O sentido como um vir a ser: apontamentos bakhtinianos sobre linguagem e realidade

Adail SOBRAL,
Karina GIACOMELLI

Resumo

Neste artigo, pretendemos apresentar as principais bases da proposição da teoria dialógica de uma concepção de sentido como vir a ser, postulado, e ainda por se realizar em interações específicas, em vez de já dado e realizado no texto. O foco é que a linguagem serve às necessidades interacionais dos sujeitos, que são atendidas em situações concretas de enunciação. Isso envolve falar das relações entre linguagem e mundo concreto de acordo com as propostas da Análise Dialógica do Discurso (ADD), para o que é necessário abordar de que maneira a concepção dialógica pensa a apreensão do mundo pelo sujeito, a ideia da constituição do sujeito pela linguagem via enunciação, as relações entre linguagem e realidade, criadas mediante o discurso, e as condições sociais e históricas de enunciação, o que se vincula com a concepção especialíssima de ideologia da ADD. Recorremos para isso, especialmente, a duas obras basilares de autores da ADD.

Introdução

Como se sabe, o foco das propostas da Análise Dialógica do Discurso (ADD) sobre a natureza da linguagem é que seu espaço o intercâmbio social, a interação, o contato concreto entre os sujeitos, presencial ou presumido (um texto escrito, por exemplo), como a base da comunicação, entendida em termos de ação concreta de tornar comum. Na especificidade da interação, que é sempre um evento irrepetível, mas do qual advêm formas repetíveis, bem como efeitos que se prolongam para além do momento da enunciação, surgem as formas de atuação linguística que, em seu decorrer histórico, acabam por transformar as formas da própria língua — que vão, num processo dialético, ser apropriadas nas interações verbais.

Ao falar das relações entre linguagem e mundo concreto, a Análise Dialógica do Discurso se propõe a

(1) entender o ideológico como elemento constitutivo da materialidade concreta da linguagem, em vez de existir fora dele. O ideológico permeia a apreensão do mundo e seu reflexo e refração na linguagem, em vez de ser um conteúdo que a linguagem apenas veicularia ou que existiria na consciência do sujeito como instância desvinculada do social e do histórico;

(2) entender as formas da língua como obtendo sentido (da ordem da enunciação e do discurso), com base na significação das palavras (da ordem da língua), em sua mobilização pelas formas concretas com que se manifesta o sistema de comunicação social organizada;

e (3) entender a comunicação e suas formas em sua relação intrínseca com as bases materiais, ou seja, com as situações concretas.

Isso implica que ideologia e consciência necessitam uma da outra para se manifestar, e o ideológico é constitutivo do signo, uma vez que, tal como o signo, a ideologia remete a algo que não é ela mesma, a língua como um artefato físico, um sistema de significações, é uma realidade, objeto de estudo científico, mas a linguagem não se manifesta independentemente da interação e, portanto, o sentido nasce nas situações concretas de interação.

Voloshinov (1976[1]) propõe nesses termos etapas de análise da linguagem que partem da interação verbal, de enunciações e enunciados efetivamente produzidos. Embora essas etapa sejam bem conhecidas, vale repeti-las:

(1) considerar os diversos tipos e formas de interação verbal tomadas em termos de suas situações concretas de interação (aqui e agora, lá e então

(2) identificar em enunciados/discursos particulares as formas repetíveis que assumem, sem desconsiderar as especificidades das atuações verbais particulares, em sua estreita relação com a interação;

e (3) examinar as formas da língua (formas textuais típicas, por exemplo) e das significações cristalizadas (as palavras contidas no dicionário), da perspectiva de seu surgimento a partir das próprias ações verbais.

Assim, a Análise Dialógica do Discurso tem como seu objeto enunciados/discursos efetivamente produzidos, em sua eventeidade e irrepetibilidade. As formas repetíveis são entendidas como “formas relativamente estáveis” de ação linguística, integradas ao comportamento humano, ou seja, gêneros do discurso. Destaca-se, vale repetir, o “relativamente estáveis”, ou seja, o serem dotadas de certo grau de estabilidade, mas não constituírem camisas de força. Por fim, a ADD não parte das significações na língua, mas das condições concretas nas quais surgem os sentidos, considerando as significações, mas para além delas. Essas propostas se fundam em uma proposta acerca da apreensão do mundo pelos sujeitos via linguagem que vamos esclarecer.

1. Determinação e apreensão do mundo

A questão da determinação em geral e em termos discursivos merece um esclarecimento. Em primeiro lugar, deve-se esclarecer que, quando se afirma que os processos sociais são determinados, diz-se que a constituição do todo social de que eles são parte depende de certas práticas, de certas visões da realidade e das próprias relações sociais que o constituem. Nesse sentido, os atos sociais são realizados segundo normas advindas das relações de produção, do modo como essas relações são representadas simbolicamente e do momento histórico particular em que ocorrem esses atos.

Quem age o faz socialmente e, ao agir, cumpre um dado papel vinculado à “posição” social, necessariamente relativa, que ocupa. Claro está que, para agir, há necessidade de um agente que é, forçosamente, individual, que para a ADD não se restringe aos aspectos psicológicos. Assim, sejam quais forem as circunstâncias específicas em que se produzem os atos sociais (nos quais estão incluídos os atos discursivos), estes dependem daquilo que essas circunstâncias representam, em reflexo e refração. Em outras palavras, dizer que uma certa ação social é determinada significa dizer que sua realização e constituição dependem de certas condições, que remetem à estrutura social específica e à situação histórica presente no momento de sua realização, representadas imaginariamente na própria estrutura dessa ação.

Essa interrelação é tão flagrante que mesmo a superação de uma dada configuração social e histórica ocorre na sociedade e na história. A superação implica a substituição da configuração existente por outra configuração; contudo, embora altere o modo como se dá a determinação, não modifica o fato concreto da determinação. No nível dos discursos, a ação da determinação faz que estes remetam à posição na sociedade de quem fala e daquele a quem se dirige a fala, ao papel social atribuído a esta fala, às intenções que lhe permitem uma certa manifestação, aos sentidos que essa fala pode instaurar e assim por diante.

Não há, portanto, no conceito de determinação, nenhum elemento determinista, nem se procura com isso formular ou supor “leis” a que se subordinem necessariamente os atos sociais. Trata-se apenas de reconhecer a relação desses atos com o contexto histórico e social particular em que são realizados. Há uma dialética em que, de um lado, o que determina os atos sociais só pode manifestar-se nesses mesmos atos e, do outro, esses atos têm seu sentido e suas formas possíveis advindos daquilo que os determina, isto é, os atos sociais instauram em seu âmbito as determinações que os condicionam.

Falar de “na sociedade e na história” remete ao conceito marxista de formação social. Esta é descrita pelas obras basilares do marxismo como uma articulação dialética “em dominância” — no sentido de que uma das instâncias, num dado momento, sobredetermina, ou constitui, a outra — entre as duas instâncias ou níveis: a infraestrutura ou base econômica, composta das forças produtivas e das relações de produção, e a superestrutura — dividida em dois subníveis, o jurídico-político (relativo ao Direito e ao Estado) e o ideológico (relativo às diversas “regiões” ideológicas: a religião, a moral, a política, a educação, a cultura, etc. e às suas “instituições”). A infraestrutura é de modo geral o determinante “em última instância”, o determinante que está “em dominância”, mas a superestrutura é sua condição necessária.

Nesse sentido, há ao mesmo tempo a dominância da base (ou infraestrutura), advinda da dependência da superestrutura com relação a ela, e a sobredeterminação, a influência da superestrutura sobre a base, que, ao criar um reflexo e uma refração de si, produz uma determinação recíproca em que há um desnivelamento, decorrência da dominância da base. Há, pois, uma relação de interdependência com sobredeterminação, o que explica por que a consciência de cada indivíduo advém de sua existência específica, que implica variações individuais. Logo, o mundo é sempre apreendido em termos de reflexo (como um espelho, que mesmo distorcendo traz o objeto refletido) e refração (como um prisma, que projeta o objeto refletido de distintas maneiras a depender do ângulo), de objetivação social (ou seja, dos modos como cada coletividade representa simbolicamente o mundo) e apreensão individual do mundo objetivado (ou seja, dos modos de cada sujeito incorporar as representações simbólicas que faz de si sua coletividade).

No tocante ao discurso, deve-se ter em conta que aquilo que determina o que se pode dizer e o que se pode querer dizer só vem a ter expressão enquanto reproduzido no próprio dizer, e na relação entre o dito e o não dito. Em outras palavras, a ato de discurso é tanto resultante de determinações sociais quanto um ato de instauração dessas mesmas determinações. Assim, é no próprio discurso que de devem procurar seus determinantes, mas não se pode tratar do discurso senão tendo em vista esses mesmos determinantes. Não se trata igualmente de quantificações nem de qualificações dos sujeitos dos atos sociais advindas da redução das situações sociais possíveis, mas de uma qualificação resultante do reconhecimento do vínculo das ações individuais com o meio social em que estas se inserem de uma forma específica, o que é refletido/instaurado nas representações imaginárias presentes à produção do sentido e por meio delas.

Nesse sentido, os indivíduos percebem a realidade e dela tomam consciência preponderantemente por meio da linguagem, no seio de práticas nas quais os eventos linguísticos são fundamentais. Ora, se a linguagem pode ser caracterizada como um fenômeno que só tem sentido no ambiente histórico-social de que faz parte e se a percepção e a consciência que os indivíduos têm da realidade estão intimamente ligadas aos processos linguísticos, é possível afirmar que a percepção e a consciência individuais também resultam das relações particulares que os indivíduos mantêm com suas condições reais de existência (com sua “realidade material”) e com a “configuração simbólica” que estas comportam. Ou seja, para a percepção e para a consciência individual convergem, tanto como para a linguagem, e por meio dela, a realidade concreta e a representação simbólica dessa realidade, na forma de uma “interpretação” social “interessada”.

Ora, se a realidade for, nesses termos, percebida com a mediação das determinações sociais que constituem os indivíduos como tal, a partir dos diferentes mecanismos de internalização e coerção, a percepção e a consciência que eles podem ter da realidade também são produtos sociais. Assim, o nível de “transformação individual” da realidade seria igualmente social, tendo em vista que sua manifestação só se dá no âmbito (e segundo as determinações) das práticas sociais. Com efeito, a própria existência de uma “história individual” de transformação da realidade só seria possível a partir das próprias determinações presentes às relações sociais; o indivíduo só é indivíduo no âmbito da sociedade: “a própria consciência individual somente pode surgir e se constituir em fato possível na concretude material dos signos” (VOLOSHINOV, 1976[1], p. 22). A consciência individual, por conseguinte, só existe e se manifesta no seio do intercâmbio social, espaço da concretude material dos signos, exceção feita ao plano de sua constituição psico-físico-fisiológica.

Sendo dependente do intercâmbio social, a consciência não pode servir de explicação aos fenômenos linguísticos, devendo ela também ser explicada, tal como estes, com base nas determinações impostas pela formação social. Ora, a percepção, a consciência e a linguagem estão intimamente ligadas e devem ser explicadas levando-se em conta os fatores sociais que as constituem e que dela se servem para a sua produção e reprodução simbólicas contínuas. Um dado fundamental para esta consideração é o fato de que os sentidos são gerados e utilizados socialmente e de que os discursos são de natureza interindividual, logo social, o que impõe explicar a percepção, a consciência e a linguagem com base no intercâmbio social, no qual prepondera a materialidade das relações que os indivíduos podem manter entre si e com suas condições de existência, o que determina os sentidos que podem ser produzidos e a própria realidade perceptível.

A constituição social do indivíduo faz que ele não possa distinguir entre a “objetividade” dos fenômenos concretos e a “objetividade” criada pela configuração simbólica da formação social; desse modo, o concreto institucionalizado, socialmente criado, é tomado por ele como independente das ações humanas e entendido como o real concreto. Assim, o que é criação do homem em sociedade é considerado como existente a priori, sem a interveniência das ações humanas, de modo que cada indivíduo percebe e toma consciência da realidade como se a construísse ele mesmo a partir da concretude desta e de sua consciência pessoal, tomando pela própria realidade o que não é senão um constructo apreendido e apresentado segundo uma visão socialmente interessada.

Isso nos remete a outra questão importante: se a linguagem é atividade realizável apenas interindividualmente, ou seja, se os seus sentidos só vêm a ser como ação efetiva entre indivíduos, concretamente presentes ou pressupostos, no seio da formação social de que fazem parte e do aqui e agora dos discursos, então a consciência, intimamente ligada a ela, não é um produto natural estático e acabado, mas um produto contínuo das relações sociais que “toma vida e forma na matéria dos signos criados por um grupo organizado no seu processo de intercâmbio social” (VOLOSHINOV, 1976[1], Op. cit., p. 24), um elemento que só se constitui e se manifesta nas significações geradas socialmente na troca simbólica.

Dessa forma, a consciência não cria o mundo, mas resulta da própria organização real e simbólica deste num dado momento da formação social. Por conseguinte, não obstante haja efetivamente uma consciência individual, que é necessária à “história individual das transformações da realidade”, não se pode considerá-la determinante da percepção que o indivíduo tem da realidade, visto que sobre ela incidem várias determinações sociais, que levam os indivíduos a perceber as coisas já mediadas, ou seja, que fazem a realidade socialmente criada ser percebida como o real concreto.

A “realidade” que chega ao indivíduo é já uma construção social, uma realidade social dotada de um sentido “já dado” resultante de uma escamoteação das relações sociais nestas e por meio destas. Ou seja, as relações sociais produzem uma visão particular da realidade (que inclui, evidentemente, uma visão de si mesmas), um “recorte” da realidade que apresentam como “representação fiel”, “real” desta, atribuindo a essa construção uma historicidade e uma objetividade ad hoc. Em síntese, a realidade material, o real concreto, é objeto de uma apreensão particular que a transforma com base em processos sociais de produção, transmissão e reprodução de sentidos fundamentais à estrutura existente da formação social de que fazem parte, processos que se desenrolam nas práticas sociais das várias instâncias das formações sociais.

Nessa perspectiva, de que modo a realidade seria apreendida e expressa pelos indivíduos em sua experiência? É preciso, em primeiro lugar, levar em conta o papel privilegiado da linguagem nesses processos de produção/transmissão/reprodução de sentidos da formação social, advindo do fato de a linguagem ser necessária tanto à interpretação e compreensão psíquicas das experiências do indivíduos como para a expressão destas no intercâmbio social. Parece-nos que, por este caminho, é mais proveitosa a investigação da relação entre o individual e o social, bem como o status do indivíduo no processo de produção de sentidos, no processo de construção e transformação ideológicas da realidade concomitante à existência de toda e qualquer formação social, processo de que a linguagem é parte fundamental.

Com efeito, a linguagem tem papel vital na construção do sentido que a realidade adquire para o indivíduo, na medida em que, enquanto conjunto dinâmico de regras de investimento de matéria significativa, permite a manifestação dos vários fenômenos ideológicos, cuja confluência lhe confere a posição de meio privilegiado de construção, transmissão e reprodução das legitimações necessárias à manutenção de uma dada forma de organização social, à sustentação das relações sociais existentes. É justamente através das práticas linguísticas que o particular mundo social é apresentado como a realidade, fato decorrente da faculdade da linguagem de se prestar às diferentes formas de apropriação promovidas pelos grupos e classes em contradição no tecido social.

Essa faculdade da linguagem a associa, nessas e por meio dessas apropriações, à visão particular interessada que cada grupo ou classe tem do real concreto, sem que se deixe de lado o fato de que as determinações que incidem sobre a linguagem não se restringem aos interesses das classes ou grupos que dela se apropriam. A linguagem serve inclusive como arma poderosa nos confrontos que se travam na sociedade, tendo determinados nessa arena seus usos “bons” e “maus”, submetendo-se a inúmeras normas, restrições, regulamentações, etc. Ela permite o surgimento das representações ideológicas, que dela se servem na medida em que são um domínio de produção de sentidos que incide sobre as formações sociais, que cria seus “atores” e determina seus “sujeitos” e fazem das formações discursivas instâncias das suas.

Assim, a linguagem é a base dos processos discursivos, que são apresentados como conhecimento produzido, como se efetuassem uma diferenciação entre o “real concreto” e o “objeto de conhecimento”, segundo critérios definidos internamente e em particular, embora sejam, na verdade, conhecimento dado, “gerado” pela circularidade e o fechamento que caracterizam os sistemas ideológicos. Esse conhecimento dado faz que não se percebam as próprias condições de produção que o geraram. Paradoxalmente, o efeito de amalgamação dos vários elementos que o constituem é que nos permite perceber que o real concreto e a ideologia não se distanciam aí. Quer isso dizer que o fato de o real concreto ser apresentado e apreendido ideologicamente explica a impossibilidade de um discurso original preexistente à ideologia. E, na medida em que esta última depende de práticas materialmente configuradas, também é impossível haver fenômenos ideológicos sem sujeitos.

A “construção social da realidade” tem, portanto, caráter ideológico, e a linguagem, uma das bases desse processo, serve à apropriação ideológica da realidade, que apresenta como conhecimento um “desconhecimento”; a impressão que o falante tem de possuir um “conhecimento” da realidade é o efeito (e não a causa) da “interpelação do indivíduo como sujeito, fundamental para essa apropriação ideológica da realidade. Não havendo, portanto, um nível de conhecimento “puro”, não mediado, direto, mas uma apropriação da realidade segundo representações imaginárias, a linguagem não poderia servir à transmissão “objetiva” do conhecimento, mas à manifestação do “desconhecimento” ideológico. Ou seja, na ordem do discurso, objetividade e subjetividade são “efeitos de sentido”, e não equivalentes à realidade concreta e aos estados mentais do sujeito, respectivamente.

A linguagem, como fenômeno social realizado na sociedade, entre sujeitos definidos socialmente, não poderia servir à comunicação entendida como ação que pressupõe a posse de um conteúdo “objetivo” não comum, subjetivamente definido, nem à transmissão de conhecimentos concebida como processo de produção efetiva de conhecimentos por parte de um sujeito psicologicamente definido. Com efeito, tomada a linguagem como fenômeno social e, consequentemente, ideológico, e os falantes como constituídos em sujeitos na ideologia e pela, não se admite a possibilidade de produção de um conhecimento real (no sentido de não dependente de visões sociais particulares) a ser transmitido, nem a possibilidade de apropriação individual da linguagem para fins de uma comunicação que refletisse efetivamente o real concreto e que não estivesse ligada à função prático-social da ideologia, realizada nas práticas materiais de que os processos linguísticos são parte.

Dessa forma, embora a linguagem não possa ser identificada à ideologia (no sentido das ideologias particulares presentes à formação social) por meio de alguma espécie de isomorfismo, há dados suficientes para considerá-la como vinculada ao ideológico, isto é, relacionada com a Ideologia (no sentido althusseriano de “ideologia em geral”, isto é, a ideologia como sistema de que partem os processos ideológicos de que advêm as ideologias particulares. Daí que se considere a linguagem como a base comum dos processos discursivos, ancorados em formações ideológicas no âmbito de uma dada formação social. Isso evoca a questão da relação entre a psique (psicologia) individual e a concretude material dos signos (criatividade ideológica).

2. Linguagens, sujeitos, enunciação

Nos termos dessa perspectiva de ver o mundo apreendido em termos de reflexo e refração, o sentido é definido como um processo social contínuo de instauração de eventos significativos. A produção de sentidos deve assim ser analisada levando-se em conta necessariamente o contexto histórico-social interativo em que são produzidos os discursos, por ser este contexto constitutivo do sentido, tal como se manifesta nas superfícies discursivas. A linguagem é caracterizada como um sistema semiótico em constante fluxo que é constituído social e historicamente; ela transcende a função referencial-informativa, servindo primordialmente à manifestação de intenções, regras, convenções e outros elementos pertinentes ao caráter social e histórico do intercâmbio social, em que estão presentes os processos ideológicos (cf. BAKHTIN, 2003[2]).

A partir dessas teorizações, a enunciação pode ser caracterizada como o espaço em que as práticas linguísticas constituem seus atores e determinam seus sujeitos; o falante é caracterizado como um mediador entre as significações socialmente concretizáveis e permitidas e os discursos efetivamente produzidos de que esse falante pode vir a ser sujeito. Ao destacar a ação linguística e os agentes linguísticos, essa abordagem remete aos próprios fundamentos da noção de “sujeito” e de “realidade”. Impõe-se a partir disso examinar as práticas linguísticas em suas relações com as outras práticas sociais, bem como identificar a influência que têm no discurso os contextos e situações históricas e sociais em que se manifesta o intercâmbio social — passo importante para o dimensionamento do ser e do agir sociais da linguagem.

Trata-se de um exame do sentido linguístico tal como se manifesta na constituição de uma unidade, o discurso, formalmente mais complexa do que a frase – mas que pode ser uma única frase – e determinada funcional e significativamente pela configuração concreta da formação social no âmbito da qual vem a ser, bem como pelas diferentes estratégias discursivas que estruturam a direção do discurso.

Vemos aqui que o signo ideológico tem caráter essencialmente “aliteral”, visto resultar do reflexo e refração da dialética do intercâmbio social, das determinações em que se manifestam, e que manifestam, os discursos. Postular um sentido literal qualquer, no âmbito dessa proposta, seria reduzir o fenômeno linguístico a um de seus aspectos: a fixação social do sentido oficial. As significações no dicionário são fixadas, mas o uso das palavras não se reduz ao sistema da língua: uma palavra com o mesmo sentido no dicionário pode ter até mesmo sentidos opostos na enunciação. O processo de constituição do sentido é a luta social pela fixação e legitimação dos sentidos que melhor atendam aos interesses e intenções (ainda que imaginariamente representados, ou talvez por isso mesmo) dos diferentes setores em contradição na estrutura da formação social.

No plano da enunciação (do discurso), a referência é instaurada, por conseguinte, de acordo com a natureza da interação locutor/interlocutor que nele se instala, razão por que não se consideram as expressões linguísticas de que lança mão o locutor idênticas a coisas, mas correspondentes às entidades de que ele fala e que espera ver identificadas pelo interlocutor. Por conseguinte, a análise linguística deve concentrar-se no estudo dos discursos, realizados em circunstâncias particulares entre “sujeitos” particulares, por ser esse o plano de geração dos sentidos.

A análise dialógica do discurso é tanto uma teoria e análise do discurso e da enunciação, isto é, da linguagem, como uma ontologia, ou seja, uma proposta filosófica sobre o que é o ser humano e seu estar no mundo. Logo, a descrição do sujeito discursivo e do ser do sujeito estão imbricadas nos escritos da ADD. O sujeito dialógico é duplo e duplamente dividido; duplo porque se desdobra em sujeito concreto e sujeito de discurso; duplamente dividido porque, em seu interior, leva em conta as vozes do outro e, em seu exterior, é constituído por múltiplos outros.

Como dissemos (SOBRAL; GIACOMELLI, 2015[3], p. 218-219), na concepção dialógica o sujeito:

"se constitui a partir do outro, e constitui o outro, na interação, que (...) não se refere apenas ao contato direto entre sujeitos. Devemos pensar na concretude da situação do sujeito, e não em alguma “essência” sua; essa concretude tem de ser levada em conta para entendermos sua “transfiguração” discursiva, isto é, sua construção, constituição, como sujeito de discurso. O sujeito do dialogismo não é o sujeito empírico, pessoa física identificada por um CPF, mas também não é um sujeito abstrato, ideal. Trata-se em vez disso de um sujeito concreto, um sujeito inserido no mundo que se projeta em seu enunciado. Logo, o sujeito não é apenas um ser do mundo nem apenas um ser de discurso, mas um sujeito concreto, que une esses dois planos. Não há aqui uma separação entre o contexto da interação e a interação propriamente dita, entre o texto e o contexto, entre a realidade discursiva e a realidade per se, mas a consideração simultânea dessa dupla condição: o sujeito concreto não é abstrato, não é subjetivo no sentido psicológico nem é estritamente sociológico, mas um ser do mundo que se manifesta em seus enunciados (e ações)."

Essa complexidade da constituição do sujeito, sempre em tensão entre o que pode perceber de si em seu interior e o que os outros com os quais interage lhe mostram, revela que não só todo ato do sujeito como sua própria constituição como sujeito envolve interação. Sabemos ainda que interação é algo que ocorre no tempo e no espaço, com alguns elementos constantes, mas que é imprevisível a maneira como cada outro específico altera cada eu e é por ele alterado na interação.

Mais do que isso, o ser humano vive em interação, pois esta não se esgota nos atos concretos de interação, mas persiste em seus efeitos. O sujeito é um ser expressivo, um ser cujos enunciados remetem ao mundo em termos de sua percepção, ou seja, constrói referentes de um dado ponto de vista, e sempre age dirigindo-se a outrem. Em seu discurso, ele endereça o dito a alguém e remete valorativamente ao mundo. Sua vida é, assim, marcada pelo contato com os outros e pela interconstituição contínua do eu pelos outros e destes pelo eu.

A entoação avaliativa do locutor, ou seja, sua valoração daquilo que vai dizer, que o leva a dizer de uma dada maneira, determina como ele vai dizer, e a reação ativa do interlocutor, isto é, a reação deste ao dito e ao modo de dizer, não têm garantido seu reconhecimento tal como o sujeito as pensa. Porque envolve sempre o outro, cuja reação é imprevisível em princípio. O locutor tenta antecipar a reação do outro, mas não dispõe de uma fórmula segura; o interlocutor tenta ver o enunciado do outro segundo a imagem que tem do outro, mas esta também é imprecisa. O sentido é uma negociação tensa na qual nada está garantido de antemão.

Isso acontece porque cada sujeito representa um centro de valor: cada sujeito ocupa uma posição única e insubstituível na sociedade, e dela deriva, via linguagem, sua própria versão, que se altera no tempo e no espaço, de cada evento vivido em interação. Assim, o agir do sujeito não depende apenas dele, mas do contexto mais amplo, da conjuntura, bem como dos outros com que se relaciona. Valoração é, portanto, a avaliação que cada sujeito faz e pode fazer, conjunturalmente, de eventos no mundo, de atos seus e de outrem etc.

Valoração, entoação avaliativa e recepção ativa são conceitos que se vinculam com o ideológico tal como definido, em oposição ao marxismo vulgar, pelos teóricos do Círculo. Estes afirmam, como vimos, que o ideológico é essencialmente sígnico, no sentido de que toda representação ideológica aponta imaginariamente para um referente objetivado socialmente e apropriado pelos sujeitos à sua maneira, de acordo com sua consciência, que é fruto de sua existência específica, em vez de algo geral. Em outras palavras, o produto ideológico é a um só tempo parte de uma realidade, natural ou social, e reflexo e refração de outra realidade que lhe é exterior. Todo produto ideológico tem sentido, ou valor semiótico, pois aponta para algo que se acha fora dele, ou seja, é um signo (VOLOSHINOV, 1976[1]).

Ao contrário do que alega a teoria do reflexo do marxismo vulgar, a ideologia não está na consciência, porque, como a compreensão só ocorre tendo por objeto um material semiótico e como a direção do signo sempre o faz atingir outro signo, a consciência vem a se constituir na vida social, na concretude material dos signos (VOLOSHINOV, 1976[1]). A consciência só vem a se constituir quando mergulha no conteúdo ideológico, isto é, no processo social da interação, não havendo, assim, consciência neutra, ou objetiva no sentido de acima da concretude do vivido. Mas é preciso enfatizar que, sem o aparato que vem a constituir a consciência, o ideológico não poderia manifestar-se.

Há entre consciência e ideologia, portanto, uma relação contínua de interconstituição. O ideológico é já parte da constituição da consciência e esta só se forma por meio da linguagem. Entender cada sujeito como centro de valor, distinto de todos os outros, implica portanto que, embora o processo de valoração, de avaliação ideologicamente fundada, presente à apreensão do mundo pelos sujeitos, contenha elementos constantes aplicáveis a todos os sujeitos, estes realizam esse processo à sua própria maneira, uma vez que cada sujeito é ímpar, peculiar, irrepetível.

3. Em busca de uma conclusão, ou o sentido como um contínuo "vir a ser"

A concepção bakhtiniana de linguagem e de discurso pode assim ser resumida, de nosso ponto de vista, na afirmação a seguir, que considera essencial a interação contínua constitutiva do sentido (Cf. BAKHTIN, 1997[4], p. 386):

Chamo sentido ao que é resposta a uma pergunta. O que não responde a nenhuma pergunta carece de sentido. [...] O sentido sempre responde a uma pergunta. O que não responde a nada parece-nos insensato, separa-se do diálogo (BAKHTIN, 1997[4], p. 386).

Vimos aqui que, como a compreensão e a consciência só se produzem com base num material semiótico e como esse material se institui como realidade concreta, a própria consciência só se constitui na “concretude material dos signos” (VOLOSHINOV, 1976[1], p. 22), isto é, a consciência individual só se constitui, no processo de interação social, a partir do ideológico. Mas sem consciência não pode haver ideologia.

Voloshinov (Idem) afirma que a realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade dos signos sociais, que segue as leis da interação semiótica, determinadas pelas leis econômicas e sociais: a realidade dos fenômenos ideológicos é a superestrutura imediata da infraestrutura econômica. Para ele, a palavra (a linguagem) é, portanto, o “fenômeno ideológico por excelência” (Op. cit. Loc. Cit.): sua natureza se define por sua função de signo e sua realidade é determinada pelo intercâmbio social.

Além disso, ela é um material semiótico de caráter geral, diferindo dos outros materiais semióticos por não fazer parte de um campo determinado de criatividade ideológica; os outros materiais são criados por um dado campo que formula símbolos e signos aplicáveis apenas a si mesmo. Quer dizer, são criados a partir de uma função ideológica específica e permanecem por isso inseparáveis dela. A linguagem, por sua vez, na qualidade de sistema de produção de sentidos, não se especializa em nenhuma função ideológica específica, podendo desempenhar funções semióticas dos mais diversos tipos.

Por outro lado, ela é o meio fundamental da consciência individual, produzida no próprio organismo sem recurso a qualquer material extracorpóreo, servindo assim de material da “verdade interior da consciência” (linguagem interna) antes de chegar à expressão externa. A criatividade ideológica e a compreensão dos processos ideológicos têm a palavra como elemento essencial: a função da palavra nesses planos é constituir a linguagem interna, que é a base desses processos.

Concluímos assim que a análise das relações entre os sentidos produzidos no discurso e o seu contexto e situação de produção pode levar à compreensão dos diferentes mecanismos discursivos, dos processos de significação, da natureza da linguagem, da ideologia e das determinações e mediações sociais, ou seja, das relações entre linguagem e realidade. O modo como o sentido se manifesta reflete (e refrata) o estado particular da sociedade na qual e para a qual ele existe. Logo, não se pode falar de linguagem sem se fazer referência aos vários processos de constituição, manutenção e reprodução das relações que caracterizam a sociedade, processos esses nos quais a ideologia e seus mecanismos exercem um papel fundamental.

As características da linguagem aqui abordadas, ao lado da natureza dos discursos e da criatividade ideológica, constituem para o Círculo o que Voloshinov denomina “psicologia social”, cuja manifestação é uma variedade de discursos condicionados pela organização social dos participantes dos atos discursivos, bem como pelas condições imediatas em que se dá a interação desses participantes. Logo, o intercâmbio social é condicionado permanentemente pela situação social dos participantes e pelas condições, imediatas e mediatas, de sua interação — em termos do discurso, por meio das relações dialógicas, nas interações entre sujeitos, bem através da interdiscursividade, na relação entre discursos.

O “compromisso/comprometimento” dos falantes determina, dessa maneira, as regras do intercâmbio social, fazendo que os discursos adquiram sentido a partir da constituição social dos falantes. Assim, parece-nos ser possível afirmar que o estatuto dos falantes, sua posição na estrutura do todo social, codetermina os sentidos que a linguagem assume no discurso ao lado das determinações específicas advindas das circunstâncias particulares de produção dos discursos.

Desse modo, os indivíduos se tornam sujeitos no momento mesmo de sua constituição em falantes pelo uso da linguagem, possibilitado a partir das relações sociais. O fato de os indivíduos ocuparem uma posição relativa na estrutura do todo social os configura como sujeitos constituídos nas e pelas relações que lhes é possível manter e nas e pelas práticas sociais de que podem participar.

Por outro lado, o discurso, dada a estreita relação entre linguagem, sociedade e ideologia (e entre componentes individuais e sociais) é o espaço privilegiado de articulação entre discurso/linguagem e ideologia; aqui se articulam o discursivo e o extra discursivo, por meio da ideologia e da complexidade semiótica da linguagem, ligadas à estrutura particular da sociedade em um momento dado.

A concepção bakhtiniana de linguagem e de discurso é, como vimos, essencialmente ativa: o ato, o processo do intercâmbio linguístico, e não os enunciados/discursos como produto, constitui o objeto de estudo e o centro de seu empreendimento teórico e prático. Propositor das relações dialógicas e da presença de várias vozes em todo discurso como conceitos fundamentais da análise linguística, Bakhtin os vê como arcabouços constitutivos não apenas dos discursos como da própria linguagem e mesmo da identidade dos sujeitos. O locutor e o interlocutor têm o mesmo estatuto: assim como é, retrospectivamente, uma resposta a enunciações precedentes de outros interlocutores, a enunciação do locutor responde prospectivamente ao interlocutor, como se tentasse antecipar sua réplica.

O interlocutor é dotado de responsividade ativa: a réplica concreta do interlocutor é que permite que se materialize a compreensão (cf. Bakhtin, 1997[4], passim). Portanto, só faz sentido para o homem aquilo que responde a alguma coisa e só as coisas às quais é dada uma resposta; e essa resposta é dada não somente a enunciados/interlocutores que precedem o discurso como também aos que os sucederão; o locutor também se antecipa à resposta do seu destinatário por assim dizer imediato (o termo segundo da relação dialógica) e, mais do que isso, remete a um destinatário mediato (e por vezes vago) sempre presente, o “sobredestinatário superior” (o termo terceiro).

Esse sobredestinatário exibe, nas palavras de Bakhtin, uma “compreensão responsiva absolutamente exata” que é “pressuposta seja num espaço metafísico, seja num tempo histórico afastado”. A identidade dessa instância, que dizemos sancionadora, “adquire uma identidade concreta variável (Deus, a verdade absoluta, o julgamento da consciência humana imparcial, o povo, o julgamento da história, a ciência, etc.)” [BAKHTIN, 1997[4], p. 356], Logo, para o autor, todo sentido é sempre “sentido em fazer-se” na interação dialógica, articulando-se em dois planos: no da significação para a qual aponta e da direção que indica. Significação remete à língua como potencialidade semiótica e à interdiscursividade, ao dialogismo; direção, ao intercâmbio verbal e à polifonia.

A relação dialógica transcende a própria relação “entre as réplicas de um diálogo real” e alcança, por sua extensão, variação e complexidade (BAKHTIN, 1997[4], p. 354), o plano de um meta-discurso contínuo que interliga discursos não em termos de sucessão temporal e de presença contígua no espaço, mas em termos de sentido (em confronto, mas, ao mesmo tempo, que partem de uma certa convergência, de um ponto de contato necessário à sua relação).

As teses básicas que sustentam as proposições que temos apresentado são:

a. linguagem e sociedade estão intimamente ligadas, e a linguagem serve à constituição simbólica concomitante ao vir a ser das formações sociais. O ideológico é parte intrínseca dessa constituição, uma vez que só se manifesta em um material sígnico;

b. as condições de enunciação (tempo, espaço, pessoas) são fundamentais para a compreensão das funções da linguagem e dos processos de produção de sentido e, portanto, para a compreensão da natureza da linguagem;

c. nos discursos, realizados por e entre sujeitos históricos e sociais numa dada situação de uma determinada formação social, é que se manifestam os processos de produção de sentidos. Os atos discursivos dos sujeitos envolvem a mediação entre os sentidos socialmente possíveis e os enunciados efetivamente produzidos.

Com base nesses elementos, enfatizamos que a noção de discurso procura reconhecer o papel preponderante das circunstâncias particulares de realização das ações linguísticas na constituição dos sentidos atualizados por e nessas ações. Esse novo objeto possibilitado por essa perspectiva impõe a recusa da frase como unidade principal e máxima de análise linguística, bem como a recusa da tomada das unidades linguísticas como produto sem considerar seus processos de uso. Essa noção dá conta ainda da dependência da ação dos interlocutores das condições em que agem, que determina as intenções interativas desses interlocutores e as estratégias por meio das quais eles podem vir a realizá-las. Logo, o falante não é mais considerado o centro dos discursos, na medida em que sua própria constituição enquanto indivíduo e enquanto falante emerge nos próprios processos sociais de produção de sentido.

A linguística do discurso bakhtiniana propõe uma dialética fundada na concretude das práticas sociais, envolvendo atores, ações e processos de troca simbólica, processos de manifestação/produção de sentido. Isto implica a recusa do tratamento das unidades linguísticas de um ponto de vista formal (gramatical, literal), a recusa de uma concepção idealista do falante, e, portanto, a recusa de descrições da natureza da linguagem que a desvinculem da sua manifestação efetiva em discurso, articulada ao meio histórico e social.

Em consequência, ela transcende a concepção de linguagem que a restringe a um nível formal, referencial-informativo. Ela se volta para a constituição concreta de sentidos, que revela intenções, interesses particulares, convenções e outras determinações que derivam de uma dada estrutura social. Em outras palavras, a linguística do discurso volta-se para a análise dos discursos realizados por e entre falantes que são parte de uma dada formação social. Esses atos são determinados por regras e convenções socialmente definidas que incidem sobre a escolha de palavras, expressões, proposições, estruturas e processos linguísticos, determinando o que pode e deve ser dito.

Por conseguinte, entende-se o sentido como necessariamente mediado pelo ato enunciativo: não há um sentido originário, anterior à interação enunciativa, isento de determinações; o próprio sentido dito literal é já resultado da construção do objeto sentido literal a partir de uma percepção interessada. Como seu processo de produção é, desse ponto de vista, parte inalienável do sentido, só podemos compreender este último no âmbito das determinações que sobre ele incidem. A constituição dos sentidos e dos “sujeitos” linguísticos advém (e é realizada através) das relações que os indivíduos mantêm no corpo da sociedade.

Os indivíduos, nesse sentido, são uma instância de mediação entre as determinações sociais e as ações que realizam, constituindo-se em “sujeitos” nas e pelas relações sociais, historicamente definidas, que lhes é possível manter. Assim, a análise do discurso parte da ação linguística, do trabalho de produção de sentidos no âmbito do intercâmbio social simbólico, para chegar à determinação das funções e dos mecanismos desse processo de instauração e manutenção de eventos significativos. Isso nos remete às modalidades de “construção da realidade” por meio das interrelações sociais e da linguagem.

Parte da superestrutura da formação social (ou, noutra concepção, do nível de troca simbólica da sociedade), a linguagem não é um fenômeno de classe, mas, em sua complexidade semiótica, presta-se à apropriação dos grupos e classes sociais, com seus interesses, intenções e estratégias distintos. A consciência linguística individual, o modus vivendi da linguagem para o indivíduo, o sujeito, depende da estrutura do todo social num dado momento e representaria um “conhecimento” aproximado, parcial, já que adquirido a partir de uma visão aproximada, parcial.

O estudo da linguagem, à luz da natureza do seu objeto, não pode, como se vê, principalmente nestes tempos de interdisciplinaridade, prescindir de uma teoria da estrutura social e das práticas sociais, bem como de uma teoria da ideologia e, principalmente, das ideologias, a fim de entender como a realidade é apreendida via linguagem. A investigação do seu objeto impõe que a teoria linguística da ADD se concentre nas manifestações concretas do processo de produção de sentidos linguísticos. Nos discursos está a manifestação concreta dos vários elementos dinâmicos de constituição da produção social de sentidos e, por conseguinte, a linguagem e a própria configuração simbólica da sociedade.

As ações simbólicas interindividuais determinadas pelo estado particular da estrutura social incidem sobre essa mesma estrutura social. Por conseguinte, consideram-se os sentidos como constituídos no e pelo contexto social e histórico de que fazem parte, caracterizando-se a linguagem como elemento fundamental da configuração simbólica concomitante à existência de toda e qualquer formação social, bem como da consciência.

Assim, a constituição dos sentidos e dos “sujeitos” linguísticos advém (e é realizada através) das relações que os indivíduos mantêm no corpo da sociedade. Os indivíduos, nesse sentido, são uma instância de mediação entre as determinações sociais e as ações que realizam, constituindo-se em “sujeitos” nas e pelas relações sociais, historicamente definidas, que lhes é possível manter. A análise dialógica do discurso, ao integrar dinamicamente as várias ordens de coisas que convergem para a constituição do sentido, desvela os princípios que fundam e justificam a multiplicidade e o confronto contínuos de intenções, posições, sentidos, atitudes, interesses etc., e especialmente o modo como o fazem.

Esses elementos são muitas vezes objeto (em favor dos grupos ou classes hegemônicos de um dado momento) de ocultamento, negação, neutralização, destinados a defender a existência da “unidade”, da “coesão” sociais; e o discurso, ao revelar as estratégias empregadas para isso, permite vislumbrar, articulados “negativamente” em sua ausência admitida, mas necessariamente presentes nos próprios valores que o negam, uma multiplicidade de vozes em permanente confronto advinda desse universo complexo, contraditório, tenso, em constante movimento histórico que se convencionou chamar sociedade.