Linguística Formal como ensino de ciência na escola básica: uma experiência nas aulas de português

Edsel Rodrigues TELES,
Ruth Elizabeth Vasconcellos LOPES

Resumo

Nosso objetivo é apresentar uma maneira de conceber o ensino de ciência na Educação Básica por meio do trabalho com gramática, a partir de modelos formais, mostrando como a aula de língua portuguesa pode ser espaço de discussão e aprendizado do fazer científico. Explora-se a aula de língua materna como lugar para aprender ciência, explicitando qual tipo de ciência deve ser priorizado por um trabalho como esse. Apresenta-se um exemplo de como a proposta pode ser concretizada no dia a dia do professor de português. O relato sobre a testagem do material produzido ao longo do trabalho em salas de aula evidencia a possibilidade de seu sucesso, trazendo fôlego à perspectiva e necessidade de mais reflexões a seu respeito.

1. Defendendo outra forma de ensinar ciência

Dentre os diversos problemas enfrentados pela escola brasileira, em especial nos ensinos Fundamental e Médio, pode-se destacar a questão de como se lida com o fazer científico. Notadamente, a prática tradicional tem trazido certo anacronismo incompatível com o espírito da ciência. Teorias são postas à baila como se fossem inquestionáveis, engessadas, eternas. Varre-se para debaixo do tapete toda a discussão feita durante décadas por especialistas que chegaram a conclusões mais ou menos consensuais, e uma gama significativa de contra-argumentos para esta ou aquela hipótese é superficialmente comentada ou convenientemente esquecida. Na química, por exemplo, os modelos atômicos de Dalton, Thomson, Rutherford e Bohr são apresentados como pacificamente coexistentes, ou que foram sucessivamente dando espaço um para o outro, sem polêmica, alheios a um processo de investigação repleto de pontos e contrapontos. Na história, por sua vez, as diferentes perspectivas do descobrimento do Brasil (em um extremo, a visão de que o Brasil realmente foi descoberto por Portugal, e, em outro, a visão de que Portugal sabia da existência das terras que se chamariam Brasil posteriormente e investiram em uma empreitada muito bem calculada no “descobrimento”) dificilmente são dadas ao conhecimento dos estudantes, impondo-se essencialmente a versão da descoberta.

Alguns documentos oficiais, como a “Proposta Curricular do Estado de São Paulo”, já propõem alternativas para o tratamento de inúmeros temas das áreas do saber, sinalizando que o modo como a escola trabalha com o fazer científico não é o mais adequado para a formação plena do aluno brasileiro. Seguindo o mesmo caminho, diversos professores e pesquisadores da educação acenam para a importância de se rever as estratégias de ensino a fim de que elas se alinhem em perspectivas mais atuais de trabalho com o fazer científico. Tatiana Nahas1, em entrevista ao site “Ciência Hoje” (Carmelo, 2011), ilustra uma das falhas no ensino das ciências na escola:

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(...) pouco se exercita o método científico ao ensinar ciências. Não dá para esperar que o aluno entenda o modus operandi da ciência sem mostrar o método científico e o processo de pesquisa, incluindo os percalços inerentes a uma investigação científica. Sem mostrar a construção coletiva da ciência. Sem mostrar que a controvérsia faz parte do processo de construção do conhecimento científico e que há muito desenvolvimento na ciência a partir dessas controvérsias.

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Assim, a mudança de postura está em mostrar que, quando se fala em ciência, hipóteses podem ser passageiras, passíveis de erros, exigindo correções de percurso; procedimentos podem estar equivocados. Eliminar esse porto seguro dos alunos parece radical à primeira vista, uma vez que pode reforçar a equivocada ideia de que qualquer análise pode ser feita, qualquer opinião é válida. Entretanto, sob determinados parâmetros que serão expostos ao longo deste artigo, poder-se-á ver que esse deslocamento pouco tem a ver com relativismo e constitui fator essencial para a mudança da forma como se encara o conhecimento científico nas escolas brasileiras.

Inúmeras são as consequências de se mudar o paradigma do ensino tradicional de ciência na escola. Primeiramente, a mudança do paradigma pode preparar melhor crianças e jovens para o procedimento científico no Ensino Superior. É um choque para os alunos que chegam à universidade a forma como as discussões são encaminhadas nas aulas e como se deve estudar. Um trabalho na Educação Básica que incorpore parte dessa agenda e, como diz Perini (2010, p.32), mostre que “a ciência não é um corpo de conhecimentos e resultados; é um método de obter esses conhecimentos e resultados”, pode evitar a discrepância tão acentuada nos ensinos. Se, desde cedo, for dada aos alunos a oportunidade de analisar fatos por meio de hipóteses e generalizações, for instigada a vontade de encontrar dados que denunciem falhas nas hipóteses e que os estimulem a readequar a teoria, a passagem do Ensino Médio para o Ensino Superior será mais profícua.

Uma proposta renovada de ensino de ciência na escola pode também deslocar a posição do professor e do aluno dentro da sala de aula, um assunto muito debatido pelos educadores. Há muito tempo, defende-se a ideia de que ao docente não cabe mais a figura exclusiva de detentor do conhecimento, aquele que sabe algo desconhecido dos alunos e vai lhes transmitir esse saber. A imagem do professor de hoje continua sendo a do profissional que compartilha conhecimento, mas agora ele também deve ser capaz de orientar o educando a construí- lo durante o processo de aprendizagem, estabelecendo projetos, discutindo ideias e propondo caminhos para a solução de problemas. É uma visão cara ao posicionamento defendido aqui: um professor que trabalhe com ciência respeitando o fazer científico torna-se o professor orientador que se busca atualmente. Outra consequência positiva para o profissional da educação dentro dessa perspectiva é estimular sua contínua formação. Deslocar o docente da posição única de detentor do conhecimento significa também tirá-lo de sua zona de conforto. A partir do momento em que as análises apresentadas em sala de aula podem ser questionadas e mesmo reformuladas pelos alunos, o professor precisa aprender novas estratégias no trato com a sala de aula, o que o leva a estudar mais, não se acomodando em sua prática profissional. Tal atitude é benéfica para ambas as partes: para o professor, que constantemente se aprimora, e para os alunos, que têm suas aulas cada vez mais bem preparadas e alinhadas a esse novo paradigma.

Talvez a consequência imediata seja atender a um pedido recorrente: tornar as aulas mais dinâmicas e instigantes. A reclamação constante que se ouve de boa parcela dos alunos dos Ensinos Fundamental e Médio brasileiros é que as aulas são tediosas, mecânicas, não os estimulam a aprender. Descontados os exageros, é fato que hoje em dia sofre-se com o desinteresse pelas aulas dos professores tanto da rede pública quanto da rede particular. Em parte, tal desinteresse surge por conta de novas tecnologias muito mais atraentes — computadores e celulares, por exemplo — para as crianças e jovens do que lousa e giz. Entretanto, já existem diversas escolas que têm à disposição recursos tecnológicos mais modernos (como lousas interativas e tablets), e que, mesmo com isso, não conseguem a atenção de seus alunos. Tal fato sugere que o desinteresse advém de motivos outros, não relacionados exclusivamente à tecnologia, tais como a maneira como os conteúdos são trabalhados. Em meio a questões relacionadas à contextualização do ensino e às atividades planejadas e com propósito, inclui-se a introdução de um modo de ensinar mais instigante, que mobilize o espírito científico dos alunos e os estimule a pensar, a tomar uma posição frente aos fatos apresentados. É justamente a proposta de trabalho com ciência que se deseja explorar aqui.

Por fim, ainda um outro efeito positivo decorrente de uma tal visão, é a promoção daquilo que Perini chama de “educação científica” dos cidadãos. Atualmente, a educação científica se configura como algo imprescindível para o crescimento do país, um instrumento crucial de poder político. Deixá-la fora da escola, ou continuar a tratá- la da maneira como se faz hoje, produz um efeito nefasto em nossa sociedade. Nas palavras de Perini (2010, p. 32),

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(...) o treinamento científico é um componente fundamental na educação de nossos dias. Um país pode deixar de prestar atenção a ele, e alguns o fazem, mas é por sua conta e risco. O perigo não é apenas a perda de prestígio político: o analfabetismo científico generalizado também compromete coisas como o desenvolvimento econômico, a autonomia de decisões mesmo quanto a problemas internos e, em casos extremos, a própria sobrevivência. Basta observar como alguns países procuram hoje desenvolver a tecnologia nuclear – e como outros países tentam por todos os meios impedir que os primeiros o façam. O que está em jogo é o poder, não a ciência; mas a ciência é o grande instrumento do poder, logo ela está também em jogo, afinal de contas.

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No plano individual, a educação científica promove cidadãos mais críticos e questionadores, capazes de argumentar minimamente frente às questões de seu tempo. Esse é um dos objetivos da educação, que pode ser atingido de maneira mais efetiva com o ensino renovado de ciência. Alunos prontos a questionar fatos, sugerir mudanças de paradigmas e dispostos a rever teorias são menos propensos a aceitar pacificamente quaisquer propostas e mais dispostos a buscar alternativas e soluções melhores para problemas de todas as ordens. São alunos que aprendem não só informações cumulativas, mas formas de relacioná-las, contextualizá-las, interpretá-las e manipulá- las de acordo com seus objetivos. O analfabetismo científico é um dos maiores entraves para a formação de cidadãos mais aptos a se tornarem eficazes analistas e solucionadores de problemas.

Este último efeito revela também um afinamento com as demandas do Ministério da Educação (MEC). O MEC vem, há alguns anos, trabalhando com um currículo baseado em competências e habilidades. O delineamento dessa forma de trabalho aparece como diretrizes para a Educação Básica desde os Parâmetros Curriculares Nacionais: Ciências Naturais (BRASIL, 1997) até documentos orientadores mais recentes, comoa Base Nacional Curricular Comum (BRASIL, 2017). No primeiro, um dos objetivos gerais do Ensino Fundamental é “questionar a realidade formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos e verificando sua adequação” (BRASIL, 1997, p. 7). Já a Base apresenta como uma das competências gerais da Educação Básica.

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“exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas” (BRASIL, 2017, p. 9).

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As Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (conhecidas como PCN + Ensino Médio) (BRASIL, 2006), por sua vez, salientam a necessidade de uma abordagem transversal das competências e habilidades nas tradicionais disciplinas da Educação Básica. Finalmente, a Matriz de Referência2 para a área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias3 no Ensino Médio estabelece, como um dos elementos de avaliação, o seguinte: “entender métodos e procedimentos próprios das ciências naturais e aplicá-los em diferentes contextos”4.

Como se pode ver, os orientações dos documentos norteadores da educação brasileira nos últimos anos têm, dentre outros elementos, ligação com o método científico e com as consequências que derivam do trabalho com ele: selecionar fatos, relacioná-los a outros, interpretá-los, contextualizá-los, identificar problemas, propor soluções.

2. A Linguística na agenda do ensino de ciência

Tem-se, pois, um panorama do ensino brasileiro, no que se refere ao tratamento da ciência: tradicional, alinhado a uma perspectiva que valoriza de modo insuficiente o procedimento e a educação científica e que comporta parcialmente o trabalho com competências e habilidades recomendado pelo MEC em seus documentos norteadores. Diante disso, este texto propõe uma reflexão para um projeto de mudança do paradigma de ensino de ciência, utilizando, para tanto, a Linguística e as aulas de português.

Num primeiro momento, a proposta parece improvável, uma vez que, para grande parte dos professores, a Linguística é pouco conhecida e as aulas de português não parecem se adequar a um esquema de ensino e aprendizado que priorize “entender métodos e procedimentos próprios das ciências naturais”. Para que se possa entendê-la, portanto, é necessário levantar duas questões fundamentais.

2.1. Por que a Linguística?

A primeira questão a ser levantada diz respeito à ideia que subjaz a escolha da Linguística como a ciência condutora da discussão sobre ensino e aprendizagem do procedimento científico. Podem- se encontrar respostas muito satisfatórias a essa pergunta no texto “Triggering Science-Forming Capacity through Linguistic Inquiry” (HONDA & O’NEIL, 1993). Nele os autores apresentam a experiência de aplicação de um conjunto de aulas envolvendo questões linguísticas para alunos do 7º ao 12º ano5 nas escolas de Cambridge, Newton, e Watertown, Massachusetts, entre 1984 e 1988. Tais aulas tinham como objetivo o trabalho com noções gerais do método científico, além do fato de colocarem em foco discussões sobre a língua. Os autores enfrentaram resistência dos colegas de trabalho e dos próprios alunos por optarem pela inclusão da linguística no expediente científico que era lugar, tradicionalmente, da química, da física e da biologia. Assim, eles explicitam suas razões, que são as mesmas para a escolha pela Linguística neste projeto6.

Honda e O’Neil argumentam que a investigação linguística é conceitualmente acessível aos alunos, uma vez que eles já têm uma rica experiência prévia com o material que vão analisar. Os estudantes, normalmente, são apresentados à ciência em áreas nas quais sua experiência é pequena. Ademais, tais áreas apresentam conceitos que se chocam contra muitas ideias do senso comum, contrariando a intuição deles.

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Muito da cosmologia, por exemplo, lida com questões que simplesmente não surgem na visão do senso comum: se o sol nasce e se põe, ou se se trata de uma sensação artificial; se a Terra é esférica ou não; se ela está em rotação e translação a tremendas velocidades no espaço ou não7 (HONDA & O’NEIL, 1993, p. 235; nossa tradução).

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Os exemplos de questões costumeiramente trazidas à discussão sobre ciência em sala de aula apresentam três problemas. O primeiro deles é que são pouco relevantes. Obviamente, não se trata de dizer que elas não têm seu grau de importância para as discussões que se constroem na academia; muito pelo contrário, o que se diz aqui é justamente isso: tais discussões são muito frutíferas na academia, mas pouco instigantes para um aluno do Ensino Fundamental ou Médio, que se sente pouco afeito a questionar e refletir sobre elas, uma vez que não são impactantes em seu dia a dia, pouco modificam sua relação com o mundo ou com as pessoas.

Além de pouco relevantes, essas indagações não fazem parte dos conhecimentos prévios dos alunos, que muitas vezes são construídos a partir do senso comum. Com efeito, há dificuldade na compreensão de certos fenômenos, que geralmente têm explicações científicas completamente diferentes das explicações populares, sendo, dessa forma, contraintuitivas. Os autores recorrem ao “Princípio da Instabilidade” de Taylor para exemplificar a situação. Segundo ele, a água de dentro de um copo cairá se o copo for virado de cabeça para baixo, mesmo que a pressão do ar seja suficiente para segurá-la dentro dele. Isso acontece por conta da instabilidade que o líquido apresenta, e tal evento pode ser resolvido caso se coloque uma folha de papel em cima do copo antes de virá-lo. Ora, para um aluno da Educação Básica (e mesmo para a média da população), esse princípio derruba toda sua intuição, que diria que a água viria a cair nas duas situações. Por conta disso, há dificuldade em entender o fenômeno adequadamente nesse momento de construção do conhecimento.

Em terceiro lugar, as questões com que tradicionalmente se lida na escola no início da discussão sobre ciência permitem pouca investigação no contexto da sala de aula ou em um laboratório escolar. Não há como verificar empiricamente na sala noções como buraco negro e ano-luz, por exemplo. Se se pensar na realidade brasileira, esse fator ganha um peso ainda maior, porque menos do que 25% das escolas brasileiras de Ensino Fundamental e 50% das de ensino Médio dispõem de laboratório de ciências.8 Os alunos não podem sequer verificar a ocorrência de fenômenos que exigem o uso de instrumentos e produtos químicos simples, nem participar do processo de preparação de uma experiência. A eles, então, resta ler (no livro didático) as hipóteses criadas acerca do problema e procurar entender, a partir de dados demasiado abstratos, os conceitos tratados9.

É muito importante dizer, no entanto, que as pontuações de Honda e O’Neil (op. cit.), se levadas ao extremo, contribuem para a perpetuação de um equívoco que pode ter consequências muito negativas para a escola. Lidar com ciência pressupõe certa medida de abstração, certo trabalho com conhecimentos não diretamente vinculados à vida e ao cotidiano dos aprendizes. É característica da ciência, e dever da escola, apresentar e discutir modelos, sistematizações e abstrações, e o aluno precisa se confrontar com esses esquemas constitutivos do conhecimento humano durante sua vida escolar. Perini (2010) usa uma metáfora para discorrer sobre essa questão, referindo-se a esses esquemas como “janelas” que mostram aos alunos potencialidades de interesse. São essas janelas que formam a base da alfabetização científica. A discussão de Honda e O’Neil levada a seus extremos pode sugerir que tudo a ser discutido na escola precisa ter alguma aplicação na vida do aluno. Se fosse assim, essas janelas não poderiam existir, uma vez que elas dão espaço a curiosidades às vezes distantes do dia a dia do aluno. Em certa medida, as ponderações dos autores são relevantes e verdadeiras para o trato da ciência na escola. Mas essas ponderações devem ser balizadas justamente com as de Perini.

De qualquer forma, dos problemas destacados por Honda e O’Neil, nenhum afeta à linguística, inicialmente. O laboratório de investigação linguística não requer nada mais do que o que há de mais comum em qualquer escola brasileira: papel, lápis, quadro, giz e bons palpites (quando muito, um gravador). Todos os itens necessários a uma boa investigação científica da linguagem na Educação Básica estão disponíveis na mais remota escola do país, e tal fato lhe dá grande vantagem. Não se trata de desmerecer a carência de bons laboratórios para o trabalho com outras disciplinas, mas de observar que, de fato, um experimento linguístico simples não carece de outras tecnologias além das destacadas.

Os problemas que surgem com os dados de linguagem são, também, relacionados ao conhecimento de mundo dos alunos, diferente do que ocorre com algumas questões tradicionais, como as apontadas acima. Ao deparar com um dado de linguagem, o aluno sente que já está familiarizado com aquilo que vai discutir, sua autoconfiança aumenta e há a possibilidade de questioná-lo cada vez mais sem que ele se sinta acuado, pois deposita confiança em seu conhecimento natural sobre o assunto10. A presença de outros colegas que também sabem sobre o que estão falando e que sustentam os pontos de vista reforça essa confiança. Mesmo que a investigação vá se revelando aos poucos contrária a sua intuição, o aluno enxerga tal fato como um desafio, e não como um fator desestimulante para o aprendizado. Dessa maneira, a compreensão dos fenômenos linguísticos, por meio do método científico, acontece proficuamente.

Finalmente, a investigação linguística é relevante, faz parte do dia a dia de qualquer falante de uma dada língua11. Não se pode negar que a mais normativa das discussões acerca da linguagem passa por um momento de indagação mais ou menos científica, pela gramaticalidade/ aceitabilidade ou não de uma forma nos mais diversos contextos. Quando o aluno observa com questões mais próximas de sua vida, sente-se mais motivado a questionar. Mais do queisso: quandopercebequesuaintuiçãoépostaàprovadeumaforma não tão impactante por um fenômeno que o instiga, há a vontade de conhecê-lo melhor, entendê-lo e explicá-lo. Assim, dados podem ser levantados com mais facilidade, hipóteses acerca do funcionamento desses dados são feitas e contraexemplos para reajuste ou abandono da hipótese são buscados com mais afinco. A investigação científica se torna, de fato, uma investigação, e o procedimento científico é posto em funcionamento.

Para além dessas vantagens, os autores destacam também que a investigação científicada linguagem abrange todos os tipos de alunos. Aqueles que não são falantes nativos da língua podem se ancorar no conhecimento dos colegas para os julgamentos das expressões, e, fato não discutido pelos autores, podem contribuir trazendo dados novos para comparação entre línguas.

As razões de se optar por um currículo de introdução à ciência com base em experimentos linguísticos contribuem, enfim, para um processo de ensino e aprendizagem mais coerente com as perspectivas novas que perpassam atualmente o discurso de como deve ser a escola brasileira. O expediente científico, resumido abaixo pelos autores como um esforço de

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envolver os alunos a fim de que eles elaborem problemas a partir de observações instigantes, reúnam dados relevantes, organizem e resumam os dados, aprendam, nomeiem, e usem os conceitos linguísticos para explicá-los, formulem hipóteses, testem-nas primeiramente imaginando como um contraexemplo seria e então procurem evidências que as derrubem, e – se necessário – reformulem ou rejeitem as hipóteses12 (HONDA & O’NEIL, 1993, p. 243; nossa tradução).

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parece ser contemplado de forma muito efetiva pelo currículo linguístico e apresenta resultados notáveis segundo os professores com os quais Honda e O’Neil trabalharam. Todos parecem surpresos e satisfeitos com a aplicação dos conceitos aprendidos nas aulas de Linguística durante as outras disciplinas, “impressionados com a vontade com que seus alunos procuravam por soluções para seus problemas”13 (HONDA & O’NEIL, 1993, p. 244; minha tradução). A confiançaeodesenvolvimentointelectualqueosalunosdemonstram também são um índice de sucesso.

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O professor de ciências notou que os alunos do 7º ano usaram os métodos de investigação e as terminologias relevantes das aulas de linguística. Quando foi pedido a eles que registrassem suas observações de coisas que afundam e coisas que flutuam, muitos alunos perceberam que não havia espaço em suas folhas para suas hipóteses. Espontaneamente eles sugeriram a necessidade de criar uma hipótese, testá-la, e então tentar “encontrar alguma coisa que não siga nossa hipótese” – ou seja, o contraexemplo14 (HONDA & O’NEIL, 1993, p. 244; nossa tradução).

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A fala de um dos estudantes que participou das aulas aponta que o objetivo do trabalho com essa proposta foi alcançado: “Na verdade não é difícil, mas faz você pensar”15 (HONDA & O’NEIL, 1993, p. 244; nossa tradução).

2.2.  Por que as aulas de português?

A outra questão fundamental que precisa ser discutida diz respeito à utilização das aulas de língua portuguesa como um espaço para discussão de ciência. Novamente, reitera-se que, num primeiro momento, para grande parte dos educadores a proposta não parece plausível, em razão de que, numa aula de língua portuguesa, não se deve lidar com ciência. Redação, gramática e literatura, as três disciplinas nas quais o conteúdo de português costumeiramente se divide na Educação Básica, não são terrenos propícios ao trabalho com o procedimento científico.

Para que se possa conceber uma proposta como essa, também é necessário despir-se da visão tradicional de ensino de português. Com os diversos avanços tidos nos estudos acadêmicos da linguagem, não é mais possível entender a aula de língua portuguesa — mais especificamente a parte dela que se destina ao trabalho com gramática — como o momento de privilegiar somente o estudo de uma variedade, a de prestígio, em detrimento das demais. É preciso começar a encarar a aula de português cientificamente, um laboratório onde os alunos estarão expostos a diversos dados de linguagem e, com eles, experimentar hipóteses acerca de sua língua. A partir desse ponto de vista é possível conceber, sim, a aula de português como um espaço adequado para o tratamento de questões relativas ao ensino de ciência.

Honda e O’Neil, novamente, não se esquecem dessa questão, apesar de pouco a enfatizarem.16 Fazem referência, superficialmente, a “noções prescritivas sobre o uso da linguagem”17 (HONDA & O’NEIL, 1993, p. 236; tradução nossa) e à visão de que “certas variedades de uma língua ou certas línguas são esteticamente, logicamente ou de alguma forma superiores a outras”18 (HONDA & O’NEIL, 1993, p. 236; tradução minha). Dizem que esses seriam alguns paradigmas problemáticos que estão assentados na escola, desafios para se lidar com a inclusão do currículo linguístico. Como esse trabalho propõe o trato com ciência dentro da aula de português, é importante que se discorra mais detalhadamente sobre esse ponto, ampliando a discussão.

Apesar de todos os avanços da academia no campo da Linguística19, o ensino de português no Brasil ainda é bastante tradicional e essencialmente voltado ao trabalho único e exclusivo com a gramática normativa. Essa visão tradicional é especialmente enraizada quando se estuda explicitamente a gramática, momento em que a aula se torna a simples reiteração de crenças.

Pagotto (1998) explora a competente política linguística que se deu no Brasil a partir da segunda metade do século XIX, calcada nos objetivos paradoxais de firmar uma identidade brasileira por meio da língua e, ao mesmo tempo, de manter as estruturas de dominação da elite brasileira assegurando a semelhança da norma culta com o português europeu, garantindo o acesso a esta norma apenas pelo estudo formal, restrito a essa pequena elite. As consequências dessa política são observáveis hoje na escola, por meio de construtos como a existência exclusiva de uma norma culta20 e a propagação de que ela é a única maneira correta de se expressar em português. Como se pode ver, são ideias que em nada contribuem para a educação científica e reforçam o preconceito contra aqueles que não falam uma variedade mais próxima da considerada culta. Não se concebe a gramática como uma disciplina científica e, tal como qualquer disciplina científica, em constante movimento de acordo com as novas descobertas da área.

Assim, uma proposta que associa o ensino de ciência a uma aula de português implica assumir um papel diferente para o estudo da gramática. Implica entender a gramática como uma disciplina científica, uma das áreas do conhecimento que contribuirão para a educação científica do aluno, uma das janelas de que Perini (2010) fala. E há diversas consequências para essa implicação, alinhadas a um trabalho com ciência como se propõe aqui.

Primeiro, dar um novo objetivo à gramática permite que a ideia de que se aprende gramática para escrever bem seja derrubada. De fato, sabe-se atualmente que o conhecimento sobre a gramática de uma língua influencia muito pouco a proficiência nessa língua, conforme se discute em Bagno (2012), entre outros. Se saber gramática — explicitamente — fosse indispensável para o (supostamente) bom uso do idioma, escritores seriam gramáticos perfeitos, bem como gramáticos fariam parte da lista de cânones da literatura. Isso, evidentemente, não ocorre, e cria bases para a argumentação de que usar bem uma língua é diferente de saber formalmente as regras que organizam sua estrutura. Assim, a velha justificativa para o ensino explícito de gramática nas aulas de português (para aprender a escrever bem) mostra-se uma falácia. Entretanto, não é por isso que ela deve ser excluída do currículo. Mais uma vez, permitindo que a gramática seja vista como ciência, cria-se uma nova razão para sua permanência, uma razão mais coerente e bem fundamentada.

Uma segunda consequência para a implicação é a possibilidade de que o fenômeno da linguagem possa ser visto em suas ocorrências reais, sob dados da fala cotidiana, e não sentenças construídas para exemplificar uma regra de um livro. Quando se encara a gramática como ciência, é necessário incluir em seu objeto de estudo dados reais da língua, pois é com dados reais que a ciência trabalha. Essa possibilidade exige que novas categorias sejam utilizadas para classificar e organizar os dados (sintagma, tópico e objeto nulo, por exemplo), ao mesmo tempo em que as velhas categorias podem ser reformuladas e questionadas (os estatutos de advérbio e sujeito poderiam ser questionados, apenas como exemplo). Este último item é importante: o questionamento, próprio do espírito científico, é liberado com essa nova concepção. Em lugar da crença, existe espaço para a dúvida, para o entendimento de que muitos aspectos da estrutura da língua ainda não estão claros ou analisados, ou precisam de análises mais apropriadas.

Finalmente, outra consequência de direcionar parte do ensino de português de acordo com a ótica da ciência é algo que Perini (2010, p. 40) julga ser a tarefa mais difícil: “apresentar a ideia, revolucionária para alguns, de que fazer gramática é estudar os fatos da língua, e não construir um código de proibições para dirigir o comportamento linguístico das pessoas”. Esta última consequência demanda uma mudança profunda na relação que a sociedade brasileira tem com sua língua e seu ensino. É preciso que o cidadão transforme sua perspectiva, consolidada pela eficiente política de constituição da norma culta no Brasil, por anos de ensino tradicional e por dispositivos sociais que a mantém (chamados por Bagno (2009) de “comandos paragramaticais”), e deixe de enxergar as variedades negativamente. A sociedade deve compreender que a aula de português é um espaço para a discussão da língua em suas mais diversas nuances. Os alunos devem conhecer a gramática normativa e aquilo que ela não abona21, mas também precisam ter a oportunidade de estudar as variedades que falam todos os dias, pois isso faz parte de sua formação, de sua educação e constituem um saber que no fazer científico aqui proposto tem lugar como parte dos procedimentos de descoberta. Qualquer mudança de perspectiva se dá a longo prazo. Incluir, na escola, um currículo de gramática como ciência contribui para que essa mudança benéfica ocorra.

De uma maneira mais concreta, verifica-se que essa nova perspectiva permite que várias ferramentas estejam à disposição do educador a fim de que o status quo sofra modificação. O resultado mais aparente dessa nova perspectiva, como já dito, é a entrada de outras variedades do português — diferentes da norma culta —, sob a forma de dados de linguagem. Como os alunos precisam criar hipóteses e generalizações acerca do funcionamento da linguagem e, especialmente, de sua língua, é importante que eles recebam dados reais sobre como as pessoas a utilizam. Com efeito, não é possível que as variedades linguísticas sejam excluídas do processo. Somente com os dados empíricos reais os alunos podem ser capaz de comparar as diferentes estruturas, e elaborar reflexões sobre o que acontece (entendendo, então, o procedimento científico). O mais interessante dessa proposta é que as variedades linguísticas entram na sala de aula de uma maneira natural, sem que sejam encaradas como estranhas, atípicas ou erradas.

Uma forma muito comum de se trabalhar com as variedades linguísticas atualmente é apresentá-las como um dos elementos que constroem a imagem de certos grupos sociais. Pessoas em determinada posição social, de determinada região geográfica, de diferentes faixas etárias falam desta ou daquela maneira. Dessa forma, as variedades linguísticas contribuem para a consolidação de estereótipos, tal como o concebem Borges, Medeiros e d’Adesky (2002; p.53): “[os estereótipos] consistem em apreender de maneira simplista e reduzida os grupos humanos, atribuindo-lhes traços de personalidade ou comportamentais”. A despeito da natureza mais ou menos acertada dos estereótipos, o fato é que essa abordagem das variedades não padrão é limitada, quase sempre resumida a uma recomendação para que sejam evitadas, ou, no máximo, apareçam para caracterizar pitorescamente esses grupos. Desconsidera-se o fato de que os falantes todos, todo dia, usam, com mais ou menos monitoração do estilo, variações que são condenadas pela norma. A entrada da variedade pelo viés do trabalho com o procedimento linguístico demonstra ser uma interessante saída para esse problema, pois permite que o aluno reconheça que determinadas formas de uma variedade podem ser comuns, usadas por todos (e não só por grupos com os quais ele não se identifica), e perfeitamente explicáveis por meio de categorias linguísticas.

No mais, pode-se dizer que somente a introdução de dados num contexto de análise propício à incorporação da investigação científica não é suficiente para promover tamanha mudança no olhar dos alunos em relação à língua e suas variedades. De fato, tal resultado não se atinge com uma ação isolada, mas é parte constituinte do processo. É necessário, sobretudo, que os alunos experienciem o método dedutivo de conhecimento, tendo acesso primeiramente às regras para então, derivar seus exemplos.

3. O procedimento científico

Definir o procedimento científico preconizado neste trabalho é uma decisão delicada. Na medida em que se elege um tipo de fazer científico com o qual lidar na escola, pode-se apagar outras formas de fazer ciência. De certa maneira, faz-se justamente o que se critica neste texto: omitir as contradições do conceito de ciência e das diferentes metodologias científicas que a epistemologia coloca para seus estudiosos. A crítica pode ser ainda mais incisiva quando se explicita que o procedimento científico escolhido para o trabalho é aquele clássico, positivista, próprio das ciências naturais.

Mioto, Figueiredo Silva e Lopes (2013), na introdução do “Novo Manual de Sintaxe”, apresentam uma justificativa para tal escolha afirmando que não têm por objetivo discutir os problemas que o próprio conceito de ciência coloca para a epistemologia, mas com base no modelo clássico de ciência, procurar mostrar como um programa de investigação de linguagem pode se caracterizar como tal. Assim como os autores pontuam, o objetivo deste artigo também não é pôr em evidência os modelos de ciência de que o mundo dispõe. Certamente, na atualidade, há novos procedimentos de pesquisa científica, procedimentos próprios e mais adequados para as diferentes áreas do saber. As práticas de pesquisa da física são muito diferentes das práticas de pesquisa da sociologia; os instrumentos de uma dificilmente servem para a outra. Mesmo em uma mesma área, como a Linguística, existem pesquisas calcadas no modelo clássico galileano, pesquisas de cunho etnográfico, historicista, dentreoutras. Contudo, para o estudo da gramática tal como se propõe aqui, o procedimento científico clássico22 parece mais adequado. De fato, a análise do aspecto formal das línguas insere-se num contexto de trabalho que concebe linguagem como um objeto natural, e o modelo clássico está historicamente ligado ao estudo das ciências naturais.

Nesse contexto, um tipo específico de dado é especialmente importante para o trabalho com gramática: o dado negativo. Os dados negativos, aqueles que não ocorrem numa determinada língua, podem, muitas vezes, evidenciar o fenômeno de maneira mais clara que o dado positivo. Os alunos não estão acostumados a lidar com esse tipo de material, e é papel do professor trazê-lo ao centro da discussão, de maneira que eles possam compreender melhor o comportamento de determinado fenômeno. Para a elaboração de hipóteses sobre a concordância nominal, por exemplo, é muito importante que os alunos vejam que sequências como as meninas e as menina são produzidas pelos falantes, assim como um pastel e dois pastel. Entretanto, sequências como *a meninas e *um pastéis jamais são produzidas e evidenciam um padrão para o fenômeno. Trazer o dado negativo, juntamente com os positivos, é importante para o desenvolvimento do trabalho.

O fato de uma hipótese nunca poder ser totalmente verificada ou confirmada (sempre haverá um novo dado com o qual a hipótese deverá ser confrontada) aponta para um dos aspectos cruciais do trabalho. Essa noção, baseada no falseacionismo de Popper23, mostra que a análise de um fenômeno nunca está completa, concluída, no sentido de que seja imutável. Para Popper, a hipótese é boa enquanto ela puder ser falseada, ou seja, enquanto houver a possibilidade de encontrar dados que a derrubem. Nesse sentido, o trabalho com ciência é contínuo, passível de mudanças e questionamentos, ideias defendidas aqui e essenciais para a educação básica.

Como, na prática, incluir esse expediente científico em um material de língua portuguesa? A próxima seção se preocupa em mostrar um exemplo de como concretizar essa nova proposta.

4. Um exemplo de atividade

A atividade transcrita a seguir busca colocar em prátca as discussões desenvolvidas até aqui. O esforço é mostrar como uma proposta de aula de língua pode oferecer um laboratório de investigação científica em linguagem muito proveitoso. O material é voltado para alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio (entre 13 e 17 anos, portanto), em um momento no qual já estão mais familiarizados com ferramentas de investigação, principalmente os conceitos de hipótese e dado. Logicamente, essa familiarização deve ocorrer em aulas anteriores.

“Um pesquisador marciano acaba de chegar ao Brasil. Ele está tentando aprender a falar português e deseja muito falar como um falante nativo do idioma. Atualmente, o marciano está tendo problemas com a formação dos diminutivos. Ele não sabe como formar adequadamente as palavras no diminutivo.

O cientista de Marte ouviu atentamente como os falantes do português usam alguns diminutivos. Ele percebeu que os falantes acrescentam –inho(a) às palavras. Veja alguns dos enunciados que ele ouviu:

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Que casinha linda essa que você alugou!

Eu não acredito que você comprou essa blusinha feia!

Meu filho é aquele menininho sentado logo ali.

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Com base nesses dados, o marciano criou uma hipótese bem simples: Acrescente –inho(a) à palavra para criar seu diminutivo.

Feliz com sua hipótese, o cientista foi convidado a experimentar uma fruta da Terra que ainda não conhecia: o caju. Querendo impressionar, ele disse:

Mas que cajinho gostoso!

O pesquisador só entendeu por que as pessoas o olharam com estranheza quando uma delas disse que ele deveria ter dito cajuzinho. Isso o deixou confuso.

Sua tarefa é ajudar o pesquisador marciano a elaborar uma nova hipótese para a formação do diminutivo com –inho(a) e/ou –zinho(a). Dica: preste atenção nas sílabas finais das palavras antes de elas serem transformadas em diminutivo.”

O objetivo dessa atividade é permitir que os alunos formulem uma hipótese aceitável para a formação do diminutivo em português usando os sufixos24inho ou–zinho25. Apartir de uma situação fictícia26, que envolve um pesquisador marciano aprendendo e fazendo inferências sobre o português, os alunos precisam testar a hipótese inicial da personagem e constatar que ela não dá conta de cobrir os casos de formação do diminutivo. Na verdade, tal passo da atividade é bastante simples, uma vez que a própria narrativa oferece dados que refutam a hipótese inicial. Após essa constatação, os alunos devem reformulá-la, verificando em quais contextos morfofonológicos se usa –inho, em quais se usa –zinho e em quais as duas formas são aceitáveis. É um esforço pela busca de dados e análise de como eles podem ser organizados e classificados. Além disso, os alunos precisam escrever essas hipóteses elegante e economicamente, de forma simples e sem ambiguidade.

Destaque-se o fato inicial de a narrativa trazer um personagem pesquisador e extraterrestre. A ideia que subjaz a tal escolha parte de dois princípios: primeiro, um marciano não sofreria a influência de outras línguas naturais faladas pelos seres humanos. Assim, sua intuição e lógica sobre como criar suas hipóteses seriam menos afetadas e postas em comparação com outros idiomas, como provavelmente aconteceria se a personagem fosse japonesa, sueca, australiana ou de qualquer outra nacionalidade. Segundo, o fato de ele ser um pesquisador atribui à personagem as características e a postura que se esperam dos alunos: observação, curiosidade e busca pela análise mais coerente e precisa de sua investigação. Ademais, a própria situação pode ser considerada cômica pela maioria dos alunos, que sentiriam uma motivação extra pela graça da atividade.

Outro aspecto a ser destacado é o privilégio do falar português. Como destacado diversas vezes na história, o marciano deseja falar, não escrever em língua portuguesa. O destaque para a oralidade não é ocasional, e procura mostrar que, para além das convenções nem sempre lógicas e claras da escrita, a fala tem mais regularidades e é mais passível de uma análise que procura padrões. Tal postura tem consequências diretas na criação das hipóteses por parte dos alunos. Palavras como pastel e chapéu, por exemplo, teriam o mesmo estatuto na criação de uma hipótese, pois são oxítonas que apresentam um encontro vocálico final27 (a despeito de serem escritas de maneiras diferentes, com l e u, respectivamente). O professor não pode e nem deve se furtar da responsabilidade de evidenciar tais questões aos alunos.

Os dados linguísticos que embasam a análise inicial do alienígena não são descontextualizados. Pelo contrário, são parte de enunciados que poderiam ser ditos por qualquer falante nativo de português, e qualquer um deles reconheceria que o são. Os alunos, ao perceberem que os dados apresentados são muito próximos à realidade deles, sentem-se mais confiantes em levantar outros, que eles mesmos produzam hic et nunc ou que reproduzam a partir da lembrança da fala de alguém. O importante é notar que nenhum deles está descontextualizado ou faz parte de um compêndio de palavras em desuso ou muito rebuscadas.

Espera-se que os alunos prossigam com a análise do cientista marciano. Ao verificar que a hipótese inicial não dá conta da distribuição dos sufixos formadores do diminutivo focados na proposta, os alunos devem formular outra. É provável que a seguinte hipótese seja formulada por eles:

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Adicione –inho(a) ou –zinho(a) à palavra para criar seu diminutivo.

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A hipótese pode satisfazer os alunos, e é papel do professor verificar, com eles, se há alguma incoerência nela. Os dados apresentados até agora já são suficientes para derrubá-la. Entretanto, a sistematização pode ser muito interessante.

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(a) doce → docinho/docezinho

(b) casa → casinha/*casazinha

(c) blusa → blusinha/blusazinha (?)

(d) menina → menininha/meninazinha

(e) caju → *cajinho/cajuzinho

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O professor deve ter a sensibilidade de trabalhar os dados negativos com os alunos. É importante que haja um momento de reflexão sobre o que não ocorreria no português. São esses dados que, frequentemente, trazem soluções para as questões de pesquisa colocadas, como já se afirmou, pois são parte da metodologia do modelo adotado. Assim, esse exercício, além de divertir os alunos, é fundamental para o avanço do trabalho.

A partir desse momento, os alunos precisam chegar à constatação de que são necessários mais dados para que a hipótese seja reformulada. É primordial que o professor sublinhe para os alunos o fato de que os novos dados precisam ser relevantes, ou seja, acrescentem algo novo aos dados já obtidos. Se eles acrescentassem peixe (peixinho/peixezinho), por exemplo, não haveria novidade nos dados, pois a palavra só comprova o que eles já sabem: o diminutivo pode ser formado com um dos dois sufixos, às vezes com os dois. A dica dada no final da atividade pode indicar um caminho a ser seguido. Se os alunos observarem a sílaba final dos dados até então apresentados, verão que a palavra que não forma diminutivo com – inho(a) é oxítona. A partir daí, podem buscar palavras oxítonas (para comprovar a ideia) ou então tentar verificar palavras com sílabas finais distintas. Alguns dados relevantes que o professor pode ter à mão e que podem ser citados pelos alunos estão listados abaixo28:

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(a) pé → *pinho/pezinho

(b) mar → *marinho/marzinho

(c) sol → *solinho/solzinho

(d) lâmpada → lampadinha/lampadazinha

(e) número → numerinho/numerozinho

(f) chapéu → *chapinho/chapeuzinho

(g) pastel →*pastelinho/pastelzinho

(h) café → *cafinho/cafezinho

(i) celular → *celularinho/celularzinho

(j) nariz → *narinho/narizinho

(k) urubu → *urubinho/urubuzinho

(l) baú → *ba[u]inho/bauzinho

(m)caminhão → *caminhinho/caminhãozinho

(n) maçã → *maçinha/maçãzinha

(o) álbum → *albuminho/albunzinho

(a) órfão → *orfinho/orfãozinho

(b) vôlei → *voleinho/voleizinho

(c) pôquer → *poquerinho/poquerzinho

(d) fêmur → *femurinho/femurzinho

(e) rainha → *rainhinha/rainhazinha

(f) farinha → *farinhinha/farinhazinha

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Independentemente do caminho que os alunos decidam seguir (optar pela listagem de oxítonas ou de palavras com sílabas finais diferentes), o professor deve sugerir possibilidades sempre que eles se sentirem inseguros, pensarem que não conseguem avançar nas especulações ou acharem que já chegaram a uma hipótese satisfatória. O papel do professor, como se pode ver, é o do orientador, aquele que guia o trabalho dos alunos e os instiga quando necessário. As respostas não são dadas gratuitamente, são os próprios alunos, com seus levantamentos e questões, quem elaboram possíveis respostas para o problema.

Depois de toda a discussão, uma hipótese minimamente satisfatória a que os alunos podem chegar é a seguinte: palavras com sílabas finais pesadas29 formam diminutivo apenas com –zinho(a); as outras formam diminutivo com –inho(a) ou –zinho(a). Obviamente, hipóteses similares são possíveis. A expressão sílaba pesada também pode ser alterada, de acordo com o que os alunos preferirem. É interessante, vale ressaltar, que a hipótese não se limite à descrição exaustiva (monossílabos [pezinho], oxítonas [cajuzinho] e palavras que apresentem nasais finais [albunzinho], encontros vocálicos finais [voleizinho], r finais [poquerzinho] e -nh- [rainhazinha] na última sílaba formam diminutivo com –zinho): é necessário que eles consigam agrupar tais eventos em uma única categoria.30

O aluno mais atento pode perceber que mesmo a hipótese- alvo definida acima não dá conta de descrever todos os casos de ocorrência de diminutivo com –inho e –zinho. Abaixo seguem alguns interessantes problemas que os alunos podem levantar. O próprio professor também pode usá-los, se quiser dar continuidade à discussão ou mesmo explicitar a questão da falseabilidade e falibilidade das hipóteses:

I) Algumas palavras com sílaba pesada final admitem os dois sufixos, como, por exemplo, a oxítona com r final colher (colherinha/ colherzinha) e a paroxítona com s final lápis (lapinho/lapis(z?)inho);

II) As proparoxítonas aparentes, também com sílaba pesada final, admitem os dois sufixos: armário (armarinho/armariozinho), área (arinha/areazinha), telha (/telia/; telhinha/telhazinha);

III) Com relação às palavras com -nh- na sílaba final, temos um fenômeno interessante. Algumas permitem que o sufixo seja fundido ao final da palavra. É o caso de aranha (arainha) e banho (bainho), por exemplo31.

A hipótese-alvo também não discrimina a quais palavras ela faz referência; da forma como está escrita, preposições e verbos formariam diminutivos também. Os plurais das palavras também não são contemplados pela hipótese. Enfim, cabe ao professor continuar avançando com a hipótese até que ela esteja mais acurada ou dar o trabalho por realizado; aliás, deixar claro aos alunos que a hipótese final a que se chega pode não ser a correta apresenta a todos a noção cara à ciência de sua incompletude. Deve-se ter em mente que o mais importante não é uma descrição exaustiva de como se formam os diminutivos com –inho e –zinho no português; o fundamental é o processo de investigação científica com os dados, a busca por contraexemplos, a elaboração e a reelaboração de hipóteses.

Outras questões igualmente interessantes podem ser trabalhadas durante a discussão. O olhar sobre a norma padrão pode ser posto em pauta com a questão da tendência de o sufixo –zinho relacionar- se mais a contextos formais que o sufixo –inho. Outra questão de interesse envolve as nuances semânticas do diminutivo: o sentido literal, o traço afetivo que se pode atribuir à palavra, o traço semântico de desprezo. São questões periféricas ao que se está focando com a atividade, mas que, nem por isso, precisam ser omitidas.

Vale destacar também o desafio que atividades dessa natureza representam para o professor de língua portuguesa. A posição do professor é significativamente alterada. De um detentor do saber que será apresentado aos alunos, o professor passa a ser o orientador de um saber que será construído por todos na sala de aula, alunos e docente. O material didático também passa a ter outro papel: ao invés do livro que traz as verdades sobre como a língua deve ser, encontra-se o material de consulta, no qual os alunos buscarão dados, verificarão como a gramática tradicional descreve determinado fenômeno e em que medida tal descrição se distingue dos dados reais que surgem na fala cotidiana. O tempo de estudo e de preparação do professor se altera: não se pode mais contar somente com os exercícios clássicos de análise morfológica e com os mesmos exemplos utilizados há anos nas aulas de português. São necessárias a pesquisa sobre o fenômeno estudado em sala e a preparação para os dados (muitas vezes inesperados) que podem surgir a partir do inocente questionamento de um aluno.

Como se pode ver, a atividade segue dois princípios norteadores: de um lado, o ensino renovado de ciência, que traz evidência e destaque para o processo científico, não superestimando exclusivamente resultados e produtos da experiência; de outro, o trabalho alternativo com gramática nas aulas de língua portuguesa, que dá novas nuances ao tratamento da disciplina.

5. Em sala de aula: o relato da experiência

Com o objetivo de verificar a possibilidade de ponte entre este estudo e sua concretização nas aulas de língua reais, foram feitas testagens da atividade em três escolas da rede pública municipal de Teresina, estado do Piauí.32 Na primeira, o material foi utilizado em uma aula de uma hora para 12 alunos da 2ª série do Ensino Médio; na segunda, a aula foi de uma hora e meia para 26 alunos do 9º ano do Ensino Fundamental; já na terceira, a aula foi de uma hora e meia para 20 alunos. As três escolas atendem populações carentes e, de acordo com relatos dos coordenadores e professores, têm muitos problemas com os alunos nas aulas de português. A fala mais frequente volta-se, invariavelmente, para o fato de que eles não são capazes de “dominar o português correto”. Outra constatação pontuada é a dificuldade de se estabelecer interlocução com esses alunos, no sentido de obter deles reflexões a respeito do que é discutido em aula. A ideia de que os alunos “não querem nada com nada, não querem pensar” também é bastante difundida.

De antemão, pode-se afirmar que a experiência de testagem do material foi muito positiva, tanto por contradizer a fala desses profissionais da educação quanto por evidenciar as vantagens do material apresentadas aqui. Os alunos tanto demonstraram conhecimento sobre sua língua, inclusive sobre a norma — ainda que este estivesse amalgamado ao conhecimento das outras variedades, conquanto não sistematizado —, quanto foram bastante participativos, mesmo com a presença de um professor desconhecido, o que geralmente deixa os alunos acuados e tímidos.

De fato, a participação dos alunos foi grande. A maioria contribuiu ora questionando as hipóteses, ora trazendo dados para a discussão. E houve interação significativa com os alunos justamente porque o tema tratado é familiar, próximo de sua realidade. Nesse sentido, o material estimula sua participação, tirando-os da apatia relatada. Além disso, ao analisarem os dados e checarem sua gramaticalidade/ aceitabilidade, os alunos mostraram claramente o choque entre aceitar aquilo que efetivamente falam ou aceitar somente aquilo que é preconizado pela gramática normativa. Em duas testagens, a análise da palavra lâmpada foi interessante. Alguns alunos aceitavam as duas formas (lampadinha/lampadazinha), enquanto outros rejeitavam a primeira, não porque não a produzissem, mas porque, segundo eles, estava errada. Tal situação mostra que os alunos têm a noção de que o sufixo –zinho está ligado a contextos mais formais e normativos, embora não tenham esse conhecimento sistematizado. Apesar de não se proceder assim na testagem, o material suscitaria uma profícua discussão sobre norma.

Uma questão que merece ser ressaltada é a naturalidade com que os dados apareceram em aula. Mesmo com as discussões travadas sobre a gramaticalidade/aceitabilidade ou não de alguns dados, é muito interessante observar que os alunos evocam aquilo que produzem e ouvem na fala cotidiana, sem a censura prévia imposta por um estudo estritamente normativo da língua; a censura aparece em um momento posterior. Dessa forma, pode-se perceber que as variedades linguísticas surgem naturalmente como tema de discussão.

Aliás, os dados devem receber especial consideração no momento de preparação da aula. O professor deve se antecipar aos palpites dos alunos e ter à disposição uma gama variada de dados — inclusive os dados negativos —, que abarquem de forma inteligente o tema em discussão. Esse esforço deve ser feito por duas razões: evitar que um dado confunda o docente no momento durante a aula, sugerindo despreparo, e enriquecer a discussão, caso os alunos não consigam avançar no trabalho, trazendo apenas dados irrelevantes e/ou que comprovam o que já foi constatado. Essa necessidade foi verificada claramente na primeira aula-teste; a segunda e terceira serviram para sacramentar como é importante contar com essa munição extra de dados. Os alunos, embora participativos, estão pouco familiarizados com essa dinâmica de aula, e precisam de contínuo incentivo para se orientar na busca de dados relevantes, que acrescentem nova informação.

Outra questão que deve ser lembrada é a facilidade com que o experimento científico com linguagem pode ser realizado na escola. Com efeito, a aplicação do material em escolas da rede pública mostrou-se providencial, uma vez que, infelizmente, essas instituições contam com infraestrutura muito precária. O fato de se utilizar apenas a lousa, alguns gizes e o material previamente xerocopiado é muito relevante quando se encara essa infraestrutura cotidianamente. Uma das escolas carecia até mesmo de gizes coloridos. Assim, deve- se avaliar muito positivamente essa independência do material em relação à necessidade de infraestrutura complexa. Contudo, deve-se reconhecer que infraestrutura mínima precisa existir, para que haja, inclusive, disposição em assistir às aulas.33

Agora, este texto dá voz ao relato, em primeira pessoa, do primeiro autor deste texto que conduziu as aulas-testes. Esse relato diz respeito ao momento em que os alunos tinham de sistematizar os dados e começar a elaborar hipóteses mais refinadas sobre o uso de –inho e –zinho. Opta-se por esse formato porque ele revela mais da impressão pessoal sobre a experiência vivenciada. Escolheu-se também o relato da segunda testagem, uma vez que ela foi mais bem- sucedida.

“Não há como negar que os momentos mais desafiadores, tanto para os alunos quanto para mim, foram os momentos de sistematização dos dados e reformulação da hipótese. A leitura e compreensão da atividade foi bastante tranquila, mas a tranquilidade acabou assim que os grupos foram definidos e os alunos tiveram que trabalhar em conjunto. Num primeiro momento, antes de entregar os papeizinhos com as ‘palavras orientadoras’, deixei que eles buscassem os dados que quisessem, mais livremente. Logo percebi que seria necessário guiá-los, pois os alunos começaram a conversar sobre o que fariam no fim de semana (a aula foi aplicada na sexta) e traziam dados curiosos para o trabalho (calça → calcinha/calçazinha; pinto → pintinho/pintozinho; peido → peidinho/peidozinho; camisa → camisinha/camisazinha (?)). Menos importante do que a comicidade proposital dos dados, minha preocupação era que eles não eram dados relevantes, não traziam novas informações para a questão (pelo menos, não no que diz respeito à forma. Semanticamente é outra história...). Resolvi então entregar as palavras e pedir para que eles tentassem pensar em palavras semelhantes a essas que estavam entregando. Qual não foi minha surpresa ao ver que a semelhança escolhida por eles não era aquela a que eu gostaria que eles chegassem... Ora escolhiam uma semelhança semântica (café, cafeteira, cafezal), ora pela sílaba inicial (café, cadeira, cabeça). Minha sorte foi que um grupo lembrou todos da dica final dada na atividade (olhar para as sílabas finais) e então os dados começaram a ficar mais interessantes. Depois de uns 15 minutos, comecei a listá-los na lousa.

Os alunos, mais uma vez, queriam que eu listasse os dados ‘engraçados’, mas aos poucos aqueles interessantes (os que tinham dados negativos) foram aparecendo. No final havia uma grande lista de palavras na lousa. Perguntei a eles o que fazer com aquilo tudo. Queria que eles tivessem o tino para a organização dos dados, de acordo com critérios (no caso, o critério da sílaba final seria decisivo). Contudo, acho que por ter sido a primeiro contato com esse tipo de atividade e pelo tempo reduzido da aula, não houve retorno. Tive que dizer que precisávamos organizar os dados para ter alguma ideia de quando o diminutivo era com –inho ou com –zinho. Mais que isso (talvez de forma precipitada), disse que teríamos que olhar para os dados que tinham problemas, porque eram eles que nos diriam o que estava acontecendo. Olhar para os dados com as duas formas possíveis de diminutivo não traria informação nova. Apaguei então esses dados da lousa.

Inicialmente, os alunos voltaram aos critérios iniciais, tentando organizar de acordo com a sílaba ou letra inicial da palavra, com a relação semântica ou mesmo de acordo com o número de letras. Procurei não interferir e ia juntando os dados conforme eles decidiam. O interessante foi observar que eles mesmos começaram a perceber que o trabalho não estava dando certo, até que o mesmo grupo relembrou mais uma vez a dica da atividade: olhar para as sílabas finais. Nesse momento, a organização dos dados deslanchou. De posse dos dados organizados, começaram, eles mesmos, a reescrever a hipótese: Palavras terminadas em –é (chulé, café, pé) formam diminutivo só com –zinho.

Perguntei a eles o que palavras como chulé, caju, cajá, chapéu e pastel tinham em comum. Achei estranho que tenham demorado tanto para chegar à resposta (são oxítonas)... a escola trabalha com isso exaustivamente nos primeiros anos e não se observam resultados quando são realmente necessários. De qualquer forma, quando perceberam a semelhança, reformularam a hipótese: Palavras oxítonas formam diminutivo só com –zinho.

Os alunosnãochegaramàhipótese-alvodefinidapelapropostada atividade, tampouco conseguiram criar uma hipótese que superasse o nível descritivo e fosse elegante. Contudo, acho que uma hora e meia de aula de acordo com essa perspectiva é um tempo extremamente curto para exigir que essa demanda fosse cumprida. A hipótese a que chegaram foi a seguinte:

Para formar o diminutivo, acrescente –zinho à palavra se ela for monossílaba, oxítona ou paroxítona terminada em –r e –l; caso contrário, acrescente –inho ou –zinho.

Essa hipótese pode ser melhorada, mas o tempo já havia se esgotado. Apenas mostrei que colher não se encaixava na hipótese e que ela precisaria ser reformulada. Expliquei que a ciência funciona dessa maneira, mas elogiei o ponto ao qual tinham chegado, dizendo que aquela hipótese já conseguia responder muitas dúvidas do marciano.”

Como se pode ver, a experiência de testagem traz evidências de que um trabalho sistemático de acordo com essa nova perspectiva pode ser interessante para o aluno, tanto com relação ao estudo da língua quanto com relação a incorporar, de fato, o espírito científico de pensar sobre o mundo e resolver problemas.

Considerações finais

A escola brasileira, bem como os demais agentes educacionais do país (universidades e seus currículos de licenciaturas, MEC), tem diante de si o desafio de pensar novas formas de lidar com duas de suas questões fundamentais: a concepção de ciência que veicula e ensina e o modo como trata a dimensão formal da língua portuguesa. Pode-se obervar que essa tarefa não é nem um pouco banal nem facilmente exequível, haja vista o tempo em que ela vem sendo discutida na academia e a dificuldade que essa discussão encontra para conseguir eco na Educação Básica. A importante — e mote de diversas controvérsias — ponte entre universidade e escola básica, para esse caso, tem sido de construção difícil e lenta.

Esta reflexão sugere que um possível caminho para resolver parte desse impasse seja o de unir os dois objetos: pode-se estudar ciência justamente utilizando uma ciência, a Linguística, trazendo para a aula de português parte de seu aparato teórico e metodológico.

Na experiência de aplicação do material, os alunos chegaram a um resultado que poderia ser facilmente rebatido. Contudo, o valor desse trabalho não pode ser desprezado de maneira alguma. Os alunos conseguiram construir a hipótese final depois daquilo que foi defendido ao longo de cada parágrafo deste texto: pensando em dados relevantes, organizando esses dados, tentando encontrar algum que derrubasse a hipótese em questão, reformulando a hipótese derrubada e, mais uma vez, tentando encontrar outro dado não contemplado pela nova hipótese. Foi por meio do processo científico, pensando efetivamente, sendo desafiados de verdade que eles alcançaram esse resultado. Além disso, foi usando o conhecimento sobre a gramática de sua língua, da qual fazem uso e que lhes é significativa, que eles tiveram a oportunidade de refletir sobre ela e construir novos conhecimentos. Na pequena testagem apresentada, ficou evidente que a utilização de um modus operandi mais instigante para o estudo da língua contribuirá, certamente, para a educação científica do aluno brasileiro e para a reconstrução de visões sobre língua, variedade e norma.

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