ficar patético e prefiro dormir4.
Table 1. Quadro 1: Tipos de Processos e seus Participantes Fonte: Adaptado de Halliday e Matthiessen (2004, 2014)

No tocante ao complexo oracional, Halliday e Matthiessen (2014, p. 428) explicam que, quando temos mais de uma oração, elas estão “ligadas umas às outras por meio de algum tipo de relação lógico- semântica para formar complexos oracionais”. Ainda segundo os autores, essas orações em conjunto produzem significados experienciais, textuaiseinterpessoaiserepresentamfiguras(figures), que estão relacionadas entre si (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014); sendo, portanto, os significados experienciais que estão em foco neste trabalho. É importante lembrar que os complexos oracionais podem ser identificados em Expansões de vários tipos de Processos e nas Projeções de processos mentais e verbais.

4.    Procedimentos metodológicos: O WordSmith Tolls 6.0 como instrumento de organização de dados

Atualmente, o desenvolvimento da tecnologia tem permitido, não somente o trabalho com um número cada vez maior de corpora, como também tem facilitado o exame mais aprofundado em função do uso de um número cada vez maior de ferramentas computacionais (BERBER SARDINHA, 2004[16]). Essa mudança concorreu para o desenvolvimento da Linguística de Corpus (LC), que vem sendo utilizada não só como referencial teórico, mas, sobretudo, metodológico, ao buscar entender o corpus através da “observação empírica dos fatos linguísticos” (NOVODVORSKI; FINATTO, 2014, p. 10[17]). Segundo Berber Sardinha (2004, p. 35-38[16]), isso ocorre porque a LC pode ser entendida tanto como “teoria” quanto “metodologia” e, inclusive, como “abordagem baseada em corpus”, dependendo do enfoque e do uso que se dê ela.

Com base nas abordagens textuais da tradução, neste estudo de caso adotamos a LC como metodologia, isto é, como um instrumental capaz de auxiliar na descrição dos corpora, de modo a identificar características linguísticas, padrões de uso e recorrências. Com esse propósito, utiliza-se o programa computacional WordSmith Tools, versão 6.0, por facilitar a localização das palavras e visualização de seu comportamento em contexto (BERBER SARDINHA, 1999[18]).

Como primeira etapa da organização dos dados foi feito o levantamento dos itens lexicais mais frequentes com a ferramenta lista de palavras do WordSmith Tools no TF e TA. A partir dessas listas, eliminaram-se aquelas palavras que não seriam utilizadas, deixando- se apenas os Processos (verbos), a fim de identificar as experiências de mundo ficcionais de Brás Cubas presentes nas linhas de concordância dos textos fonte e texto alvo. Em seguida, os Processos vinculados a Brás Cubas foram organizados pelo Concord em linhas de concordância, a fim de classificar os tipos de processos e realizar o etiquetado destes, com parênteses, de acordo com a legenda do Table 2:

Tipos de Processos Etiquetas
MATERIAL (MAT)
RELACIONAL (REL)
MENTAL (MEN)
EXISTENCIAL (EXI)
COMPORTAMENTAL (COM)
VERBAL (VER)
Table 2. Quadro 2: Legendas para os Processos

Após a etiquetagem dos Processos, a contagem foi realizada no TF e no TA por meio da ferramenta Concord, como se pode ver nos excertos extraídos do corpus analisado, na Figure 1:

Figure 1. Figura 1: Processos mentais (MEN) nas linhas de concordância

A última etapa foi o alinhamento das linhas de concordância do TF com o TA, por meio do Aligner, a fim de facilitar a comparação entre os textos com o objetivo de identificar as mudanças ideacionais. Na seção de análise, os dados foram organizados de modo a facilitar a leitura e a mostrar o cotexto das escolhas léxico-gramaticais vinculadas a Brás Cubas da seguinte maneira: os Processos foram negritados; as Circunstâncias foram colocadas em itálico acrescentando-se o parêntese com (CIR); a omissão foi identificada entre parênteses e em caixa alta (OMISSÃO), conforme exemplo 3:

Exemplo 3:

A meio caminho, chamaram-lhe “linda Marcela”, lembrou-me (MEN) que ouvira (COM) tal nome a meu tio João, e fiquei (REL), confesso (VER) que fiquei (REL) tonto.

A medio camino la llamaron “linda Marcela”; recordé (MEN) haber oído (COM) ese nombre a mi tío Juan, y, (OMISSÃO) lo confieso (VER), quedé (REL) todo (CIR) aturdido.

Para a análise qualitativa, por questões de espaço, foram selecionados oito excertos, representativos do corpus investigado, sendo dois exemplos para cada tipo de mudança (Table 2), isto é, dois exemplos para: Omissão de Processo; Acréscimo de Processo; Omissão de Circunstância; e Acréscimo de Circunstância.

Na seção seguinte, seguem as análises dos dados.

5.    Discussão e Análises dos dados: mudanças ideacionais em Brás Cubas

Como explicado na metodologia, os Processos da lista de palavras foram etiquetados no Concord, sendo contabilizados e organizados em uma tabela (Tabela 1) que mostra as escolhas léxico-gramaticais utilizadas por Machado e Alatorre quando vinculadas ao narrador e personagem principal, Brás Cubas.

Tipos de Processos Pt Es
Materiais 851 832
Mentais 689 694
Verbais 506 514
Comportamentais 314 308
Relacionais 238 236
Total 2598 2584
Table 3. Tabela 1: Representação Ideacional de Brás Cubas no TF e TA

Na Tabela 1, estão organizados os processos vinculados a Brás Cubas, notando-se que a representação ideacional desse personagem é diversificada, haja vista que conta com todos os tipos de processos, com maior uso para os materiais, mentais e verbais. Desse modo, Brás Cubas é um ator de sua vida, um ser consciente, que pensa sobre seu entorno e um Dizente que quer falar sobre essa vida. Como Ator, é alguém que atua em seu entorno, realizando diversas atividades, como examinar dinheiro (excerto 1), puxar a amada para si (excerto 4). Já como Experienciador e Dizente, é representado como alguém que pensa e fala bastante pela voz narrativa, característica marcante de um texto em prosa de cunho memorialístico.

Em termos numéricos, à primeira vista, os dados da tabela 1 sugerem elevados índices de equivalências ideacionais entre o TF (2.598) e o TA (2584), o que, no entanto, um olhar mais atento irá revelar mudanças ideacionais, como proposto na hipótese deste trabalho. Em relação à equivalência ideacional que o TA tenta reproduzir do TF, ela aproxima-se àquela que Nida (2000[14]) denominou de formal, isto é, aquela que “destina-se a revelar, tanto quanto possível, a forma e ao conteúdo da mensagem original” (p. 134). No entanto, o próprio Nida (2000[14]) esclarece que este tipo de equivalência não pode ser mantida o tempo todo, devido ao fato de não existirem duas línguas iguais no mundo. Quando este tipo de equivalência ocorre em um texto, o tradutor lança mão de notas explicativas para dar conta do aspecto linguístico do TF, e, de fato, na tradução de Alatorre temos a presença de 72 notas explicativas no TA (NIDA, 2000[14]) que revelam a presença também de escolhas linguísticas que provocam mudanças ideacionais na representação de Brás Cubas.

No tocante às mudanças, verificamos algumas delas que foram organizadas na tabela 2, abaixo.

Mudanças Ideacionais Es %
Omissão de Processo 13 0. 5%
Acréscimo de Processo 8 0.3%
Omissão de Circunstância 3 0.1%
Acréscimo de Circunstância 11 0.4%
Total 35 13%
Table 4. Tabela 2: Mudanças Ideacionais

A tabela 2 revela pequenas diferenças entre alguns processos e a presença de omissões e acréscimos que são indicativos de mudanças ideacionais. Por certo, as linhas de concordância com os textos lado a lado disponibilizadas pelo Aligner confirmaram essa hipótese, como se verá nos excertos analisados.

A pesquisa de Oliveira (2012) identificou a presença de um grande número de processos relacionais no TA que apontam várias ocorrências de mudanças ideacionais na representação de Brás Cubas. Nesta pesquisa, no entanto, o resultado dos dados revela algo diferente da conclusão de Oliveira (2012), uma vez que o perfil ideacional de Brás Cubas no TA é semelhante ao TF. Porém, nota-se uma pequena diferença de 1% nos processos materiais, e outras de menos de 1% em outros processos (mentais, verbais e comportamentais). Embora estas mudanças sejam pequenas, as escolhas “não existem isoladamente, mas na relação com outras possíveis escolhas que o falante ou escritor descartou ou não utilizou” (MUNDAY, 2012, p. 13[19]).

Da tabela 2, também foram observados casos de omissões de Processos e Circunstâncias (0.5% e 01%) e acréscimos de Processos e Circunstâncias (0.3% e 0.4%) que estão relacionados a mudanças ideacionais no TA como se demonstrará na análise dos excertos mais adiante.

Os dados quantitativos permitem a observação de pistas ou indícios de escolhas tradutórias que sugerem a presença de mudanças ideacionais na representação de Brás Cubas e, por isso, cabe uma análise qualitativa dos dados de modo a identificar os tipos de mudanças.

5.1     Análise qualitativa dos dados

Contexto do Excerto 1:

O contexto do excerto (1) refere-se ao momento em que Brás Cubas, após ter encontrado um embrulho na praia contendo muito dinheiro, o guarda em seu escritório para mais tarde, após o jantar, voltar a verificar o seu conteúdo.

Sobre o jantar fui (MAT) outra vez ao gabinete, examinei (MAT) o dinheiro, e ri- me (COM) dos meus cuidados maternais a respeito de cinco contos, — eu, que era (REL) abastado.
Después de la cena fui (MAT) otra vez a mi cuarto, examiné (MAT) el dinero y me reí (COM) de mis cuidados maternales para con aquellos cinco contos… yo, que era (REL) bastante rico.
Table 5. Excerto 1: Acréscimo de Circunstância

No excerto (1), a representação ideacional de Brás Cubas na oração principal é de um ator que se desloca por meio do processo material (fui). Os processos presentes no complexo oracional complementam a representação de Brás Cubas caracterizando-o como Ator (examinei), Comportante (ri) e Portador (era). A representação de Brás como Ator dá conta do ato de examinar atentamente o dinheiro achado na rua, cujo desejo não inclui a sua devolução ao verdadeiro dono, rindo da situação (ri), justamente por ele ser uma pessoa abastada (era). Esse conjunto de figuras experienciais representa um narrador complexo que age e se comportade modo mesquinho em relação ao dinheiro que pretende se apropriar, mesmo não sendo o seu dono, contrastando radicalmente com uma de suas principais características, a de ser (era) abastado. Com essa representação, o ponto de vista narrativo evidencia a avareza do narrador, um homem abastado que, no entanto, não teria escrúpulos em ficar com um dinheiro achado na rua.

Nesse excerto (1), observam-se os mesmos processos no TA para representar o narrador, porém, o acréscimo de uma circunstância de intensidade (bastante) produz uma mudança ideacional na representação das experiências ficcionais de Brás Cubas ao intensificar uma das principais qualidades do personagem. Desse modo, ele é um portador de um atributo (rico), mas este atributo é intensificado (bastante), marca que realiza linguisticamente um Brás Cubas pertencente ao grupo de homens mais ricos daquela sociedade e que destaca ainda mais a sua mesquinhez.

Contexto do Excerto 2:

O excerto (2) mostra um episódio da história mundial que divide a sua família: em aqueles que apoiam e aqueles que são contra a primeira queda de Napoleão Bonaparte (1814), quando Brás Cubas tinha apenas nove anos de idade. É nesse contexto que o pai de Brás Cubas oferece um jantar para comemorar o fato e muitos são os que, sendo a favor, fazem seus discursos inflamados que não interessam ao pequeno Brás, cujo único interesse era apenas brincar com um espadim que acabara de ganhar.

E notem que eu ouvi (COM) muito discurso, quando era (REL) vivo, li (MEN) muita página rumorosa (rumor) de grandes ideias e maiores palavras...
Y notad que oí (COM) no pocos discursos durante mi vida (CIR), que leí (MEN) no pocas páginas atestadas (testigo) de grandes ideas y de palabras más grandes aún…
Table 6. Excerto 2: Acréscimo de Circunstância

No excerto (2), no qual Brás Cubas é representado no complexo oracional como Comportante (ouvi), Portador (era) e Experienciador (li). Constitui-se com essas figuras experienciais de Brás Cubas, uma representação que denota a sua participação em diversos eventos onde teve oportunidade de ser um ouvinte e leitor de diversos tipos de discursos, cuja qualidade (vivo) o situa entre os homens vivos, e o tempo pretérito do processo (era) revela a época em que ele participava desses eventos. Essas representações constroem a representação ideacional de homem letrado que participa de eventos discursivos e por meio de comportamentos e de experiências ficcionais (ouvi, li) típicas da elite, do grupo social a que pertencia quando vivo.

É interessante notar que o texto traduzido constrói a mesma representação de Brás-Cubas como Comportante () e Experienciador (leí), mantendo a mesma representação social constatada no texto-fonte. Contudo, ocorre uma quebra no complexo oracional; e o Processo relacional (era) é omitido. No lugar do processo é utilizada uma Circunstância de tempo (durante mi vida), produzindo, assim, a mesma ideia de tempo passada da conjugação temporal do processo no passado (e leí) do TF. Dessa forma, a omissão exclui uma das representações de Brás-Cubas provocando uma mudança ideacional na figura que representa uma de suas qualidades, a de ter sido um ser vivente à época de suas experiências comportamentais e experienciais que formavam sua identidade social, embora boa parte da equivalência semântica tenha sido mantida5.

Contexto do Excerto 3:

Este excerto está situado em um momento da vida de Brás em que teve um acidente com um jumento. O narrador personagem logo passa a bater com a vara o pobre animal que sacudiu Brás Cubas para fora da cela, ficando este preso ao estribo. O defunto autor narra este fato rememorando o acontecido.

E era verdade; se o jumento corre por ali fora, contundia-me deveras, e não sei (MEN) se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro, lá se me ia a ciência em flor.
Y era verdad; si el macho ha llegado a correr, me habría dado una descalabrada espantosa, y (OMISSÃO) quizá la muerte hubiera sido el remate de semejante desastre; cabeza rota, una congestión, cualquier, trastorno acá dentro, y adiós ciencia en flor.
Table 7. Excerto 3: Omissão de Processo

No TF do excerto (3), Brás Cubas, na condição de narrador/ personagem, é representado como experienciador de uma incerteza mediante o processo mental (sei) e da polaridade negativa (não). Este recurso dá a conhecer as experiências internas do narrador em primeira pessoa que, ao rememorar o passado, reconstrói um dos fatos de sua própria vida na oração projetada (se a morte não estaria no fim do desastre...). Essas escolhas léxico-gramaticais foram influenciadas pelo contexto autobiográfico desta obra ficcional, pois permitem que o narrador possa “transformar-se em um sujeito capaz de refletir sobre o tempo vivido” (LEAL, 2013, p. 30[20]).

As escolhas léxico-gramaticais no TA omitem o processo mental (sei) substituindo-o por um advérbio de dúvida (quizá), mantendo uma equivalência semântica de incerteza, embora produza uma mudança ideacional na representação de Brás Cubas como experienciador, em virtude da omissão de sei.

Contexto do Excerto 4:

No excerto (4), o narrador conta um episódio da trama, ocorrido quando voltavam de um passeio, em que fica no ar certo desconforto de Virgília; instantes antes desse mal-estar os dois trocaram carícias apaixonadas. Vendo-a nesse estado, ele se preocupa com a amada e a conforta com seus carinhos.

Travei-lhe (MAT) das mãos, puxei-a (MAT) levemente a mim, e beijei-a (MAT) na testa, com uma delicadeza de zéfiro e uma gravidade de Abraão.
La tomé (MAT) de las manos, la atraje (MAT) levemente hacía mí, (Omissão) con una delicadeza de céfiro y una gravedad de Abraham…
Table 8. Excerto 4: Omissão de Processo

No excerto (4), a representação ideacional de Brás Cubas no TF é a de um Ator (travei; puxei; beijei) que executa três ações sobre uma Meta (lhe; a; a), a mulher amada. Na representação ideacional do narrador, a ação de (puxar) a amada até seu corpo é textualizada pela circunstância de modo (levemente), que junto com o processo material transformativo de contato (beijei) constituem a representação de um Ator cuidadoso, delicado e afetuoso com seu par romântico.

A representação no TA é em parte mantida, pois Brás Cubas é um Ator de duas ações (tomé; atraje) que atingem a mulher amada (Meta), sendo a última ação situada em um contexto (levemente) de delicadeza e cuidado em relação à mulher. Entretanto, há uma mudança na representação ideacional que constitui Brás Cubas ao seromitidooprocessomaterial beijei, poisse, deumlado, sãomantidas as características de delicadeza e cuidado, de outro, modifica-se o afeto de alguém apaixonado que é capaz de dar um beijo na testa de sua amada. Com isso, verificando-se uma alteração sutil de aspectos experienciais do personagem com a omissão do processo beijei.

Contexto do Excerto 5:

No excerto (5), Brás Cubas jovem encontra-se em um navio em direção à Europa com o capitão dessa embarcação. Nessa parte da trama, o capitão mostra seu lado poeta para Brás Cubas ao recitar seus versos, explicando-lhe que se trata de sua melhor obra e consegue a confirmação por parte desse Brás Cubas jovem.

No fim, confessou-me que era a sua obra mais acabada; eu disse-lhe (VER) que sim; (...)
Al fin me confesó que aquella era su obra más acabada; yo le dije (VER) que así lo creía (MEN); (…)
Table 9. Excerto 5: Acréscimo de Processo

No excerto (5) a voz narrativa no TF constrói uma representação ideacional de Brás Cubas no âmbito da fala (disse) dirigida a um conhecido. A Projeção (que sim) indica o conteúdo da fala de Brás Cubas, que concorda com o amigo, o Receptor a quem a sua fala é dirigida (lhe). No TA há uma mudança ideacional na presença da projeção de locução (que así lo creía), produzindo-se uma nova figura (figure) das experiências do narrador/personagem. Visto que toda projeção deve ser analisada como uma oração autônoma (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014), observa-se que nela Brás Cubas é representado como um Experienciador (creía) de algo que não ocorre no texto fonte. Esta oração projetada situa Brás Cubas no campo semântico da consciência, revelando um pensamento que não é categórico, mas uma possibilidade (creía), diferentemente do texto fonte, onde há uma afirmação e concordância com o seu interlocutor (que sim).

Contexto do Excerto (6):

O excerto (6) situa Brás Cubas no momento em que ele e Virgília decidem alugar uma casa para seus encontros e ele passa a refletir sobre necessidade de posse e egoísmo que isso significa.

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo (MAT), por aquele Valongo fora, logo depois de ver (COM) e ajustar (MAT) a casa.
Tales eran las reflexiones que venía haciendo (MAT) al caminar (MAT) por Valongo, después de ver (COM) y contratar (MAT) la casa.
Table 10. Excerto 6: Acréscimo de Processo

A representação de Brás Cubas no excerto (6) é a de um Ator (fazendo) de reflexões, de um Experienciador (ver) que observa a casa cujo interesse é de alugar para seus encontros com Virgília e a de um Ator(ajusta)que ajustaoalugueldacasaapósrealizarocontrato. Essas experiências ficcionais estão circunscritas a um local específico (por aquele Valongo afora) que ilumina um detalhe importante dessa experiência, o local onde seus planos seriam levados à concretude, ou seja, onde iriam manter seus encontros após acertar a casa.

No TA, a representação ideacional de Brás Cubas é acrescida de mais uma experiência ficcional, a de uma ação (caminar) em um determinado lugar (por Valongo) que criam uma representação mais dinâmica, mostrando uma ação no campo semântico da materialidade desse personagem.

Contexto do Excerto 7:

No excerto (7) temos a representação de Brás Cubas ainda menino, já possuidor de uma maldade inerente ao seu ser. Nem mesmo as tentativas de sua mãe de colocá-lo no bom caminho, ao ensinar-lhe algumas orações, por exemplo, serviam para que ele se tornasse um bom menino, uma vez que logo se esquecia das orações e praticava uma maldade.

De manhã, antes do mingau, e de noite, antes da cama (CIR) pedia (VER) a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava (VER) aos meus devedores; mas entre a manhã e a noite fazia uma grande maldade, (...)
Por la mañana, antes del desayuno, y por la noche, antes de acostarme (COM), pedía (VER) a Dios que me perdonase, así como yo perdonaba (VER) a mis deudores; pero entre la mañana y la noche hacía una gran maldad, (…)
Table 11. Excerto 7: Omissão de Circunstância e acréscimo de Processo

O excerto (7) revela a representação de Brás Cubas no TF como Dizente (pedia) que se arrepende de seus pecados cotidianos, uma vez que faz o pedido de perdão a Deus em dois momentos circunstanciais importantes de sua vida de criança: antes do café (antes do mingau) e antes de dormir (de noite) (antes da cama). Contudo, a representação de Brás Cubas criança já apresentava um caráter voltado para a maldade, perversidade, crueldade, pois na sequência, ele não consegue manter seu pedido de perdão e manter- se afastado do mal, uma vez que ele, como Ator, volta a fazer (fazia) uma grande maldade.

No TA, a representação de Brás Cubas como o Dizente (pedia) arrependido de suas maldades diárias, juntamente a duas das três circunstâncias que localizam o processo em um tempo determinado (antes del desayuno e por la noche). Porém, uma das circunstâncias de tempo (antes da cama) é substituída por um processo comportamental (acostarme), que coloca o personagem no papel principal de Comportante junto ao evento. Percebe-se com esta escolha que a equivalência semântica foi mantida pois, antes da cama, foi entendido como o fato do personagem ir deitar-se, não interferindo na representação de Brás Cubas no âmbito da maldade (hacía), mas lhe dá um maior destaque ao colocá-lo como elemento principal da transitividade (Participante), segundo Halliday e Matthiessen (2014).

Vale a pena mencionar que o processo acostarme é tipicamente um processo reflexivo, tipos de verbos que são “muito mais numerosos em espanhol do que em português” e usados para carac- terizar comportamentos humanos, tais como “me despierto, me ducho, me peino, me cepillo, me afeito, me visto” (MASIP, 2010, p. 145[21]).

Contexto do Excerto 8:

O excerto (8) mostra um Brás Cubas que se arrepende de não ter ido ao teatro com Virgília, justamente por pensar que poderia perdê- la por esse motivo. É nesse momento que ele resolve ir até a casa de Virgília e fazer as pazes com ela.

No dia seguinte, não me pude ter6 (VER); fui (MAT) cedo à casa de Virgília; achei-a com os olhos vermelhos de chorar.
Al día siguiente no pude contenerme (COM); fui (OMISSÃO) a casa de Virgilia; la encontré con sus párpados rojos de tanto llorar.
Table 12. Excerto 8: Omissão de Circunstância

O excerto (8) revela a representação de Brás Cubas como um Dizente (pude ter) que não pretende frear a fala que dirigirá à sua amada. Essas experiências ficcionais ocorrem no dia seguinte à ida ao local (à casa de Virgília) e em um horário específico (cedo), desvelando a urgência dessa ação verbal que pretendia realizar.

Nesse excerto, a representação de Brás Cubas no TA sofre uma mudança ideacional em dois aspectos: no processo verbal que passa a ser Comportamental (pude contenerme) e na omissão da Circunstância (cedo), que diminui a urgência do propósito que o personagem tinha em relação à Virgília nessa representação.

Conclusões

A análise dos dados revela a representação ideacional de Brás Cubas como aquele que age (processos materiais) em seu entorno, pensa e reflete sobre sua vida e sua morte (processos mentais), fala (processos verbais), se comporta (processos comportamentais) e apresenta determinadas características (processos relacionais) no TF. As escolhas linguísticas no TA revelam que, na maior parte do tempo, uma equivalência ideacional na representação de Brás Cubas foi realizada constituindo assim uma mesma figura experiencial deste personagem ficcional e uma mesma representação. Entretanto, algumas escolhas provocaram mudanças ideacionais que alteraram, mesmo que sutilmente, alguns traços da representação ficcional desse personagem (e.g. excertos 1, 2 e 4), ao atribuir maior intensidade (excerto 1), ou sofrer uma mudança na ação afetuosa, como no excerto 4, ou mesmo quando ocorre uma alteração na qualidade de ser vivente, como no excerto 2.

Os dados confirmaram as hipóteses da pesquisa. Em primeiro lugar, a de que, embora esperado, houve um predomínio de equivalências ideacionais, uma vez que, do contrário, o texto apresentaria distinções na descrição de seus participantes, processos e circunstâncias. Em segundo lugar, constatou-se a identificação de um pequeno número de mudanças ideacionais na representação de Brás Cubas no TA. Em relação às mudanças ideacionais, confirmamos que mudanças na transitividade provocam alterações, mesmo que sutis, na constituição das representações ficcionais do personagem, uma vez que elas ajudam a descrever Brás Cubas e os eventos aos quais ele se vincula. Com isso, percebe-se, como de praxe, a importância dos elementos de transitividade para a descrição de eventos e de personagens, a partir das escolhas linguísticas, como demonstra Montgomery (1993[5]), pois a transitividade também revela as mudanças ideacionais que ocorrem em textos variados, especialmente nos ficcionais, quando ocorre alguma alteração em um ou mais de seus elementos.

Em segundo lugar, confirma-se a hipótese de que a presença de mudanças ideacionais, em alguns casos, não resulta em mudanças na equivalência semântica, validando os resultados encontrados por Rodrigues-Júnior e Garcia de Oliveira (2015, p. 408[6]), ao concluírem que as mudanças ideacionais “nem sempre significa[m] mudança na equivalência semântica” como identificado nos excertos 2, 3 e 7 das análises. Isso ocorre porque a língua é um recurso que possibilita criar diversos significados, mesmo que seja usado de modo distinto.

Conclui-se, portanto, que as mudanças ideacionais podem ser o resultado de escolhas tradutórias no nível da léxico-gramática tomadas a partir de decisões do tradutor com base em uma série de fatores, sistema linguístico, aspectos culturais e na interpretação do TF. Sabe-se, pois, que a equivalência é “influenciada por uma variedade de fatores linguísticos e culturais e que, por isso é sempre relativa“ (BAKER, 1992, p. 6[22]); assim, algumas escolhas podem produzir equivalências, mas outras podem provocar mudanças como se vê nas escolhas do tradutor de Memórias.