Ordem das palavras nas sentenças Libras no corpus da Grande Florianópolis

Miriam ROYER,
Ronice Muller QUADROS

Resumo

O objetivo de pesquisa é analisar a estrutura das sentenças na Libras, com foco na ordem das palavras em estruturas com argumentos produzidos no Corpus de Libras com surdos da Grande Florianópolis. O estudo analisou interações em Libras, anotadas por meio do Sistema Eudico Annotator (ELAN). A análise dos dados foi feita a partir dessas unidades sintáticas com anotações específicas dos componentes de cada sentença. Para esta pesquisa, o foco foi nas sentenças com os argumentos pronunciados abertamente identificando-se os argumentos e suas posições sintáticas. Esta pesquisa verificou que a ordem básica das palavras na Libras em sentenças menos marcadas com argumentos pronunciados é SVO, confirmando estudos previamente publicados com base em dados elicitados (por exemplo, Quadros (1999) e Ferreira-Brito (1995)).

Introdução1

A Libras é uma língua per si, ou seja, não é uma representação da língua portuguesa; trata-se de uma língua com estrutura gramatical própria. Confirmamos isso ao analisar os dados que evidenciam ser esta língua completamente diferente da Língua de Sinais Portuguesa, usada em Portugal. Assim, como os países têm suas línguas faladas, estes mesmos países têm suas línguas de sinais. Uma diferença básica entre as línguas faladas e as línguas sinalizadas está na modalidade: as línguas faladas são orais-auditivas, com sistema articulatório que utiliza os canais auditivo e vocal para o seu processamento e produção, enquanto as línguas de sinais são visuo-espaciais, ou seja, línguas que usam sistema articulatório visual e espacial com o uso do corpo. Desse modo, para se comunicar em Libras, não basta apenas conhecer sinais isoladamente, entretanto é necessário conhecer a sua gramática para combinar estes sinais e formar sentenças e textos, assim como acontece com quaisquer línguas.

A temática sobre ordem das palavras na Libras já foi debatida entre diferentes pesquisadores (FERREIRA-BRITO, 1995[1]; QUADROS, 1999[2]; FELIPE; MONTEIRO, 2001[3]), entretanto estas pesquisas utilizaram a elicitação de dados para identificar as ordenações da Libras. Pela primeira vez, a pesquisa apresentada faz uso de dados que constituem um corpus de produções em Libras que refletem usos desta língua. A proposta foi exatamente buscar nestas produções em Libras as ocorrências das unidades sintáticas e identificar quais ordens de palavras se apresentam nesta língua. Anteriormente, as observações eram feitas pelos pesquisadores que assistiam e escreviam seus registros por meio de anotações manuscritas, muitas vezes com base em estudos por diários. Atualmente, temos ao nosso alcance a facilidade dos registros filmados em Libras e, ainda, contamos com um Corpus de Libras, assim como sistemas de anotação com base em vídeos que permitem análises mais sistematizadas. Com isso, temos em mãos a possibilidade de reanalisar a questão da ordem das palavras na Libras usando todo este aparato tecnológico disponível.

A pesquisa, portanto, objetiva analisar a estrutura da ordem sintática da Libras, em uma perspectiva descritiva, utilizando dados do Corpus de Libras com produções de usos desta língua. Mais especificamente, o objetivo é analisar a ordem das palavras nas sentenças em Libras registradas em vídeos no Corpus de Libras, de surdos da Grande Florianópolis. Nestas ordenações, identificar se há uma ordem mais básica da sentença na Libras nos casos em que os argumentos são preenchidos.

Para ilustrar as análises realizadas das diferentes sentenças no escopo deste artigo apresentamos a seguir um exemplo produzido pelas autoras: em português, “O cachorro come carne”, sentença classificada como SVO; que na Libras esta mesma proposição poderia se apresentar em outra ordem de palavras: OSV, como “CARNE, CACHORRO COMER”, conforme pode ser demonstrado na figura 1, com CARNE topicalizado. Por outro lado, poderia também ser produzida na ordem SVO sem tópico marcado: “CACHORRO COMER CARNE”, conforme a figura 2:

Figure 1. Figura 1: [ CARNETOP ], CACHORRO COMER Fonte: Royer (2019, p. 25[4]), OSV

Figure 2. Figura 2: CACHORRO COMER CARNE Fonte: Royer (2019, p. 26[4])

Se a sentença for topicalizada, é possível a mudança da ordem sujeito (S), verbo (V) e objeto (O), conforme apresentado em Quadros e Karnopp (2004[5]), em que o objeto pode ser topicalizado.

O Corpus de Libras disponibiliza registros nesta língua com interações entre surdos da Grande Florianópolis e de outras regiões do país. É um projeto nacional que inclui produções em diferentes contextos envolvendo diferentes práticas linguísticas. Os vídeos publicados fazem parte do domínio público, devidamente autorizados por seus participantes. Além dos registros em vídeos, o corpus conta com anotações básicas no ELAN, assim como com metadados. Atualmente, inclui os seguintes projetos: Libras Acadêmico; Exame ProLibras; Cursode Letras Libras EAD; Literatura em Libras; Inventário Nacional de Libras; Antologia de Poemas em Libras; Glossários em Libras. Segundo o projeto Corpus de Libras (2017[6]), a proposta compreende: “um corpus de Libras envolvendo registros em vídeo de situações eliciadas e espontâneas de uso, para ser utilizado em pesquisas e em outras finalidades aplicadas” (QUADROS et al. 2020, sem página[7]).

A presente pesquisa utiliza dados do projeto “Inventário Nacional de Libras”, que apresenta registros em vídeos e arquivos de transcrição e anotação dos dados. A pesquisa lança mão os dados deste inventário dos surdos da Grande Florianópolis. Juntamente com o aporte da pesquisa de corpus, a pesquisa também utiliza o software ELAN, pois este oferece a oportunidade de fazer uma análise mais detalhada integrando vídeos ao sistema de anotação. O ELAN permite a transcrição dos dados usando-se vídeos com trilhas estabelecidas para análise simultânea dos vídeos e das anotações, contribuindo para este trabalho, o que auxilia as análises descritivas das línguas de sinais, nesse caso.

A pesquisa desenvolvida usou o Manual de transcrição do Corpus Libras do Inventário Nacional (2017[6])2 com dados transcritos por pesquisadores disponibilizados no Corpus de Libras, sob domínio da UFSC. A transcrição utiliza glosas para cada mão usada na produção dos sinais e tradução para o português. Além destas anotações, foram realizadas anotações específicas para a elaboração desta pesquisa que serão detalhadas na apresentação da metodologia.

Além dos tipos de sentença, foram anotados os tipos de verbos usados na sentença: verbos simples e verbos com concordância (incluem verbos espaciais). Estes dois tipos de verbos compreendem verbos já descritos anteriormente na literatura brasileira sobre a língua de sinais (ver Quadros e Karnopp (2004[5])). Os verbos simples não apresentam nenhuma marca especial, enquanto os verbos com concordância apresentam uma trajetória espacial incorporando a posição estabelecida no espaço de sinalização para o sujeito e/ou objetos.

Realizada esta pesquisa, vimos que ela representa um primeiro passo para conhecer sobre a realidade dos usos da Libras na comunidade surda da região Grande Florianópolis por meio de um estudo situado teórico-epistemologicamente no âmbito da sintaxe com cunho descritivo, ou seja, com o objetivo de descrever a Libras a partir de práticas linguísticas entre surdos brasileiros utilizando esta língua em diferentes contextos de produção. Não se pode deixar de mencionar que essa foi uma pesquisa inicial que poderá incluir novas análises com dados de outras regiões do país, assim como análises mais aprofundadas dos próprios dados da Grande Florianópolis. Também deve ser mencionado que ao analisar os resultados relacionados às estruturas de ordem das palavras das sentenças em Libras foram realizadas análises qualitativas a fim de comparar as estruturas sinalizadas pelos participantes, o que confirmou que a ordem básica da Libras é SVO.

1. Ordem das palavrasnas sentenças em Libras

Stokoe (1960[8]) acrescenta em seus estudos análises de base fonológica apresentando os parâmetros primários e secundários que eram compreendidos na Língua de Sinais Americana (ASL). Este estudo representa um marco na história dos estudos das línguas de sinais, pois inaugura a entrada dos estudos das línguas de sinais no campo da linguística. A partir desta pesquisa Stokoe influenciou pesquisadores de diferentes países a estudarem suas respectivas línguas de sinais em diferentes níveis linguísticos, inclusive no nível da sintaxe. O contexto da pesquisa está no campo sintaxe, a proposta é um estudo descritivo a partir dos usos da Libras registrados no Grande Florianópolis.

O estudo realizado partiu de várias publicações sobre a sintaxe da Libras. Foram então encontrados diferentes tipos de referências e selecionamos algumas delas que discutiram a questão da ordem das palavras, conforme pode ser observado no quadro 1:

Nome de ordem Autores
Decifração da estrutura visual Rehfeldt (1983[9])
Ordem rígida das palavras Ferreira-Brito (1995[1])
Ordem básica das palavras em Libras Quadros (1999[2])
Ordem das frases na Libras Quadros e Karnopp (2004[5])
Ordem das sentenças em LSB? Araújo (2013[10])
Ordem dos constituintes em Libras Andrade (2015[11])
Ordem das palavras em língua de sinais Napoli, Sutton-Spence e Quadros (2017[12])
*. Quadro 1: Dados publicações das ordens Fonte: Original em dissertação de Royer (2019, p. 30[4]).

Os estudos da sintaxe das línguas de sinais apresentam um consenso sobre a ordem das palavras nas sentenças em Libras. Essa tem sido considerada uma língua SVO pela maioria dos estudiosos: Ferreira-Brito (1995[1]), Quadros (1999[2]), Quadros e Karnopp (2004[5]) e Araújo (2013[10]). Estas autoras indicam que a flexibilidade da ordenação de sinais é bastante produtiva, sendo também observada outras ordens, especialmente, a ordem OSV. No entanto, todos estes estudos foram feitos com base em dados elicitados ou coletados especificamente para fins da identificação da ordem das palavras.

Quadros(1999[2]) constataqueaordembásicadaspalavrasnaLibras é SVO e que a ordem das palavras OSV e SOV são derivadas do SVO. A autora observou também que as combinações dos constituintes VSO, VOS e OVS são ordens não aceitáveis nas sentenças na Libras e, portanto, são agramaticais. Observe-se o quadro 2 abaixo o qual sintetiza as possibilidades de ordenação das palavras, identificadas na tese de Quadros (1999[2]):

Word Order Yes No With Restriction
SVO X
OSV X
SOV X
VOS X
OVS X
VSO X
Table 2. Quadro 2: Ordem das palavras Fonte: Original Quadros (1999, p. 73[2]).

As restrições apontadas por Quadros (1999[2]), que se aplicam à produção de sentenças com ordens diferentes da ordem SVO, envolvem diferentes tipos de sentenças: interrogativas, estruturas com foco de ênfase, com foco contrastivo, sentenças topicalizadas e o uso de verbos considerados mais “pesados” (heavy verbs). A autora explica que estas sentenças são mais marcadas sintaticamente determinando uma nova ordenação derivada da ordem básica SVO. As novas ordenações são motivadas, portanto, por razões sintáticas e informacionais. No caso dos tipos de verbos, os verbos pesados são mais marcados incluindo mais informações morfossintáticas do que osverbossimples,osquaisprecisamsersinalizadosaofimdasentença. No caso específico dos verbos simples e com concordância, a ordem SVO pode ser aplicada. No entanto, os verbos com concordância podem gerar estruturas com diferentes ordenações porque o verbo marca o sujeito e objeto na sua composição morfológica, permitindo a recuperação dos seus argumentos, sem gerar ambiguidade na interpretação da sentença, o que não é possível com as sentenças com verbos simples. Estes verbos, por sua vez, não apresentam nenhuma informação sobre o sujeito e o objeto, não podendo ser produzidos com ordenações diferenciadas, a não ser quando há contexto recuperável nos casos de argumentos nulos. Como as análises feitas no presente artigo envolvem apenas estruturas com argumentos realizados, a proposta será identificar a distribuição dos verbos simples e com concordância observando as possíveis ordenações.

Quadros e Karnopp (2004[5]) apresentam como possível a ordem VOS a partir do estudo de Arrotéia (2003[13]) que, em sua dissertação de mestrado sobre negação, acabou identificando a ocorrência da ordem VOS, como expressão de FOCO. Segundo Arrotéia (2003[13]), as sentenças com foco permitem diferentes ordenações, inclusive a ordem VOS na interação com foco e construções negativas. Com isso, Quadros e Karnopp (2004[5]) apresentam um quadro com a revisão do quadro apresentado por Quadros (1999[2]):

Ordem Sim Com restrição
SVO X
OSV X
SOV X
VOS X
Table 3. Quadro 3: Distribuição da ordem das frases na língua de sinais brasileira Fonte: Quadros e Karnopp (2004, p. 156[5]).

Araújo (2013[10]) apresenta uma perspectiva interessante da sentença em Libras, tendo como foco a posição argumental de sujeito. A autora parte também das pesquisas de Felipe (1989[14]), Ferreira-Brito (1995[1]), Quadros (1999[2]), Quadros e Karnopp (2004[5]) e Pizzio, Quadros, Rezende (2008[15]) na sua pesquisa. Assim, apresenta a ordem SVO como a ordem básica, mas também as ordens OSV e SOV com restrições associadas à marcação não-manual. Segundo Araújo (2013[10]):

Na LSB, a disposição da evidência do marcador não manual ressalta uma marca suplementar que habilita modificações na ordem das frases, sustentando que a ordem canônica na LSB3 é SVO e, a partir dessa ordem fundadora, podem ser derivadas as ordens SOV, VSO, SV e V. (ARAÚJO, 2013. p. 97[10]).

Napoli, Sutton-Spence e Quadros (2017) consideraram dois tipos de verbos que elas nomeiam como intensionais e extensionais: (1) intensionais que precedem o objeto gerando a ordem SVO. Neste caso, o verbo expressa uma ação selecionando um argumento que sofre esta ação intensionalmente, ou seja, um intensão (normalmente verbos que expressam ações cognitivas); e (2) extensionais que sucedem o objeto gerando a ordem SOV, pois o objeto envolve algo concreto selecionado pelo tipo de verbo com alto valor icônico (normalmente verbos instrumentais e operacionais). Pode ser destacado que embora a ordem básica seja SVO, as autoras observaram outras possibilidades de ordenação diante de vários fatores, especialmente considerando a força da iconicidade que parece gerar verbos mais complexos do ponto de vista morfofonológico.

As pesquisas sobre a ordem das palavras na Libras, elencadas de forma sucinta até aqui, foram desenvolvidas com diferentes perspectivas, mas mesmo assim, todas indicam a ordem das palavras SVO como básica, sem desconsiderar outras possíveis ordenações. A pesquisa apresentada no escopo deste artigo torna-se relevante por se pautar em dados de uso da língua registrados no Corpus de Libras. Dessa forma, partindo da metodologia do desenvolvimento do corpus constituído por surdos que adquiriram a desde pequenos, trazemos novos olhares sobre o fenômeno da ordem das palavras na Libras.

2. Métodos

O Corpus de Libras conta com entrevistas, conversas e narrativas de surdos de diferentes regiões do país. O primeiro estado a contar com estes registros foi o de Santa Catarina, com a participação de surdos moradores da Grande Florianópolis. Inicialmente, foram postados vídeos em língua de sinais para convidar as pessoas para participar da constituição do Corpus de Libras, por meio do projeto do Inventário de Libras da Grande Florianópolis. Os surdos que aceitaram integrar o Corpus de Libras da Grande Florianópolis, após assinarem termo de consentimento livre e esclarecido4, foram filmados em estúdio, em um ambiente amigável com outros surdos que fazem parte de suas redes sociais.

A coleta aconteceu procurando criar um acontecimento envolvendo o encontro surdo-surdo, tão importante nas comunidades surdas. Apesar do contexto de estúdio, percebemos que os participantes se sentiam à vontade em conversar por duas razões: conhecerem a entrevistadora que faz parte das mesmas comunidades de práticas linguísticas da Grande Florianópolis e por estarem com um de seus amigos interagindo em Libras. A questão do encontro surdo-surdo é um acontecimento importante que motiva os surdos a conversarem de modo mais espontâneo, pois eles anseiam em encontrar seus pares surdos pela oportunidade de interagir efetivamente na sua língua, a Libras (STROBEL, 2008[16]; PERLIN; MIRANDA, 2003[17]).

A figura a seguir ilustra a organização das câmeras usadas nestas filmagens para captura dos vídeos:

Figure 3. Figura 3: Mapa espaço de filmagem Fonte: Original em Dissertação de Royer (2019, p. 84[4]).

O Corpus de Libras compreendeu um conjunto bastante extenso de dados. Para a presente pesquisa foram selecionadas as entrevistas com quatro surdos da Grande Florianópolis, dois homens e duas mulheres, que tiveram a aquisição da língua de sinais antes de completar a idade de quatro anos. Estes dados compreendem um total de 53 minutos de conversas, totalizando 3.738 sinais produzidos com a mão dominante, com um total de 1.102 unidades sintáticas, das quais 60 são sentenças transitivas com argumentos preenchidos. A seguir, apresentam-se os quatro participantes selecionados para integrarem a presente pesquisa por meio do figura 4.

Figure 4. Figura 4: Detalhe do nome de vídeos de Corpus de Libras Fonte: Original em Dissertação de Royer (2019, p. 93[4]).

Depois de selecionados os materiais em vídeos e os arquivos de anotação (eafs), foi utilizado o software ELAN[18] com trilhas específicas para a análise da ordem das palavras. Os dados anotados foram ajustados considerando-se o “Manual de transcrição do Corpus de Libras”, integrante do projeto do Inventário Nacional de Libras (2017[6]).

As trilhas estabelecidas nesta pesquisa foram as seguintes:

SinaisD – sinais produzidos pela mão direita;

SinaisE – sinais produzidos pela mão esquerda;

Tradução – tradução para a língua portuguesa com base na proposição;

Unidade sintática – transcrição das unidades sintáticas que compreendem pelo menos um verbo;

Tipos de sentença – tipos de sentenças identificados nas unidades sintáticas;

Tipos de verbos – verbos simples e verbos com concordância.

Os tipos de sentença foram inseridos mediante vocabulário controlado e incluíram as seguintes informações: (i) sentença topicalizada; (ii) sentença com foco; (iii) declarativa simples; (iv) sentença negativa; (v) sentença interrogativa.

Na trilha ordem das palavras foram inseridas as respectivas ordenações identificadas com vocabulário controlado: SVO, SOV, OSV, OVS, VSO, VOS (detalhamento no quadro 4).

SVO sujeito, verbo e objeto
SOV sujeito, objeto e verbo
VSO verbo, sujeito e objeto
VOS verbo, objeto e sujeito
OSV objeto, sujeito e verbo
OVS objeto, verbo e sujeito
Table 4. Quadro 4: Vocabulário controlado de ordem sintática Fonte: Original em Dissertação de Royer (2019, p. 108[4])

A proposta de pesquisa foi identificar os tipos de estrutura da ordem das sentenças nas produções dos participantes surdos da Grande Florianópolis com foco nas produções que tenham todos os elementos sinalizados, excluindo-se, assim, do escopo da presente pesquisa as sentenças realizadas com omissões e argumentos nulos.

3. Resultados e discussão

A pesquisa foi realizada com análises dos vídeos a partir do Corpus de Libras. Foram analisadas apenas as estruturas com verbos transitivos que selecionam pelo menos um argumento externo como sujeito e um argumento interno como objeto. Esta decisão está relacionada com o fato de identificarmos a ordem das palavras em sentenças com argumentos preenchidos, evitando-se assim interpretações de sentenças que omitem ou apresentam argumentos nulos por razões discursivas ou sintáticas neste momento da pesquisa.

Também já há algumas restrições observadas por outros autores em relação à posição dos argumentos na sentença. Diferentes autores observam a ordem SVO como básica em sentenças nas quais os argumentos estão realizados. Na amostra do corpus analisada, o gráfico aponta 1162 sentenças, além de 60 sentenças transitivas com argumentos realizados, ou seja, um total de 1222 sentenças. Conforme apresentado no gráfico 1:

Figure 5. Gráfico 1: Quantitativo de anotações de unidades sintáticas em Libras Fonte: Original em Dissertação de Royer (2019, p. 113[4])

O gráfico 1 evidencia que a maioria das sentenças são produzidas com argumentos omitidos ou nulos. Isso se justifica, uma vez que os dados são coletados em contexto de conversa enquanto prática discursiva mais espontânea, mesmo que coletada em estúdio. A interação no momento em que a dupla interage para a coleta dos dados envolve comentários, explicações, perguntas e respostas, ideias completas e fragmentos. Nesse contexto, a omissão dos argumentos é muito produtiva e completamente recuperável, mas, mesmo assim, decidimos focar apenas nas produções com todos os argumentos realizados. Essa decisão restringiu bastante o conjunto de sentenças analisadas, mas foi um passo importante, pois os dados, mesmo sendo restritos, apontaram resultados muito interessantes. Portanto, a investigação estabeleceu-se a partir das análises da interação de elementos da estrutura sintática na Libras evidenciando a ordem SVO, assim como outras possíveis ordenações.

Seguem exemplos da ordem das palavras observando a ordem SVO, assim como as ordens SOV e VSO:

Neste primeiro bloco, estão apresentados exemplos de sentenças com a ordem SVO. São sentenças transitivas com o sujeito e objeto devidamente preenchidos. Nos exemplos selecionados acima, os três primeiros apresentam sentenças com verbos simples e os três seguintes com verbos com concordância. Independente da seleção dos verbos, as sentenças com argumentos realizados indicam a ordem SVO.

Figure 7. Figura 6 - Ordem Sintática: SOB Fonte: elaboração pelas autoras (2020)

Neste segundo bloco, apresentamos os exemplos com a ordem SOV com topicalização. As construções topicalizadas estão associadas com marcações não-manuais, assim como com pausas entre os argumentos. As duas sentenças envolvem estruturas negativas. Isso pode estar impactando na ordenação escolhida, pois as sentenças negativas são informacionalmente mais marcadas. Nestes dois exemplos, também temos o verbo incorporando a negação. Isso torna estes verbos mais pesados morfologicamente. O fato de haver verbos mais pesados já foi atestado como razão para mudanças na ordem das palavras por Quadros (1999[2]).

Figure 8. Figura 7: Ordem Sintática: VSO Fonte: elaboração pelas autoras (2020)

Neste último bloco, apresentamos dois exemplos com a ordem VSO. Os dois exemplos foram introduzidos com elementos que estabelecem a coesão textual do discurso em produção, o sinal ENTÃO. No primeiro exemplo, a participante ainda produz o sinal DEPOIS. Há uma pausa entre os elementos coesivos e o resto da sentença. Claramente há também a elevação da cabeça que é um mecanismo que estabelece transição sentencial na Libras. A parte destacada, indica o verbo associado ao sujeito de primeira pessoa. PASSAR EU e CHEGAR EU. O objeto LETRAS-LIBRAS e o locativo SALA ALUNO SALA como objeto da sentença estão na posição final, derivando a ordem VSO.

Este tipo de construção com o sujeito pronominal seguindo o verbo é uma construção típica, embora não seja tão produtiva quanto a ordem SVO. Quadros e Karnopp (2004[5]) também atestaram o pronome duplicado EU PASSAR EU, EU CHEGAR EU. Esta duplicação pode indicar a presença de foco de ênfase (QUADROS, 1999[2]), com o apagamento da instância inicial por razões derivacionais (ver mais detalhes em Nunes e Quadros (2004, 2008[19,20]), mas não foi atestado nos dados analisados. De qualquer forma, os argumentos externos foram realizados após o verbo e foram seguidos pelo objeto da sentença configurando a ordem VSO.

A seguir apresentamos uma síntese dos resultados a partir da análise das produções dos quatro surdos da Grande Florianópolis que foram analisados no âmbito da presente investigação, considerando sentenças transitivas com os argumentos realizados, conforme o gráfico 2:

Figure 9. Gráfico 2: totais ordens sintáticas Fonte: elaboração pelas autoras (2020)

Esse gráfico apresenta 87% (54 sentenças) com ordem SVO, seguidas de 10 % (6 sentenças) com ordem SOV e apenas 3% (2 sentenças) de ordem VSO. As ordens VOS, OSV e OVS não foram atestadas no conjunto de sentenças com argumentos pronunciados. Confirmou-se que a maioria das sentenças com verbos transitivos apresentou a ordem básica SVO, conforme evidenciado no Corpus de Libras com a língua em uso. Assim, também podemos afirmar que os dados analisados do Corpus de Libras apresentam relação com os estudos previamente realizados com base em intuições elicitadas de sinalizantes de Libras. De acordo com Ferreira-Brito (1995[1]), Quadros (1999[2]), Quadros e Karnopp (2004[5]), Araújo (2013[10]) e Napoli, Sutton-Spence e Quadros (2017[12]), os dados analisados confirmam que a estrutura básica da Libras é SVO.

As ordenações diferenciadas apresentaram-se em número bastante reduzido, mas indicam a possibilidade de haver diferentes ordenações das palavras na Libras, assim como também foi atestado em estudos anteriores. A flexibilidade da ordem das palavras atestada por Ferreira-Brito (1995[1]), Quadros (1999[2]), Quadros e Karnopp (2004[5]), Araújo (2013[10]) e Napoli, Sutton-Spence e Quadros (2017[12]), no entanto, parece ser bastante restrita a fatores sintáticos e informacionais. No caso do presente estudo, identificamos que sentenças topicalizadas e sentenças com foco podem derivar diferentes ordenações, tais como SOV e VSO. Também se observou a derivação de sentenças com diferentes ordenações em função do tipo de verbo selecionado, ou seja, sentenças com verbos mais pesados morfologicamente na ordem SOV. Parece que a sobrecarga de informações morfológicas, sintáticas e informacionais impactam no ordenamento das palavras na sentença em Libras.

Os resultados também são interessantes porque parecem complementar os estudos com base em dados elicitados. Os achados a partir dos usos até agora analisados corroboram os resultados encontrados nos estudos que foram realizados com outros métodos depesquisa. Isso indica a possibilidade de usarmos múltiplos métodos para corroborar resultados encontrados em diferentes estudos linguísticos e confirmar aspectos da estrutura de uma dada língua. A continuidade de estudos sobre os usos nas diferentes práticas linguísticas pode servir, portanto, para confirmar e complementar estudos já realizados anteriormente, fortalecendo estudos com diferentes abordagens metodológicas.

Conclusão

Esta pesquisa investigou a ordem das palavras nas sentenças em Libras com base em um corpus da Libras de quatro participantes surdos da Grande Florianópolis, com o uso de registros em vídeos associados ao programa ELAN. Os resultados da pesquisa indicam o uso da ordem SVO com sentenças produzidas com argumentos realizados. Além desta ordenação, parece haver outras ordenações bastante restringidas do ponto de vista morfológico, sintático e informacional. Quando as sentenças apresentam uma complexidade morfológica, sintática e informacional mais marcada, parece impactar na ordem das palavras forçando uma reorganização da sentença. Os fatores observados foram a sobrecarga morfológica nos verbos, a marcação sintática e informacional de foco e tópico. Estas estruturas podem gerar estruturas com ordenações alternativas à ordem SVO. Todas as estruturas identificadas com a ordem sintática SVO foram mais simples (declarativas afirmativas).

A pesquisa realizada pode impulsionar as pesquisas com dados do Corpus de Libras em outros estados. Diante do contexto da pesquisa, se faz necessário a ampliação do corpus de análise com foco na ordem das palavras em Libras, considerando sentenças transitivas, intransitivas, com e sem argumentos realizados. A distribuição de todas as possibilidades atestadas nos darão mais informações sobre a estrutura das sentenças na Libras, ampliando as explicações sobre as diferentes ordenações na Libras. Os dados sem argumentos realizados, ou seja, com argumentos omitidos ou nulos, são muito extensos e prometem a identificação de mais elementos para explicar a distribuição da ordem das palavras nesta língua.

Nessa pesquisa também nos detivemos a um tipo de prática discursiva que envolveu as entrevistas em formato de conversa coletadas no âmbito do Inventário da Libras da Grande Florianópolis. Para futuras pesquisas, incluiremos também as produções nas práticas linguísticas envolvendo conversas livres e temáticas, assim como práticas envolvendo narrativas, para verificar se nesses casos a ordem básica das palavras em Libras mantêm os mesmos resultados identificados até o momento ou se trazem também outros elementos para compor nossas análises.